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GOT, Revista de Geografia e Ordenamento do Território

 ISSN 2182-1267

     

https://doi.org/10.17127/got/2016.10.006 

ARTIGO

 

A definição de frente ribeirinha: subsídios para uma delimitação conceptual e espacial

The definition of riverfront: contribution to a conceptual and spatial delimitation

 

 

Fernandes, André1; Sousa, João1

1Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA), Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa; Avenida de Berna, 26-C, 1069-061 Lisboa, Portugal; andre.fernandes@fcsh.unl.pt; j.fsousa@fcsh.unl.pt

 

 

RESUMO

As frentes ribeirinhas têm-se afirmado como territórios privilegiados para a prossecução de projetos urbanos objetivados na criação de condições promotoras da sua revitalização e reapropriação. Não obstante, constata-se a ausência de um léxico estabilizado quanto a estas unidades físico-geográficas, aspeto que se repercute na dificuldade de delimitação conceptual e espacial das mesmas. Partindo deste reconhecimento, o artigo discute a necessidade de estabilização do conceito de frente ribeirinha e apresenta uma proposta de delimitação aplicada, baseada num âmbito espacial alicerçado em critérios diferenciados, consoante estejam em causa (i) espaços urbanos, ou (ii) espaços naturais, agrícolas, agroflorestais e verdes urbanos. Com base nesta delimitação, procede-se à operacionalização do conceito, aplicando-o no Arco Ribeirinho Sul do Estuário do Tejo.

 

Palavras-chave: frente de água, frente ribeirinha, área ribeirinha, espaço ribeirinho, Estuário do Tejo.

 

ABSTRACT

Riverfronts have been assumed as prime locations for implementation of urban projects aimed to create conditions that would promote their revitalization and reappropriation. However, the absence of formal vocabulary which could be applied to these specific physical and geographical units results in difficulties of conceptual and spatial delimitation of these spaces. Acknowledging this aspect, the article discusses the need to clarify the concept of riverfront and presents a proposal for an applied delimitation, based on the assumption of a spatial scope backed up by different criteria, depending on the land use of these territories, namely (i) urban spaces, or (ii) natural, agricultural, agroforestry and urban green spaces. Based on this delimitation, the article implements the concept by applying it to the case of the South bank of the Tagus Estuary.

 

Keywords: waterfront, riverfront, riverine area, riverine space, Tagus Estuary.

 

 

1. Introdução

A atratividade exercida pelos territórios de interface terra-água no período pós-industrial é indissociável de um conjunto de transformações estruturais determinantes da sua constituição como espaços privilegiados para a prossecução de operações de intervenção urbana de diferentes naturezas (e.g. operações de regeneração urbana, operações de renovação urbana, operações de reabilitação urbana). Algo que levou a que o tema da revitalização das frentes de água ocupasse um lugar de destaque enquanto objeto de investigação multidisciplinar. A sua importância traduziu-se mesmo no entendimento de que a frente de água deveria ser assumida como uma nova “categoria” urbana, tal como proposto por Bruttomesso (2001). O recrudescimento do interesse pelo tema conduziu então à multiplicação de publicações sobre as frentes de água, de que resultou uma diversidade assinalável de informação, conduzindo a que alguns autores apresentassem mesmo propostas de organização temática da mesma. É o caso de Costa (2007) que, para o domínio específico das transformações na relação porto/cidade, propôs uma organização estruturada em três grandes grupos: (i) binómio porto/cidade; (ii) tipos de fontes; e, (iii) temas de estudo específicos (Costa, 2007).

Numa perspetiva disciplinar, entre o conjunto de disciplinas que conferiram particular atenção à análise e interpretação destes processos de transformação e reorganização territorial e funcional em frentes de água conta-se a Geografia, com destaque para os trabalhos de referência desenvolvidos por Bird (1963), Hoyle (1994), Hayuth (1994) ou, mais recentemente, por Desfor et al. (2011). São igualmente vários os trabalhos que incidiram na análise do processo específico de retirada das funções portuárias e industriais das frentes de água e no estudo das operações de revitalização destes territórios, de que são exemplo os trabalhos do National Research Council – Committee on Urban Waterfront Lands (1980), Bruttomesso (1993), Hoyle et al. (1994), Breen e Rigby (1994, 1996), Malone (1996), Meyer (1999), Marshall (2001), Urban Land Institute (2004) ou Smith e Garcia Ferrari (2012).

Acresce que, no contexto do amplo conjunto de operações de intervenção urbana realizadas em frentes de água, parte teve lugar em territórios de interface terra-água localizados em espaços estuarinos/fluviais. As especificidades físico-geográficas inerentes a estes espaços acabaram por se refletir na recorrência da adoção da expressão Frente Ribeirinha. Como exemplo da utilização contextual da expressão Frente Ribeirinha veja-se, por exemplo, os trabalhos de Gaspar (2000), Salgado (2012) e Fernandes e Figueira de Sousa (2014), assim como os seguintes documentos de natureza técnica: “Proposta para Revitalização de Frentes Ribeirinhas” (Administração do Porto de Lisboa, 1990); “Plano Geral de Intervenções da Frente Ribeirinha de Lisboa” (Câmara Municipal de Lisboa, 2008); “Projecto do Arco Ribeirinho Sul” (Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional, 2009); “Plano Integrado da Rede de Infra-estruturas de Apoio à Náutica de Recreio no Estuário do Tejo” (Administração do Porto de Lisboa, 2010).

Não obstante esta utilização generalizada da expressão Frente Ribeirinha, denota-se a ausência de uma definição clara e comummente aceite do conceito que lhe subjaz (delimitação conceptual) e do seu remissivo espacial (delimitação espacial). Face ao exposto, e em virtude da multiplicação de intervenções em frentes ribeirinhas em diferentes contextos territoriais – de que é exemplo o Estuário do Tejo –, torna-se evidente a necessidade de estabilização de uma dupla delimitação conceptual e espacial. Uma delimitação aplicada (com enfoque nos domínios do urbanismo, do ordenamento e planeamento do território), suficientemente clara e abrangente para permitir a sua adaptação a casos específicos e que favoreça: (i) a criação de uma definição de referência para o estudo das intervenções em áreas de interface terra-água, localizadas em diferentes territórios estuarinos/fluviais; (ii) um mais efetivo reconhecimento das especificidades destes territórios no âmbito dos instrumentos de gestão territorial; (iii) a prossecução de intervenções de revitalização que concretizem as oportunidades que estes territórios encerram, promovendo a sua reapropriação económica e social.

Com efeito, o artigo começa por discutir o conceito de Frente Ribeirinha, ensaiando uma proposta de delimitação aplicada, baseada na assunção de um âmbito espacial suportado em critérios diferenciados, de acordo com a natureza da ocupação destes territórios de interface. Partindo desta delimitação, procede-se seguidamente à aplicação do conceito ao Arco Ribeirinho Sul do Estuário do Tejo.

 

 

2. Problematização: discussão do conceito de Frente Ribeirinha

O termo Ribeirinho é utilizado, de forma generalizada, para se referir ao conjunto, ou a parte, dos terrenos envolventes a uma ribeira ou rio, corroborando aparentemente a sua definição corrente, enquanto adjetivo que classifica “que ou o que vive junto de ribeiras ou rios; assentado à margem de ribeira, de rio” (Instituto António Houaiss, 2003). Para além de pouco precisa, esta definição compósita apresenta-se igualmente pouco clara, uma vez que o âmbito espacial para o qual as explicações remetem não é similar, ainda que em ambas a utilização do adjetivo Ribeirinho pareça corresponder exclusivamente à parte emersa (não sendo por isso considerado o plano de água). Note-se que o primeiro significado é espacialmente mais abrangente, na medida em que entende como Ribeirinho aquilo que está junto a um rio/ribeira (não colocando em evidência a necessidade de contacto direto com o elemento fluvio-marítimo), embora não definindo limites específicos. Por sua vez, a segunda significação é mais restrita, reportando para a noção de Margem – i.e., para a “faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas” (Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro).

Na bibliografia portuguesa de cariz científico e técnico especializada nas áreas do urbanismo, planeamento e ordenamento do território, assim como na bibliografia generalista, é frequente associar-se o termo Ribeirinho aos termos Frente (Frente Ribeirinha), Área (Área Ribeirinha) e Espaço (Espaço Ribeirinho) para designar a parte da superfície terrestre adjacente ou próxima de um rio/estuário. A análise de vasta documentação permite concluir que estas expressões são muitas vezes utilizadas de forma indiferenciada e sem rigor conceptual, aspeto aparentemente demonstrativo da reduzida relevância atribuída pela comunidade científica e técnica a esta distinção, o que poderá dever-se a um entendimento tácito de que o significado das expressões é claro na perspetiva do seu remissivo espacial – faixa de terreno marginal ao corpo de água. Tal é, todavia, indissociável da inexistência de um léxico estabilizado no que concerne a estas unidades físico-geográficas, o que acaba por se repercutir na dificuldade de delimitação conceptual (induzindo uma falta de clareza conceptual e terminológica) e espacial das mesmas.

A análise contextual da utilização das expressões Frente Ribeirinha, Área Ribeirinha e Espaço Ribeirinho permite, ainda assim, ensaiar uma diferenciação baseada exclusivamente em critérios de posição (proximidade em relação ao plano de água), funcionais/uso do solo e âmbito espacial. Desta análise depreende-se que a expressão Frente Ribeirinha é utilizada, essencialmente, para se referir ao interface terra-água que compreende a faixa ou extensão de terreno contígua a um curso de água, com uso urbano/industrial e com um âmbito espacial restrito, que inclui frequentemente o plano de água adjacente. Esta assunção do plano de água como parte integrante deste território de interface terra-água está bem patente, por exemplo, nos planos/projetos que contemplam: (i) o desenvolvimento de infraestruturas de apoio à náutica de recreio (e.g. marinas, portos de recreio ou outras infraestruturas ligeiras), que criam a possibilidade de utilização e fruição do plano de água adjacente; (ii) a instalação de equipamentos que visam garantir uma maior permeabilidade do plano de água e, assim, proporcionado um contacto mais intenso com a água (e.g. passadiços sobre o plano de água, pontões ou outras estruturas avançadas sobre o plano de água); (iii) a criação de espaços apostados na valorização do enquadramento cénico/paisagístico proporcionado pelo plano de água (e.g. estruturas em anfiteatro abertas sobre o plano de água). Com efeito, a Frente Ribeirinha tende assim a confinar-se uma faixa de largura variável (dependendo, por exemplo, da morfologia urbana) integrada num conjunto urbano que contacta fisicamente com o rio/estuário (Figura 1). Esta aproximação interpretativa ao conceito de Frente Ribeirinha acaba por se enquadrar nas definições correntes de Frente de Água/Waterfront, com a particularidade de respeitar a uma frente confinada a um rio ou estuário.

 

 

Neste âmbito, destaca-se a definição de Frente de Água apresentada pelo US Federal Coastal Zone Management Act que, ao apontar para “any developed area that is densely populated and is being used for, or has been used for, urban residential, recreational, commercial, shipping, or industrial purposes” (OOCR, 1972 cit in Dong, 2004), corrobora o critério funcional/uso do solo supra enunciado. No mesmo sentido, ainda que apresentando uma definição mais genérica, Vallega aponta para uma definição de Frente de Água que corresponde a “part of a town which fronts on a natural body of water” (Vallega, 1993). Outra definição de Frente de Água Urbana (Urban Waterfront), também ela abrangente, é proposta por Breen e Rigby, a qual remete para as “water’s edge in cities and towns of all sizes” (Breen e Rigby, 1994). Para uma delimitação mais objetiva desta definição, refira-se ainda que os autores acrescentam que “a waterfront project may include buildings that are not directly on the water but are tied to it visually or historically, or are linked to it as part of a larger scheme” (Breen e Rigby, 1994). Como se pode depreender, estes autores apontam para um entendimento de Frente de Água como orla, não estabelecendo uma delimitação espacial associada a um critério quantificável, mas antes remetendo para uma área urbana que estabelece uma relação direta de contacto (físico ou simbólico) com o plano de água. Esta relação não se limita, portanto, a uma dimensão física, incluindo o contacto visual e a relação histórica com a água, ou uma ligação suportada na integração num amplo conjunto urbano marginal. Por sua vez, na perspetiva de Costa, as frentes de água em cidades fluviais correspondem a “una unidad conceptual dentro de su organización general (el corredor de contacto de estas ciudades con sus ríos), no es todavía un territorio unitario, sino la yuxtaposición de múltiples riberas en el espacio y en el tiempo” (Costa, 2007). Uma definição particularmente interessante, porquanto introduz uma dimensão temporal que se repercute na mutabilidade deste território e, por conseguinte, na plasticidade dos seus limites. I.e., as transformações aqui ocorridas ao longo do tempo são passíveis de determinar alterações na sua delimitação espacial, tanto do lado de terra (land side) como do lado da água (waterside). São disso exemplo as alterações decorrentes da realização de aterros, de mudanças dos usos e ocupação do solo ou da introdução de estruturas (e.g. edifícios, infraestruturas de transporte) indutoras da transformação da relação (nomeadamente física, funcional e visual) com o plano de água.

Alguns autores têm ainda procurado delimitar espacialmente as Frentes de Água através de critérios quantitativos. É o caso de Guo que “sees the waterfront as the area in the city where land meets water, spatially, an area including 200m-300m from the interface to the water side and 1km-2km (that is about a 15min-20min walking distance) to the land side” (Guo, cit in Dong, 2004). No âmbito de um trabalho de investigação integrado no Projeto “RiProCity – Rios e Cidades, oportunidades para a sustentabilidade urbana” (2005-2009), Pinto estabeleceu uma metodologia para a delimitação espacial de frentes ribeirinhas, aplicada ao universo das cidades fluviais portuguesas, com o objetivo de avaliar a extensão de contacto entre o rio e a cidade. Esta metodologia baseou-se no pressuposto de que as áreas integradas em núcleos urbanos que distam menos de 150 metros do rio desenvolvem uma relação direta de contacto com este. Daqui resulta que a Frente Ribeirinha é “equiparada à extensão de contacto assim medida: a extensão de cidade, medida paralelamente à margem, que se situa a menos de 150m do rio” (Pinto, 2007). Para além destes trabalhos, outros têm definido critérios quantitativos para delimitar as Frentes Ribeirinhas (ou Frentes de Água), nomeadamente trabalhos de natureza técnica, focados em casos específicos (e.g. masterplans ou planos diretores para frentes de água). São disso exemplo os Township Official Plans de Peterborough, Muskoka Lakes e Dysart, no Canadá (Landmark Associates Limited e Fotenn, 2012).

Note-se, porém, que um critério que limita a Frente Ribeirinha exclusivamente à faixa dos núcleos urbanos adjacente ao plano de água não é consensual, porquanto poderá remeter mais para uma conceptualização de Frente Ribeirinha enquanto rebordo urbano marginal do que para uma noção de orla ribeirinha, perspetiva presente nas várias definições supracitadas. Do ponto de vista técnico, uma interpretação espacialmente restrita, mas conceptualmente flexível de Frente Ribeirinha, é corroborada, por exemplo, pelo Plano Diretor Municipal (PDM) de Lisboa, quando é estabelecido neste instrumento que “a frente ribeirinha (…) não se restringe à faixa marginal sob jurisdição portuária mas sim ao território assinalado no PDM que vai da margem à crista da primeira linha de colinas que forma o anfiteatro aberto ao Tejo” (Câmara Municipal de Lisboa, 2008) – Figura 2. Está assim em causa a aplicação de um critério de natureza eminentemente morfológica, em detrimento de uma abordagem focada em critérios de morfologia urbana.

 

 

Por sua vez, Goodwin argumenta que as frentes de água variam muito em termos de escala e complexidade, concluindo que “the extent of waterfront districts may be self-evident because they are contained between reaches of relatively homogeneous land uses” (Goodwin, 1999). Este autor acrescenta ainda que “in other cases the boundaries may be indistinct, particularly where long reaches of industrial waterfront have been abandoned and only a small part abuts a commercial center or residential neighborhood” (Goodwin, 1999).

Esta análise coloca assim em evidência a dificuldade de delimitação conceptual e espacial de Frente Ribeirinha. Um dado indissociável do facto de se tratar de uma área de transição, como também da multiplicidade de critérios passíveis de consideração, em que podem influir diversos fatores, tais como: (i) a morfologia dos aglomerados urbanos que servem de suporte à delimitação; (ii) a morfologia da superfície de contacto terra-água; (iii) a dimensão do aglomerado urbano e da extensão de contacto; (iv) a perspetiva temática que enquadra o exercício de delimitação (e.g. perspetiva urbanística, perspetiva patrimonial, perspetiva funcional). A Tabela 1 sistematiza vários exemplos de aplicação de critérios de delimitação espacial de Frentes Ribeirinhas.

 

 

Relativamente à expressão Área Ribeirinha, esta remete para a superfície emersa em contacto ou próxima do rio/estuário e para o plano de água adjacente, estendendo-se para o interior, para além da frente de água, embora sem limites precisos. Apresenta, assim, um âmbito espacial mais alargado, envolvendo o território que estabelece algum tipo de relação de natureza física, biológica, funcional/socioeconómica ou cultural com o rio/estuário, abarcando por isso vários usos do solo (Figura 3).

 

 

Como exemplo de utilização diferenciada das expressões Frente Ribeirinha e Área Ribeirinha, cuja interpretação corrobora as aproximações conceptuais propostas, destaca-se o trabalho de Gaspar (2000) sobre “A organização territorial e os transportes aquáticos na Área Metropolitana de Lisboa”. Neste trabalho é referido que “tem-se assistido, mercê de vários factores – da promoção do imobiliário ao mimetismo relativamente à tendência noutros países – a uma atracção pelas áreas ribeirinhas, enquanto áreas de lazer e áreas residenciais”, para seguidamente, a propósito da formulação da operação integrada do Parque das Nações (Lisboa) como modelo de intervenção, o autor considerar que “é difícil que tal aconteça, porque vai não só contra as tendências de desenvolvimento da AML e de Lisboa em particular, mas também contra as tendências seculares de ocupação da frente ribeirinha” (Gaspar, 2000). Pelo que acaba de ser exposto, considera-se que o autor interpreta o conceito de Área Ribeirinha como um espaço alargado envolvente ao plano de água que se estende para além da Frente Ribeirinha, expressão esta que parece associar aos conjuntos urbanos confinados à faixa de terreno contígua ao plano de água.

Por sua vez, a utilização da expressão Espaço Ribeirinho está mais relacionada com uma vertente ecológica, remetendo para o espaço de suporte das inter-relações que subjazem aos sistemas ecológicos ribeirinhos, incluindo assim o curso de água (rio/estuário/ribeira), as suas margens e a área emersa onde se estabelecem estas inter-relações (Figura 4). A associação desta expressão a uma vertente ecológica está presente, por exemplo, no Plano Regional de Ordenamento do Território da Área Metropolitana de Lisboa (PROT-AML), quando este documento refere:

 

 

  • “Os espaços ribeirinhos dos estuários do Tejo e Sado e a Orla Costeira Norte e Sul podem ter um papel destacado na requalificação da vida metropolitana, oferecendo condições privilegiadas para o recreio, lazer e turismo na ligação ao mar, aos rios e à natureza, integrando a estrutura ecológica metropolitana, no sentido de assegurar o necessário equilíbrio e complementaridade com os valores ambientais, designadamente os das áreas classificadas” (Comissão de Coordenação da Região de Lisboa e Vale do Tejo, 2002).
  • “A sua natureza ribeirinha [Eixo Sacavém-Vila Franca de Xira] proporcionava à partida excelentes condições naturais, mas a ocupação do território processou-se de uma forma pesada, não aproveitando essas potencialidades, verificando-se, nomeadamente, a implantação de extensos cordões de construções industriais junto ao rio que impossibilitam a fruição do espaço ribeirinho e impedem as ligações do sistema ecológico entre o interior e o rio” (Comissão de Coordenação da Região de Lisboa e Vale do Tejo, 2002).

 

Note-se que a variabilidade das características destes sistemas ecológicos dinâmicos e de interface (em que se incluem as modificações resultantes de ações antrópicas, nomeadamente as formas de ocupação humana), determina que a amplitude do espaço físico ocupado por estes habitats seja igualmente variável. Este facto dificulta, assim, o estabelecimento de uma delimitação espacial de Espaço Ribeirinho através de um critério quantitativo único de aplicação universal.

Face ao exposto, e considerando a dificuldade de proposição de uma delimitação universal inerente ao conceito, propõe-se a seguinte delimitação compósita correspondente a Frente Ribeirinha:

  1. a área que estabelece a relação de contacto do aglomerado urbano com o plano de água, que dista menos de 150 metros da linha que limita a superfície permanentemente emersa. Este critério quantitativo de delimitação do âmbito espacial de análise deve ser adaptado em função da orografia, morfologia urbana e importância da relação urbanística e funcional estabelecida com o plano de água (e.g. existência de conjunto urbano marginal morfológica e/ou funcionalmente individualizável da restante malha urbana);
  2. os espaços naturais, agrícolas, agroflorestais e verdes urbanos adjacentes ao plano de água, cuja inclusão resulta do entendimento de que os mesmos foram influenciados pela ocupação humana e por esta modelados (e.g. as marinhas de sal e os moinhos de maré – em particular as áreas das suas caldeiras – são disso um exemplo paradigmático no caso do Estuário do Tejo). Atendendo à sua heterogeneidade, considera-se que delimitação destes espaços deve ter por base o efeito de margem da mancha/corredor de ocupação. Isto é, deverão ser delimitados através da identificação visual da alteração/descontinuidade do uso e/ou da existência de um elemento indutor da fragmentação da referida mancha/corredor (e.g. um caminho, uma estrada, um muro).

Por sua vez, propõe-se a adoção de uma delimitação espacial correspondente ao conceito de Área Ribeirinha que compreenda uma faixa aproximada de 500 metros medidos a partir do plano de água. Uma faixa que corresponde, assim, à noção de Orla Ribeirinha adotada pelo Decreto-lei n.º 129/2008, de 21 de julho (que aprova o regime dos POE – Planos de Ordenamento dos Estuários) e que estabelece que esta “corresponde a uma zona terrestre de proteção cuja largura é fixada na Resolução do Conselho de Ministros que aprova o POE até ao máximo de 500m contados a partir da margem”. Esta delimitação é ainda congruente com aquela que é preconizada pela regulamentação dos Planos de Ordenamento da Orla Costeira (POOC) para operacionalizar a noção de Orla Costeira: corresponde a uma faixa (“zona terrestre de proteção”) “cuja largura máxima não exceda 500m contados da linha que limita a margem das águas do mar” (Decreto-lei n.º 309/93, de 02 de setembro).

 

 

3. Delimitação espacial do conceito de Frente Ribeirinha

Tendo por base as propostas de delimitação conceptual e espacial supra explicitadas, procedeu-se à operacionalização (i.e. à delimitação espacial) do conceito de Frente Ribeirinha, aplicando-o ao Arco Ribeirinho Sul do Estuário do Tejo. Um território constituído por seis municípios (i.e. Almada, Seixal, Barreiro, Moita, Montijo e Alcochete), e que desde meados da década de 1980 tem vindo a ser objeto de diversos planos, documentos de orientação estratégica e projetos de intervenção com incidência nas frentes ribeirinhas.

Esta operacionalização envolveu a adoção de um conjunto de procedimentos metodológicos, objetivados na aquisição, estruturação (de informação gráfica) e exploração de informação geográfica (e sua visualização). Foram utilizados diferentes “instrumentos” para lidar com este tipo de informação: Deteção Remota (análise visual das imagens em ambiente SIG – Sistemas de Informação Geográfica); SIG (estruturação, aquisição e validação dos objetos; funções de análise espacial); e, Desktop Mapping (representação da informação e construção do layout). Especificamente no que se refere aos procedimentos metodológicos adotados para a delimitação das frentes ribeirinhas do Arco Ribeirinho Sul, foi realizada a delimitação do limite exterior (waterside) das frentes ribeirinhas estuarinas, através da análise visual da imagem, procedendo-se à identificação e vectorização do objeto com base em fotografia aérea. Para vetorizar o limite exterior das frentes ribeirinhas foi considerado o limite da superfície terrestre não sujeita à ação da maré (i.e. superfície permanentemente emersa) – Figura 5. Desta forma foi obtida uma linha de suporte à execução do procedimento de criação de um polígono (buffer) de 150 metros (para o lado de terra – land side), correspondente ao critério quantitativo de referência adotado para a delimitação espacial das frentes ribeirinhas. 

 

 

De seguida procedeu-se à validação geométrica da informação (e.g. ajustamento dos limites do polígono da frente ribeirinha que ultrapassavam o seu âmbito espacial, correção de imprecisões topológicas de correspondência entre o polígono e a linha correspondente ao limite exterior da frente ribeirinha). Após a correção de cada uma das tipologias de erros, realizou-se o ajustamento do polígono correspondente à frente ribeirinha de acordo com: (i) orografia (Figura 6), morfologia urbana (Figura 7) e importância da relação urbanística e funcional estabelecida com o plano de água (no caso dos espaços urbanos e industriais) – Figura 8; (ii) efeito de margem da mancha/corredor de ocupação (no caso dos espaços naturais, agrícolas, agroflorestais e verdes urbanos) – Figura 9.

 

 

 

 

 

Um procedimento que visou a assegurar a coerência do polígono correspondente à frente ribeirinha com a orografia, a morfologia urbana e a relação urbanística e funcional estabelecida com o plano de água, tendo resultado um polígono (Frente Ribeirinha) ajustado e coerente com os critérios estabelecidos para a sua delimitação. Com efeito, a Figura 10 sistematiza o âmbito espacial decorrente da operacionalização do conceito de Frente Ribeirinha e, bem assim, a sua incidência territorial no caso do Arco Ribeirinho Sul do Estuário do Tejo.

 

 

 

4. Considerações finais

Partindo da constatação da inexistência de uma delimitação conceptual e espacial de Frente Ribeirinha suficientemente clara, e atendendo à importância crescente destas unidades físico-geográficas no contexto da prossecução de múltiplas intervenções de revitalização despoletadas no período pós-industrial, o artigo objetivou a discussão e apresentação de uma proposta de delimitação aplicada que remeteu para um âmbito espacial baseado em critérios diferenciados, consoante estejam em causa: (i) espaços urbanos; (ii) espaços naturais, agrícolas, agroflorestais e verdes urbanos.

A aplicação prática desta delimitação conceptual e espacial ao caso do Arco Ribeirinho Sul do Estuário do Tejo colocou ainda em evidência a relevância de adoção de critérios de delimitação claros e objetivos, mas suficientemente abrangentes para permitir a adaptação do conceito às características e especificidades destes territórios de interface terra-água. Ou seja, a diversidade que matiza as frentes ribeirinhas e a possibilidade de estas assumirem múltiplas configurações no tempo e no espaço, exige esta plasticidade por parte do conceito, assim como condiciona a adoção de um critério quantitativo único de aplicação universal.

 

 

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6. Agradecimentos

O presente artigo foi preparado no âmbito de uma Bolsa de Pós-Doutoramento financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (SFRH/BPD/110975/2015), tendo por base os resultados da Tese de Doutoramento “Dinâmicas de Revitalização de Frentes Ribeirinhas no Período Pós-Industrial: o Arco Ribeirinho Sul do Estuário do Tejo”, apoiada por uma Bolsa de Doutoramento igualmente financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (SFRH/BD/38454/2007).

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