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GOT, Revista de Geografia e Ordenamento do Território

On-line version ISSN 2182-1267

GOT  no.15 Porto Dec. 2018

https://doi.org/10.17127/got/2018.15.003 

ARTIGO

 

Normas e alienação do território: a viabilização da ação de grandes empresas em Araquari-SC

Regulation and territory’s alienation: feasibility of large companies’ action in Araquari-SC

 

Beiler, Ruhan1

1Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Instituto de Geociências e Ciências Exatas de Rio Claro; Avenida 24-A, 1515, Bela Vista, 13506900 - Rio Claro, SP – Brasil; ruhanb@live.com

 

RESUMO

O pouco populoso município de Araquari ficou à margem do processo de industrialização regional (no nordeste catarinense), passando a receber consideravelmente plantas industriais de grandes grupos econômicos (nacionais e estrangeiros) já no presente século. Neste artigo investigamos como a força da regulação do território pelas normas, ora baseadas numa forte carga ideológica de conteúdo neoliberal, acaba por conduzir à alienação do território de Araqurari. Assim, a materialização das ações de empresas como BMW, Hyosung e Ciser no município e o papel do Estado para a consolidação e manutenção dos empreendimentos destes grupos são objeto de nossa análise, sendo a densidade normativa o eixo que a conduz. Por fim discutimos sobre algumas das implicações territoriais (colocadas e latentes) do acirramento do uso corporativo do território desde a década de 2000 apontando para o processo de alienação do território araquariense.

 

Palavras-Chave: Alienação do território. Pequenas cidades. Empresas. Santa Catarina.

 

ABSTRACT

The sparsely-populated municipality of Araquari stayed on the sidelines of regional industrialization process (in the northeast of Santa Catarina) and started to receive a considerable amount of industrial plants from large economic groups (domestic and foreign) in the present century. In this paper we investigate the power of territory regulation, now based on strong ideological neoliberal content, that lead the territory’s alienation of Araquari. Therefore, either the materialization of Companies actions such as BMW, Hyosung and Ciser in the municipality and the role of the State for the consolidation and maintenance of those enterprises are object of our analysis, guided by the normative density. Finally, we discuss some of the territorial implications (entrenched and latent) of the intensification of the corporate use of the territory since the 2000 decade, pointing to the process of alienation of the territory in Araquari.

 

Keywords: Alienation of Territory. Small Towns. Companies. Santa Catarina.

 

 

1. Introdução

Os sistemas técnicos (a materialidade) e sua organização e implementação (a ação política) viabilizam uma forma de distribuição do trabalho em cada período histórico (SANTOS; SILVEIRA, 2012). É a partir do desvelamento da divisão territorial do trabalho que se faz possível desvendar o conteúdo que dá vida às formas geográficas, pois esta “[...] cria uma hierarquia entre lugares e redefine, a cada momento, a capacidade de agir das pessoas, das firmas e das instituições” (SANTOS; SILVEIRA, 2012, p. 21).

Entendemos, como Silveira (2008, p. 25) que: “Não há como explicar o território sem o seu uso. Não há como explicar o uso do espaço sem sua dimensão política.”

É dessa forma que os conflitos se afirmam e se acirram quanto mais os projetos de uso pleno do território são discrepantes em seu conteúdo, quanto mais a ideologia que os informa seja carregada de elementos distintos na formulação de um destino para a nação e quanto mais a desigualdade da força entre os agentes seja perceptível. É nos lugares que tal enfrentamento se mostra mais nitidamente, já que é ali que os agentes hegemônicos terão de se confrontar com as heranças materiais e imateriais.

Por isso, os projetos não se materializam sem que a ideologia que os anima seja validada e introjetada pelos atores que os dirigem e, por fim, também pelos que os produzem. É desta maneira que tal processo constrói, sob diferentes formas, a alienação territorial (RIBEIRO, 2005).

De acordo com Ana Clara Torres Ribeiro (2005, p. 267), “a alienação territorial é formada [...] por uma construção ideológica tecnicamente sofisticada, que abstrai a co-presença  e  conduz  à  acomodação  incondicional  aos objetivos da ação hegemônica, a única considerada racional”. A alienação territorial é a dimensão imaterial, ideológica (de caráter entreguista) que conduz a alienação do território. Trata-se de um dado da psicosfera:

É todo um sistema muito bem articulado de ações orientadas que se impõem de um lado pela criação de uma ideologia da competitividade e crescimento econômico sem limites, e de outro, pressupoem um forte entrosamento e robusta influência nas estruturas de poder político, quer em escala nacional, quer à escala municipal (KAHIL, 2010, p. 481).

A força da regulação do território pelas normas, em geral implementadas pelo Estado e ora baseadas numa forte carga ideológica de conteúdo neoliberal, acaba por conduzir à alienação do território, pois dão subsídio e conferem viabilidade para as ações de um número diminuto de agentes altamente capitalizados.

O caso de Araquari, em Santa Catarina, é exemplo deste processo de viabilização do território a partir de isenções fiscais e de uma política agressiva para atração de grandes grupos empresariais para o município.

A partir destas condições se definem os usos do território e “Os atores hegemônicos da vida econômica, social e política podem escolher os melhores lugares para sua atuação e, em consequência, a localização dos demais atores é condenada a ser residual” (SANTOS, 1999b, p. 9)”.

De acordo com Milton Santos (2014, p. 152), no atual período é necessário “[...] ir além da função localmente exercida e de também considerar suas motivações, que podem ser distantes e ter até mesmo um fundamento planetário. Como as ações, as normas também se classificam em função da escala de sua atuação e pertinência”.

Assim, ao levar em conta a crescente imposição da regulação da economia e do território através das ações sob a primazia das normas e de objetos técnicos, é que, neste artigo, procedemos na investigação dos fatores que levaram grupos como BMW, Hyosung e Ciser a construírem plantas industriais em Araquari, município que ficou à margem do processo de industrialização regional (nordeste catarinense), passando a receber plantas industriais de grandes grupos (nacionais e estrangeiros) neste século. Analisamos também o papel do Estado para a consolidação de tais empreendimentos e por fim analisamos as implicações territoriais destas ações no território araquariense.

 

 

2. Apontamentos sobre o contexto geoeconômico no qual se insere a indústria do nordeste catarinense

A década de 1970 é marcada pela emergência de um novo regime de acumulação, denominado por Harvey (1992) de acumulação flexível. Tal regime é caracterizado pelo “[...] surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional” (HARVEY, 1992, p. 121), como resposta do capital à sua própria crise.

De acordo com Paulani (2012, p. 91), “[...] esse novo regime de acumulação vai encontrar no Brasil a demanda por empréstimos que faltava a um capital financeiro robusto e ávido por aplicações no contexto de uma crise de sobreacumulação irresolvida no Centro”. Era a concretização da pressão dos países centrais para a abertura dos mercados periféricos à qual a grande burguesia brasileira não resistiu, resultando em “[...] alternância entre estagnação e crescimento econômico fraco nas décadas de 1980 e de 1990 e a perda de posição da burguesia brasileira na economia nacional” (BOITO JR, 2012, n. p. ).

No bojo da globalização as empresas multinacionais gozam da “[...] liberalização e a desregulamentação, combinadas com as possibilidades proporcionadas pelas novas tecnologias de comunicação [que] decuplicaram a capacidade intrínseca do capital produtivo de se comprometer e descomprometer; de investir e desinvestir; numa palavra, sua propensão à mobilidade” (CHESNAIS, 1996, p. 28). Dessa forma o capital vai rompendo barreiras e colocando em concorrência os territórios, sendo o preço da força de trabalho, as leis trabalhistas e ambientais e os incentivos concedidos por este ou aquele país ou estado questões cruciais para a decisão do ponto do planeta a ser explorado.

Na década de 1970 (quando a população urbana brasileira ultrapassa a rural), o território nacional foi dotado de conteúdos modernos, no campo e na cidade, explicitando a irradiação do meio técnico-cientifico-informacional, que se instala sobre áreas contínuas no Sudeste e no Sul e em manchas e pontos no resto do país (SANTOS; SILVEIRA, 2012).

Durante as décadas de 1970 a 1990 houve um processo de desconcentração da produção industrial no Brasil. Em tal processo, as Regiões Metropolitanas de São Paulo e do Rio de Janeiro tiveram perdas relativas na participação da produção industrial e, em contrapartida, os estados do Sul e Minas Gerais, além do interior paulista, conheceram aumento relativo de sua participação industrial (DINIZ; CROCCO, 1996). Tratou-se, assim, de uma desconcentração que se manteve na região concentrada (SANTOS; RIBEIRO, 1979).

Nesse período, os deslocamentos industriais em direção da região Sul foram significativos. Em 1970 a região acolhia 14,79% do pessoal ocupado, ao passo que em 1990 já reunia 36,49% do emprego industrial nacional (SANTOS; SILVEIRA, 2012).

A indústria catarinense, desde meados dos anos 1940, já mostrava alguma diversificação, “[...] com a ampliação da pequena indústria metal-mecânica, em Joinville, como surgimento da indústria de papel, pasta e celulose no planalto, e das cerâmicas, no sul” (GOULARTI FILHO, 2003, p. 8). Mas é, no entanto, a partir dos anos 1960 que esse processo ganha maior impulso, apoiando-se em um novo sistema de crédito e investimentos estatais em infraestrutura. Esse processo se estendeu até a década de 1990 e consolidou uma estrutura industrial na qual predominavam as grandes e médias empresas.

Em Santa Catarina a indústria se desenvolveu de forma mais expressiva no Vale do Itajaí e no nordeste do estado, onde se sobressaem os municípios de Blumenau e Joinville. Ambos estão localizados em parte de uma das três zonas industriais tipificadas por Mamigonian (1965), a zona de colonização alemã, que reunia, à época, aproximadamente 50% da produção industrial e 20% da população (MAMIGONIAN, 1965).

Nesse sentido, o setor eletro-metal-mecânico no nordeste do estado se consolidou como um dos mais dinâmicos, com destaque para Joinville que, desde a década de 1920, era base de empresas do setor. Mamigonian (1966) afirmou que, em detrimento de outras regiões do estado, a produção industrial em Joinville era bastante diversificada e moderna. Na referida cidade foram fundadas, por exemplo, as empresas: Tupy, Consul, Embraco, Busscar, Ciser, Shultz e Wetzel.

Segundo Rocha (1994, p. 59), nas décadas de 1970 e 1980, “[...] as indústrias joinvilenses, já amadurecidas, investiram na fundação de novas unidades fabris, de suporte para a sua atividade principal ou em outros setores, formando os grandes grupos empresariais e as holdings”. O destaque, sem dúvida, era a Fundição Tupy, que contou com grandes investimentos e apoio dos governos militares, e estava presente em 875  mil  do  total de um  milhão  de  veículos produzidos pela Volkswagen (TERNES, 1988).

Nesse longo processo de crescimento e diversificação do setor industrial no nordeste catarinense o município de Araquari ocupou uma posição marginal. A economia do município se manteve, em grande medida, marcada pela atividade agrícola, com as culturas de arroz, banana e maracujá, sobretudo.

O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) de Araquari reflete, em alguma medida, o cotidiano da maior parte de sua população: em 2000, o município alcançou 0,644, ou seja, a 224ª posição estadual no indicador (dentre os 295 municípios de Santa Catarina).

 

 

3. Normas e viabilização do território para a ação de grandes empresas em Araquari nos anos 2000

Ocupado por açorianos, como aconteceu com todo o litoral catarinense, o território onde hoje é Araquari teve como característica marcante, desde o século XIX, os minifúndios voltados à produção de subsistência, além da pesca (FINDLAY, 2007). A diversificação e modernização da produção agropecuária se deu paulatinamente e de forma bastante precária através das décadas, não chegando, no entanto, consolidar, por exemplo, práticas da agricultura científica globalizada. Já a estrutura fundiária do município teve grande alteração na segunda metade do século XX.

De acordo com Findlay (2007), a partir de duas leis federais (Lei 4771 de 15 de setembro de 1965 e Lei 5.106 de 02 de setembro de 1966), uma que previa reflorestamento por empresas que utilizavam matéria prima florestal em grande quantidade e outra, que estabeleceu concessão de incentivos à empreendimentos florestais, empresas da região (Fundição Tupy, Metalúrgica Douat, Comfloresta, Reflorita, Weg Florestal, Companhia Fabril Lepper, Karsten, entre outras) passaram a comprar terras em Araquari. Desta forma, concentrou-se rapidamente a propriedade fundiária no município.

O município de Araquari está localizado no litoral norte de Santa Catarina, conta com uma população de 35.268 habitantes e densidade demográfica de 64,61 habitantes por quilômetro quadrado, segundo estimativa feita pelo IBGE em 2017. Foi entre as décadas de 1970 e 1980 que a população urbana superou a rural em Araquari. No Censo de 1970, 77,94% da população residia na zona rural, já em 1980, dos 9.674 habitantes do município, 7.384 moravam na zona urbana.

O PIB do município era de R$ 113.543.000 em 2002 e 2,8 bilhões em 2015, com aumento expressivo a partir de 2007. Em 2015, do total citado, a Indústria foi responsável por R$ 1,1 bilhão e os Serviços por R$ 651,9 milhões (IBGE, 2017).

Em 2002 o setor que mais empregava no município era o de Serviços, com 1005 trabalhadores, seguido pela Indústria, que empregava 624 trabalhadores. No ano de 2015, os empregados na Indústria eram 4941, e nos Serviços 2015 trabalhadores, segundo dados do RAIS (MTE, 2016).

No que diz respeito à balança comercial, em 2005, tanto exportações quanto importações estiveram na casa de US$ 1 milhão, ao passo que em 2010 as exportações foram de US$ 3,7 milhões e as importações na casa dos US$ 55,5 milhões; já em 2016, as exportações e importações foram de, respectivamente, US$ 257,8 milhões e US$ 357,4 milhões.

Em 2005 houve predomínio dos bens de consumo não duráveis nas exportações (mais de 90%) correspondente a bolachas e biscoitos indo ao Uruguai, destacadamente; no que diz respeito às importações, a totalidade foi de bens intermediários, no caso, substâncias químicas de uso industrial vindo predominantemente da Rússia. Em 2010 as bolachas e biscoitos continuam tendo destaque nas exportações (58,8% do valor), tendo como destino Angola e Uruguai, sobretudo; e as importações continuam com destaque dos insumos industriais vindos do Chile e Coreia do Sul, em sua maior parte. Estes fluxos eram comandados pelo grupo Mabel e sua principal empresa Biscoitos Mabel (hoje pertencente à transnacional Pepsico), com planta em Araquari entre 2004 e 2013.

Já em 2016, há importante mudança na direção dos fluxos das trocas. Naquele ano, 93,1% do total exportado correspondeu aos automóveis, enviados todos aos EUA; as importações passam a ser partes e acessórios de veículos, motores de pistão, laminados etc, vindos da Alemanha (39%) e China (16,7%), destacadamente. Em 2017, o valor das exportações cai, mas o destino principal continua sendo os EUA. Quanto às importações, Alemanha e China continuam fornecendo as maiores partes dos produtos (28,8% e 13,8% respectivamente) e os EUA têm sua participação aumentada, foram 45,9 milhões de dólares (9,8%).

A mudança no conteúdo dos fluxos de mercadorias e no valor das transações muito se deve à atuação de novos agentes no sobre o território, destacadamente a BMW, mas também a Hyosung e mais recententemente a Ciser, dentre outros. Essas relações expressam também a divisão territorial do trabalho.

Além disso, os dados mostram que, a despeito de ter ficado à margem do processo de industrialização pesada, o que na região nordeste do estado diz respeito às indústrias metal-mecânicas, do setor elétrico, do plástico e mecânicas, grosso modo, na primeira década do século XXI o município de Araquari passa a receber grandes indústrias nacionais e estrangeiras, em um período distinto daquele ocorrido em Joinville, Blumenau, Jaraguá do Sul, por exemplo.

Movimento parecido foi percebido no interior de São Paulo recentemente, Toyota em Porto Feliz, Honda em Itirapina e Mercedes-Benz em Iracemápolis, todos municípios com menos de 50 mil habitantes quando da instalação das plantas industriais (SAMPAIO, 2013), denotando que não é isolado o caso de Araquari.

Araquari está localizado muito próximo ao porto de São Francisco do Sul, município vizinho, além disso, os portos de Navegantes, Itajaí, Itapoá e Paranaguá também são próximos. Foi por este último, aliás, que a BMW começou a exportar seus veículos do novo modelo BMX X1 aos Estados Unidos; a escolha se deu pelos serviços diferenciados que o porto oferece para esse tipo de carga (A Notícia, 2016). Duas rodovias federais cortam o município, a BR-101 e a BR-280. Estes são fatores que garantem o escoamento da produção, uma condição que, certamente, é levada em conta na instalação dos empreendimentos, sobretudo em um período em que a fluidez é uma ordem.

A fluidez é um dado da técnica, mas também da política (SILVEIRA, 2003), um dado também imaterial, portanto, que sob a égide da ideologia neoliberal aparece como um imperativo. Assim, há um aprofundamento da adequação a tal lógica também porque as ações do Estado são, no mais das vezes, informadas pelas estratégias e pelos valores das grandes corporações e pelo discurso da competitividade. Portanto, a fluidez, que aparece como uma flexibilidade organizacional para os agentes hegemônicos, “[...] acaba impondo ações aos agentes não hegemônicos. Daí consideramos a rigidez como a cara oculta da flexibilidade” (SILVEIRA, 1997, p. 38). São normas técnicas e organizacionais rígidas que garantem tal fluidez (SILVEIRA, 1997, p. 37).

O município passa a receber grandes empresas, sobretudo, após 2007. São exemplos dessa instalação recente as empresas: BMW, Hyosung, Ciser, Fortlev, Jefer e Durín. E a prefeitura continua recebendo pretendentes (estrangeiros e nacionais) a se instalarem no município.

Esse processo de concentração é explicado por Arroyo (2012, p. 24),

O processo de concentração e centralização do capital, ampliado nos últimos anos, carrega um aprofundamento do uso hierárquico do território, por serem as empresas mais concentradas as que dispõem de maiores vantagens para usufruir das virtualidades técnicas e  políticas  oferecidas  pelos  lugares.

Dessa forma, é muito provável que esses grupos tenham escolhido Araquari também pela proximidade com Joinville, município mais populoso e industrializado de Santa Catarina.

Além disso, e levando em consideração a competitividade que marca o atual período, a seletividade espacial (CORRÊA, 1992) é um dado imprescindível à realização do lucro dos grupos empresariais. De modo que “A consideração de fatores locais nas dinâmicas econômicas aparece hoje como uma evidência e uma imperiosa necessidade” (BENKO; PECQUEUR, 2001, p. 37).

Instaladas e interconectadas a uma multiplicidade de pontos no território, as grandes empresas, utilizando destes artifícios, estendem sua atuação aos mais distantes e diferentes lugares, procurando, através das especificidades de cada um deles, as vantagens produtivas e comparativas que permitem com que sua produção se insira de forma mais competitiva no mercado internacional (PEREIRA, 2005, p. 6).

Em 2012, o BMW Group confirmou oficialmente que iria instalar uma planta no município de Araquari, o que se concretizou com a inauguração em 2014. De acordo com o grupo (BMW, 2017), foram investidos mais de R$ 600 milhões (a maior parte concedida via incentivos estaduais), para a instalação da fábrica, com capacidade para produzir 32 mil carros de luxo por ano. Além da BMW, o grupo alemão detém as marcas Mini e Rolls-Royce Motor e teve, em 2016, um lucro de 7,25 bilhões de dólares.

A empresa multinacional sul-coreana Hyosung instalou uma unidade industrial em Araquari em 2011, destinada a produção de fios de elastano (usado na confecção de roupas íntimas, trajes de banho e esportivos e jeans) para abastecer o mercado sul-americano. Sob a marca Creora, o objetivo do grupo é bater a maior concorrente, a Invista, e sua marca Lycra. A planta de Araquari é a quinta fábrica de elastano do grupo (as outras estão na China, Turquia, Vietnã e Coreia do Sul) e é responsável por até 10% do total produzido (LOETZ, 2011). Faz parte do Hyosung Company que é composto por dezenas de subsidiárias com grande gama de produtos e serviços, e está presente em todos os continentes (HYOSUNG, 2017).

Em 2016, a empresa Ciser, metalúrgica de fixadores (porcas e parafusos), do grupo H. Carlos Schneider, inaugurou seu parque fabril em Araquari. O parque de 90 mil metros quadrados resulta de transferência de grande parte das atividades do parque de Joinville, onde funcionava desde 1959.

A Ciser é a maior produtora de fixadores da América Latina e tem “[...] capacidade produtiva de 6 mil toneladas/mês e 27 mil produtos agrupados em 436 linhas para atender a 20 mil clientes em mais de 20 países” (CISER, 2017). O grupo H. Carlos Schneider, reúne mais seis empresas: Ciser Automotive, Fábrica Catarinense de Fixadores, Imobiliária Hacasa, Intercargo Transportes, RBE Energia e Agropecuária Parati.

Merece atenção uma especificidade nas ações do grupo H. Carlos Schneider em Araquari: o grupo detém uma área de 2660 hectares no município e visa, inclusive, a exploração de negócios imobiliários (como loteamentos), para o que conta com o apoio do governo municipal. De acordo com Maurício Baptista, secretário de desenvolvimento econômico do município:

A Ciser começa a atuar em agosto, talvez setembro. Aí, o tema não é apenas uma nova e moderna fábrica. É algo bem maior. O Grupo H. Carlos Schneider é dono de uma área de 38 milhões de metros quadrados na região do Paranaguamirim. Deste montante, 70% ficam em Araquari e 30%, em Joinville. Metade, ou 19 milhões de m², são urbanizáveis. A Hacasa – braço imobiliário e empreendedor do grupo – contratou executivo de ponta para gerenciar esse grande projeto. A Ciser é âncora. E toda a cidade estará inserida nessa iniciativa – quando ocorrer. A região do Rio do Morro será um novo vetor de desenvolvimento, até mesmo para Joinville. (BAPTISTA, 2016, grifo nosso).

O crescimento econômico brasileiro no período recente contou com amplo apoio do Estado. Está claro que desde o final dos anos 1990, as commotidies agro-mineirais voltam a ter grande peso na pauta exportadora brasileira, com o segundo governo FHC “relançando” o agronegócio, nos termos de Delgado (2012). Postura esta que, de maneira geral, se aprofundou nos governos do Partido dos Trabalhadores, e contou com uma conjuntura externa favorável: alta no ciclo de liquidez internacional, forte crescimento da economia chinesa e crescimento do preço das commodities (CARCANHOLO, 2010).

O processo de reprimarização da pauta exportadora reforçou, sem dúvida, a inserção subordinada do país na divisão internacional do trabalho. Ainda assim, é possível constatar que alguns setores da indústria, em menor medida, mas de forma diferente daquilo que vinha ocorrendo nos governos FHC, também são privilegiados pelo Estado brasileiro, a exemplo das políticas de redução ou isenção de tributos, como IPI para a linha branca e para o setor automotivo, bem como de financiamentos via BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).

Além destas facilidades em âmbito federal, muitos estados e municípios também concorrem para atrair as empresas a explorarem seus recursos, quase sempre sob a cantilena da criação de empregos. Tal como mostra Santos (2004, 1999), essa competitividade também se mostra entre unidades da federação e municípios, de modo que “[...] cada lugar entra na contabilidade das empresas com diferente valor. A guerra fiscal é, na verdade, uma guerra global entre lugares” (SANTOS, 1999).

Samira Peduti Kahil (2005, p. 7198) apreende tal articulação quando afirma que: “[...] diante da impaciência das empresas e das regiões, o poder público promove um rearranjo do conteúdo normativo para viabilizar o aumento da produtividade espacial e tornar mais eficiente o uso do território, pois é mais rápido mudar o arranjo jurídico que o arranjo material”.

A BMW figura como um exemplo de empresa que lucra com tais arranjos. A empresa beneficiou-se do programa Inova-Auto (Lei n° 12.715/2012) em âmbito federal, do Programa Pró-Emprego (Lei nº 13.992/2007) e do Programa de desenvolvimento da empresa catarinense - PRODEC (Lei nº 13.342/2005) a nível estadual e de diversas concessões municipais expressas pelo Decreto nº 37/2013.

O primeiro concede 30% de abatimento do IPI, o segundo assegura tratamento tributário diferenciado do ICMS além de ter concedido financiamento de R$ 240 milhões via BRDE (Banco Regional de Desenvolvimento) a partir de captação junto ao BNDES, e o terceiro concedeu financiamento de R$ 200 milhões (usados para compra de terreno e infraestrutura básica) via BADESC (Agência de Fomento do Estado de Santa Catarina). Já o decreto municipal supracitado isentou o ISS sobre todos os serviços direta ou indiretamente ligados à construção da planta (desde a escolha do local, planejamento até o começo das atividades), incluindo contratados e subcontratados nacionais ou estrangeiros; cobrança do ISS a uma alíquota de no máximo de 2% por 15 anos, a partir do início das operações; isenção de IPTU por 15 anos; isenção de ITBI por 15 anos; isenção de toda e qualquer taxa municipal por 15 anos (NOTÍCIAS DO DIA, 2014; PREFEITURA MUNICIPAL DE ARAQUARI, 2016).

O grupo H. Carlos Schneider foi outro que se beneficiou do PRODEC, para construção da planta da Ciser no município de Araquari. O incentivo foi de R$ 193.838.484 à juros de 0% ao ano, com desconto de 11,48% por parcela creditada. Além disso o grupo captou, também para este empreendimento, a soma de R$ 84, 6 milhões de reais junto ao BNDES.

Com Santos (2004, p. 66), entendemos o papel ativo do Estado ao serviço da economia dominante, pois “[...] a instalação desses capitais globalizados supõe que o território se adapte às suas necessidades de fluidez investindo pesadamente para alterar a geografia das regiões escolhidas”. Assim,

A corporatização do território, com a destinação prioritária de recursos para atender às necessidades geográficas das grandes empresas, acaba por afetar toda a sociedade, já que desse modo a despesa pública ganha um perfil largamente desfavorável à solução de problemas sociais e locais. (SANTOS, 2014, p. 336).

Todas estas alterações e “entrega” do território araquariense – indicativas de profunda alienação do território (CATAIA, 2003) - nos autorizam a pensar que está se forjando ali uma nova situação geográfica (SILVEIRA, 1999), tornada possível pela ação concatenada das grandes empresas e do Estado, implicando no aprofundamento do uso corporativo do território municipal.

Dessa forma, as verticalidades se impõem às horizontalidades a partir do acionamento do território de Araquari como ponto de interesse de alguns agentes hegemônicos. Assim, o território municipal passa a compor a rede destes agentes e através dela ser comandado por normas distantes do lugar.  Como afirma Pereira (2011, p. 100): “Se o resultado do trabalho realizado num lugar não se reverte em benefício do próprio lugar, se não pertence ao próprio lugar, e se as atividades no território nacional não são feitas em função das suas próprias carências [...], temos, de fato, um território alienado [...]”.

 

 

4. Algumas considerações

O caso de Araquari é um exemplo da alteração dos conteúdos e do valor das normas vigentes no lugar a partir da imposição dos novos objetos e formas organizacionais por grandes empresas. Cria-se uma viabilidade territorial; uma psicosfera de caráter desenvolvimentista (mas com intenções entreguistas), vale dizer uma alienação territorial, que por fim acaba por se constituir em verdadeira alienação do território.

Assim, a adequação normativa do lugar em função de interesses externos acaba por ser um imperativo. É por meio de agentes destacados da economia e da política local que os agentes do circuito superior da economia aparecem como soluções para os problemas do território. No entanto, como já afirmamos, estas verticalidades só podem acirrar os problemas, pois só o que as interessa são os recursos capazes de gerar lucro.

 

 

5. Referências bibliográficas

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