SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número24A COBERTURA DA TERRA E AS CARACTERÍSTICAS DAS TEMPERATURAS SUPERFICIAIS E DO ÍNDICE DE VEGETAÇÃO POR DIFERENÇA NORMALIZADA NA RAIA DIVISÓRIA SÃO PAULO/PARANÁ/MATO GROSSO DO SUL índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


GOT, Revista de Geografia e Ordenamento do Território

versão On-line ISSN 2182-1267

GOT  no.24 Porto dez. 2022  Epub 31-Dez-2022

https://doi.org/10.17127/got/2022.24.008 

Articles

FATORES GEOFÍSICOS E DETERMINISMO ECONÔMICO. ALGUMAS CHAVES PARA TRAÇAR AS ORIGENS DA AGROEXPORTAÇÃO NA AMÉRICA LATINA1

GEOPHYSICAL FACTORS AND ECONOMIC DETERMINISM. SOME KEYS TO TRACING THE ORIGINS OF AGRO EXPORTS IN LATIN AMERICA

Diana María PEÑA G.1 

Carmen FLORES1 

1Universidade Federal de Santa Maria. Programa de Pós-graduação em Geografia. 97105-900, Av. Roraima nº 1000, Bairro Camobi, Santa Maria - RS, Brasil. dmpenag@gmail.com. carmenrejanefw@gmail.com


RESUMO

Nesse trabalho, buscamos analisar algumas correlações entre divisão internacional do trabalho, poder e configuração do espaço agrário na América Latina, tendo como principal referência teórica a abordagem dos Regimes Alimentares, concebida por Harriet Friedmann e Philip McMichael. O ponto de partida é que, embora a divisão social do trabalho obedeça a fatores históricos, tem sido naturalizada e mascarada por fetiches, que nos alienam do espaço, das mercadorias e demais fluxos de informação, não percebidos como relações sociais, senão como meros objetos. No tocante à divisão internacional do trabalho agrícola, revisaremos alguns nexos entre as zonas climáticas e a bifurcação da dieta (class diet) na dita região, para isto, iremos introduzir o conceito de exotização da agricultura intertropical, no qual identificamos duas acepções interdependentes: a primeira associada ao intercâmbio colombiano e consequente introdução de espécies animais e vegetais forâneas, e que abrangeu o globo inteiro, à medida que a sociedade moderna desabrochava, no entanto, a segunda acepção se circunscreve à zona intertropical do planeta, e pode ser definida como a construção de uma ideia de inferioridade e complementariedade dos cultivos da dita faixa climática em relação aos das zonas temperadas; mais uma vez, nosso foco serão os países latino-americanos: América Central, o Caribe e o norte sul-americano.

Palavras-chave: Divisão internacional do trabalho agrícola; Poder; Abordagem dos Regimes Alimentares; Bifurcação da dieta; América Latina.

ABSTRACT

In this paper, we seek to analyze some correlations between the international division of labor, power, and the configuration of agrarian space in Latin America, using as our main theoretical reference the Food Regimes approach, conceived by Harriet Friedmann and Philip McMichael. The starting point is that, although the social division of labor obeys historical factors, it has been naturalized and masked by fetishes that alienate us from space, commodities, and other information flows, not perceived as social relations, but as mere objects. Regarding the international division of agricultural labor, we will review some links between climatic zones and the bifurcation of the diet (class diet) in this region, for this, we will introduce the concept of exoticization of intertropical agriculture, in which we identify two interdependent meanings: the first associated with the Colombian exchange and consequent introduction of foreign animal and plant species, and which spanned the entire globe as modern society arose, however, the second meaning is circumscribed to the intertropical zone of the planet, and can be defined as the construction of an idea of inferiority and complementarity of the crops of the said climatic zone in relation to those of temperate zones; again, our focus will be on Latin American countries: Central America, the Caribbean, and Northern South America.

Keywords: International division of agricultural labor; Power; Food Regimes Approach; Class diet; Latin America.

1. Fatores geofísicos e determinismo econômico. Algumas chaves para traçar as origens da agroexportação na América Latina

Podemos recuar a relação entre alimentos e poder até a revolução neolítica, passando pelo Vale do Nilo e a antiga Mesopotâmia, para avançar pelas rotas do comércio intercontinental do medievo, até embarcar nas caravelas que inauguraram o comércio transatlântico; na outra beira do oceano, outras formas de poder também se movimentavam, seja nas costas dos tlamemes ou atravessando o Tahuantinsuyo pelo Quapaq Ñan, mas, importante como é essa história, não nos caberá relatá-la aqui. Nosso propósito será traçar alguns pontos chave na relação entre capitalismo e agricultura na América Latina, restringindo nossa análise aos primórdios da era contemporânea, quando da transição republicana. Nesse momento, a Economia clássica enunciou elaboradas teorias para justificar a especialização produtiva a partir das chamadas vantagens absolutas e comparativas, cujos corolários não deixam de ser questionáveis.

O foco dos principais autores da teoria clássica do comércio internacional, Adam Smith (1996) e David Ricardo (1982), eram os padrões e os termos da troca entre os países, claro está, sob a perspetiva das elites britânicas de começos dos séculos XVIII e XIX, às quais pertenceram, respetivamente. O princípio das vantagens absolutas de Smith (pai da Economia como disciplina científica), num resumo muito grosseiro, propõe que os países com a tecnologia mais avançada, e portanto, mais eficientes, deveriam se especializar na produção e exportação de manufaturas, enquanto os países menos eficientes e mais ricos em recursos naturais, deveriam fazê-lo em matérias-primas, portanto, essa premissa é a formalização do projeto de tornar a Grã-Bretanha a oficina do mundo.

Já no modelo de Ricardo, se entende que qualquer país está em capacidade de produzir manufaturas, mesmo que de maneira ineficiente, o incentivo para o comércio internacional se dá quando resulta mais vantajoso se especializar numa atividade, e com as divisas geradas importar o resto; essa ideia persiste ainda hoje, sob modelagens mais sofisticadas. Claro está que com essas teorizações Ricardo também busca defender a indústria britânica, que para seu tempo já era uma realidade incontestável.

No panorama latino-americano, a distribuição da tecnologia e a comunicação com o mercado mundial sempre têm estado condicionadas por características físicas como a orografia e a densidade das selvas, por isso, “inicialmente foram as zonas litorâneas do Atlântico, Pacífico e Caribe, as que mais se beneficiaram. Quando isto se combinou com entornos institucionais mais favoráveis, ali se produziu um rápido crescimento, como em Chile e a região pratense” (Bértola & Ocampo, 2010, p. 91).

Friedmann e McMichael (1989, p. 102) salientam que o comércio entre Europa e os países que receberam a diáspora oitocentista de camponeses europeus, não só modelou a agricultura, senão incluso a indústria, estabelecendo uma relação de interdependência entre ambas atividades produtivas, a qual se evidencia em três dinâmicas correlatas, dentre as quais destacamos a primeira:

Produtos complementares, baseados em diferenças climáticas e na organização social, deram lugar a produtos competitivos, transacionados de acordo com o princípio ricardiano de vantagem comparativa. A agricultura dos colonos produziu no exterior as mesmas plantas e animais que eram produzidos a um custo muito alto ou com insuficiente desenvolvimento comercial na Europa. Isto ancorou a primeira divisão internacional do trabalho e escorou uma nova fase do desenvolvimento industrial. Setores da agricultura especializada nos estados em que se assentaram os colonos, estabeleceram padrões de comércio entre as nações, os quais eram fundamentalmente diferentes ao padrão colonial.

As outras duas dinâmicas apontadas pelos autores são, por um lado, a transformação da agricultura num setor capitalista, pela vinculação ao mercado e a incorporação de tecnologias químicas e mecânicas, aspecto esse último que levou à crescente dependência de insumos externos nas unidades camponesas de produção-consumo; do outro, a relação de complementaridade entre indústria e agricultura, a qual foi base para o comércio internacional, mas “foi paradoxalmente interiorizada dentro de economias organizadas nacionalmente” (idem). Esses processos decorreram segundo as particularidades regionais, com destaque para as zonas climáticas, como veremos a seguir.

1.1. Zonas climáticas e padrões de especialização produtiva

Para começar, parece-nos conveniente explicitar qual a delimitação adotada para o zoneamento climático da América Latina; conscientes do carácter multifatorial da climatologia (inclinação dos raios solares pela latitude, características físico-geográficas, circulação atmosférica, etc.), teremos de simplificar nosso modelo de análise, marginando em alguma medida aspectos importantes, como a altitude, que tem relevância na produção agrícola -muito especialmente na região andina, pela conformação de pisos térmicos. Específicamente, focaremos na radiação solar, sendo os paralelos nosso principal critério classificatório, na conformação das três grandes zonas climáticas: fria, temperada e cálida, de acordo com o mapeamento proposto por Alexander von Humboldt a começos do século XIX, a partir do qual evoluíram os atuais sistemas de classificação climática (ver imagem 1). À vista disso, enfatizaremos nas duas zonas climáticas que predominam na região latino-americana:

Clima quente nas baixas latitudes, quer dizer, entre os trópicos de Câncer e Capricórnio, onde a radiação solar é abundante e constante ao longo do ano; aqui se apresentam quatro grandes climas: equatorial úmido, tropical quente e úmido, tropical semi-árido e desértico. Nessa faixa se localizam os países de América central (Guatemala, Belize, Honduras, El Salvador, Nicarágua, Costa Rica e Panamá), do Caribe (Haiti, República Dominicana, Puerto Rico, etc.), e do norte sul-americano (Colômbia, Venezuela, Equador, Peru, Bolívia e boa parte do território do Brasil).

Clima temperado nas médias latitudes (aproximadamente entre os 30º e os 65º de latitude norte e sul), com estações mais ou menos marcadas ao longo do ano e grande variabilidade nos sub-tipos climáticos (mediterrâneo, marítimo de costa ocidental, continental húmido e subtropical húmido). Interesam-nos os países agrupados no Cone Sul: Chile, Paraguai, Argentina, Uruguai e os estados brasileiros de Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

A esse respeito, Luis Bértola e José Antonio Ocampo (2010, p. 21) argumentam que os padrões de especialização são uma das variáveis clássicas na análise das dinâmicas comerciais, no caso dos produtos agrícolas, “(…) importa a diferença entre os de clima temperado e os de clima tropical, tanto pela natureza de seus processos de produção como pelas relações de competência ou complementaridade implícitas com respeito aos mercados de destino”. Essa apreciação é muito exata no regime alimentar oitocentista (Friedmann & McMichael, 1989), sendo Inglaterra a principal importadora no comércio agrícola global, os parâmetros de complementaridade foram definidos por ela, restando ao trópico o fornecimento de produtos exóticos (do seu ponto de vista), e aos países com semelhança edafo-climática a produção do cultivo essencial na dieta da classe trabalhadora: o trigo.

Por razões complexas, que transbordam por muito os limites desse ensaio, os grandes impérios da modernidade -da China dos Ming à Inglaterra vitoriana, passando pela idade de ouro neerlandesa- têm se localizado na faixa norte do globo, o que explica a prevalência dos cultivos temperados na dieta moderna, condimentada às pitadas com os sabores de outras latitudes. Em efeito, a cozinha é um dos lugares onde melhor tem se fraguado a miscigenação de culturas, mas nem sequer ela está isenta do euro-centrismo, por isso, embora não gostemos da divisão entre velho e novo mundo, no quadro 1 a usaremos com fins elucidativos, para sistematizar o centro de origem dos cultivos mais importantes na dieta contemporânea, e, no caso de aqueles provenientes do chamado novo mundo e/ou da faixa intertropical de Ásia e África, se foram plenamente incorporados pela culinária europeia, seja na era antiga, no medievo ou na Colônia.

O quadro 1 está baseado no estudo sobre “regiões primárias de diversidade”, conduzido em 2016, pelo Centro Internacional de Agricultura Tropical (CIAT), no qual se introduziu a discussão sobre a origem geográfica dos principais cultivos da dieta contemporânea. O CIAT expõe a crescente globalização e homogeneização das práticas alimentares, ilustrando as redes de interdependência que têm se criado ao longo do planeta, a partir das dinâmicas de importação e exportação dos alimentos; a principal fonte estadística é a FAO, cujos dados registram o comportamento dos cultivos de maior importância para a economia global (no consumo direto, na pecuária e na fabricação de fibras e outros materiais), fato que se traduz na pouca visibilidade das espécies e variedades locais, e como consequência, na sub-valoração do seu aporte à alimentação humana.

O CIAT propõe como causante dessa desfasagem na construção de estadísticas sobre os cultivos e alimentos mais restringidos ao consumo local, as características físicas e culturais dos países onde tal se apresenta: “(...) topografias heterogêneas, culturas diversas, e reportes sobre a agricultura e a ingesta alimentar mais rudimentares” (Khoury et al, 2016, p. 7). Não por acaso, os ditos países costumam se localizar precisamente no hemisfério sul, por isso, nosso ponto é que estes dois aspectos estão inter-relacionados -a prevalência na dieta contemporânea dos cultivos oriundos de Europa ou plenamente incorporados na sua culinária, e a subestimação de espécies e variedades produzidas e consumidas nos circuitos locais do Sul Global-, sendo ambos um reflexo da aresta agroalimentar do poder, cujo centro a partir da era moderna tem sido Europa e os Estados Unidos.

1.2. A maçã do diabo: consumo alimentar e diferenciação social

À vista do anterior, a gastronomia torna-se outra variável medular no estudo dos complexos agroalimentares, uma vez que historicamente tem se cultivado aquilo que se come. Interessa-nos a maneira em que o poder se infiltra nas panelas e nas colheres das pessoas, legitimando a ordem capitalista a partir do que Friedmann (2014) denomina class diet: a bifurcação das dietas das classes trabalhadora e detentora dos meios de produção, que restringe o acesso aos alimentos mais sadios e requintados -frutas, verduras, proteínas de alta qualidade, produtos orgânicos, etc.- e reorganiza o espaço agrário do Sul Global.

No caso da América Latina deveremos rastrear as origens dessa bifurcação, nas relações sociais que herdamos da Colônia; Gregorio Saldarriaga (2016, p. 53) dá luzes ao respeito, demonstrando que:

[...] a alimentação servia como um elemento de diferenciação social durante os séculos XVI e XVII, na América espanhola, não só como um fator econômico, senão associado à qualidade ou estado ao que pertenceriam as pessoas. Neste sentido, a cada um correspondia comer aquilo que era próprio da sua condição estamental. Este complexo modelo de hierarquização social estava baseado em princípios europeus que provinham da Idade Média, como a grande cadeia do ser e a teoria humoral. Na idade moderna, o modelo reforçou-se e em América tomou novas características, pela forma em que se procurou diferenciar entre espanhóis, criollos, mestiços e índios.

Nessa concepção, a qualidade de uma pessoa se relacionava, de um lado, com a prevalência de um dos quatro elementos (ar, água, terra, fogo) no seu corpo, que determinava seu humor (sanguíneo, fleumático, melancólico ou colérico); do outro, com o lugar que a divina providência lhe tivesse adjudicado. É esse o princípio da grande cadeia do ser, conforme o qual “deus tinha estabelecido uma ordem natural inquebrantável, que ia do alto ao baixo, do céu à terra, do espiritual ao material. Destarte, era uma divisão hierarquizada do mundo que (...) locava numa escala a cada espécie animal ou vegetal, incluso aos objetos inanimados, segundo suas qualidades e características” (Saldarriaga, 2016, p. 55). A escala “servia para organizar o mundo e dotá-lo de sentido”, e assim, “igualmente, se concebia que a sociedade era um reflexo do cosmos, no qual se impunha uma ordem hierárquica que seguia os mesmos princípios, indo do mais alto ao mais baixo; portanto, tal estratificação era natural” (idem.).

Este processo é o que Saldarriaga chama de “naturalização da sociedade e socialização da natureza”, que se refere à maneira em que a sociedade se alicerçou numa “ideologia da diferenciação social desde o consumo alimentar objetivado”, que seria a raiz mais profunda da dicotomia entre as dietas opulenta e massificada (class diet). O corolário das teorias humoral e da grande cadeia do ser é que há objetos, vegetais, animais e pessoas, mais próximos de deus, e outros mais afastados dele, sendo imperativo preservar a ordem divina pela atribuição dos alimentos correspondentes a cada estamento social (campesinato, clero, nobreza):

Nesta destinação de produtos segundo a qualidade das pessoas, se dava que entre os animais mais adequados para os estratos altos estavam as aves e despois seguia uma gradação de inferioridade à medida que se acercava ao solo. No caso dos cultivos, as frutas são dos produtos mais nobres; seguiam em nível as plantas que produzem grãos (trigo, milho miúdo e outros cereais); logo, seguiam os produtos que eram mais adequados para as classes inferiores, como as herbáceas, das que se consome sua folhagem superior (menta, espinafre), das que se comem as raízes (cenouras, nabos); por último, aquelas que teriam um sabor acre, que são bulbos (alhos, cebolas e alhos-poró) [Saldarriaga, 2016, p. 58].

Dessa forma se naturalizaram as restrições alimentares dos setores populares, alegando que estas obedeciam “não só a suas limitações econômicas, senão porque fisiologicamente eram os alimentos adequados para eles, já que, dada sua complexão, se comiam alguns de outro tipo adoeceriam” (Saldarriaga, 2016, p. 57). Essa idéia alimentou por séculos a brecha nutricional entre as camadas altas da sociedade europeia, cujas dietas eram mais variadas, ricas em proteínas e temperos (esses últimos com reconhecidas propriedades medicinais), e o resto da sociedade.

Tal estratificação fez parte da bagagem dos conquistadores da coroa castelhana, qual seria sua impressão quando conferiram que a base da dieta de sociedades como a andina eram os tubérculos? Por exemplo, no Nuevo Reino de Granada, atual Colômbia, “construiu-se a ideia de que os indígenas eram glutões e viciosos, capazes de comer todas suas provisões de milho em pouco tempo, que sofriam carências o resto do tempo, ou bem que eram incapazes de prover-se da comida adequada, pois contentavam-se com muito pouco”, como destaca Saldarriaga (2016, p. 63), ambos os postulados, embora contraditórios entre si, justificaram o domínio ibérico sobre as civilizações originárias e, posteriormente, sobre a população afrodescendente escravizada; trata-se de uma incompreensão absoluta dessas outras formas de ser e habitar os territórios, sendo os rituais da colheita centrais na cosmogonia indígena, que dessa forma estreita seus vínculos com a mãe-Terra, agradece e lhe retribui pela sua abundância.

Essa hierarquização tenta legitimar, afinal de contas, a dominação sobre o território, aqui, o fardo do homem branco era ensinar aos indígenas a cultivar hortas, de maneira circunspeta e ordenada, a diferença do jeito índio, que mistura tudo nas suas milpas e chagras, não à toa eram comedores de “insípidas raízes”, como a batata e a mandioca, e no melhor dos casos de frutos rasteiros, como a abóbora, evidenciando assim sua inferioridade. No entanto, para poderem estabelecer os vice-reinos, eventualmente “houve um processo de adaptação ou negociação com a cultura local que estava atravessado por considerações relativas ao gosto e o dever ser da comida”; uma das mais importantes formas de exercer o domínio era a tributação, “(que) se baseava na ideia de que os índios deviam dar um equivalente ao que entregavam a seus caciques em tempos pré-hispânicos” (Saldarriaga, 2016, p. 67).

Quadro 1- Origem geográfica dos principais cultivos da dieta contemporânea 

Assim, “(...) os espanhóis tiveram de fazer valorações que lhes permitissem estimar o mais apropriado para seu consumo. Deste modo, selecionaram alguns produtos e desestimaram outros, que ficaram para o autoconsumo dos povos, ou para venda e intercâmbio entre indígenas”; o cânon utilizado nessa complexa taxonomia alimentar data do século XIII, no trabalho do doutor da igreja católica, Alberto Magno, que distinguia quatro grupos: “a) árvores e arbustos frutíferos, b) cereais, c) plantas herbáceas (espinafre, couve, etc.), d) bulbos (cebola, alho, chalota, etc.)” (Saldarriaga, 2016, p. 67). Conforme a grande cadeia do ser, na distribuição dos alimentos de cada grupo entre os estamentos sociais, vai se cotejando desde os níveis mais altos-aéreos, aos mais baixos-subterrâneos, isto derivava numa hierarquização de “(...) dois grandes grupos de comidas na produção agrícola aborígene: as adequadas para os espanhóis e as adequadas para os indígenas”; no primeiro grupo:

Se tem que os frutíferos, que eram uma parte mínima da tributação, estavam na parte mais alta da escala. Estes eram, segundo o princípio social da natureza, aptos para o consumo dos grupos mais nobres. Ante a ausência de uma nobreza ao pé da letra em Hispano-américa, a aristocracia local estava constituída pelos encomenderos e os personagens das classes dominantes, especialmente os oficiais reais, e, dentre eles, vice-reis, oidores e governadores. No segundo nível estavam os cereais, se bem, de maneira mais ampla, poder-se-iam incluir os grãos também. Como dois elementos não podem ocupar o mesmo lugar na escala hierárquica, trigo, cevada e milho não se encontram no mesmo nível, embora pertenceram à mesma categoria.

No outro grupo:

No terceiro nível estavam as plantas herbáceas e as plantas cujas raízes podem comer-se; no quarto, os bulbos. Dentro da comida dos índios, como já se mencionou, havia arracachas, abóbora, rascaderas (planta das araceae), yuyos e um longo etecetera que se vê obscurecido, em ocasiões, pelo genérico ‛raízes’ que lhe davam os visitadores. Praticamente, o terceiro e quarto nível não entravam na tributação que tinham de fazer os indígenas, porque se considerava comida de gente baixa. A mandioca (Manihot esculenta) era uma exceção em certas zonas onde se utilizava para engordar gado ou para fazer casabe, usado nas embarcações durante as viagens por água; ademais disso a panificação jogava a seu favor, pois ao transformar-se num pão (casabe), convertia-se num alimento básico. Sem embargo, o casabe não contava com aceitação culinária e era considerado especialmente como alimento de necessidade ou de grupos subalternos [Saldarriaga, 2016, p. 68].

Em termos econômicos, se os espanhóis tivessem permitido aos indígenas continuar praticando sua agricultura tradicional, teria fracassado o projeto de sociedade colonial -totalmente dependente do trabalho aborígene e afrodescendente-, legitimado através dessa socialização da natureza e naturalização da sociedade; além do componente simbólico, o propósito de controlar a produção de alimentos era garantir os tributos e a provisão de comida em todas as camadas sociais, por isso, também obrigou-se às comunidades ancestrais a praticar a pecuária, a criação de galinhas e outras espécies animais e vegetais exóticas, que mudaram as paissagens, e consequentemente as cozinhas e as mesas, em todo o Abya-Yala.

A batata (Solanum tuberosum) merece algumas linhas à parte. No começo, dentro da taxonomia hispânica, a batata entrava na denegrida categoria das raízes, o cronista do Peru, Pedro Cieza de León, incluso a denominou “tésticulo da terra”, imagem que foi mudando muito lentamente, pois, apesar de começarem a reconhecer seu valor nutricional, ainda no século XVII era considerada comida subalterna, como expressava Frei Pedro Simón (apud. Saldarriaga, 2016, p. 68): “(as batatas) são de muito sustento, para toda sorte de pessoas, porém, não têm mais sabor de aquele com o qual as temperam”; Saldarriaga vasculha esse discurso:

[...] temos de procurar nesta afirmação sobre a insipidez da batata um valor social do grupo dominante, que se manifesta por meio de sua valoração: por um lado, a batata, como tubérculo, associava-se ao consumo de personas inferiores, daí que fosse comida apropriada para os indígenas; por outro lado, como o sabor era um referente de qualidade dos produtos, a ‛ausência de sabor’ e sua posição inferior na escala eram coincidentes; ambos elementos faziam com que a batata não fosse adequada para o consumo hispânico. Em Europa, por exemplo, esta ideia abrangia também os produtos que cresciam rés da terra, assim, pensava-se que a abóbora era ‛livre de todo tipo de sabor’ [idem.].

Contudo, em 1565 começou a cultivar-se nas ilhas Canárias, desde onde foi se propagando pelo continente euroasiático, entrando na península Ibérica, até atingir a costa mais longínqua -na China-, e cruzar ao Japão, várias décadas mais tarde. Nos círculos aristocráticos da Europa foi incorporada já a finais do século XVI, mas só com fins ornamentais (em jardins botânicos e herbolários), e para a criação de cerdos, tendo que passar ainda outros duzentos anos para que chegasse a ser acreditada como apta para o consumo humano, após a fome de 1770, momento em que mandatários tão influentes quanto Federico o Grande de Prússia, ordenam o cultivo de batata como suplemento alimentar para o campesinato, que ainda receava dela, apelidando-a “maçã do diabo”.

As coisas começam a mudar realmente nessa virada entre os séculos XVIII e XIX, quando Europa comprova o alto teor nutricional deste tubérculo andino, evidenciado na redução das mortes por doenças até então endémicas, como o escorbuto e o sarampo, e no aumento de nascimentos bem sucedidos, sendo um fator chave na explosão demográfica oitocentista; a dependência da batata na dieta das classes trabalhadoras chegou a tal ponto, que na década de 1840, ao começar a espalhar-se a praga do míldio (Phytophthora infestans) ao longo da Europa, desde Bélgica e Rússia, provocou a chamada grande fome, sendo o saldo mais mortal na Irlanda, cujo consumo calórico procedia num 80% desse cultivo. A elevação ao status gourmet atingiu-se na cozinha do nutricionista francês Antoine Parmentier, entusiasta e defensor da batata, e na mesa do presidente estadunidense Thomas Jefferson, que incluía no cardápio dos seus banquetes batatas “à francesa”, já consideradas delicatessen.

1.3. Exotização da agricultura intertropical e determinismo econômico

O caminho trilhado pela batata é emblemático: do demoníaco subsolo aos pratos de eventualmente cada ser humano, com o recorte de classe como principal elemento diferenciador: nos fogões domésticos, nos carrinhos dos vendedores ambulantes, nos balcões das cadeias de fast-food, na secção de congelados dos supermercados, nas feiras do agricultor, ou na mesa de um restaurante com estrelas Michelin; essa omnipresença tem sido representada na literatura, e incluso na pintura, muito especialmente na obra de Van Gogh, que dedicou várias telas a este vegetal. E assim entramos num processo que temos denominado exotização da agricultura intertropical, a outra cara da moeda no bem documentado fenômeno da sojização no Cone Sul, que no seu conjunto marcam a comoditização da agricultura latino-americana.

Identificamos dois momentos nesse processo de exotização na América Latina, o primeiro, que abrangeu o continente inteiro, foi a europeização da agricultura, a introdução de espécies exóticas para satisfazer as necessidades alimentares das sociedades europeias -cana, grãos, hortaliças, gados- na sua carreira pelo imperialismo moderno, em concordância com os postulados teóricos de Friedmann e McMichael. As mudanças nos usos do solo acabaram abrangendo o globo inteiro, à medida que as mudanças quantitativas desencadeadas com a economia capitalista iam se tornando mudanças qualitativas, porém, no caso da América (e demais colônias europeias), este processo modelou mesmo os territórios, como aponta o CIAT (2016, p. 35-36): “o intercâmbio colombiano marcou acelerações cruciais no movimento das plantas alimentares, já que foram introduzidas nos países colonizados, e em novas regiões de crescente assentamento colonial com uma emergente produção agroexportadora”.

O segundo momento se refere à exotização na aceção de bizarrice, de alteridade das espécies nativas, tendo como gabarito a agricultura e as mesas europeias, que ditaram a inferioridade do amaranto, a quinoa e outros yuyos, perante o trigo e demais grãos do dito velho mundo; vale esclarecer que estes momentos não têm um sentido diacrônico, aliás, trata-se de processos paralelos e interdependentes, como veremos a seguir. Na teorização sobre os processos de exotização em América tem se compulsado as chamadas crónicas das Índias, nas quais se encontra o germe da hierarquização social, mas também do realismo mágico, com relatos que são sempre metade ficção, seja pela interpretação que os cronistas fizeram desse mundo estranho para eles, seja pelo anseio de se congraçar nas cortes e impressionar seus benfeitores, adornando suas façanhas com seres e locações fantásticas -sereias, monstros, bosques de canela e cidades de ouro-, para garantir financiamento e salvo-condutos nas futuras viagens.

Sabemos que Colombo não partiu à procura de ouro, senão de uma rota alternativa para o comércio com Ásia, após a vitória Otomana na atual Istambul, portanto, só após fazer seu relatório aos reis católicos, é que poderia saber como qualificar a jornada -fracasso ou serendipismo-. Sabemos também que a pimenta e demais especiarias do oriente eram o fim último da expedição, levando algumas amostras para poderem interpelar aos habitantes das terras onde chegassem (“lhes mostraram a canela e a pimenta e outros temperos que o almirante tinha entregue, eles disseram por sinais que havia muita, perto dalí, no sudeste, mas que lá mesmo não sabiam se havia”), por isso, após comprovarem que não encontrariam os cobiçados frutos da Piper nigrum, optaram por um sucedâneo, como admite Colombo no seu diário da primeira viagem, no 15 de janeiro de 1493:

Também há muito ají [Capsicum annuum], que é sua pimenta, mais valiosa que a pimenta, toda a gente não come sem ela, por a achar muito sadia; podem-se carregar cinquenta caravelas cada ano em aquela Hispaniola [hoje República Dominicana e Haiti].

No entanto, não querendo enfadar a dona Isabel e dom Fernando, começa a chamá-las indistintamente de pimenta, omitindo a discrepância filogenética entre o tempero indiano (que pertence às Piperaceae), e o ají (pertencente à família das solanáceas, sendo, portanto, mais próximo do tomate e a batata), fato que encaminhou a história culinária a um equívoco que persiste até hoje, pois em muitas línguas não se usam as palavras aborigens para se referir à Capsicum annuum (ají, chile) e a distinguir da Piper nigrum.

A Capsicum annuum chegou a ser amplamente aceite, não só pelas suas qualidades organolépticas, senão sobretudo pelo seu potencial comercial (“podem-se carregar cinquenta caravelas cada ano (...)”), tendo um cultivo muito mais simples, por ser uma hortaliça e se adaptar melhor a outras zonas climáticas, a diferença da Piper nigrum, que é uma planta perene (cuja madurez produtiva tarda mais de um lustro), e só prospera na faixa tropical. Transtrocava-se assim a economia global de maneira peremptória, de um lado, a inauguração do comércio transatlântico levou à decadência da rota da seda, que por mais de 1500 anos integrou África e o continente euroasiático, sendo uma fonte inquestionável de poder, do outro lado, a introdução de espécies exóticas modificou ecossistemas, hábitos alimentares, o mercado e a estrutura agrária em todos os continentes, dando origem à moderna geopolítica dos alimentos.

O tom nos relatos dos cronistas das Índias marca a virada entre as primeiras expedições, de índole comercial, e a posterior ocupação violenta desses ricos e fantásticos territórios ultramarinos, em especial, vão transformando-se as descrições das pessoas, que nos diários de Colombo são sempre belas e encantadoramente ataviadas, até tornarem-se bárbaros com cabeça de cachorro e nenhuma cultura aos olhos dos conquistadores. A europeização da agricultura e a brutal colonização das Américas requeriam de uma justificativa, à luz da moral cristã, e com esse propósito fizeram detalhados inventários dos exíguos cultivos e dos exuberantes frutos, indicando assim que a terra dos índios era rica, mas que eles não a tratavam apropriadamente, cabendo aos espanhóis educá-los e comandá-los, civilizá-los; as descrições da fauna e a flora -violentas, mas não isentas de poesia- expressam esse jogo entre a carência e o potencial, entre o exotismo do ser e a inevitabilidade do dever ser.

No tocante à exotização da agricultura intertropical, queremos ressaltar as crônicas de Gonzalo Fernández de Oviedo, cujo “Sumário da natural história das Índias” inclui primícias sobre orografia, árvores, insetos, mamíferos (como o bicho preguiça, do qual falou ser “o animal mais torpe que pode ser visto no mundo”), répteis (com destaque para a iguana, uma verdadeira alienígena no seu olhar), frutas (o abacaxi, por exemplo, adquire um cariz majestoso sob sua pluma), a agricultura e culinária nativas, e demais características da América Central, o Caribe e o norte sul-americano. Interessa-nos muito especialmente a crônica sobre o Golfo de Urabá, porta de entrada para a América do Sul:

[...] como a terra está em clima que naturalmente é caluroso, temperada pela Providência divina, logo se estraga o peixe ou a carne que não é assada o dia que morre. [...] não sem causa os antigos tiveram que a tórrida zona, por onde passa a linha equinocial, era inabitável, por ter o sol mais domínio alí que em outra parte da esfera e estar justamente entre ambos os trópicos, de Câncer e Capricórnio.

Essa ideia de inabitabilidade da zona tórrida talvez tenha origem no fracasso de Santa María la Antigua del Darién, a primeira cidade espanhola em “terra firme”; fundada em 1511 e localizada no dito Golfo, foi epicentro de intrigas e desaforos, no meio do surto do “descobrimento”, que incitou a todo tipo de homens a testarem sua sorte nesses territórios “inexplorados”, dos quais muitas vezes não retornavam, porém, dado que quando conseguiam retornar o faziam carregados de riquezas, alimentou-se a cobiça de novos “descobridores”. O certo é que as brigas entre espanhóis foram a causa da queda de Santa María, mas o rigor da selva húmida tropical -que atrapalhou a reprodução da familiar quadrícula- e a prontidão com que a natureza recobrou seus domínios, reduzindo a ruínas em poucos meses os edifícios abandonados em 1524, atiçou o mito da letalidade dessa cidade, à qual achacaram “mais mortes que estrelas no céu”, como chegara a expressar o próprio Fernández de Oviedo.

Tal estereotipo foi (e é) reproduzido incluso na Colômbia, onde essa zona é conhecida como “tapón del Darién” (tampão do Darien), pela densidade da selva, ainda hoje considerada impenetrável, incluso para um megaprojeto da envergadura da Rodovia Panamericana. A esse respeito, Marta Herrera (2002, p. 107), salienta que as comunidades Muiscas (do altiplano cundiboyacense, na cordilheira oriental dos Andes, onde se localiza a capital, Bogóta) eram sociedades hierarquizadas, mais parecidas com a estrutura social ibérica, por isso, enquanto “nos Andes Centrais, predominou um tipo relativamente homogéneo de planejamento espacial, que refletiu e reforçou o controle do Estado colonial sobre a população”, nas outras regiões do país, habitadas pelos chamados “índios bravos”, como as comunidades Caribe, “o que se destaca é a heterogeneidade das formas de planejamento espacial e de controle territorial”, como as “rochelas”, espaços mais horizontais e nómades, que para a coroa espanhola eram sinônimo de baderna.

Dessa maneira, o altiplano cundiboyacense aparecia aos olhos dos exploradores como um oásis dentro das inclementes selvas tropicais, “tierra buena” (terra boa), como expressava um dos expedicionários que acompanhou a Gonzalo Jiménez de Quesada na sua incursão ao centro do vice-reino da Nova Granada (Delgado, 2010); por conseguinte, não é por acaso que a capital da Colômbia e as de outros países andinos se localizam nos topos da cordilheira, e não na linha litorânea.

Já voltando à história contemporânea, no decisivo século XIX, podemos ver as reverberações destas ideias na filosofia de Hegel, que enxerga o continente americano como um “novo mundo”, em contraposição ao “velho mundo”: África, Ásia e, sobretudo, Europa, que ao “descobri-la” a inseriu na história, uma vez que América não pussuia uma própria; a imaturidade do dito continente se reflexaria incluso na sua natureza, que não alberga grandes espécies como o cavalo, cruciais para a evolução de uma “verdadeira cultura”, equiparada à europeia.

E isto nos remete a um contemporâneo de Hegel, Humboldt, quem encarnou no seu ser e na sua obra as contradições da sociedade oitocentista. De um lado, a revisão dos seus diários e correspondência demonstram uma apurada sensibilidade social e ambiental, sendo defensor de algumas das ideias mais nobres da Ilustração, como transparece, por exemplo, no célebre ensaio político de Cuba, onde reflexiona -a propósito da escravidão e o plantation- sobre as mudanças nos usos do solo, e o atraso técnico e moral que supõe tal sistema produtivo; além disso, sua riqueza deu-lhe certa liberdade, pela possibilidade de bancar suas expedições, a diferença de outros cientistas (como Darwin, que ao embarcar no Beagle submetia-se aos interesses políticos e comerciais da Marinha Real Britânica), precisando da retrógrada dinastia Bourbon só para lhe conceder salvo-conduto ao se adentrar nesses territórios -que ainda estavam sob domínio da metrópole- arribando a Cumaná (na atual Venezuela) em 1799.

Do outro lado, tudo o anterior não o poupou das falhas da sociedade da qual era produto, bem seja por defeito pessoal -não escapando totalmente à ideia de que as civilizações não europeias eram “ainda muito imperfeitas”-, ou pelo uso que o imperialismo do livre comércio fez dos seus trabalhos. Interessa-nos só o segundo aspecto, que levara aos cronistas dos séculos XVIII e XIX a se tornarem -quiseram ou não- nos “olhos do império”, trazendo a Europa o substrato sobre o qual construir uma imagem do resto do mundo que legitimara seu expansionismo econômico, no caso do continente americano, no contexto da transição republicana; nesse sentido, o exultante naturalismo de Humboldt e do seu colega nas “Viagens às regiões equinociais do novo continente”, Aimé Bonpland, reforçaram a visão eldoradista que os europeus tinham construído desde 1492, fazendo ênfase na exuberância da paissagem natural mais do que nas culturas aborigens com as quais esta tinha coevoluido.

Em efeito, a incompreensão das territorialidades indígenas contribuiu (e ainda contribui) à ideia de que suas terras são baldias, e precisam da civilização (ocidental) para renderem frutos; na modernidade, a ciência veio ocupar o lugar da religião, construindo grandiosas edificações teóricas para sustentar a validez da economia capitalista (Shiva, 1988), de sorte que, a ordem social que antes era resguardada pela Inquisição, agora é tida por natural: não é deus quem decreta a superioridade do homem diante da mulher, ou de uma nação frente outra, são a fisiologia, a localização e os recursos naturais, os que determinam o lugar que deve ocupar-se na atividade produtiva e, consequentemente, na sociedade. Humboldt, a partir de suas observações biogeográficas, sentou as bases do mapeamento climático, concebendo em 1817 o conceito das faixas isotérmicas: “curvas desenhadas através de pontos do globo que recebem uma quantidade igual de calor”, popularizado por William Woodbridge em 1823 (imagem 1).

É um facto que a latitude determina o ângulo de incidência da radiação solar, como também o é a existência de cultivos melhor adaptados a cada zona climática, o que está em discussão é a forma em que o capital explora tal diferenciação em função do lucro. E aqui vale lembrar os conceitos de soluções espaço-temporais às crises inerentes do capital, de David Harvey (2004), e sua reinterpretação do conceito de destruição criativa (originalmente proposto por Joseph Schumpeter), que se refere à maneira em que o capitalismo modela uma paisagem econômica, pela ação dos movimentos inter-setoriais e internacionais de fundos excedentes, cuja bússola são as divergências nas taxas de lucro, que se traduzem na entrada ou saída massiva de capitais; nesse sentido, as zonas climáticas, ao derivar em diferenças concretas que podem sustentar fluxos de intercâmbio, tornam-se incluso uma variável passível de especulação.

Claro está que diferenciação climática não é a única variável levada em conta nos cálculos do comércio agrário -embora seja uma das mais evidentes-, assim, para continuarmos traçando as origens da especialização agroexportadora na América Latina, apontaremos outros aspectos, como “a dotação de recursos, as distâncias e as vias de navegação, vinculado às tecnologias existentes em cada momento, (as quais) foram determinantes das possíveis respostas econômicas das diferentes regiões latino-americanas”, só a mineração escapa desse tipo de considerações, pois o alto valor dos metais compensa todos os custos, incluso quando as minas estavam encravadas nas mais íngremes cumes dos Andes; fora isso, como tínhamos mencionado antes, “as outras economias prósperas foram as que estava perto das costas, como a região de Buenos Aires e logo Entre Ríos e a Banda Oriental -economias de fronteira com forte peso da imigração- ou Cuba e Brasil” (Bértola & Ocampo, 2010, p. 87).

No tocante a esses aspectos, novamente é conveniente rastrear as heranças da economia colonial, salientando que a prevalência da lógica territorialista do poder (Arrighi, 1996) não implica que o ganho fosse omitido no roteiro das coroas ibéricas, nesse sentido:

O fomento de plantações no Caribe estava favorecido pelas vantagens da localização geográfica, passagem obrigada das principais rotas mercantis, do comércio triangular e muito próximo das fontes africanas de trabalho escravo. Esses elementos impulsaram a expansão de cultivos tropicais nas Antilhas (tabaco, café e açúcar), bem como no litoral venezuelano (cacau).

O histórico dinamismo econômico nas regiões litorâneas está relacionado então com a maior facilidade do comércio colonial transatlântico, se estabelecendo como verdadeiros nodos nas redes que se adentraram no continente, conectando os “arquipélagos econômicos” que caracterizaram os países latino-americanos; por razões obvias, nesse processo privilegiaram-se as localizações mais accessíveis, principalmente por vias fluviais:

Do mesmo modo que sucedeu nas ilhas caribenhas, em regiões costeiras, em planícies próximas e em áreas bem comunicadas por rios propiciou-se o crescimento econômico. Esse foi o caso do litoral nortenho de Peru, os vales próximos às terras baixas ao sul da Cidade de México, a costa de El Salvador e de maneira mais significativa a pampa argentina [Guerra, 1997, p.17-18].

Por isso, resulta interessante o desenvolvimento das cidades andinas na Colômbia (dentre as quais, a capital do país), que de alguma forma contradizem essa lógica econômica, por estarem distantes das costas e comunicadas só através de íngremes caminhos; a localização das jazidas de ouro no interior explicam unicamente a incursão e mineração nessas zonas, mas não a fundação de assentamentos -lembrando que o mais usual nesses casos era a colônia de exploração-, mas aqui operam os motivos apontados por Herrera (2002). Na atualidade, com o desenvolvimento da aeronáutica é transbordada a barreira da conexão terrestre com os portos, mas não deixa de ser relevante a recapitulação desse processo que, de passo, nos ajuda a revelar o carácter histórico -político- das ditas vantagens em que se alicerçam a teoria e a prática do comércio internacional.

1.4. Considerações finais

Temos esboçado fatores culturais, ideológicos e econômicos que derivaram no sistema agroexportador especializado da América Latina; é indiscutível que não se tratou de um processo mecânico, bem pelo contrário, foi resultado do exercício do poder britânico que soube ler o enrevesado panorama histórico do século XIX e tirar vantagem dele, dando um novo conteúdo à forma em que se relacionavam as metrópoles e suas colônias. Aliás, McMichael (2014, p. 10-11) argumenta que os arranjos produtivos originados na Colônia serviram como base concreta para a teoria do comércio internacional, que por sua vez era a base ideológica da pax britannica:

A divisão internacional do trabalho que definiu o sistema colonial aprofundou e acelerou o comércio entre nações como a regra implícita determinante que sustentava o regime alimentar. Ou seja, ela afirmou o princípio ricardiano de ‛vantagem comparativa’, segundo o qual o crescimento econômico dependia de que as nações se especializassem e trocassem produtos determinados pela sua dotação relativa de recursos [McMichael, 2014, p. 10-11].

Por outras palavras, Grã-Bretanha tomou como ponto de partida o status quo: uma sociedade hierarquizada e sustentada na exploração do trabalho alheio, e tentou justificar essa estrutura -que era funcional à hegemonia do livre comércio- através da teoria econômica, aspecto tão crucial para a consolidação do poder capitalista que, como referencia Marx (1987), a Anti-Corn Law League organizou um concurso de ensaios sobre as vantagens do liberalismo econômico, publicando os três vencedores em 1842, na curiosa coletânea:“The three prize essays on agriculture and the Corn Laws” (Os três ensaios premiados sobre agricultura e as Leis Cerealistas), em que os autores galardoados: W. R. Gregg, George Hope e Arthur Morse, apresentam argumentos fracos (principalmente os dois últimos) e contraditórios entre si, os quais rebate sem esforço algum o precursor do materialismo dialético.

Salientamos, assim, que a naturalização da ordem social foi crucial na consolidação da hegemonia do capital; no caso da divisão internacional do trabalho agrícola, parafraseando a Marx (1987), é como se a natureza tivesse começado a se preocupar com o comércio, determinando padrões de especialização agroexportadora na América Latina, que consagraram o Cone Sul à condição de “república unida da soja” e a zona intertropical à produção dos cultivos “exóticos” que estiverem na moda. Amiúde, a representação desses espaços abrange as pessoas que os habitam, quer dizer, os estereótipos que se constroem em torno das já expostas vantagens absolutas e comparativas, não se limitam às características físicas do território, mas incluem apreciações sobre culturas e grupos étnicos (o “capital humano”), mais uma vez, sob valores europeus, em particular a ideia de progresso.

Nem sequer Engels escapou a esse erro, se referindo à expropriação ianque do norte do México (Califórnia, Nuevo México, Texas, etc.) como um “avanço”, na medida em que, dessa maneira, “(...) este país (via-se) arrastado forçosamente ao progresso histórico”, apreciação que podemos ponderar no meio do entusiasmo suscitado pelo avanço das forças produtivas no século XIX -especialmente nos Estados Unidos-, o que não devemos fazer é negligenciar as consequências dessa leitura da sociedade na história contemporânea. Por isso, queremos replicar com as palavras do grande José Martí (2011, 17), que se pergunta com seu característico fervor latino-americanista:

[…] em que pátria pode ter um homem mais orgulho do que nas nossas tristes repúblicas da América, erguido entre as massas emudecidas de índios, ao barulho de luta do livro com o círio, nos braços sangrentos de uma centena de apóstolos?

Para sentenciar a seguir:

[…] o bom governante na América não é aquele que sabe como o alemão ou o francês se governa a si próprio, mas aquele que sabe de que elementos é feito o seu país, e como os pode guiar juntos, para chegar, por métodos e instituições nascidas do próprio país, a esse estado desejável onde cada homem se conhece e se exerce, e todos desfrutam da abundância que a Natureza colocou para todos nas pessoas que fertilizam com o seu trabalho e defendem com as suas vidas. O governo deve nascer do país. O espírito do governo deve ser o espírito do país. A forma de governo deve estar em conformidade com a própria constituição do país. O governo nada mais é do que o equilíbrio dos elementos naturais do país.

Pensar na América Latina sem levar em consideração essa dialética entre a luta histórica pela autonomia e a heteronomia imposta pela matriz colonial (e suas heranças vivas), é ficar só na superfície dos processos sociais em geral, e dos padrões de especialização agrícola, em particular.

Houve, contudo, fatores intrínsecos à Independência e conformação das repúblicas latino-americanas, que também contribuíram ao desenvolvimento de economias orientadas à exportação de commodities, com um mercado doméstico fraco e pouco diversificado; nesse sentido, Sergio Guerra (1997, p. 24) se refere à “(…) pobre participação popular (na) fase de guerra emancipadora, (...) o caráter fragmentário e local dos governos criollos e suas múltiplas contradições intestinas (centralistas e federalistas, republicanos e monárquicos, radicais e moderados)”, bem como ao “marcado antagonismo entre as classes populares e a aristocracia criolla”, como elementos que ajudam a explicar, não só as reviravoltas e contragolpes das coroas ibéricas nos processos independentistas, senão também a fragilidade das incipientes sociedades republicanas.

A isto podemos acrescer as argumentações de Ocampo (2004, p. 726), quem salienta que:

A criação da nacionalidade foi traumática e incompleta na maioria dos países, pelo menos em dois sentidos diferentes. Primeiro, isto significou uma guerra civil recorrente em muitos países durante o século XIX, o que contribuiu à geração de sistemas políticos nos quais o governo oligárquico entrelaçou-se estreitamente com o poder militar. Por sua vez, isto último significou que a vitória do liberalismo econômico no século XIX não esteve acompanhada na maioria dos países pelo desenvolvimento de instituições políticas liberais.

Esses fatores de índole política tiveram repercussões mais explicitamente relacionadas com a vocação agroexportadora da América Latina, pois:

Segundo, em termos econômicos, a ausência de comunicações modernas significou que os países foram realmente um conjunto de localidades, arquipélagos econômicos nos que as diversas partes das nações estavam frequentemente melhor integradas aos portos de Europa ou os Estados Unidos que entre si. O desenvolvimento de um verdadeiro mercado interno foi assim um processo relativamente tardio na maioria dos países.

Este autor destaca também o atraso tecnológico e a falta de capitais nas jovens repúblicas latino-americanas, como heranças coloniais e do endividamento ocasionado pelas guerras emancipadoras. Portanto, além dos “choques externos” (os jogos de poder das potências -entre si e com o resto do mundo-), podemos entender a referida “dependência regional das matérias-primas” a partir das lutas intestinas pelo poder, o déficit em tecnologia e em infraestruturas de integração, a política macroeconómica e “a incidência da instabilidade dos fluxos de capital”, que consolidaram a agroexportação e a mineração como os setores mais lucrativos para as oligarquias oitocentistas, senão os únicos.

Em resumo, a bifurcação da dieta contemporânea (class diet) e consequente consolidação de padrões de produção agroexportadora nas duas grandes zonas climáticas da América Latina, podem ser lidas, de um lado, sob o olhar de um determinismo econômico, que prega as vantagens comerciais da especialização, como corolário das características físicas dos territórios, desconsiderando as dinâmicas do poder; do outro lado, na perspectiva de Friedmann e McMichael, reverte-se essa relação, entendendo a divisão territorial do trabalho agrícola como um processo essencialmente político, materializado por meios econômicos e cuja forma concreta é a especialização produtiva.

Imagem 1-Carta isotérmica de William C. Woodbridge (1823)  

2. Referências

Arrighi, Giovanni. (1996). O longo século XX. Dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. [ Links ]

Bértola, Luis; Ocampo, José Antonio (2010). Una historia económica de América Latina desde la Independencia. Desarrollo, vaivenes y desigualdades. [ Links ]

Delgado, Juan. (2010). La construcción social del paisaje de la Sabana de Bogotá 1880-1890. [Dissertação, Mestrado em Historia, Universidad Nacional de Colombia]. [ Links ]

Friedmann, Harriet. (2014). Food regimes and their transformation. [Audio podcast]. Food Systems Academy Talks. http://www.foodsystemsacademy.org.uk/audio/harriet-freidmann.htmlLinks ]

Friedmann, Harriet; Mcmichael, Phillip. (1989). Agriculture and the state system. The rise and decline of national agricultures, 1870 to the present. Sociologia Ruralis, 29 (2), 93-117. https://doi.org/10.1111/j.1467-9523.1989.tb00360.x [ Links ]

Guerra, Sergio. (1997). Etapas y procesos en la historia de América Latina. [ Links ]

Harvey, David. (2004). O novo imperialismo. [ Links ]

Herrera, Marta. (2002). Ordenar para controlar. Ordenamiento espacial y control político en las llanuras del Caribe y en los Andes Centrales neogranadinos. [ Links ]

Khoury, Colin; Achicanoy, Harold; Bjorkman, Anne (e outros). (2016). Origins of food crops connect countries worldwide. Proceedings B, Royal Society. 283 (1832), 1-9. https://doi.org/10.1098/rspb.2016.0792 [ Links ]

Marx, Karl. (1987). Discurso sobre el libre cambio. La miseria de la filosofía. Respuesta a la filosofía de la miseria de P. J. Proudhon (pp. 205-208). [ Links ]

Martí, José. (2011). Nuestra América. José Martí: obras completas (pp. 15-26). [ Links ]

Mcmichael, Philip. (2014). Food Regimes and Agrarian Questions. [ Links ]

Ocampo, José Antonio. (2004). La América Latina y la economía mundial en el Largo Siglo XX. El Trimestre Económico, 71, 284 (4), 725-786. [ Links ]

Ricardo, David. (1982) Princípios de Economia Política e Tributação. [ Links ]

Saldarriaga, Gregorio. (2016). Comer y ser: La alimentación como política de la diferenciación en la América española, siglos XVI y XVII. Varia Historia. 32 (58), p.53- 77. https://doi.org/10.1590/0104-87752016000100004 [ Links ]

Shiva, Vandana. (1988). Staying Alive: Women, Ecology and Survival in India. [ Links ]

Smith, Adam. (1996). A riqueza das nações: Investigação sobre sua natureza e suas causas. [ Links ]

1 O presente trabalho faz parte da tese de doutoramento: Soja em um vaso de flores: Geopolítica dos alimentos e divisão sexual do trabalho na América Latina (1986-2015), de autoria da primeira autora, e defendida em dezembro de 2021, sob a orientação da segunda autora.

Recebido: 01 de Fevereiro de 2022; Aceito: 16 de Dezembro de 2022

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons