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Da Investigação às Práticas

versão On-line ISSN 2182-1372

Invest. Práticas vol.5 no.2 Lisboa set. 2015

 

ARTIGOS

Um percurso na construção de uma educação inclusiva [1]

 

Maria Bénard da Costa entrevistada por Francisco Vaz da Silva
Departamento de Ciências Humanas e Sociais, Escola Superior de Educação, Instituto Politécnico de Lisboa fsilva@eselx.ipl.pt

 

Contacto

 

Em 1978, quando iniciei a minha carreira profissional, Ana Maria Bénard da Costa era Chefe da Divisão da Educação Especial (DEE) e dirigia o conjunto das Equipas de Educação Especial que, de norte a sul do país, enquadravam os profissionais (educadores, professores, terapeutas e psicólogos) que apoiavam a integração de alunos com Necessidades Educativas Especiais em escolas e turmas do ensino regular.

Espírito vivo e entusiasta, sempre batalhou por oferecer a esses profissionais da educação as melhores condições de trabalho possíveis e, muito importante, formação e informação actualizadas e inovadoras.

Nesta entrevista, Ana Maria fala-nos dos valores em que sempre acreditou, das pessoas que a inspiraram e soube chamar para a ajudarem, e nos ajudarem, e nos princípios essenciais da inclusão com uma actualidade e frescura notáveis. Uma Senhora que sabe guardar a capacidade para se apaixonar! Um exemplo para mim, com certeza para muitos mais que tiveram o privilégio de com ela se cruzar e trabalhar.
Esta entrevista teve lugar em Julho de 2014. Integralmente gravada e transcrita, deu origem a um texto que foi, ao longo de vários meses, reescrito e revisto pelos dois, entrevistador e entrevistada, até se chegar ao texto final que de seguida se apresenta.

Francisco Vaz da Silva (FVS): A Ana Maria é uma pessoa de referência na educação especial e uma entusiasta defensora da inclusão nas suas múltiplas dimensões. Ao longo da sua carreira, tem dado importantes contributos para a construção de escolas inclusivas e o seu trabalho e experiência têm inspirado muitos profissionais. É na sua experiência, no seu percurso, que eu gostaria de focar esta conversa, começando pelo princípio. Ana Maria, como é que tudo começou? Quais têm sido as suas fontes de inspiração e a base do seu trabalho?

Ana Maria Bénard da Costa (AM): Acho que, na base do trabalho que tive oportunidade de fazer ao longo da minha vida, estão valores, ideias, conceitos em que acreditei. E o conceito principal que se enraizou em mim através do contacto com pessoas, com livros, com escolas, foi acreditar que as crianças e jovens, mesmo que tenham qualquer tipo de deficiência, se desenvolvem melhor em ambientes normalizados, em que a família e a comunidade são factores fundamentais, e acreditar que a escola regular pode ser um local privilegiado de aprendizagem. Tudo isso fez com que eu acreditasse que este caminho em direcção à escola inclusiva fosse o caminho a seguir para a população que se designa como tendo necessidades educativas especiais. Para além disso, penso que a inclusão constitui uma resposta que implica a aceitação da individualidade de cada aluno. Não se trata de olhar de forma especial só para os que têm problemas ou que são excepcionais, mas de organizar a escola e as condições de aprendizagem para que sejam as melhores “para todos”.

FVS: Mesmo se se trata de alunos com problemas graves?

AM: Neste caso, têm de ser considerados não só os elementos que constituem um currículo escolar adequado, mas, igualmente, os factores que contribuem para o desenvolvimento humano e que são a integração familiar, a participação em actividades com outros e, muito especialmente, a oportunidade de se estabelecerem relações de amizade.

FVS: Estou a lembrar-me de um livro editado pelo David Rodrigues [Rodrigues (org.), 2006, Perspectivas sobre a inclusão. Da educação à sociedade]. É um livro muito interessante porque fala da inclusão em diferentes perspectivas, não só escolar, mas também numa perspectiva social. São várias as dimensões da inclusão.

AM: Essa perspectiva social é fundamental e sobre ela aprendi muito ao longo do meu trabalho, com autores que conheci. Entre eles, lembro-me de artigos que li do Prof. David Pitonyak. As investigações que fez centram-se na importância das relações sociais. Há um texto, que tem por título “A solidão é a pior deficiência” [ver www.dimagine.com], que mostra que o pior problema é a pessoa estar sozinha. Todos os seres humanos precisam de amor, de amizade, de relações pessoais, de ser aceites. A amizade que inclui o convívio e a interacção com outras pessoas ao longo das várias fases da vida é fundamental. Isto começa na família, ser aceite na família, viver aí um ambiente de calor afectivo que, depois, se alarga à comunidade e em que a escola é um elemento muito importante. Isto para toda e qualquer criança.

Há textos do Prof. Lou Brown, que eu cito muitas vezes, que são testemunhos de pais que dizem sobre os seus filhos adolescentes: “Ele esteve na escola …esteve na escola, gostou, teve lá amigos. Agora está em casa, está sozinho. Chega ao Sábado e ninguém lhe telefona e ninguém o convida para lado nenhum”.

Há uma história, essa foi a Prof. Rosa da Madeira que me contou, que me fez imensa impressão: havia uma aluna deficiente que lhe disse: “Todas as meninas na escola têm telemóveis e eu não tenho telemóvel” e ela deu-lhe um telemóvel. Passado um tempo, veio ter com ela, entregou-lhe o telemóvel e disse-lhe: “Olhe, tome lá o telemóvel. Ninguém me telefona, não preciso dele”. A solidão dos adolescentes com estes problemas é terrível. Para eles, ter amigos é a coisa mais importante.

FVS: É capaz de evocar experiências de inclusão em que esta dimensão seja assim valorizada?

AM: Conheço o trabalho que tem sido desenvolvido pelo Dr. Mário Pereira, na Associação que fundou chamada ASSOL [www.assol.pt], numa perspectiva de educação ou reabilitação “centrada na pessoa”. Nela propõe-se que se organizem “círculos de amigos” e “círculos de discussão” entre os alunos, estando, entre eles, aquele que tem uma deficiência ou um problema. Todos falam daquilo que os preocupa, daquilo que os ajuda a estarem felizes, e todos são levados a propor a melhor forma de se ajudarem.

FVS: Voltando ao que foi o seu percurso, como foi então o seu primeiro contacto com crianças com necessidades especiais?

AM: Isso aconteceu por um mero acaso. Eu estava a acabar o 4º ano do Curso de Histórico-Filosóficas que englobava disciplinas de Psicologia e, por proposta do professor que iria orientar a minha tese final, fui fazer um estudo baseado na influência que a falta de visão poderia ter no desenvolvimento da inteligência. Esse estudo foi baseado nos resultados da aplicação do teste “Wechsler Intelligence Scale for Children” (WISC) a dois grupos de crianças, sendo um composto por crianças cegas e o outro por crianças com visão normal. Tive, assim, de estabelecer contacto com crianças cegas, o que até aí nunca me tinha acontecido, e fui visitar diversas instituições e escolas especiais onde elas se encontravam.

Fiquei muito marcada pela situação “asilar” da maioria destas instituições e, ao mesmo tempo, percebi que a cegueira não impedia que muitas crianças com falta de visão tivessem um alto Q.I.. Ao longo da elaboração desse estudo, procurei encontrar livros e artigos sobre este tema, mas o apoio fundamental que encontrei veio da Directora duma escola - O Centro Infantil Helen Keller - a Drª Maria Amália Borges, Psicóloga e Pedagoga de imenso valor.

No fim desse ano lectivo, fui convidada a ir para essa escola como educadora numa classe infantil e isso marcou a minha vida profissional. Para além de ter tido a oportunidade de conhecer melhor as crianças com deficiência visual, fiz parte duma escola que se orientava pela chamada “Pedagogia Freinet”, que partia da identificação das características de cada aluno, procurava a valorização da sua personalidade e baseava a aprendizagem na experiência, no interesse e na cooperação. Ali, os alunos, em vez de redacções sobre temas impostos, escreviam (ou ditavam se ainda não sabiam escrever) textos livres, em que cada um contava experiências que tinha vivido e sentimentos que tinha experimentado. Em vez de uma aprendizagem passiva, as crianças faziam visitas de estudo, tinham na aula documentação que podiam consultar, faziam álbuns com os seus textos e os seus desenhos e dedicavam-se a muitas outras actividades que desenvolviam a sua criatividade.

Encontrei nesse Centro pessoas que foram muito marcantes na minha formação, entre elas, o Dr. João dos Santos, o Dr. Henrique Moutinho e a Dr.ª Maria Amélia Borges, que faziam parte de Direcção, e as Professoras Maria Isabel Pereira e Deline Martins, que me ajudaram muito naqueles primeiros tempos em que eu ali estive.

Lembro-me que se sublinhava muito a ideia de que não havia pedagogias especiais - a pedagogia é uma para todos. Há uma orientação global que é boa para todos, e há técnicas específicas que podem ser usadas com uns ou com outros. Nessa perspectiva, considera-se que as crianças, com as suas diferenças, podem conviver umas com as outras, aprender umas com as outras, ajudar-se umas às outras e pesquisar umas com as outras. Essa era a orientação desenvolvida ali no Centro Helen Keller e constituiu a decisiva experiência que me abriu os olhos para a importância da integração.

Vou contar uma história que lá se passou comigo. Com as crianças do Centro faziam-se muitos passeios e, um dia, fomos visitar o mosteiro da Batalha. Fomos todos de camionete: alguns professores e os alunos, uns cegos, outros com visão reduzida e outros sem problemas visuais. E fui eu com eles para o Mosteiro da Batalha e achei que devia tentar mostrá-lo aos que não viam. Para isso, pedi-lhes que pusessem as mãos numa coluna e sentissem o relevo dos vários veios que ela tinha. E depois fazia-os atravessar para o outro lado da nave e dizia: “isto que está aqui é o mesmo veio, vai até ao tecto e depois desce outra vez e vai parar aqui”. Tentava assim dar-lhes uma noção do que era uma ogiva. Depois, chamava-lhes a atenção para o som que lá havia: eles falavam e sentiam a sensação do espaço enorme onde estavam. Pedi-lhes para contarem os passos que davam para ir dum lado ao outro. Depois fizemos um piquenique, cantámos, brincámos, sei lá… foi muito divertido.

Eu cheguei a casa, falei do passeio que tinha dado com as crianças e fui o motivo de troça na minha família: “Sabem a última da Ana Maria? Ela foi mostrar o Mosteiro da Batalha aos cegos e foi-lhes dizer que aquilo era muito bonito”, como se fosse a coisa mais disparatada do mundo. Isto era o conceito normal das pessoas: se é cego porque o que é que vai visitar um monumento? Mas, apesar de não verem o Mosteiro, tive a certeza de que sentiram lá dentro e que tiveram uma noção do que ele era e que aquele dia os tornou felizes.

FVS: Há bocado estava a falar de várias pessoas com que se cruzou, designadamente o João dos Santos. Sei também que participou na recente celebração do seu nascimento. Eu também lhe queria perguntar quem foram as pessoas que a influenciaram ao longo do seu percurso que começa no Keller, mas depois passa pela Divisão do Ensino Especial [Ministério da Educação] e pela ligação a várias organizações internacionais. Quem foram as pessoas que a influenciaram?

AM: Oh, foram muitas… Eu, sozinha, nunca teria chegado a lado nenhum. Eu acho que sozinhos não chegamos a lado nenhum…

FVS Um dos meus mestres, o Prof. Joaquim Bairrão, citava muitas vezes esta frase extraordinária: “Nós somos pequenos anões nos ombros dos gigantes que nos antecederam”.

AM: É exactamente isso.

FVS: Se não houvesse os gigantes em cima dos ombros de quem podemos subir, nem beneficiávamos do saber e das criações de quem nos precedeu, nem teríamos a capacidade de gerar uma visão do futuro …

AM: Há uma capacidade que eu julgo ter: a capacidade de me apaixonar por ideias e por caminhos novos. A leitura dum texto, a participação numa conferência, a visita a uma escola, o conhecimento de alguém, podem levar-me a ficar “apanhada” e contribuir para me levar para novos caminhos. Ao longo da minha vida, tive o privilégio de tudo isso me acontecer imensas vezes.

FVS: Essa capacidade para se apaixonar é, sem dúvida, uma das suas características. Pode dar-me exemplos de influências que recebeu?

A.M. Durante esses primeiros anos de trabalho, deparei-me com uma Fundação dos E.U.A., chamada “American Foundation for Overseas Blind” (AFOB). Escrevi para lá pedindo ajuda e recebi uma resposta em que me diziam que, sendo eu a primeira pessoa de Portugal que lhes pedia apoio para a educação de crianças deficientes visuais, gostariam muito de poder colaborar comigo. Propuseram a vinda a Portugal duma técnica que dirigia o Departamento que tinham em Paris chamada Jeanne Kenmore que, anteriormente, tinha formado professores de deficientes visuais em Universidades dos EU. Esta visita realizou-se em 1963, na altura em que eu ainda estava na Direcção Pedagógica do Centro Helen Keller.

À Drª Kenmore deveu-se um impulso decisivo nesta área, em Portugal. Começou por propor a realização dum Seminário em Lisboa sobre a integração de deficientes visuais em escolas regulares a que assistiram vários professores das escolas especiais que na altura existiam. Uma das pessoas que eu convidei para assistir foi o Reitor do Liceu de Passos Manuel, o Dr. Diamantino Soares, a quem eu tinha apresentado a proposta de integração de cinco alunos cegos que estavam a frequentar o 5.º e o 6.º ano (então 1.º e 2.º ano do liceu) no Centro Helen Keller. Ele ficou muito interessado nas ideias que foram apresentadas e decidiu começar esta experiência. Penso que se pode considerar este momento como o ponto de partida para a integração de alunos com deficiência em escolas regulares em Portugal.

Quando o Instituto de Assistência aos Menores (IAM), que pertencia à Direcção Geral de Assistência, organizou os primeiros cursos de especialização para professores de deficientes visuais, a Drª Kenmore foi uma das principais professoras, ficando responsável por todas as matérias relacionadas com as técnicas especiais para os alunos cegos ou com visão reduzida. As suas aulas foram de tal modo marcantes que, ao longo dos anos, os seus apontamentos eram considerados, pelos seus alunos em Portugal, uma fonte de informação insubstituível.

A influência da Drª.Kenmore estendeu-se não só a Portugal, mas a muitos outros países e foram especialmente importantes os vários cursos que organizou em Paris sobre o ensino da Orientação e da Mobilidade em que participaram vários professores portugueses.

FVS: Estas experiências iniciais de integração de alunos seriam depois generalizadas ao resto do país. Como é que isso aconteceu?

AM: No fim do segundo ano como Directora do Centro Helen Keller, fui convidada a fazer parte do IAM, do Ministério da Saúde e Assistência, com a tarefa de Coordenar o Serviço de Educação de Deficientes Visuais (SEDV), a nível nacional.

FVS: Que papel desempenhou no IAM, quais foram os seus principais objectivos dentro das funções que aí assumiu?

AM: A prioridade enunciada no primeiro plano de acção que apresentei foi remodelar (ou fechar, no caso em que tal não era possível) os asilos e instituições existentes para crianças cegas, de modo a que passassem a seguir uma orientação pedagógica diferente da que existia. De facto, achávamos, nessa fase, que para os alunos do 1.º ciclo era muito difícil a sua integração, pois se admitia que, antes de frequentarem uma classe regular, deveriam aprender o Braille e outras técnicas indispensáveis, e isso teria de ser feito em escolas especiais. Assim, comecei por visitar todas as Instituições que havia no país e que eram, na quase totalidade, asilos, fechados e antiquados.

Para que essa alteração fosse possível, achei que, antes de tudo, era preciso formar professores e técnicos. Como já disse, pedi apoio à AFOB e veio colaborar connosco a Drª. Kenmore. Para além dela, contámos com vários colaboradores, especialistas em diferentes áreas: psicologia, oftalmologia, pedagogia e várias outras.

Foi o primeiro curso realizado no país na educação de deficientes visuais e os professores que nele se formaram foram trabalhar, quer nas escolas especiais que existiam, quer nas primeiras experiências de apoio ao ensino integrado, no jardim-de-infância ou a partir do 5.º ano. Neste nível, os alunos recebiam a ajuda necessária, quer a título individual, na sala de aula, quer em pequenos grupos em espaços próprios – as salas de apoio - que foram criadas em vários liceus do país. Para além disso, criaram-se novas escolas no Porto, em Coimbra, na Madeira e nos Açores. Um dos Asilos existentes, o Asilo de Nª. Sª. da Esperança, em Castelo de Vide, funcionava em condições tão negativas que se considerou preferível que os alunos fossem retirados e encaminhados para outras instituições.

FVS: Estas experiências iniciais foram generalizadas a crianças com outro tipo de problemas?

AM: Naquela fase, em que estive no IAM, não… A tarefa que me tinha sido destinada dizia respeito unicamente à educação de crianças e jovens com deficiência visual. Naquele Instituto havia dois Departamentos de Educação Especial, um destinado à educação de alunos com deficiência auditiva e outro para alunos classificados como tendo deficiência mental média. Eu fui convidada a começar com um novo sector para deficientes visuais.

FVS: Como se encarava nessa altura a educação de crianças e jovens com algum tipo de limitações?

AM: Durante o tempo em que estive no IAM as crianças e jovens com deficiência podiam ser dispensados da escolaridade obrigatória. Para isso, bastava que se entregasse um atestado médico. Muitos não iam à escola, e só uma pequena percentagem estava nas Instituições oficias ou privadas que então existiam. Algumas crianças com deficiência mental considerada profunda estavam em Hospitais Psiquiátricos. Em algumas escolas primárias funcionavam classes especiais para alunos com dificuldades ligeiras de aprendizagem.

Nessa altura as pessoas tinham uma ilusão, diziam: O problema da educação especial está resolvido. Já existem escolas especiais para os alunos com deficiência auditiva, mental e visual, e, para estes últimos, estão organizados programas integrados. Mas a realidade era bem diferente, havia no país milhares de crianças com deficiência que não tinham nenhuma resposta educativa e a legislação não impunha que, para eles, a educação fosse obrigatória.

Esta situação manteve-se até à publicação da lei Veiga Simão [Ministro da Educação, 1970-1974],a quem se deve imenso em muitas áreas, sendo uma delas a educação especial. Pela primeira vez em Portugal publica-se uma lei em que se criam as Divisões do Ensino Especial na Direcção Geral do Ensino Básico e na do Ensino Secundário. Nesse diploma são enunciados objectivos educativos que abrangem todas as crianças, e são apontadas medidas para apoiar a educação das crianças com deficiência.

FVS: >Que papel teve na altura a Direcção Geral de Assistência (DGA)?

AM: Esta Direcção Geral teve uma acção imensa nos diferentes sectores em que actuava: a família com crianças até aos dois anos de idade, os idosos, as comunidades carentes, os menores privados de ambiente familiar e os que apresentavam deficiências. Esta acção deveu-se, essencialmente, ao seu Director Geral, Armando Carvalho da Fonseca, que, com as suas qualidades de chefia e de gestão extraordinárias, soube dinamizar e gerir as equipas que dele dependiam e desenvolver uma acção notável nos diversos domínios em que actuou.

FVS: Como foi a sua experiência de trabalho na DGA?

AM: Foi uma experiência única, em que foi possível desenvolver muito trabalho. Tudo começou com um plano que apresentei em que previ os passos que achei que na ocasião eram os mais importantes: a criação de um “Centro de Observação e Orientação “ para as crianças com deficiência que, com a direcção do Joaquim Bairrão, veio a ser o conhecido COOMP que foi um centro de referência a nível nacional, e mesmo internacional; a organização de um serviço de apoio a crianças deficientes visuais das primeiras idades, o “Serviço de Orientação Domiciliária” (SOD); a reorganização de internatos existentes; a criação de novas escolas; e o início do ensino integrado. Acho que tudo isso foi possível devido ao ambiente de trabalho que ali era proporcionado, em que todos sentíamos estímulo, autonomia e entusiasmo…

FVS: Mas, nessa altura, como eram as práticas educativas noutros países, onde foi beber a sua inspiração, buscar exemplos para promover a inclusão de alunos com problemas de visão?

AM: Quando começámos a desenvolver a integração de alunos cegos e com visão reduzida, não havia muitos países na Europa com experiências destas. Lembro-me que a Dr.ª Kenmore organizou uma reunião sobre este tema e que só foram convidadas pessoas dos países nórdicos e de Portugal.

>Mas falando de influências que recebi, não posso esquecer uma instituição que foi muito importante na minha formação: a “International Conference of Educators of Visually Handicapped” (ICEVH). A sua principal função era organizar, de 5 em 5 anos, um Congresso que reunia profissionais ligados à educação de pessoas com deficiência visual, vindos de muitos países do mundo. O primeiro Congresso em que participei, quando estava no IAM, realizou-se na “Perkins School for the Blind” nos Estados Unidos, e essa participação foi muito importante. Ao longo dos anos, mantive um contacto muito estreito com o ICEVH e os serviços por onde passei receberam, através deles, apoios fundamentais.

Houve de facto uma colaboração muito grande por parte de uma série de organizações o ICEVH, a AFOB, a Swidish International Development Cooperation Agency (SIDA), a OCDE e, fundamentalmente, a UNESCO.

FVS: Como é apareceu essa ligação à UNESCO?

AM: Quando fui trabalhar para o Ministério da Educação, para a Divisão de Ensino Especial, entrei em contacto com a UNESCO que me ajudou e marcou imenso. Os contactos começaram quando pedi à Directora do Departamento de Necessidades Especiais que aí trabalhava – a Drª. Lena Saleh - apoio para a área da Intervenção Precoce, sector em que eu sentia existirem muitas fragilidades.

FVS:> Foi com esse apoio que iniciaram o trabalho com crianças dessas idades [dos 0 aos 6 anos]?

AM: Não, antes desse pedido já tínhamos lançado no IAM o “Serviço de Orientação Domiciliária” (SOD) de que falei há pouco.

FVS: O que a levou a dar importância à intervenção nas primeiras idades?

AM: Quando fui educadora no Centro Helen Keller, tive um aluno que, na infância, tinha passado grande parte do tempo num parque e numa cama de grades. Ficou marcado pela falta de estimulação e pouco comunicava com o mundo exterior. Sabia que, para uma criança, as experiências vividas durante os primeiros anos são fundamentais e, no IAM, nos anos 60, comecei a tentar organizar um programa que fosse dirigido para os pais e para as crianças destas idades. Procurei a colaboração de duas educadoras, e com elas, organizámos o Serviço de Orientação Domiciliária (SOD). Chegámos a ter 300 crianças deficientes visuais, apoiadas simultaneamente em todo o País, incluindo Madeira e Açores.

O SOD foi montado com base na intervenção de enfermeiras dos Dispensários Materno-Infantis que estavam instalados em muitas regiões do país e que intervinham a nível domiciliário, ajudando as mães e os bebés até aos 2 anos de idade. Para podermos difundir a acção do SOD, pensei que seria muito importante utilizar estas enfermeiras que dispunham de meios de deslocação e que tinham uma preparação de base que era importante. No entanto, para se dedicarem à intervenção com as crianças cegas, foi preciso organizar um curso que as preparasse para aquelas funções. Depois de frequentarem esse curso, passaram a apoiar as crianças de que havia conhecimento (entre os 0 e os 6 anos) assim como as suas famílias e utilizavam os meios que já possuíam: estavam num Centro de Saúde, contavam com o apoio dum médico, tinham sido formadas em saúde pública, dispunham de automóvel para se deslocar, uma vez que o seu trabalho era de tipo itinerante. As suas funções eram muito variadas, de acordo com as características de cada caso. Lembro-me de uma enfermeira dos Açores que me contou que tinha ensinado a família a cultivar cenouras para poder fazer a sopa para a criança. Para além da intervenção domiciliária, sempre que possível, colaboravam com educadoras de jardins-de-infância, na integração das crianças que tinham idade para os frequentar.

FVS: Qual foi o apoio da UNESCO nessa área?

AM>: A Dr.ª Lena Saleh financiou a vinda a Portugal de uma especialista norte americana, a Drª. Mary Ann Newcomb. Era uma pessoa absolutamente extraordinária que nos deu um apoio fundamental nas longas e diversas estadias que passou connosco. Orientou cursos para educadoras, visitou escolas e jardins-de-infância, deixou-nos um “Plano Global de Intervenção Precoce” e um “Projecto de Desenvolvimento para Multideficientes”.

Ela estava muito ligada ao Dr. Brazelton, tinha criado diversos centros na Califórnia e lançado Projectos de ajuda entre pais. Muitos anos mais tarde, já depois de me aposentar, tive ocasião de visitar dos serviços que tinha lançado na região de S. Francisco e que ainda se mantinham em funcionamento.

FVS: Mas a cooperação com a UNESCO não se focou só na Intervenção Precoce, teve influência noutros domínios da educação especial. Conte-me um pouco mais sobre o papel da UNESCO.

AM: A UNESCO contribuiu de muitas e diversas formas, mas um dos momentos mais marcantes da sua acção foi o Congresso Mundial de Salamanca em que tive possibilidade de participar.

FVS: Essa deve ter sido uma experiência muito importante, viver aqueles momentos …

AM: Sim, foi muito importante, porque foi um Congresso com uma qualidade absolutamente extraordinária. Foi organizado pelo Governo Espanhol e pela UNESCO, com uma decisiva participação do Secretário de Estado da Educação de Espanha, o Dr. Alvaro Marchesi, do Prof. Mel Ainscow e da Drª Lena Saleh. Para além da Declaração propriamente dita, as comunicações plenárias são textos fundamentais para a compreensão da Educação Inclusiva e a maioria dela foi traduzida para Português e editadas pelo IIE. Não sei se tens esse livro chamado Caminhos para Escolas Inclusivas ? [Ainscow, Porter e Wang, Caminhos para Escolas Inclusivas, editado em 1997 pelo Instituto de Inovação Educacional].

Participaram neste Congresso mais de trezentas pessoas de todo o mundo e foi extraordinária a forma como foi possível organizar sessões plenárias, as sessões simultâneas para 50 pessoas e, a certa altura, pequenos grupos (buzgroups) em que 2 ou 3 pessoas falavam umas com as outras. E, assim, havia possibilidade de se realizarem milhares de trocas e de conversas. Entretanto, paralelamente, os organizadores iam monitorizando e vendo o que se estava a passar.

Mas para além do que aconteceu no Congresso, há a repercussão mundial que tem tido o documento final a que deu origem - A Declaração de Salamanca – um texto que foi aprovado pelos representantes dos 92 países que nele participaram e que é um documento que marcou a evolução das políticas e das práticas na área educativa em todas as regiões do mundo.

Depois disso houve outras. Por exemplo, uma iniciativa que teve uma profunda repercussão entre nós foi um Seminário realizado no Instituto de Educação da Universidade de Bolonha, em 1994, na sequência da Conferência de Salamanca.

FVS: Qual foi o tema desse Encontro?

AM: O tema central da reunião consistiu em responder à seguinte questão: “O que é que um professor do ensino regular tem de saber para poder incluir todas as crianças?” Ou seja, era lançada uma das bases da educação inclusiva que é centrar a problemática da educação não nos professores do ensino especial, mas nos professores de ensino regular.

A D.ªLena Saleh tinha orientado um estudo sobre os programas de integração em vários países do mundo e, depois disso, pretendia que se elaborasse um documento que servisse de base a acções de formação de professores regulares, de modo que eles pudessem desenvolver a educação inclusiva. O Prof. Mel Ainscow foi o coordenador da equipa que elaborou esse documento, o “Conjunto de Materiais para a Formação de Professores”, que, julgo, foi usado também nos cursos de que me falaste que funcionaram aqui na ESE de Lisboa.

Quando passei a integrar o Instituto de Inovação Educacional (IIE), propus ao seu Presidente – o Prof. Bártolo Paiva Santos – que aquele Instituto se ocupasse da tradução e edição deste livro, o que ele aceitou. Este Conjunto de Materiais passou a ser um instrumento fundamental no desenvolvimento do Projecto “Educação Inclusiva”, que decorreu durante vários anos com a coordenação directa da Profª. Isabel Paes e o apoio continuado da UNESCO e do Prof. Mel Ainscow.

De facto, a acção da UNESCO no desenvolvimento da Educação Integrada e Educação Inclusiva em várias regiões do mundo foi absolutamente marcante. E o que me deixava sempre totalmente espantada foi ver como aquele Departamento, dirigido pela Lena Saleh, era um serviço pequeno, com poucos elementos permanentes. No entanto, colaboravam com ela, como consultores, alguns dos maiores especialistas nesta área, e com eles foi possível lançar aquele trabalho com enorme influência. Alguns deles deram-nos, ao longo dos anos, um imenso apoio. Estou a falar, entre muitos outros, de Mel Aisncow, Sheamus Heggarty, Alan Dysson, Gordon Porter.

FVS: Tem havido desde então uma continuidade na colaboração da UNESCO?

AM: Até ao momento em que me aposentei (2002), essa colaboração continuou através de diferentes iniciativas e projectos. Estabeleceu-se uma colaboração entre o Prof. Mel Ainscow e o IIE, (oficializada através da Universidade de Manchester, onde ensinava), que se traduziu na sua vinda frequente a Portugal, como consultor do Projecto “Educação Inclusiva”. Esta colaboração constituiu uma das maiores contribuições para a implementação desta perspectiva educativa em vários pontos do país.

FVS: Gostaria de voltar um pouco atrás e retomar o tema da evolução das mentalidades e da legislação. Há pouco, a Ana Maria mencionou a ausência na legislação portuguesa de referências à educação de crianças e jovens com limitações. Esta ausência implicava que estas crianças não tinham lugar nas escolas regulares e, em muitos casos, ficavam em casa. Quando é que a legislação sobre a educação passa a incluir crianças e jovens com limitações? Quando é que se dá o momento de viragem?

AM: Foi com a participação do Ministro da Educação Veiga Simão [1970-1974]. Penso que se lhe deve imenso, entre outras áreas na educação especial. Pela primeira vez em Portugal, passaram a existir serviços vocacionados para a educação especial e, no diploma que os cria, são enunciados objectivos educativos que abrangem todas as crianças e são apontadas medidas para apoiar a educação de crianças com qualquer tipo de deficiência.

FVS: Desde essa altura o sistema educativo e a legislação portuguesa têm feito o seu caminho, muito influenciado, como já referiu, pela Declaração de Salamanca de 1994. Como é que nós estamos, hoje em dia, em Portugal e no mundo em geral?

AM: Não sei bem – estou muito distante do que se passa neste momento. Hoje em dia, é indiscutível que a educação inclusiva é um conceito que se espalhou pelo mundo, mas há muito a fazer para que seja concretizado. Por exemplo, na Alemanha e em França, há ainda uma grande tendência para se educarem as crianças com deficiência em escolas especiais, e em muitos casos, procura-se que os alunos com mais dificuldades se separem em grupos de nível e sejam encaminhados muito cedo para centros de treino profissional. Nos EU e nos países nórdicos a situação é diferente: não existem provas de exame durante toda a escolaridade básica e as escolas vão ajudando as crianças com dificuldades para que possam dar o máximo. A situação é muito diferente em várias regiões do mundo e em diferentes países. Há programas de inclusão fabulosos, e há situações de uma enorme segregação.

FVS: Onde é que nós, em Portugal, nos situamos, na sua perspectiva, no quadro que acaba de traçar?

AM: O que eu acho é que, neste momento, muito voltou para trás e a legislação que existe reflecte isso. Mesmo agora, o parecer do Conselho Nacional de Educação [Políticas Públicas de Educação Especial, Junho de 2014] diz que a escola tem de ser para todos, mas refere que o que há a fazer diz respeito à intervenção com os alunos com “necessidades educativas especiais”, não focando que a escola tem de mudar para todos, que a perspectiva tem de ser focada na escola, no currículo, na formação de professores, nas estratégias educativas.

FVS: Mas há avanços em Portugal? Considera que há práticas de educação inclusiva em Portugal?

AM: Há certamente avanços em escolas, em salas de aula, em experiências novas, na qualidade de tantos professores. Mas há outras faces da realidade que vão noutro sentido, que não apontam para avanços, antes para retrocessos. Quando se insiste na importância dos exames, quando se utiliza a repetência como reforço de aprendizagem e quando muitas crianças com deficiências graves se debatem com falta de recursos indispensáveis, julgo que tudo isso não significa avanços.

FVS: E no que respeita à outra dimensão de inclusão, que eu acho que é importante, que é a atitude dos professores e a maneira como os professores utilizam os recursos disponíveis para responder às necessidades educativas dos seus alunos?

AM: Aí acho que nós estamos avançados. Em Portugal, julgo que há, para a maior parte dos professores, um grande interesse pelas crianças. Olhando para a experiência que vivi - estou a lembrar-me daqueles professores que vieram trabalhar para as Equipas de Educação Especial, nos anos 70 e 80, lembro-me bem do seu imenso empenhamento! Qual horário, qual burocracia! Levavam crianças ao médico nos carros deles, iam apoiar escolas onde tinham de fazer longos caminhos a pé. Há certamente uma grande potencialidade de generosidade e de entusiasmo. Mas, para que isso acontecesse, foi muito importante o apoio que sentiam e a autonomia a responsabilidade que lhes era dada. Aqui eu acho que há um potencial que se está a perder porque há um potencial dos professores, uma capacidade de fazer coisas. Isto que vem da nossa latinidade e da capacidade, da facilidade de relação com os pais, tudo isso podia permitir tanta coisa. Mas, de facto, há necessidade de se poder contar com condições (professores de apoio com formação segura, redução do número de alunos quando a sala de aula integra alunos com deficiência, ajudas técnicas, equipamentos educativos) e, nestas áreas, verificam-se muitas carências. Havia, como há, uma sala com uma criança com necessidades especiais que não devia ter mais que 20 alunos, havia dois por classe, tudo isso mudou completamente.

FVS: Quais lhe parecem ser as barreiras para a escola e a educação inclusiva actualmente em Portugal?

AM: O que eu acho é que é muito difícil dar o passo que vai do conceito de “ensino integrado” para a “educação inclusiva”. É muito mais fácil olhar-se para uma criança deficiente e ver o que se pode fazer para a apoiar ou encaminhá-los para os professores do ensino especial, do que centrar a intervenção em todos os factores que intervêm na escola regular. É muito difícil saber responder a questões como: “o que podemos fazer para atender todas as crianças, mudando a forma tradicional de ensinar e de gerir a classe e a escola regular?” Ou: “como é que vamos ajudar as crianças com deficiência a ter amigos e a ser parte da comunidade em que vivem?”

E intervir na formação de todos os professores para conseguir estes objectivos é difícil. É muito forte o peso duma tradição que existiu durante muito tempo.

FVS: E os recursos que, hoje em dia, são colocados na escola, apelam muito a esse tipo de práticas tradicionais…

AM: Sim, podem contribuir para se caminhar nessa direcção. Põe-se na aula o quadro electrónico ou dão-se aulas apresentando powerpoints e espera-se que os alunos aprendam através deles, todos ao mesmo tempo. Por outro lado, organizar trabalho de grupo entre alunos, trabalhar cooperativamente entre professores, promover a investigação e auto- avaliação, são estratégias que promovem a aprendizagem e que, muitas vezes, não implicam o uso de equipamentos. Dar este passo para a inclusão é, de facto, difícil porque implica ensinar de outra maneira.

FVS: Há pouco estávamos a falar do parecer do Conselho Nacional de Educação sobre a educação especial que parece estar ainda muito focada nas práticas centradas na criança…

AM: Sim, não se liberta dessa perspectiva, insiste muito em que é preciso educar todos, mas depois acentua, sobretudo, o atendimento dos alunos com necessidades especiais. E em relação com este conceito, vem a necessidade de classificação, de divisão em grupos mais ou menos integráveis, de separação entre alunos elegíveis e não elegíveis para terem apoio.

Uma das orientações que Mel Ainscow defende como fundamental é o apoio entre alunos e entre professores e, desde há uns anos, começou a insistir muito no apoio entre escolas. Uma escola que já chegou a um patamar vai ajudar outra que ainda não está nesse patamar. Portanto, alunos, professores e escolas a trabalhar em conjunto, a potencializar o que têm de positivo é fundamental. Chegar aí é difícil…

FVS: E o caso de alunos com problemas muito graves?

AM: É evidente que há casos tão complexos, tão graves, tão difíceis, que, para eles, penso que se podem justificar serviços especiais, de modo mais ou menos temporário. Há situações em que uma família fica destruída com a presença constante dum filho com problemas desse tipo e aí justifica-se a necessidade de lares ou outros espaços para atendimento.

FVS: Os pais, às vezes, precisam de umas tréguas …

AM: Precisam de umas tréguas, precisam de poder sair, de ter umas férias. Em certos casos um filho com estes problemas esgota as famílias e estas têm pouca ajuda. Para os casos muito pesados, é preciso contar com aquele tipo de recursos e existem em Portugal várias Instituições que já contam com eles, mas, segundo dizem muitas famílias, ainda são insuficientes.

FVS: Muitos pais de jovens com problemas graves estão preocupados com a transição face à exiguidade de oportunidades oferecidas a estes jovens no fim da escolaridade obrigatória. O que seria essencial assegurar para responder às necessidades das famílias e dos jovens neste domínio?

AM: Essa questão levanta um problema muito complexo que, só por si, justificaria uma entrevista. Coloca a questão fundamental e que se designa por “Transição para a Vida Activa” e se relaciona com a “Perspectiva Educativa Funcional”. Embora estas orientações possam englobar muitos grupos de alunos (incluindo os que não têm aptidão ou interesse por estudos académicos e que deverão ser encaminhados para aprendizagens pré-profissionalizantes e treinos profissionais), dirigem-se especialmente para aqueles que apresentam graves deficits de ordem intelectual.

Mas, respondendo concretamente à pergunta, julgo que, para que se promova uma inserção activa na comunidade dos jovens após a sua escolaridade, a própria escola tem de contribuir para isso. Hoje existe um extenso conhecimento sobre a forma de actuar neste sentido e são muitas as experiências que existem nesta área. No entanto, em Portugal, os obstáculos para que estas práticas se concretizem são ainda muito significativos, facto que algumas Associações de pessoas com deficiência têm largamente referido. Na verdade trata-se de uma problemática que abrange vários departamentos (Educação, Acção Social, Emprego, Saúde) e a coordenação inter-serviços não é um ponto forte entre nós...

FVS: Em que medida esteve profissionalmente envolvida nesta área?

AM: Durante os anos em que estive muito ligada ao trabalho com alunos com deficiência intelectual, quer nos estabelecimentos dependentes das CERCIs e de Associações de Pais, quer nas escolas regulares, colocou-se de forma premente o problema da sua preparação para uma vida activa e de uma futura integração num ambiente laboral. Nessa área tive a oportunidade de conhecer pessoas que nela tiveram uma influência fundamental: estou a falar do Dr. Peter Vallettuti, que veio colaborar com a DEE (Divisão do Ensino Especial), através do Programa Fulbright e o Dr. Lou Brown, que conheci durante uma visita de estudo que fiz aos EUA.

Este dois professores desenvolveram programas que, embora seguindo diferentes estratégias, tinham o mesmo objectivo: preparar os alunos com deficiências intelectuais, durante a escolaridade e na fase de saída da escola, para poderem ter uma ocupação no meio de trabalho normal. Ou seja, em vez da solução tradicional que consistia em criar “oficinas protegidas” ou “centros ocupacionais”, a sua perspectiva baseava-se em conseguir que a escola promovesse precocemente a sua participação em actividades concretas que contribuíssem para uma futura integração profissional na comunidade. Assim, parte do seu currículo escolar era passado a realizar tarefas em locais diversos, considerados como estágios laborais, realizados em coordenação com os programas escolares.

FVS: Qual foi a contribuição das CERCIS e das Associações de pais neste processo?

AM: Esta contribuição foi decisiva. Muitos dos alunos passaram a partilhar o seu tempo escolar entre as salas de aula e actividades na comunidade, considerando-se que era aí que se podia desenvolver a sua capacidade de interacção social e a sua preparação para uma futura ocupação profissional.

FVS: Há documentação sobre este Projecto?

AM: Quando regressei dos EUA e fui inserida no IIE, um dos Projectos que aí procurei desenvolver consistiu exactamente nesta área e pelo Instituto foram publicados diversos estudos. Um deles tinha sido iniciado na DGEB (Direcção Geral do Ensino Básico) pela Drª. Noémia Fino, que veio depois prestar uma colaboração externa no IIE. Infelizmente muitas dessas publicações hoje não estão disponíveis, podendo unicamente ser consultadas on-line através do site redeinclusao.web.ua.pt.

FVS: Um dos pressupostos da inclusão é a oferta de uma educação de qualidade para todas as crianças. É, por isso, importante saber avaliar e reconhecer essa qualidade, o que parece não ser uma tarefa fácil. Estou a lembrar-me do título de um texto de Schwartz: “Reconheço-a quando a sinto.” É um pouco subjectivo. Como é que se avalia a inclusão? Como é que uma pessoa pode chegar perante uma situação educativa e dizer: isto é inclusão. Ou dizer, não, isto não é bem inclusão. Qual é a diferença? Olha-se para quê?

AM: Há características óbvias. Se entramos numa sala de aula e vemos os alunos a trabalhar em grupo, se vemos alguns a ajudar outros, se se percebe que todos estão interessados em diversas tarefas, ou se todos estão concentrados num tema que o professor está a explicar, isso demonstra bem que ali há uma educação de qualidade.

Por outro lado, se entramos numa sala de aula e vemos os alunos com problemas todos num lado e os outros no outro; se estão todos sentados nas suas carteiras individuais virados para o professor, ocupados com tarefas iguais, ou se se percebe que há muitos sem nenhuma atenção em qualquer actividade, isto não é inclusão.

Mas há formas, por exemplo, o professor está a dar uma matéria, está a falar sobre borboletas. Pode falar de borboletas em níveis completamente diferentes, desde a química das asas até à cor da borboleta, mas é importante, para aqueles que não conseguem compreender os aspectos mais complexos, que se ocupem com outros, relacionados com o tema geral, mas que sejam mais simples. Tem-se designado esta estratégia por “ensino a diferentes níveis” e “participação parcial” e pode ser encontrada diversa documentação sobre este tema. É o que teve lugar quando eu levei os alunos cegos do Centro Helen Keller à Batalha. Eles não podiam ter todas as experiências que os outros tinham, mas poderiam partilhar muitas delas.

FVS: Concorda, portanto, que a avaliação da inclusão tem de se basear em dados de observação. Qual a sua opinião sobre a utilização destes dados de observação na formação dos professores?

AM: Acho que essa prática é fundamental. Pode ser feita entre colegas, em que uns assistem às aulas de outros, pode ser feita utilizando-se a filmagem da sala de aula, pode ser feita através de encontros em que se debatem as diferentes estratégias utilizadas.

No caso de ser estudada a integração de um aluno com deficiência, acho que é preciso estar-se atento ao que se passa: onde é que ele se situa na aula, com quem está, como participa nas actividades que estão a decorrer, qual a comunicação que a professora estabelece com ele, como se relaciona com os colegas. Tudo isso dá a perceber se existe uma situação que facilita a inclusão.

O Prof. Mel Ainscow acentua muito a necessidade de se ouvirem os alunos como parte muito importante desta avaliação. Decorre neste momento um Projecto Europeu orientado por ele, em que Portugal participa, que se centra neste factor: a importância de ouvir os alunos.

FVS: A Ana Maria, com o seu perfil, poderia perfeitamente integrar um grupo de sábios encarregue de atribuir bolsas e financiamento a projectos de investigação nesta área. Que temas consideraria prioritários e com potencial contributo para a prática? O que é que está a fazer falta?

AM: Não me considero com perfil para essa tarefa. Mas existem inúmeros documentos que podem ajudar os Professores de ESEs (Escolas Superiores de Educação) a definir esses temas. Sobre alguns dos aspectos a considerar acabei agora de falar. Posso simplesmente indicar dois conceitos que julgo essenciais: COOPERAÇÃO (entre alunos, professores, escolas) e OUVIR OS ALUNOS.

FVS: A Ana Maria tem tido uma longa carreira, foi autora e testemunha de um período de grandes transformações. Olhando para trás, haverá momentos que provocaram mudanças significativas na sua carreira profissional?

AM: Se olho para a minha vida profissional, vejo que houve mudanças perfeitamente ocasionais, motivadas por breves acontecimentos inesperados.

Por exemplo… Eu fui, logo no princípio do meu trabalho no Centro Helen Keller, a um congresso em S. Paulo, no Brasil. Era o 1.º Congresso Nacional de Professores de Deficientes Visuais. Um dia, uma das professoras que lá estava convidou-me para ir com ela a uma escola onde estava uma aluna cega do ensino primário que ela estava a apoiar. Entrei com ela numa salinha onde ela tinha material escolar próprio daquela aluna. Retirou uns livros em Braille e convidou-me a acompanhá-la à aula. Entrei na sala onde estavam cerca de 25 crianças e não consegui perceber onde estava a criança cega. A certa altura, vi a professora dirigir-se a uma carteira e só aí percebi qual era a criança que ia apoiar. Estava a falar com a colega do lado, era uma entre muitas outras. A minha colega de Congresso deu os livros à aluna, falou com ela uns minutos e depois foi falar com a professora da classe. Estiveram juntas uns momentos, trocaram impressões, e ficou marcado o dia em que haveria tempo para dar apoio à aluna.

Ver aquela criança cega no meio das outras, assistir àquela intervenção discreta da professora de apoio, sentir o que havia de normal naquela situação, fez-me sentir - quase como uma revelação – que aquele era o caminho certo e fez-me pensar que aquela era a solução que ia tentar aplicar em Portugal.

Há, de facto, acontecimentos na vida das pessoas que surgem sem se esperar e que são absolutamente marcantes. Uma pessoa que conhecemos, um livro que nos veio parar às mãos, um Congresso a que assistimos, uma situação com que deparamos…

FVS: E, às vezes, é só uma questão de se estar aberto e ter aquela capacidade de se apaixonar. Obrigado, Ana Maria.

 


Contacto: Francisco Vaz da Silva, Departamento de Ciências Humanas e Sociais, Escola Superior de Educação, Instituto Politécnico de Lisboa, Campus do IPL, Rua Carolina Michaelis de Vasconcelos, 1549-003 Lisboa, Portugal / fsilva@eselx.ipl.pt

(recebido em fevereiro de 2015, aceite para publicação em junho de 2015)


NOTAS

 

[1] De comum acordo, entrevistador e entrevistada, usam o antigo acordo ortográfico.

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