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Da Investigação às Práticas

versão On-line ISSN 2182-1372

Invest. Práticas vol.11 no.1 Lisboa mar. 2021  Epub 24-Mar-2021

https://doi.org/10.25757/invep.v11i1.237 

Artigos

Descola - reconfigurações e reiterações da gramática escolar

Descola - Reconfigurations and Reiterations of the School Grammar

Descola - reconfiguraciones e reiteraciones de la gramática escolar

Descola - reconfigurations et réitérations de la grammaire scolaire

Elisabete X. Gomesi  ii 
http://orcid.org/0000-0001-6635-6307

Ana Luísa de Oliveira Piresi  ii 
http://orcid.org/0000-0001-9680-4051

Mariana Gaio Alvesiii 
http://orcid.org/0000-0001-8895-0796

1Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal, Portugal

2CICS.NOVA, Universidade Nova de Lisboa, Portugal

3Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, UIDEF, Portugal


Resumo:

Reconhecendo a relevância social e científica atual das pesquisas que considerem, articuladamente, as dinâmicas educativas que decorrem dentro e fora dos espaços escolares, apresenta-se um estudo que explora uma oferta educativa da responsabilidade do município de Lisboa - o programa DESCOLA - a qual tem como público-alvo os professores e alunos das escolas básicas e secundárias. Orientada pela questão central “Em que medida o DESCOLA reitera e/ou reconfigura a gramática escolar de educação?”, desenvolve-se uma abordagem metodológica qualitativa e interpretativa que assenta na análise de conteúdo da brochura do programa. Os resultados da pesquisa sugerem a presença de marcas da gramática escolar no DESCOLA, mas também de interrupções dessa mesma gramática, fazendo emergir possibilidades de mudança da organização e trabalho escolares numa lógica de espaço público de educação.

Palavras-chave: Educação; Cultura; Estado Educador; Espaço Público de Educação

Abstract

Recognizing the current social and scientific relevance of researches that consider, articulately, the educational dynamics that take place inside and outside school spaces, this study explores an educational offer under the responsibility of the municipality of Lisbon - the DESCOLA program - whose purpose is to target teachers and students from primary and secondary schools. Guided by the central question “To what extent does DESCOLA reiterate and / or reconfigure the school grammar of education?”, a qualitative and interpretative methodological approach is developed that mobilizes data obtained from content analysis of the program's brochure. The results of the research suggest the presence of marks of school grammar in DESCOLA, but also of interruptions in it, giving rise to possibilities for changing school organization and work in a logic of public education space.

Keywords: Education; Culture; Educating State; Public Space of Education.

Resumen

Reconociendo la relevancia social y científica actual de las investigaciones que consideran articuladamente las dinámicas educativas que tienen lugar dentro y fuera de los espacios escolares, se presenta un estudio que explora una oferta educativa bajo la responsabilidad del municipio de Lisboa - el programa descola - cuyo público objetivo son profesores y alumnos de escuelas primarias y secundarias. Guiado por la pregunta central “¿En qué medida descola reitera y / o reconfigura la gramática escolar de la educación?”, se desarrolla un enfoque metodológico cualitativo e interpretativo que moviliza los datos obtenidos con el análisis de contenido del folleto del programa. Los resultados de la investigación sugieren la presencia de notas de gramática escolar en descola, pero también de interrupciones en la misma, dando lugar a posibilidades de cambio de organización escolar y trabajo en una lógica de espacio público de educación.

Palabras clave: Educación; Cultura; Estado Educador; Espacio Público de Educación.

Résumé

Reconnaissant la pertinence sociale et scientifique actuelle des recherches qui prennent en compte, de manière articulée, les dynamiques éducatives qui se déroulent à l'intérieur et à l'extérieur des espaces scolaires, on présent une étude qui explore une offre éducative sous la responsabilité de la municipalité de Lisbonne - le programme descola - qui vise les enseignants et élèves des écoles primaires et secondaires. Guidé par la question centrale « Dans quelle mesure descola réitère et / ou reconfigure-t-il la grammaire scolaire ?», une approche méthodologique qualitative et interprétative est développée qui mobilise les données obtenues avec l'analyse du contenu de la brochure du programme. Les résultats de la recherche suggèrent la présence de notes de grammaire scolaire dans descola, mais aussi des interruptions, donnant lieu à des possibilités de changement d'organisation scolaire et de travail dans une logique d'espace public d'éducation.

Mots-clés : Éducation; Culture; État enseignant; Espace public d'éducation

Introdução

Como sublinha Edwards (2009), o interesse pela aprendizagem ao longo da vida na contemporaneidade tem vindo a alargar o universo do que se considera um contexto de aprendizagem e do conjunto de pessoas a quem se atribuem responsabilidades educativas. Escolher o DESCOLA como objeto de estudo constitui um indício dessa tendência para reconhecer e valorizar uma diversidade de contextos de aprendizagem dinamizados por profissionais que não são professores ou formadores. Com efeito, o DESCOLA é publicamente apresentado como um programa de atividades educativas concebido por técnicos da Câmara Municipal de Lisboa - Divisão de Cultura e da Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural (EGEAC) e pelos mediadores de diferentes equipamentos municipais (museus, teatros, bibliotecas, galerias de arte, entre outros) que dinamizam essas atividades. Esta constatação converge com a ideia de que, na contemporaneidade, contextos de aprendizagem fora dos estabelecimentos escolares se tornaram muito relevantes e uma parte integrante dos processos e programas educativos (Rogers, 2014).

De facto, já no princípio do século XXI, Nóvoa (2002) chama a atenção para a necessidade de repensar o papel da escola na sociedade, e da sociedade na escola, antevendo a possibilidade de emergência de um espaço público de educação. Considerando que a escola não pode cumprir todos os papéis que lhe têm sido cumulativamente atribuídos, o autor propõe-nos imaginar novas modalidades e redes de educação que, integrando a escola, incluam outras instâncias sociais e familiares.

Ora, na conceção e concretização do DESCOLA, é discernível o reconhecimento de uma multiplicidade de contextos de aprendizagem que englobam as escolas e os equipamentos culturais municipais, importando, do ponto de vista da pesquisa educativa, explorar como se articulam esses vários contextos, em que medida a oferta de atividades nos equipamentos municipais assume configurações que podem ser consideradas semelhantes às do modelo escolar e se estas dinâmicas educativas podem ser entendidas como sinais da emergência de um espaço público de educação.

Edwards (2009) sublinha que o interesse pela aprendizagem ao longo da vida na contemporaneidade significa que todos os espaços da nossa existência se tornam, pelo menos potencialmente, pedagogizados. Assim sendo, é relevante considerar a complexidade e o carácter relacional que subjazem aos vários contextos de aprendizagem e à respetiva inter-relação que se tem caracterizado por uma maior permeabilidade entre fronteiras de campos e de práticas educativas distintas, ou por aquilo que Edwards (1997) designa de des-diferenciação.

Para examinar a inter-relação entre contextos de aprendizagem, a ideia de um continuum proposta por Rogers (2014), ao longo do qual a divisão entre o grau de formalidade dos vários contextos permanece vaga e opaca, pode ser profícua. Se é habitual a identificação de uma trilogia (educação formal, não-formal e informal) para distinguir e caracterizar contextos de aprendizagem, a proposta de Rogers (2014) de um continuum sugere que importa ultrapassar essa trilogia, considerando que há elementos de informalidade no formal e no não-formal, assim como há elementos de formalidade no não-formal e no informal. Por isso, ao escolher o DESCOLA como objeto de estudo, propomos uma abordagem que procura contribuir para problematizar as possibilidades de transformação de dinâmicas educativas que ocorrem dentro e fora do espaço escolar, com intervenção de profissionais que se encontram no exterior do sistema educativo formal. Nessa abordagem, consideramos tanto as características da iniciativa e âmbito tutelar (trata-se de um projeto no âmbito da política municipal de cultura), quanto o ponto de vista dos autores das propostas educativas que analisamos (concebidas por artistas, mediadores culturais, entre outros, em diálogo com as/os docentes de escolas dos diversos níveis de ensino).

A DES-DIFERENCIAÇÃO DE CAMPOS E PRÁTICAS EDUCATIVAS E O DESCOLA

Se analisarmos o DESCOLA à luz das relações que se estabelecem entre campos e práticas distintas - balizados na escola, museus, monumentos, teatros, cinemas, etc. -, nos quais se cruzam processos de educação formal, não formal e informal, é-nos possível compreender que tanto as dinâmicas formativas desenvolvidas nestes cruzamentos, como o conteúdo das aprendizagens daí resultantes, podem ser entendidos à luz de fenómenos educativos contemporâneos resultantes de uma maior permeabilidade entre fronteiras, ou por aquilo que Edwards (1997) designa de des-diferenciação, conceito construído a partir do campo da educação de adultos. Este fenómeno, decorrente de processos de globalização e das mudanças sociais das últimas décadas, revela uma atenuação de fronteiras entre campos ou espaços anteriormente bem delimitados - ou diferenciados -, em torno de diversos campos de práticas, políticas, estudos, etc.

Na sociedade contemporânea observamos esta permeabilização de fronteiras entre os campos da educação formal, não formal e informal, entre os da educação inicial e contínua, entre os espaços-tempos de educação, de trabalho e de lazer. Numa perspectiva de diferenciação, as ofertas formativas destes diferentes domínios são desenvolvidas enquanto ofertas separadas e específicas, mas as mudanças em curso têm conduzido a uma maior interpenetração, quer de conteúdo, quer de processos. À medida que as fronteiras se tornam mais fluídas e menos estanques, facilitam a passagem de fluxos de conhecimento, tanto entre diferentes corpos académicos de conhecimento ¬- à medida que os domínios de estudo se vão interconectando e as abordagens metodológicas se tornam mais diversas -, como entre conhecimentos académicos e outras formas de conhecimento (Edwards, 1997).

A análise dos desenvolvimentos ocorridos no campo da educação formal, à luz de um paradigma de educação e formação ao longo da vida, tem vindo a evidenciar os processos de des-diferenciação de várias formas. Por um lado, no que diz respeito ao desenvolvimento de diferentes práticas educativas com vista ao desenvolvimento global da pessoa, articulando competências básicas e conhecimentos disciplinares, capacidades e conhecimentos para o mundo do trabalho e para a cidadania. Por outro lado, relativamente a uma preocupação crescente com as “competências-chave” ou “competências transversais”, que continuam presentes no discurso e nas políticas educativas, o que pode ser igualmente entendido como o reflexo de uma maior abertura e permeabilização entre as fronteiras da educação e da formação profissional (Pires, 2005).

Ao focar o nosso olhar na educação formal, particularmente nas atuais orientações políticas relativas ao desenvolvimento de competências - veja-se o exemplo do “Perfil dos alunos à saída da escolaridade obrigatória” -, é possível discernir preocupações tanto de natureza educativa, como social e económica. Desde os anos de noventa do século passado que a problemática das competências se tem vindo a inscrever nas reformas dos sistemas educativos, à escala global (Pires, 2005). A polimorfia e hibridização do conceito contribuíram para que se tenha traduzido em diferentes abordagens e práticas educativas em vários contextos e sistemas, nem sempre no sentido do desenvolvimento global da pessoa numa perspectiva holística e integradora. Na grande generalidade das situações, os referenciais educativos que balizam a educação orientada para as competências continuam a reproduzir uma lógica de saberes fragmentados, disciplinarizados e quase ou nada contextualizados, quando se defende que competências são uma integração dinâmica de saberes de diferente natureza (teóricos, procedimentais, experienciais, processuais, atitudinais...), finalizadas na ação e contextualizadas (Le Boterf, 1994; Perrenoud, 2003, entre outros).

Assim sendo, se consideramos que o desenvolvimento de competências é um processo global, integrativo, de recomposição, que articula saberes de diferente natureza, que ocorre em diferentes contextos e que assenta em lógicas de ação e de interdisciplinaridade, podemos compreender quão afastada se encontra desta concepção a gramática escolar ao continuar a trabalhar com disciplinas estanques, saberes fragmentados e taylorizados, processos de aprendizagem descontextualizados. Desta forma, a fronteirização do conhecimento em domínios estanques e a descontextualização de processos complexos de aprendizagem traduzem uma profunda contradição com as concepções educativas decorrentes de um paradigma de educação e formação ao longo da vida, marcado pela des-diferenciação de campos e práticas, e aberto a novas formas de construção de saberes.

Dado este cenário, na análise do DESCOLA, temos em conta o modo como o “Perfil dos alunos à saída da escolaridade obrigatória”, identificado pelo Ministério da Educação, se reflete na estruturação das atividades educativas do programa em que também se identificam competências a desenvolver, evidenciando a relação tensional entre contextos educativos dentro e fora da escola. Isto porque partilhamos da ideia de que a escola deverá estar atenta às transformações no mapa dos saberes, entender a emergência de novos territórios educativos, o alargamento dos horizontes científicos, o cruzamento dos espaços culturais, e contrariar os efeitos perversos da especialização, favorecendo heurísticas de novos cruzamentos disciplinares, fornecendo “uma cartografia de navegação no turbulento oceano do saber”, como nos diz Pombo (2009, p. 7).

ENTRE O ESTADO EDUCADOR E O ESPAÇO PÚBLICO DA EDUCAÇÃO

Até aqui, temos concentrado o nosso olhar na natureza das práticas e contextos de educação e aprendizagem, bem como nos conhecimentos e saberes aí veiculados. Contudo, para a compreensão do programa DESCOLA, é também relevante problematizar e evidenciar os gestos impulsionadores destas iniciativas de política educativa. De facto, trata-se de uma proposta assumida pelo poder local (Câmara Municipal de Lisboa e EGEAC, uma das suas empresas municipais) e em instâncias que tutelam atividades culturais (Divisão Municipal de Cultura e EGEAC - Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural), as quais não têm competências delegadas no âmbito da territorialização da educação escolar. Esta constatação permite-nos retomar questões de investigação que explorámos em trabalhos anteriores:

de que modos as políticas que não são de educação configuram novos contextos de aprendizagem? . . .Tradicionalmente, em países de forte centralização como é o caso de Portugal, a política educativa era pensada como um domínio da ação do estado e mais ainda como um domínio do Ministério da Educação, mas, de facto, hoje, vários são os fatores que rompem com estas fronteiras modernas (Gomes, 2010)

A presença de diferentes instâncias de definição de políticas e resultados de educação, assim como a coexistência de diversos contextos com programas e práticas de educação, caracterizam a contemporaneidade dando continuidade, à escala global, ao projeto de formação dos cidadãos que foi desencadeado por medidas políticas que configuram o Estado Educador (Charlot, 1994; Canário, 2005). O Estado Educador das repúblicas europeias do século XIX concretizou-se, também, através da adaptação de instituições e dinâmicas sociais pré-existentes que foram tornadas públicas e acessíveis a todos em prol de um projeto político-cultural do estado-nação (Rancière, 2010). São vários os estudos e os autores que evidenciaram, questionando-o, o modo como as relações sociais se foram tornando, progressivamente, relações pedagógicas nos vários domínios da existência humana, de que já acima demos conta. A estas constatações, interessa acrescentar uma visão global das instituições da modernidade que, com a escola, permitiram desenhar projetos políticos, educativos e culturais.

Concomitantemente às estratégias políticas que permitiram a progressiva transformação da escola em instituição ao serviço do Estado e de frequência obrigatória, também os Museus, as Bibliotecas ou os Teatros se foram nacionalizando, estatizando, municipalizando, permitindo que os objetos da cultura consagrada, da cultura de elite, se fossem tornando de acesso público. Pombo (s.d.) lembra que a escola, o museu e a biblioteca foram, desde a sua fundação, na antiguidade clássica, instituições congéneres cuja relação se estreitou ao longo do Iluminismo. Contudo, o vínculo entre estas instituições parece ter sido diluído ao longo do século XX com a cada vez maior disseminação da escola e dos sistemas educativos formais, que tendem a monopolizar os processos de educação e formação.

No princípio do século XXI, Nóvoa (2002) colocou-nos perante a evidência de estarmos “a assistir ao fim do ‘Estado Educador’” e à necessária emergência de “um novo espaço público da educação” (p. 237); o autor afirma que “repensar a educação como espaço público implica interrogar criticamente o one best system” (p. 251), procurando reconciliar a escola com a sociedade. A renovação da educação como espaço público desenvolve-se em torno de três argumentos principais: a necessidade de defender e enfatizar o poder organizador das escolas, com vista à abertura de espaços e tempos para novas modalidades de funcionamento das escolas; a compreensão da escola como realidade multipolar que permita “recuperar práticas antigas (familiares, sociais, comunitárias), enunciando-as no contexto de modalidades novas de cultura e educação”; a assunção da escola como um novo espaço do conhecimento, aceitando que, estando o conhecimento mais acessível do que nunca, continua a caber à escola a sua explicação com vista à construção de uma “apreensão crítica do saber” (Nóvoa, 2002, p. 252).

Na análise preliminar do DESCOLA (Pires, Alves & Gomes, 2019), foi interessante constatar as dinâmicas de associação entre a escola e outras instituições sociais, neste caso os equipamentos culturais. De facto, uma das suas principais características é a mobilização de esforços e de projetos que articulam propostas e atividades em torno da escola, a partir dos serviços educativos das diferentes instituições e equipamentos municipais de arte e cultura - estaremos perante um ensaio do espaço público de educação?

A necessidade de renovação da educação coloca-se especialmente perante a hegemonia da forma escolar que marcou a segunda metade do século XX (Canário, 2005) e que, particularmente em Portugal, se traduziu também numa intensificação dos muros que separam a escola do resto do mundo e numa progressiva consolidação, e até rigidificação, dos seus mecanismos de atuação. O programa DESCOLA apresenta-se, assim, como uma possibilidade de mudança e transformação.

A GRAMÁTICA ESCOLAR E A TRANSFORMAÇÃO DA ESCOLA

Há mais de duas décadas, Tyack e Tobin (1994) debateram-se com a questão: por que motivo(s) os projetos de inovação nas escolas, sejam eles curriculares ou pedagógicos, de iniciativa central ou local, não transformam efetivamente as práticas escolares, sendo, ao invés, diluídos nas rotinas prévias? Os autores analisaram alguns projetos e programas introduzidos nas escolas norte-americanas no século XX, o que lhes permitiu constatar que a mais perene transformação das práticas de educação escolar foi a que introduziu a gramática escolar.

Practices like graded classrooms structure schools in a manner analogous to the way grammar organizes meaning in language. Neither the grammar of schooling nor the grammar of speech [both as descriptive (the way things are) and normative (the way things are supposed to be)] need to be consciously understood to operate smoothly. Indeed, much of the grammar of schooling has become so well established that it is typically taken for granted as just the way schools are. (Tyack & Tobin, 1994, p. 454)

De acordo com os autores, a gramática escolar manteve-se estável e imutável na sua essência, ao longo de décadas, mesmo perante diversos projetos de inovação que surgem no seu âmbito e que, rapidamente, se desvanecem, aparentemente impotentes perante a gramática que consideram ter dimensões normativas e descritivas, atuando para além do efetivo conhecimento e fundamentação de todos nós que a fazemos existir. São os ingredientes que, como afirma Canário (2005), tornaram a escola progressivamente mais hegemónica no domínio da educação. Vários estudos analisaram os componentes desta gramática, de entre os quais se destacam Nóvoa (1998), Trilla Bernet (1999) ou Ferreira (2010), que consideram nucleares à gramática escolar os seguintes elementos:

- a organização dos alunos/estudantes em classes graduadas e sequenciais, com ambições de homogeneidade, particularmente concretizada no nível etário;

- espaços estruturados e específicos para a ação escolar que apelam a uma pedagogia centrada na sala de aula;

- saberes organizados em disciplinas escolares, tendencialmente definidas pelo Estado/fora da sala de aula, que funcionam como eixos de referência do ensino, do trabalho pedagógico e da formação de professores;

- classificação dos estudantes, com consequências na progressão, anual, para níveis sequenciais de ensino;

- obrigatoriedade de frequência estabelecida legalmente;

- horários e calendários escolares rígidos e estandardizados que promovem a rotinização e o controlo social do tempo;

- professores (com formação especializada e normalizada pelo Estado) que trabalham de um modo, tendencialmente, individual, com um perfil generalista (nos primeiros níveis de ensino) ou com um perfil especialista (nos níveis intermédio, secundário e superior).

É este conjunto de elementos que estrutura a análise de dados sobre o programa DESCOLA que em seguida se apresenta, por forma a problematizar em que medida nessa oferta educativa se reitera e/ou reconfigura a gramática escolar.

METODOLOGIA DA PESQUISA E CONTEXTUALIZAÇÃO DO DESCOLA

Os dados empíricos mobilizados neste texto decorrem de uma pesquisa que elege como objeto de estudo o programa DESCOLA - tendo como ponto de partida a questão de investigação: em que medida o programa DESCOLA reitera e/ou reconfigura a gramática escolar de educação? - e que adota uma metodologia de natureza qualitativa e interpretativa (Alves & Azevedo, 2010), com a dupla finalidade de produzir conhecimento sobre o fenómeno em estudo e de contribuir para o desenvolvimento do próprio programa. Neste sentido, a presença das autoras foi, desde o início, conhecida de todos os participantes, tendo sido clarificados os seus propósitos e partilhadas as suas reflexões, sendo, assim, respeitadas as questões éticas da investigação. No quadro do DESCOLA, as autoras deste texto assumem o papel de investigadoras em educação que, com base na recolha e análise de informação empírica, aprofundam conhecimento sobre dinâmicas educativas e apoiam o debate e a escolha das abordagens a privilegiar na conceção do programa. Reconhece-se, assim, que:

o objeto da pesquisa educativa confunde-se com o próprio sujeito, assumindo a investigação uma função de promotora da reflexividade e, eventualmente, de mudança dos próprios sujeitos que realizam a investigação e/ou dos contextos e organizações em que esses sujeitos se inserem ou sobre os quais realizam pesquisa. (Alves & Azevedo, 2010, p. 11).

O programa DESCOLA, concebido pela Divisão de Cultura da Câmara Municipal de Lisboa e pela empresa municipal EGEAC, tem como objetivo geral desenvolver as potencialidades educativas do património artístico e cultural da cidade, na sua relação com as escolas, professores e alunos. Envolve equipamentos tutelados por estas duas entidades autónomas, cuja cooperação permite aumentar e diversificar a oferta do DESCOLA, tendo subjacente a preocupação de responder aos atuais desafios da cultura e da educação, orientando a intervenção municipal de acordo com as linhas atuais de política educativa.

Destinada a professores e alunos, a oferta do DESCOLA inclui uma multiplicidade de atividades dirigidas a alunos e a professores/educadores, organizadas de forma diferenciada, dependendo da sua natureza: pontual - sessão única de vários tipos (por exemplo oficina, laboratório, visita, dramatização/oficina-escrita, entre outros), geralmente com uma duração entre uma e três horas; ou projetos especiais - com várias sessões ao longo do ano letivo, como se pode ver na Tabela 1.

Tabela 1: Atividades por público-alvo na brochura Descola 2018/2019 

Público Tipo de atividade Total
Atividades para professores / educadores /outros agentes educativos Cursos - 3 Oficinas -2 Laboratório - 1 6
Atividades para alunos Oficinas - 17 Leituras / narração 4 Visitas - 13 Visitas-oficina - 9 Visitas-jogo - 5 dramatização/oficina-escrita -1 Testemunho - 7 Espetáculos - 7 57
Escolas / projetos Especiais Acolhimento - 4 Parcerias em Aberto - 3 Projeto especial de formação musical - 1 Parcerias em curso - 8 16

Fonte: Pires, Alves e Gomes (2019)

Os projetos especiais são diversificados: os de continuidade desenvolvem-se em várias sessões ao longo do ano letivo, em parceria com uma escola, a partir de uma estrutura pré-definida (“parcerias em curso”) ou de uma forma mais flexível (“parcerias em aberto”), em função das necessidades das escolas. Os projetos especiais de acolhimento assentam em programas educativos de festivais de cinema - DocLisboa, o festival Play, o MONSTRA e o IndieJúnior -, com oferta de filmes de curta e longa duração, debates e oficinas, organizados por ciclos de ensino. Ainda neste tipo de oferta especial, inclui-se um projeto especial de formação musical (guitarra portuguesa).

O acompanhamento que as autoras deste texto fizeram do programa DESCOLA, durante o seu primeiro ano de existência, permitiu enquadrar a análise da respetiva oferta educativa que em seguida se apresenta, com base na informação reunida através da observação participante (em reuniões da equipa do projeto e conversas informais com intervenientes) e análise documental de materiais produzidos. Não obstante, este artigo tem por base, fundamentalmente, os resultados da análise de conteúdo da brochura “DESCOLA - Atividades Criativas para Alunos e Professores 2018-2019” (Fragoso & Assis, 2018, disponível em http://egeac.pt/v2/wp-content/uploads/2018/07/descola-2018-2019.pdf).

Trata-se de um documento de 94 páginas que apresenta o programa à comunidade e reúne a oferta educativa disponibilizada aos jardins-de-infância e às escolas dos ensinos básico e secundário. Está organizado em três secções principais: a primeira secção apresenta o programa, em termos da visão política (da autoria da Vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa) e da contextualização teórico-prática no território da educação (da responsabilidade da equipa de coordenação); a segunda secção (páginas 27 a 32), com o título «atividades para professores», diz respeito à oferta formativa dirigida, especialmente, a professoras/es, educadoras/es; por fim, entre as páginas 33 e 80, encontra-se a secção «atividades para alunos» organizada a partir dos níveis de ensino previstos, isto é, pré-escolar, 1.º ciclo do ensino básico (CEB), 2.º CEB, 3.º CEB e do ensino secundário. A brochura integra ainda a lista completa dos vinte e dois serviços e equipamento municipais de cultura que aderiram ao DESCOLA (desde o Atelier Museu Júlio Pomar, ao São Luiz Teatro Municipal, passando pela Rede de Bibliotecas de Lisboa, entre muitos outros), com uma breve descrição da missão, identificação da equipa, contactos e a localização marcada num mapa do concelho de Lisboa.

As atividades educativas listadas estão organizadas por secções específicas - níveis de ensino e tipo de projeto -, explicitando um conjunto de informações, nomeadamente as datas, horários, duração, número limite de alunos, local e competências a desenvolver. Ao incluir este tipo de informação, a brochura visa permitir que professores/educadores possam fazer as suas escolhas e marcação prévia de atividades educativas a frequentar, dispondo ainda estes de informação sobre o historial das instituições culturais e os contactos para marcação. Salienta-se que uma parte das atividades apresentadas na brochura já integravam a oferta cultural das instituições envolvidas antes do ano letivo 2018/19, pretendendo-se, com a sua inclusão num mesmo programa, fomentar a articulação entre todas numa lógica de diversidade e complementaridade.

APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DE DADOS

Os dados que a seguir se apresentam resultam da análise de conteúdo organizada em torno de um conjunto de sete dimensões que permitem discutir em que medida a gramática escolar está refletida na oferta do DESCOLA.

Organização dos alunos em classes graduadas e sequenciais

Um primeiro aspeto a destacar é o facto de o critério organizador da apresentação das atividades ser o público-alvo, definido pela sua relação com a escola: atividades para professores e atividades para alunos, e respeitando a sequência prevista no sistema educativo formal, na medida em que a oferta é dirigida a educação pré-escolar, o ensino básico e o secundário (registando-se uma atividade adaptável ao ensino superior). Sublinha-se que, das 57 atividades oferecidas, 31 são adaptáveis, ou seja, podem ser usufruídas por crianças e jovens do nível/ciclo que o precede ou antecede, como se constata na Tabela 2.

Tabela 2 Níveis de ensino previstos no Descola 2018/2019 

Níveis / Ciclos N.º de atividades Adaptabilidade
Educação Pré-escolar 5 3 ao 1.º CEB
1.º CEB 9 1 ao pré-escolar e 2.º CEB 1 ao 2.º e 3.º CEB
2.º CEB 10 3 ao 1.º CEB 1 ao 3.º CEB 1 ao 3.º CEB e Ensino secundário
3.º CEB 16 2 ao 1.º e 2.º CEB 2 ao 2.º CEB 2 ao 2.º CEB e Enino secundário 3 ao Ensino secundário
Ensino Secundário 8 1 a todos os ciclos de ensino 1 ao pré-escolar e todos os ciclos 1 ao Ensino superior
Atividades Acessíveis 9 1 a todos os níveis 2 ao pré-escolar 1 pré-escolar e 1.º CEB 2 ao 1.º e 2.º CEB 3 ao 1.º CEB
Projetos especiais 16 Para vários níveis de ensino, com grande adaptabilidade

Fonte: Pires, Alves e Gomes (2019)

Os projetos especiais de continuidade são de diversa natureza e destinam-se a públicos da educação pré-escolar até ao ensino secundário. Num total de 16 projetos, há 5 transversais a vários níveis de ensino e uma a todos os níveis de ensino. Estes projetos, na sua grande maioria, apresentam características de transversalidade / adaptabilidade, estando dependentes da procura por parte das escolas, concretizando-se então, na parceira, o programa de trabalhos mais específico.

Espaços estruturados e específicos para a ação escolar

O DESCOLA mobiliza espaços de aprendizagem diversificados, todos fora da sala de aula, oferecendo a possibilidade de descentrar a educação do contexto escolar. Com efeito, as instituições em que decorrem as atividades são numerosas e diversificadas como se evidencia em seguida: museus (8), monumentos (3), arquivos (1), a rede de bibliotecas municipais, galerias (2), cinemas (1), teatros (2), ateliers (2), gabinetes, divisões e centros institucionais (3). O carácter diverso da oferta reflete-se numa multiplicidade de designações das atividades, sendo que algumas se podem combinar. Refira-se, a título ilustrativo, a existência de “visitas”, mas também de “visitas-oficina” e “visitas-jogo” (Rever a Tabela 1).

As atividades articulam-se com as características dos equipamentos e respetivos acervos, bem como com a sua localização na cidade, permitindo explorar pedagogicamente uma multiplicidade de temáticas que não decorrem do currículo oficial, mas antes da especificidade dos equipamentos. De entre as temáticas relacionadas com os acervos dos equipamentos, destacam-se: a história, cidadania e memórias associadas ao Museu do Aljube; os poemas e poesia realçados na Casa Fernando Pessoa; o fado, pregões, poemas e canções patentes no Museu do Fado; estatuária de Lisboa mencionada a propósito de atividade na Divisão de Salvaguarda do Património Cultura, entre outras. Relativamente a temáticas do domínio artístico-cultural, realçamos: a escrita para teatro, a dança e movimento, a expressão dramática e plástica, música, cinema, expressão corporal, desenho, espetáculo, entre outras.

Um outro aspeto característico das atividades é que as mesmas nem sempre remetem para um período histórico específico. Nos casos em que há essa indicação, são privilegiados a atualidade e o século XX, sendo que, mesmo quando o acervo remete para outros momentos cronológicos, este é frequentemente utilizado para explorar questões igualmente pertinentes na atualidade. A título de exemplo, refira-se o Museu Bordalo Pinheiro em que, recorrendo à vida e obra do artista, se promove a reflexão e debate sobre aspetos da sociedade contemporânea, ou o Arquivo Municipal de Lisboa em que, através de fotos de diferentes épocas, é possível conhecer melhor a cidade contemporânea. Mas existem também atividades que remetem para períodos e/ou acontecimentos históricos específicos, como sejam, a antiguidade grega e romana (no Museu de Lisboa - Teatro Romano), a idade média (no Castelo de São Jorge e no Museu de Lisboa - Santo António) ou a ditadura e o 25 de Abril de 1974 (no Museu do Aljube e Teatro São Luiz), bem como atividades em equipamentos cujos acervos permitem explorar uma diversidade de períodos e acontecimentos históricos, como sucede no Centro de Arqueologia de Lisboa.

Com base nestes exemplos, podemos afirmar que o DESCOLA estabelece claramente uma rutura com a gramática escolar no que diz respeito aos espaços específicos da ação escolar, afastando-se da pedagogia centrada na sala de aula e valorizando a cidade e os seus equipamentos como contextos e temáticas para a ação educativa.

Horários e calendários escolares rígidos e estandardizados

Desde logo interessa notar que o DESCOLA, tendo como público-alvo alunos e professores de cada um dos níveis de ensino e anos de escolaridade, é um programa que se subordina ao calendário escolar publicado anualmente em Diário da República pelo Ministério da Educação, o qual se aplica ao ensino público e ao particular e cooperativo. Assim sendo, a oferta educativa do DESCOLA decorre ao longo de todo o ano letivo, respeitando igualmente os períodos de férias e interrupções, durante os quais não se regista oferta educativa.

Esta normalização do tempo e do seu carácter sequencial ao longo do ano é um dos mais fortes elementos da gramática escolar, uma vez que é um dos mais absolutos e inquestionados. De facto, quando analisadas as atividades que configuram a oferta, constatamos que o DESCOLA faz uso de formas de divisão do tempo semelhantes às realizadas no contexto escolar, embora não de modo absoluto. Vejamos: as atividades pontuais para alunos têm uma duração variável - entre 1h e 2h, no entanto, são claramente preponderantes as atividades com duração de 90 minutos (33 em 49), isto é o correspondente a um tempo letivo dos 2.º e 3.º CEB e do ensino secundário, tal como previsto nas matrizes curriculares publicadas em Diário da República. Por outro lado, os Projetos Especiais apresentam uma duração variável, ainda que dentro dos períodos escolares - por exemplo, os festivais ocorrem em dias específicos do ano, enquanto os projetos de parceria se realizam ao longo do ano letivo, com duração diversa; a maioria desenvolve-se em sessões semanais, que se podem prolongar até seis meses. Já as atividades dos professores têm uma duração entre 3h e 33 horas presenciais, sendo formação certificada e com possíveis efeitos de progressão na carreira, o que exige uma quantificação controlada do tempo de modo a não pôr em causa a certificação da formação.

Saberes organizados em disciplinas escolares

A análise das competências associadas às atividades do DESCOLA foi realizada a partir de um levantamento das áreas de competência explicitadas na brochura, associadas a cada atividade apresentada. Não tendo por base procedimentos de observação direta do desenvolvimento das atividades, de uma forma sistemática e exaustiva, é possível, ainda assim, evidenciar algumas das potencialidades educativas do programa, nomeadamente ao nível da forma de organização dos saberes, das estratégias e das intencionalidades pedagógicas.

Com efeito, a forma de organização de saberes do DESCOLA estrutura-se em torno de competências, verificando-se uma grande centralidade do Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória (2017), considerado pelo Conselho Nacional de Educação como referencial para a educação escolar nos próximos anos e que se organiza em torno de áreas de competências. A descrição das atividades educativas na brochura - tanto para professores como para alunos - inclui a identificação das competências que pretendem desenvolver, de entre um conjunto de competências-chave transversais a várias áreas de saber, sem fragmentar nem hierarquizar os conhecimentos disciplinares, nem se circunscrevendo à forma tradicional de organização do saber em torno das disciplinas escolares.

Constata-se que as atividades formativas do DESCOLA, destinadas a professores e alunos, se enquadram no mesmo referencial de competências- o Perfil do Aluno -, o que constitui uma interrupção da gramática escolar no sentido em que se afasta de uma organização dos saberes em torno de disciplinas. Esta transversalidade traduz, de certa forma, uma des-diferenciação da formação que parece ser construída em rutura com as formas segmentadas como se tem organizado a formação de professores e a de alunos. Destaca-se o facto de essas áreas de competências estarem contempladas tanto em atividades para professores como para alunos, o que constitui uma oportunidade para reforçar a novidade da oferta do DESCOLA.

No caso da formação de professores, as seis atividades formativas mobilizam, entre outras, as competências do Perfil do Aluno, destacando-se com maior expressividade o pensamento crítico e criativo e sensibilidade estética e artística (em 6 atividades, 2 enquadram-se nas competências relativas ao pensamento crítico e outras 2 à sensibilidade estética) -, parecendo-nos interessante sublinhar que são exatamente essas competências as que mais destaque têm nas atividades para os alunos. Sendo estas competências particularmente valorizadas pelos profissionais responsáveis pelas atividades educativas do DESCOLA, colocamos a hipótese de que constituem uma característica distintiva do programa que lhe confere especificidade. Por seu lado, as competências que se procuram desenvolver nos alunos decorrem, na sua totalidade, das áreas de competência do Perfil do Aluno à Saída da Escolaridade Obrigatória (ver Figura 1).

Considerando que o Perfil do Aluno à Saída da Escolaridade Obrigatória foi o documento orientador que serviu de referência para a modelização das competências de professores e alunos, observa-se no DESCOLA a preocupação em harmonizar as linguagens utilizadas pelos mediadores e artistas, estruturando este as aprendizagens dos professores e dos alunos em torno deste referencial-chave. No entanto, levantamos a hipótese de que as competências enunciadas no documento são uma pequena parte do iceberg das aprendizagens efetivamente realizadas pelos alunos e professores, considerando que a exploração real das atividades em contexto abre para uma multiplicidade de possibilidades educativas.

Classificação e progressão dos estudantes

No caso da oferta DESCOLA, a participação dos alunos não é avaliada por forma a resultar numa classificação individual, nem significa implicações para a sua progressão entre anos e ciclos de escolaridade. Já no caso dos professores, a participação nas atividades formativas é certificada e pode ter efeitos de progressão na carreira, uma vez que na sua quase totalidade (5 em 6 - rever a Figura 1) se realizam em parceria com o Centro de Formação de Escolas António Sérgio. Noutros termos, nesta dimensão de análise identificam-se marcas da forma escolar relacionadas com a certificação e progressão no caso dos professores, mas não no dos alunos.

Obrigatoriedade de frequência estabelecida legalmente

A participação nas atividades do programa DESCOLA depende da vontade das escolas e dos professores no quadro dos projetos educativos que definem para os respetivos alunos. É também relevante sublinhar que a maioria das atividades para alunos é gratuita, sendo que no caso dos professores todas o são.

Assim sendo, a oferta DESCOLA configura-se como um possível complemento para o desenvolvimento do trabalho de escolas e professores com os seus alunos que não se reveste de um carácter de obrigatoriedade, podendo surgir potencialmente como atividade lúdica e como possibilidade de enriquecer e diversificar dinâmicas educativas.

Professores com formação especializada e normalizada pelo Estado

Das seis atividades de formação oferecida aos professores, três são bastante abrangentes, destinando-se a “professores de qualquer nível de ensino, educadores e outros agentes educativos”; duas têm como público os “educadores e professores do 1.º ciclo” e uma “educadores e professores de todos os níveis de ensino”. Ao não delimitar a formação apenas a profissionais do ensino, nem a orientando predominantemente para níveis de ensino específicos, o DESCOLA apresenta características de des-diferenciação, permeabilizando e alargando a oferta formativa a diversos agentes educativos, dentro e fora do sistema escolar.

Interessa, ainda, sublinhar um aspeto que nos parece essencial: o DESCOLA propõe à escola a fruição de atividades educativas coordenadas e implementadas por outros profissionais que não são formalmente habilitados para a docência. Esta possibilidade de estreitar o diálogo entre educadores e professores, tantas vezes dominados por lógicas formais e preocupações burocráticas, e outros profissionais (artistas, mediadores culturais, historiadores, bibliotecários, entre outros) que estão menos rotinizados no trabalho em educação, apresenta-se como uma subtil rutura da gramática escolar, pela experiência de interrupção da lógica normalizadora e formatadora do trabalho docente (Gomes & Gonçalves, 2015).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A abordagem desenvolvida sobre o programa DESCOLA permite colocar a hipótese de que este corresponde a uma oferta educativa heterogénea e multiforme que apresenta características congruentes com a gramática escolar e outras que a interrompem. Ou seja, à questão de investigação norteadora deste estudo - em que medida o DESCOLA reitera e/ou reconfigura a gramática escolar de educação? - a nossa resposta é claramente híbrida: o DESCOLA reitera, reconfigurando, a gramática escolar. Vejamos as seguintes evidências.

As marcas que reiteram a gramática escolar são particularmente claras, desde logo, no modo como os públicos-alvo do DESCOLA são identificados como professores ou alunos e, neste caso, em função dos vários níveis/ciclos de escolaridade. Contudo, esta característica é reconfigurada quando se observa a adaptabilidade de algumas das atividades a níveis/ciclos de escolaridade anteriores ou ulteriores.

Uma outra marca bem visível da gramática escolar é a adoção do Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória enquanto referencial para as competências a desenvolver nas atividades educativas do programa DESCOLA, demonstrando uma apropriação das orientações de política educativa nacional que permite afirmar a importância e legitimidade deste programa. É interessante sublinhar que o mesmo referencial de competências é utilizado para atividades dirigidas a professores, o que pode ser interpretado como um modo de des-diferenciação das práticas de formação de professores e alunos, indiciando uma interrupção da gramática escolar. Neste âmbito, o DESCOLA pode constituir uma oportunidade para desenvolver abordagens interdisciplinares, interrompendo e/ou reconfigurando o espartilhamento e a hierarquização de saberes disciplinares que caracterizam a gramática escolar. De facto, e reforçando as nossas conclusões decorrentes da análise da brochura, um estudo de caso desenvolvido em torno de um projeto de continuidade do DESCOLA evidenciou que as práticas pedagógicas desenvolvidas permitiram introduzir interrupções na forma habitual de organização dos saberes que caracteriza a forma escolar, afastando-se da forte estruturação e organização dos programas, que espartilham e hierarquizam os saberes em disciplinas (Pires, no prelo).

Se, por um lado, a participação no DESCOLA depende da iniciativa e adesão dos professores e das escolas, contendo potencialidades de interrupção da forma escolar de educação, por outro lado, estando o processo de adesão centrado nos professores, o DESCOLA torna-se obrigatório para os alunos, mantendo assim o lugar passivo destes perante as propostas que lhes são apresentadas pelos professores, como é característico da gramática escolar. Deste modo, o DESCOLA configura-se simultaneamente como uma oportunidade de interromper a gramática escolar e como uma obrigatoriedade do trabalho dos alunos prescrito pelas escolas e pelos professores.

Destaque-se ainda que, tal como acontece com a escola, as atividades do DESCOLA são maioritariamente gratuitas. Simultaneamente, essas atividades fazem parte da missão e projeto das várias instituições e equipamentos culturais implicados que, deste modo, se podem configurar como atores do espaço público de educação. Assim, a oferta de atividades corresponde a um duplo propósito: um investimento nas dinâmicas educativas e sociais da comunidade, mas também um investimento na sua própria manutenção, pensando os atuais alunos enquanto utilizadores presentes e futuros de museus, bibliotecas, arquivos, teatros, cinemas, entre outros.

No que respeita ao tempo e ao espaço, é interessante notar que a gramática escolar é utilizada no DESCOLA na organização do tempo, no sentido em que se respeita o calendário e os horários letivos, ainda que, ao se ultrapassarem os limites físicos da sala de aula e da escola, se criem condições para uma mais fácil articulação das atividades educativas e dos currículos escolares com os equipamentos municipais.

A progressão profissional dos professores com base em atividades certificadas, no quadro da respetiva formação contínua, traduz uma marca de congruência do DESCOLA com a gramática escolar. Todavia, a não existência de avaliação da participação dos alunos no DESCOLA é um sinal de interrupção da lógica das atividades escolares e da necessidade da sua certificação.

Globalmente, no que respeita à articulação entre vários contextos de aprendizagem e à consideração sobre se as atividades que decorrem nos equipamentos municipais assumem configurações que podem ser consideradas semelhantes às do modelo escolar, constata-se nesta pesquisa educativa que o DESCOLA faz uso, mas também reconfigura, os elementos da gramática escolar apresentados. Ao invés de ser um desfecho não conclusivo, consideramos que esta é uma característica auspiciosa do programa em estudo, na medida em que não sofre de problemas sinalizados por Tyack e Tobin (1994) na sua análise histórica a projetos de mudança da educação escolar, sendo que, pelo contrário, contém características que foram essenciais e comuns às mudanças que se tornaram perenes.

De facto, estes autores assinalaram dois problemas comuns a diferentes tentativas goradas de transformação da educação escolar: o facto de decorrerem, excessivamente, no interior dos limites de um ator do sistema educativo (sejam eles professores, intelectuais, diretores de escolas), sem envolvimento da comunidade que é atingida pelas transformações (as famílias, os outros professores, os políticos, outras instituições sociais); e o facto de serem demasiado exigentes em termos do trabalho organizacional subjacente (projetos, relatórios, novos recursos de ensino, novos instrumentos de avaliação), o que levou ao esgotamento e abandono dos atores e autores de projetos de mudança.

Já o DESCOLA faz uso de características que Tyack e Tobin (1994) associam aos projetos mais perenes de renovação da educação escolar, isto é: não tem por objetivo transformar radicalmente o mecanismo interno da organização escolar, não obrigando, por isso, a um desdobramento de esforços por parte das escolas e dos professores; as atividades propostas têm uma natureza exterior à escola e que pode atuar por justaposição a todas as dinâmicas escolares consideradas nucleares ao trabalho escolar; por fim, destaca-se ainda que o programa surge num momento particular do desenvolvimento da política educativa, como o Perfil do Aluno à Saída da Escolaridade Obrigatória, considerado pelo Conselho Nacional de Educação (2017) como um “referencial estruturante para a educação escolar nos próximos anos”, e o Projeto de Autonomia e Flexibilização Curricular das Escolas, em curso nos ensinos básico e secundário (Despacho n.º 5908/ 2017), que visa promover uma gestão do currículo mais flexível e contextualizada, valorizando uma melhor articulação entre as escolas e as comunidades.

Tyack e Tobin (1994) relembram-nos que a gramática escolar é apenas e também um dos bons exemplos de uma proposta de mudança do sistema educativo, talvez a mais bem-sucedida reforma da organização escolar. Todavia, a crítica generalizada a essa forma de organização na contemporaneidade, complementada no caso português pelos projetos de mudança recentemente implementados por iniciativa do Estado, pode constituir terreno fértil para que programas como o DESCOLA possam provocar renovações imaginativas da gramática escolar, designadamente constituindo polos dinamizadores do espaço público de educação. Caso tal se verifique, que autonomia assumem a escola e os atores do sistema educativo na autoria das mudanças que diretamente a/os afetam? Nóvoa (2002) reservou para a escola o lugar central do espaço público de educação, atribuindo-lhe o poder organizador no processo de imaginar e concretizar novas dinâmicas e modalidades de educação. A análise do DESCOLA que realizámos permite colocar a hipótese de que um importante impulso de renovação possa surgir igualmente de fora da escola, acentuando a relevância de considerar a complexidade que subjaz à inter-relação de contextos educativos, numa lógica de des-diferenciação (Edwards, 1997), ou seja, de permeabilidade entre fronteiras de campos e práticas educativas distintas.

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Recebido: 26 de Novembro de 2020; Aceito: 18 de Janeiro de 2021

Elisabete X. Gomes ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6635-6307 Email: elisabete.gomes@ese.ips.pt Morada: Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal, Campus do IPS, Estefanilha 2914 - 504 Setúbal | Portugal

Ana Luísa de Oliveira Pires. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9680-4051 Email: alop@campus.fct.unl.pt Morada: Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal, Campus do IPS, Estefanilha 2914 - 504 Setúbal | Portugal

Mariana Gaio Alves. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8895-0796 Email: mga@ie.ulisboa.pt Morada: Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, Alameda da Universidade, 1649-013 Lisboa / Portugal Contacto: Mariana Gaio Alves, Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, Alameda da Universidade, 1649-013 Lisboa / Portugal

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