Introdução
A reflexão a respeito de estratégias que permitem contribuir para a formação de professores em espaços formais de educação que promovam práticas inovadoras em Educação em Ciências (EC) constitui uma necessidade premente no contexto angolano. Assim, nos últimos anos, parece existir o reconhecimento da necessidade de promover programas de formação de professores de todas as áreas de ensino. Uma das razões prende-se com o facto de muitos professores serem recrutados sem terem uma formação específica na respetiva área de ensino (Wafunga, 2017), nem agregação pedagógica, requisito previsto no artigo nº 19 do Decreto Presidencial nº 160/18, de 3 de julho, que aprova o atual Estatuto da Carreira dos Agentes de Educação. É também enfatizada a desregulação da profissão docente (Chissanguela, 2015) e a carência de estudos que ofereçam contributos para a formação contínua de professores (Breganha, 2019). Por outro lado, estudos desenvolvidos recentemente realçam as insuficiências na formação de professores, nomeadamente de Ciências (Breganha et al., 2018; Lopes et al., 2016) e, por consequência, a necessidade de inovação/transformação das práticas docentes. Na área da Biologia, (Wafunga, 2017) refere que os professores reconhecem terem falta de formação, nomeadamente na planificação e orientação de atividades práticas.
Este trabalho pretende ser um contributo neste sentido, produzindo conhecimento no domínio da formação contínua de professores de Biologia e sugerindo recomendações para as práticas e políticas de formação de professores em Angola. Decorrente da experiência profissional do primeiro autor e da literatura da especialidade, uma das áreas da Biologia que revelam mais desafios ao nível das práticas docentes é a da Bioenergética. Como indicam Araújo e Pedrosa (2014), a fotossíntese e a respiração celular são dois temas considerados difíceis, quer para alunos, quer para professores, dado tratar-se de um tema interdisciplinar envolvendo conhecimento da área da Biologia, mas também da Química e da Física. No que respeita às dificuldades de aprendizagem dos alunos, a literatura indica que podem estar relacionadas com falta de conhecimentos prévios, falta de atividades laboratoriais, com o facto de os manuais escolares terem incorreções e com a dificuldade dos próprios professores (Urey, 2018). Para além disso, os fenómenos celulares não são observáveis e manipuláveis pelos alunos, mesmo quando se tem acesso a instrumentos de ampliação tais como lupas ou microscópios óticos, implicando que os professores necessitem de usar recursos complementares, tais como modelos ou fotografias (Araújo e Pedrosa, 2014; Cerri, et al., 2001).
Está em curso um projeto de doutoramento que visa colmatar deficiências na formação contínua de professores de Biologia e desenvolver (conceber, implementar e avaliar) um Programa de Formação Contínua de Professores (PFCP) de Biologia que promova o desenvolvimento de competências didáticas, relacionadas com os conteúdos, bem como a planificação, implementação e avaliação de atividades educativas. O PFCP está a ser desenhado de forma faseada, e atendendo às recomendações de Carvalho e Gil (2011).
O PFCP envolve quatro professores, sendo um o primeiro autor. Todos são docentes de Biologia da 10.ª Classe do Ensino Secundário do II Ciclo, no Liceu nº 700, em Angola, Província da Huíla, Município da Humpata. O faseamento do PFCP foi feito em alinhamento com a zona de desenvolvimento proximal dos professores (Vygotsky, 2001) privilegiando processos de continuidade e não de rutura (Julião, 2020), dado o contexto angolano em que as práticas transmissivas são (ainda) as mais exploradas (Afonso, 2019) e em que existe falta de recursos associados ao ensino prático da Biologia, tais como instrumentos de ampliação e modelos celulares.
No decurso da fase que se apresenta neste texto, que tem um caracter exploratório, foram implementadas estratégias inovadoras por etapas, analisando se as mudanças introduzidas são apropriadas pelos professores, nas suas práticas, e que impacto têm ao nível das aprendizagens dos alunos. Pretendeu-se promover a inovação no ensino da Biologia trabalhando aspetos relacionados com:
a introdução do tema da Bioenergética em articulação com outros conteúdos constantes dos programas da disciplina de Biologia do ensino secundário de Angola;
a planificação de atividades educativas, atendendo aos normativos para o ensino da Biologia da reestruturação curricular em curso e da literatura, em particular sobre o trabalho prático na EC em contextos com poucos recursos.
A questão de investigação é a seguinte: Em que medida processos de formação contínua de professores sobre Bioenergética inovadores, centrados na continuidade e em princípios construtivistas, promovem alteração de práticas de ensino e a aprendizagem dos alunos?
Na secção seguinte, apresenta-se a metodologia do estudo, o contexto, os professores participantes e o desenho da PFCP. Segue-se a descrição e discussão dos resultados do impacto do PFCP nas práticas dos docentes e ao nível das aprendizagens dos alunos. Por fim, tecem-se algumas considerações, incluindo uma súmula dos resultados.
Metodologia
Do ponto de vista metodológico, o estudo é do tipo estudo de caso exploratório e predominantemente qualitativo. O caso em estudo é a promoção do trabalho laboratorial no contexto de aulas de Biologia através da implementação da primeira fase de um PFCP em Angola. O PFCP em desenvolvimento envolve a participação e interação entre o investigador e os professores de Biologia que participam na investigação, como defende Aires (2011). A opção pelo estudo de caso exploratório prende-se com o facto de este tipo de estudo proporcionar maior experiência ou aproximação ao problema, clarificando os seus contornos (Gil, 2008). A natureza qualitativa justifica as questões relacionadas com o “como” e o “porquê” (Bogdan & Bilken, 1994).
Uma das características do estudo de caso é ser difícil estabelecer fronteiras entre o fenómeno e o contexto (Yin, 2010). O caso em estudo tem características que lhe são próprias e que advém do contexto do estudo, nomeadamente das preocupações relacionadas com a formação contínua de professores em Angola e da falta de recursos. Para o mesmo autor, o estudo de caso é também uma opção recomendada quando os fenómenos em estudo são contemporâneos, ou seja, carecem de uma exploração aprofundada, como é o caso da promoção de mudanças nas práticas docentes em Angola, um dos objetivos deste estudo.
Neste artigo, descreve-se o impacto nos processos de ensino e de aprendizagem da Bioenergética nas aulas de Biologia de quatro professores, decorrente da dinamização de uma primeira fase de um PFCP específico. Esta primeira fase visou promover a integração de trabalho laboratorial nas práticas letivas dos professores. Em fases posteriores procurar-se-á continuar a promover inovação das práticas docentes e estratégias de reflexão, sustentadas na co-supervisão.
Descrição do contexto e participantes
O PFCP está a ser realizado com quatro professores de Biologia da 10.ª Classe do Ensino Secundário do II Ciclo, no Liceu nº 700 em Angola, Província da Huíla, Município da Humpata, cuja direção autorizou a identificação da escola. O liceu está implantado num meio rural há sete anos, possui onze salas de aulas, uma sala de professores, onde funciona a secretaria-geral, um gabinete pedagógico e o gabinete do diretor, não existem laboratórios nem material didático específico para a realização de atividades práticas.
O total do número de alunos no ano letivo de 2019 foi de 1051. No que respeita a material para as aulas de Biologia (10.º ano), o professor tem disponível o manual de Biologia, um quadro preto e giz. Salienta-se que muitos dos alunos não têm dinheiro para comprar o seu próprio manual escolar, pelo que vão tirando fotocópias dos capítulos à medida que vão explorando os assuntos, assim como de apontamentos cedidos pelo professor. O nível socioeconómico dos alunos é maioritariamente baixo. Muitas das famílias (sobre)vivem a partir de uma agricultura/pecuária de subsistência, e muitos dos alunos dividem o trabalho na escola com tarefas do campo. A média de alunos por turma é de 35.
Seguidamente caracterizam-se os quatro professores envolvidos no estudo (à frente identificados com letras) e as dificuldades que os mesmos reportaram ter no que respeita ao ensino da Bioenergética, no início da formação. Todos os professores têm uma licenciatura na área da Biologia e o investigador e dinamizador do PFCP é detentor de um grau de mestre em Ensino de Ciências (Biologia). Realça-se que este professor é formador e formando tendo um papel de investigador participante. Os professores tinham mais de 14 anos de experiência de ensino, idades entre os 34 aos 58 anos e, com exceção do investigador, nos últimos cinco anos não tinham feito formação.
Numa primeira etapa, foi possível identificar as práticas letivas dos professores, ao nível do currículo intencional (Roldão, 2017), realçando-se o predomínio de aulas expositivas focadas na explanação dos conteúdos que integram o manual de apoio. Procedeu-se igualmente ao levantamento das suas dificuldades na área da Bioenergética nomeadamente da fotossíntese e respiração aeróbia. No que respeita às dificuldades relativas ao ensino da Bioenergética levantadas na primeira sessão, eram sobretudo alusivas a aspetos específicos do metabolismo celular e associadas à Bioquímica (como por exemplo a estequiometria das reações químicas envolvidas na fase clara e escura da fotossíntese) assim como à dificuldade de ajudar os alunos a compreender a escala envolvida na bioenergética (isto é, o que acontece ao nível de uma escala invisível ao olho). Estas dificuldades podem estar relacionadas com o facto de, dos professores participantes, só o professor formador ter tido oportunidade de manusear um microscópio ótico e este tipo de equipamento não existir no liceu. As dificuldades dos professores, assim como o predomínio de um ensino transmissivo e a não consideração regular das orientações constantes do programa de Biologia 10.ª classe foram aspetos centrais consideradas no desenho do PFCP e que estão patentes na planificação das aulas, nomeadamente através da definição dos objetivos de aprendizagem
Planificação geral da primeira fase do PFCP
A inovação/mudança de práticas letivas pode provocar receios (Bolívar, 2012; Marques et al, 2011) daí a necessidade de ser acompanhada por uma estratégia flexível, mas coerente, que reforce a ideia de que o sucesso profissional é determinado pelo acesso ao conhecimento (Gorgulho et al., 2020; Nóvoa, 2017). Por outro lado, a inovação na escola estimula a construção de novas ideias (Figueiredo, 2011; Oliveira & Courela, 2013). A inovação incremental ou sustentada (Figueiredo, 2011), adotada nesta investigação, baseia-se na introdução gradual de melhoria dos processos que já existem, devendo ser negociada e adaptativa.
Ao nível dos princípios tidos em conta no desenho da formação, que se baseia numa perspetiva construtivista, procurou-se dar voz aos professores e ao conhecimento por eles gerados, como defende Roldão (2017) e promover uma forte ligação às práticas enquanto potenciadoras da sua mudança (Nóvoa, 2017; Vieira, 2011). Destaca-se ainda ter-se ancorado o desenho do PFCP em princípios de formação ativa (Rodrigues, 2017). Procurou-se assim que a formação:
- fosse diferenciada e flexível (Marques et al., 2014, 2015), nomeadamente através da negociação dos objetivos de formação, tendo em conta as expetativas individuais dos professores (levantamento feito através da ficha de diagnóstico) e as dificuldades específicas dos formandos, o que se refletiu, por exemplo, na seleção dos conteúdos das sessões de exposição dialogada;
- promovesse a reflexão sobre e na ação (Alarcão, 2001, 2002), explorando estratégias potenciadoras de diálogo entre os intervenientes, ou seja, formadores e formandos (escrito e/ou oral) e também com docentes da Universidade de Aveiro e de duas escolas secundárias portuguesas;
- permitisse a ligação da teoria à prática, ou seja, englobasse sessões de cariz mais teórico, as sessões de exposição dialogadas, seguidas de intervenção, no caso planificação e implementação de aulas, como defende Nóvoa (2017);
- potenciasse estratégias envolvendo trabalho colaborativo (Alarcão, & Canha, 2013; Marques et al., 2011; Nóvoa, 2017; Roldão & Almeida, 2018), tais como a elaboração e a discussão de planificações de aulas ou a reflexão sobre os resultados da implementação das aulas (que não foi possível fazer dada a pandemia provocada pelo COVID-19 e o fecho dos liceus em Angola).
Tendo em conta o acima referido, a primeira fase do PFCP visou aprofundar conhecimentos na área da Bioenergética, em particular a noção de escala e de ampliação, associados à perceção de níveis de organização biológica, e sobre a organização e planificação de atividades de trabalho prático e subdividiu-se em duas etapas. Segue-se uma descrição sucinta das mesmas.
A 1.ª etapa, ‘ponto de partida’, incluiu três sessões, sendo duas dinamizadas por docentes da Universidade de Aveiro. Na 1.ª Sessão (1hora) foi feita a apresentação do PFCP pelo Prof. I e aplicado um questionário aos pares (Prof. T, L e A), para aferir as expectativas dos formandos em relação ao PFCP e fazer o diagnóstico das dificuldades na lecionação da Bioenergética. A segunda e terceira sessões (1,5 horas) consistiram em palestras dialogadas sobre ‘Evolução Histórica da Fotossíntese e Respiração Aeróbica”, tendo em conta as dificuldades reportadas pelos participantes (nomeadamente a dificuldade em sensibilizar os alunos para a escala microscópica em que as reações celulares acontecem), e “Competências profissionais dos professores de ciências e organização do processo de ensino e de aprendizagem”.
A 2.ª etapa de ‘Planificação e intervenção’ incluiu igualmente três sessões, sendo a primeira (1 hora) de preparação da intervenção na Bioenergética (planificação das aulas). Na segunda (2 horas), houve uma nova palestra dialogada sobre “Competências, finalidades e objetivos da EC”. A última sessão (1,5 horas) passou pela implementação de uma aula prática planificada sobre a observação de folhas com e sem recurso a instrumentos de ampliação. De referir que esta estratégia e os respetivos materiais se constituem como uma inovação pedagógica para o contexto em estudo (observação de folhas a olho nu, à lupa e ao microscópio ótico e registo das observações pelos alunos).
Técnicas de recolha e tratamento de dados
A recolha de dados foi feita tendo em conta a natureza e tipo de estudo e passou pela recolha documental de:
i) duas planificações, designadamente: uma planificação tipo do grupo de professores de Biologia do Liceu nº 700, feita antes da formação (Anexo I) e a planificação proposta, discutida e negociada com as professoras participantes (Anexo II).
ii) uma narrativa multimodal de uma aula da Prof. L (aula sobre observação macro e microscópica de folhas de plantas), observada pelo investigador. Foram tomadas notas durante a observação e fez-se registo áudio e fotográfico da aula. Refira-se que dada a sobreposição de horários, não foi possível observar as aulas das outras professoras participantes no estudo;
iii) artefactos produzidos pelos alunos: os registos de observação das folhas e respostas a duas perguntas no final da aula implementada.
Descrição dos resultados
Nesta secção, faz-se uma descrição dos resultados da implementação da primeira fase do PFCP em curso. Tendo em conta a questão de investigação e os objetivos deste estudo, apresentam-se primeiro os resultados relacionados com as práticas dos professores participantes (currículo intencional e implementado) e, de seguida, os que se prendem com a aprendizagem dos alunos.
As evidências recolhidas foram sujeitas a análise qualitativa interna (planificações e narrativa multimodal) e de conteúdo (artefactos produzidos pelos alunos), atendendo às recomendações de Amado (2017). A análise de conteúdo foi realizada indutivamente, sendo as categorias emergentes do corpus.
Resultados relacionados com o currículo intencional
A planificação tipo utilizada no Liceu nº 700 pelos professores de Biologia (anexo I) foi objeto de análise, pelo investigador e equipa de supervisão (os autores deste artigo), tendo-se concluído ser muito geral e pouco informativa, focando-se apenas nos conteúdos e nas tarefas do professor e dos alunos, sem articulação explícita com objetivos gerais e/ou específicos de aprendizagem. Acresce tratar-se de uma abordagem transmissiva de conteúdos, como indicado na menção ao método explicativo ou na descrição.
Na sequência da análise acima referida, fez-se uma proposta de nova planificação (Anexo II) que teve em conta as orientações da reestruturação curricular em curso (INIDE, 2005; INIDE, 2014), assim como a valorização da componente prática da Educação em Ciências (em particular do domínio científico da Biologia), sendo assim adaptada ao contexto, e a literatura da especialidade. A primeira versão da planificação foi desenvolvida pelo investigador (Prof. I) em articulação com as orientadoras e na sequência de visitas a escolas portuguesas de Mira e Tondela. Esta colaboração assenta na premissa de que o acesso ao conhecimento é facilitado através de redes (Lopes, 2020). A visita às escolas possibilitou a troca de experiências e a angariação de materiais diversos, nomeadamente quatro microscópios óticos e duas lupas, a que não se teria acesso de outra forma sem investimento. Esta planificação foi discutida e negociada com as professoras participantes, tendo em vista que se apropriassem das inovações incorporadas.
No decurso da discussão da planificação, as professoras participantes tiveram a oportunidade de se familiarizarem com os recursos laboratoriais novos (em particular os microscópios óticos). Tiveram também contacto com diferentes esquemas/fotografias (representativas de folhas), preparados pelo Prof. I, e com apoio logístico da Universidade onde se encontra a realizar o doutoramento, dada a falta de recursos na sua escola (a figura 1 mostra um desses recursos a ser utilizado pela professora cuja aula foi observada).
No que respeita aos objetivos educativos, foram introduzidos objetivos gerais preconizados para o 2.º Ciclo do Ensino Secundário e pelas orientações para a 10.ª Classe de Biologia, bem como objetivos específicos da 10.ª Classe de Biologia. Incluiu-se ainda um conjunto de objetivos de aprendizagens complementares à luz de perspetivas atuais da EC. A título de exemplo, refira-se o objetivo geral - aprofundar o trabalho de exploração de conteúdos no âmbito da Biologia, numa lógica de interdisciplinaridade, e os objetivos específicos - analisar folhas usando diferentes instrumentos de observação ou representar a realidade observada de forma rigorosa.
Quanto ao enquadramento programático dos conteúdos, valorizou-se a importância da observação macroscópica e microscópica de organismos vivos. Esta estratégia visou consolidar a noção de níveis de organização biológica nos alunos e, desta forma, facilitar a compreensão dos processos fotossintéticos que acontecem a nível celular não observável, uma das grandes dificuldades dos alunos na área da Bioenergética (Araújo & Pedrosa, 2014).
Outros elementos inovadores integrados na planificação prendem-se com o trabalho prático e laboratorial. Tendo em conta as recomendações de Franco (2016), foi proposto que os alunos observassem folhas à vista desarmada, à lupa e ao microscópio ótico digital e fizessem registos. Os registos consistiram na representação das folhas vistas a olho nu e à lupa, integrando legendagem da folha. Realça-se que estes registos se constituem como organizadores cognitivos baseados na necessidade de o aluno elaborar uma representação da realidade. Além da observação anterior, os alunos manipularam também um microscópio ótico manual, visando-se facilitar a compreensão da parte mecânica e ótica do mesmo.
No que respeita aos conteúdos, os alunos puderam relembrar e aprofundar a anatomia e a fisiologia das folhas enquanto estratégia para preparar a introdução ao conteúdo da Bioenergética (Fotossíntese) e os diferentes níveis de organização Biológica (desde a folha até ao tecido celular, que observaram nos microscópios óticos).
A integração dos elementos acima referidos na planificação final atesta ter havido evolução das práticas ao nível do currículo intencional. A análise da planificação revela, contudo, haver ainda dificuldades ao nível: i) do conteúdo a explorar dado que, por exemplo, no desenvolvimento seria de esperar haver referência à constituição, uso e vantagens do microscópio; ii) da definição das estratégias e atividades a explorar, incluídas na terceira tabela da planificação do anexo II. Embora tenha havido evolução, nomeadamente no que respeita ao questionamento dos alunos, dado terem sido introduzidas algumas questões a colocar e discutir com os alunos, foram exploradas diversas estratégias como a avaliação diagnóstica, o diálogo (apesar de o tema não ser identificado), o questionamento (como já referido), atividades laboratoriais diversas, que não estão explicitadas.
Resultados relacionados com o currículo implementado
A descrição da implementação da aula planificada de acordo com o anexo II foi feita a partir de uma narrativa multimodal feita pelo Prof. L. Nessa aula apareceram 33 alunos (18 do sexo feminino e 22 do sexo masculino), com idades compreendidas entre os 15 aos 17 anos. A aula decorreu numa segunda-feira das 10h às 11h45min e estruturou-se em quatro partes.
Na primeira parte (15min), a Prof. L começou por fazer uma recapitulação dos conteúdos básicos sobre esta temática (por exemplo, a Teoria Celular e diferenciação entre células eucarióticas e procarióticas), trabalhados anteriormente. Centrou-se ainda na apresentação, aos alunos, das novidades introduzidas do ponto de vista dos recursos preparados para esta aula, em particular os recursos materiais, como a lupa e o microscópio. Por fim, a professora referiu que a aula iria permitir preparar os alunos para uma melhor compreensão dos conteúdos sobre a Bioenergética (fotossíntese e respiração aeróbia) a serem lecionados em aulas futuras.
Na 2.ª parte realizou-se a componente prática da aula (35min). Para a realização desta atividade, tinha sido solicitado que os alunos trouxessem uma folha de uma planta. Cada aluno efetuou dois desenhos numa folha branca A4: um a partir da observação feita a olho nu e outro com auxílio do instrumento ótico de aumento, nomeadamente uma lupa (10X). Esta atividade gerou muito entusiasmo, dada a novidade dos recursos, como indica a seguinte frase - “foi muito bom porque nunca segurei uma lupa”.
Num terceiro momento, a Prof. L prosseguiu com a apresentação e explicação dos materiais utilizados no laboratório, em particular o microscópio ótico digital e o microscópio ótico manual (30min).
No final da aula, os alunos responderam a duas questões: a) o que aprenderam durante a aula? b) o que é que gostariam de aprender na aula? (10min).
A figura 1 mostra um dos materiais elaborados para apoio à aula. Os alunos reagiram muito bem à atividade, tendo demonstrado um elevado grau de autonomia e responsabilidade (objetivos gerais da aula), como acontece com o aluno da fotografia a fazer a observação de uma folha com uma lupa.
Análise dos registos/desenhos das folhas feitos pelos alunos
A análise de conteúdo realizada aos desenhos das folhas feitas pelos alunos “a olho nu” e “com lupa” revelou quatro categorias de desenhos. À categorização está subjacente um nível crescente de aprendizagem por parte dos alunos. Na tabela seguinte, faz-se a descrição de cada categoria e indica-se o número de desenhos classificados em cada uma.
Categoria | Descrição | N |
1 | Desenhos com poucas diferenças entre os registos das folhas realizadas com vista ‘desarmada’ e com o auxílio de lupa, embora o desenho da representação com lupa tenha ampliação (desenho A da figura 2). | 17 |
2 | Registos de folhas com duas diferenças entre observação desarmada e observação com lupa. Na observação com lupa, a folha surge representada num tamanho maior e a nervura central mais escura/larga, revelando apropriação da noção de ampliação mais abrangente. | 22 |
3 | Registos de folhas com três diferenças. Para além das duas diferenças previamente identificadas, o registo feito com o auxílio da lupa tem maior detalhe na superfície folear e, portanto, integra a noção de textura. | 12 |
4 | Registo de folhas com quatro diferenças. As três primeiras e mais detalhes na superfície folear, nomeadamente ramificações nas nervuras secundária no registo da observação à lupa (desenho B da figura 2). | 11 |
Da análise dos desenhos, emerge que, de 72 alunos, 10 parecem não se terem apropriado da noção de ampliação. Infere-se ainda que a atividade permitiu que a maioria dos alunos evoluísse conceptualmente, embora com graus variados, como indica a tabela acima. Uma vez que este conteúdo não era abordado pelas professoras, nem os alunos eram desafiados a fazer os seus próprios registos, antes do PFCP, pode considerar-se que os resultados indicam algum grau de sucesso em termos de inovação ao nível de trabalho laboratorial e que o objetivo de aprendizagem “representar a realidade observada de forma rigorosa (utilização de ampliações)” foi parcialmente atingido.
Análise das respostas às questões colocadas aos alunos no final da aula
A análise que se apresenta seguidamente diz respeito às respostas à primeira pergunta, dos alunos da Prof. L, que lhe pedia para indicarem as aprendizagens que tinham efetuado, na aula que foi observada. Não tendo sido possível recolher as respostas dos alunos das outras professoras participantes, a análise tem um caracter exploratório e ilustrativo das aprendizagens que as estratégias exploradas podem potenciar (ver tabela 2).
Obj.* | Cat.* | Descrição e exemplos de excertos |
---|---|---|
O1 | A1 | Identificar instrumentos de observação (lupa e microscópio) E1A1 - Aprendi quando é que estamos perante a observação macroscópica e com o auxilio da lupa (…) E2A1 - Aprendi de uma forma diferente os elementos que vamos encontrar dentro da folha com ajuda do microscópio que não conseguimos observar a olho nu | A2 | Como utilizar o microscópio e outros recursos laboratoriais E1A2 - Aprendi as partes que constituem o microscopio e como fazer observação com o auxilio da Lupa E2A2 - Aprendi a observar imagens de objectos muito pequenos, atraves do microscopio optico e lupa de mão |
O2 | A3 | Noção de Ampliação (observação de detalhe de objectos recorrendo a diferentes instrumentos) E1A3 - Conhecer a lupa e observar as coisas aparecer mais grandes [o aluno experienciou a utilização da lupa e o efeito de ampliação em si] E2A3 - Eu aprendi que quando nós olhamos uma folha ou uma outra coisa a olho nu ela é [p]equena e quando olhamos à lupa ela torna grande e tambem aprendi que quando nós olhamos dentro do microscopio nos olhamos as celulas dentro muito pequenas |
A4 | Diferença entre objeto e imagem E1A2 - Aprendi que o microscopio na observação de objectos muito pequeno é importante porque o microscopio é o instrumento que amplia as imagens de objectos muitos pequenos E2A2 - Aprendi a diferença entre uma imagem vista em olho nú e uma imagem vista com a lupa e o microscopio optico |
* Obj - objetivo, Cat - Categoria
As respostas dos alunos foram classificadas em quatro categorias de aprendizagem relacionadas com os dois objetivos específicos da aula: O1 - identificar diferentes meios e instrumentos de observação e O2 - representar a realidade observada de forma rigorosa (utilização de ampliações). Os exemplos de excertos apresentados na tabela 2 são identificados de forma a facilmente verificar como se relacionam com a categoria de aprendizagem. Por exemplo, E1A1 indica tratar-se do primeiro excerto indicativo de que foi potenciada a aprendizagem A1.
Considerando os excertos transcritos, podemos constatar que a abordagem didática explorada pode potenciar as aprendizagens previstas nos objetivos específicos e ir para além delas. Assim, no que respeita à identificação de instrumentos de observação, o E2A1 mostra que o aluno identificou um instrumento e tem a noção da função do microscópio ótico. A partir do E2A3, pode inferir-se que o aluno tem a noção de ampliação e que os dois instrumentos usados permitem fazer a observação do real ampliado e do que não é visível sem o microscópio.
Considerações finais
A primeira fase do PFCP desenvolvida, e descrita neste artigo, visou promover o aprofundamento de conhecimentos científico-didáticos associados à lecionação da Bioenergética, em particular sobre a organização e planificação de atividades de trabalho prático. Procurou-se também recolher evidências que possibilitem dar resposta à questão de investigação formulada relacionada com o impacto do PFCP ao nível das práticas dos professores participantes e das aprendizagens dos alunos.
As evidências analisadas apontam para a concretização dos objetivos da formação, tendo ocorrido inovação, nomeadamente ao nível da planificação e também ao nível da implementação de uma atividade de trabalho laboratorial. Considera-se que estas atividades e a natureza da inovação proposta (incremental) potenciaram apropriação das atividades didáticas desenhadas pela professora cuja aula foi observada e, por consequência, um alargamento da zona de desenvolvimento proximal, essencial para se introduzir novas práticas no decurso das próximas fases do PFCP.
A análise dos registos elaborados pelos alunos, assim como das respostas a uma pergunta sobre as aprendizagens efetuadas (colocada no final da aula), aponta para a realização/consolidação de aprendizagens fundamentais na área da Biologia, articuladas com os objetivos definidos para a aula (como mostra a tabela 2), embora com diferentes graus. A título de exemplo, refira-se a ampliação, função dos instrumentos de observação explorados, e a diferenciação dos objetos reais (as folhas) das imagens/particularidades observadas (representadas pelas folhas ampliadas, com ilustração de pormenores, ou a menção de que com o microscópio é possível visualizar estruturas não observáveis a olho nu).
Os resultados reportados reforçam os de estudos realizados recentemente em Angola no âmbito de PFCP (Breganha, 2019; Kamuele, 2020) que indicam que os programas implementados contribuíram para mudanças das conceções e práticas de professores envolvidos nos percursos formativos e para uma melhoria das aprendizagens dos alunos, tornando-os mais participativos nas aulas, mais motivados, entre outros.
Tendo em conta a literatura da especialidade e os resultados deste estudo exploratório, considera-se poder sugerir que os PFCP, cuja finalidade seja a inovação das práticas de Educação em Ciências, em particular de Biologia (em Angola ou contextos semelhantes de precaridade na formação continua de professores e de recursos educativos), devem assentar em princípios de desenvolvimento profissional, como: a responsabilidade descentralizada, dando voz aos professores; a flexibilidade e diferenciação, atendendo aos contextos; a reflexão para, na e após a ação; e o desenvolvimento profissional em fases iterativas, inovação incremental.
Considera-se que para além dos princípios acima referidos, os PFCP devem ser feitos em colaboração e potenciando uma interligação entre teoria e prática. A colaboração é uma palavra-chave visto poder promover a autonomia e o desenvolvimento profissional dos docentes, bem como a valorização dos conhecimentos e da experiência de todos. No caso do PFCP, descrito neste texto, considera-se, na linha de Roldão e Almeida (2018), que a colaboração entre professores promoveu a redução do individualismo, estimulou o recurso à discussão, à partilha de experiências e à tomada coletiva de decisões, “(…) aspetos fundamentais na construção da autonomia da escola/do professor.” (p. 33). Acresce que a colaboração permitiu, como defende Nóvoa (2017), um trabalho conjunto sobre o conhecimento, quer científico quer didático, e o desenho de um percurso integrado e coerente de formação. Ainda quanto à partilha de experiências, realça-se as potencialidades do trabalho em redes, ocorrido aquando das visitas a duas escolas portuguesas, que facilitou o acesso a conhecimento e a recursos de laboratório, sem os quais não teria sido possível desenvolver as atividades laboratoriais planificadas. Por outro lado, e no que respeita à relação teoria-prática, como defende Nóvoa (2017, p. 1116), a formação deve “(…) funcionar em alternância, com momentos de forte pendor teórico nas disciplinas e nas ciências da educação, seguidos de momentos de trabalho nas escolas, durante os quais se levantam novos problemas (…)”, o que se procurou fazer nesta primeira fase do PFCP em curso.
No que respeita às fases seguintes do PFCP e dadas as fragilidades da planificação da aula que foi implementada, a saber, ter ainda falta de informações e não explicitar as estratégias didáticas, pondera-se realizar sessões dialogadas que permitam aprofundar aspetos relativos à planificação de aulas e a estratégias didáticas inovadoras no âmbito do EC, tendo em conta indicadores da literatura e as orientações da tutela. Outros aspetos a introduzir para reforçar a colaboração entre os professores participantes no estudo, prendem-se com a exploração de estratégias de cossupervisão, através da observação de aulas e/ou da discussão de narrativas multimodais (feitas pelas professoras participantes), promovendo reflexão partilhada depois da ação. Está, neste momento, em curso uma revisão de literatura sobre estratégias de cossupervisão exploradas em países africanos.