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Da Investigação às Práticas

versão On-line ISSN 2182-1372

Invest. Práticas vol.12 no.2 Lisboa dez. 2022  Epub 28-Set-2022

https://doi.org/10.25757/invep.v12i2.334 

Artigos

A literacia em contexto de guerra. A elaboração de uma carta como atividade de escrita transformadora no Ensino Básico

Literacy in the context of war. The elaboration of a letter as a transformative writing in Basic Education

Alfabetización en el contexto de la guerra. La elaboración de una carta como actividad de escritura transformadora en la Educación Básica

L’alphabétisation dans le contexte de la guerre. La préparation d’une lettre en tant qu’activité d’écriture transformatrice dans l’éducation de base

! Instituto Federal do Ceará, Brasil

!! Centro de Investigação em Estudos da Criança (CIEC), Universidade do Minho, Braga, Portugal.


Resumo

O artigo descreve e analisa uma prática de literacia autêntica realizada com estudantes do 6.º ano do Ensino Básico, numa escola urbana portuguesa, com um propósito de compromisso cívico democraticamente participativo. A atividade, decorrente de uma decisão tomada pelos estudantes, consistiu na redação de uma carta, endereçada a cidadãos da Ucrânia, seguindo os procedimentos do ciclo de escrita, acompanhada de um desenho. A carta teve como objetivo acompanhar os bens de primeira necessidade doados a cidadãos da Ucrânia, em contexto de guerra, e partilhar uma mensagem positiva. O desenho funcionou como reforço e visou assegurar a receção e compreensão da mensagem escrita.

Os produtos alcançados possibilitaram, aos estudantes, perceber a relevância da literacia enquanto prática transformadora e, simultaneamente, desenvolver competências sociais e de participação democrática.

Palavras-chave: literacia; aprendizagem; escrita; participação democrática

Abstract

The article describes and analyses an authentic literacy practice performed with 6th grading students in a Portuguese urban school, with a democratically participatory civic commitment purpose. The activity, resulting from a decision taken by the students, consisted in the writing of a letter, addressed to citizens of Ukraine, following the procedures of the writing cycle, accompanied by a drawing. The letter aimed to monitor the first-needs goods given to citizens of Ukraine in the context of war and share a positive message. The drawing functioned as a reinforcement and aimed to ensure the reception and understanding of the written message.

The products achieved made it possible for students to understand the relevance of literacy as a transformative practice and, at the same time, to develop social skills and democratic participation.

Keywords: literacy; learning; writing; democratic participation

Resumen

El artículo describe y analiza una auténtica práctica de alfabetización realizada con estudiantes de 6º grado en una escuela urbana portuguesa, con un propósito de compromiso cívico democráticamente participativo. La actividad, fruto de una decisión tomada por los alumnos, consistió en la redacción de una carta, siguiendo los procedimientos del ciclo de escritura, acompañada de un dibujo. La actividad, resultante de una decisión tomada por los estudiantes, consistió en la redacción de una carta, dirigida a los ciudadanos de Ucrania, siguiendo los procedimientos del ciclo de escritura, acompañada de un dibujo. La carta tenía como objetivo monitorear los bienes de primera necesidad entregados a los ciudadanos de Ucrania en el contexto de la guerra y compartir un mensaje positivo. El dibujo funcionó como un refuerzo y tenía como objetivo garantizar la recepción y comprensión del mensaje escrito.

Los productos obtenidos permitieron a los estudiantes comprender la relevancia de la alfabetización como una práctica transformadora y, al mismo tiempo, desarrollar habilidades sociales y participación democrática.

Palabras clave: alfabetización; aprendizaje; escritura; participación democrática

Résumé

L’article décrit et analyse une pratique d’alphabétisation authentique réalisée avec des élèves de 6ème dans une école urbaine portugaise, ayant comme but un engagement civique démocratiquement participatif. L’activité, résultant d’une décision prise par les étudiants, a consisté en l’écriture d’une lettre, adressée aux citoyens de l’Ukraine, suivant les procédures du cycle d’écriture, accompagnée d’un dessin. La lettre devrait être remise avec les premiers besoins donnés aux citoyens ukrainiens dans le contexte de la guerre, partagent un message positif. Le dessin fonctionnait comme un renforcement et visait à assurer la réception et la compréhension du message écrit.

Les produits obtenus ont permis aux élèves de comprendre la pertinence de l’alphabétisation en tant que pratique transformatrice et, en même temps, de développer des compétences sociales et une participation démocratique.

Mots-clés: alphabétisation; apprentissage; écriture; participation démocratique

Introdução

O ensino-aprendizagem da língua visa dotar o aluno de um saber-fazer linguístico, social e cultural, e também, em larga medida, político, que lhe permita tornar-se coparticipante da vida na pólis. O documento curricular intitulado Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória (Ministério da Educação/Direção-Geral da Educação [ME/DGE], 2017), homologado pelo Despacho n.º 6478/2017, de 26 de julho, documento-matriz no âmbito da escolaridade obrigatória em Portugal, enfatiza a necessidade de as práticas pedagógicas se guiarem por “um apelo a pensar e a criar um destino comum humanamente emancipador” (Martins, 2017, p. 5), baseado nos pilares da educação de que fala Edgar Morin, e que respeite, como explicitou Guilherme d’Oliveira Martins (2017), os seguintes aspetos:

prevenção do conhecimento contra o erro e a ilusão; ensino de métodos que permitam ver o contexto e o conjunto, em lugar do conhecimento fragmentado; o reconhecimento do elo indissolúvel entre unidade e diversidade da condição humana; aprendizagem duma identidade planetária, considerando a humanidade como comunidade de destino; exigência de apontar o inesperado e o incerto como marcas do nosso tempo; educação para a compreensão mútua entre as pessoas, de pertenças e culturas diferentes; e desenvolvimento de uma ética do género humano, de acordo com uma cidadania inclusiva (Martins, 2017, pp. 5-6).

O artigo, a que este texto dá corpo, descreve e analisa uma prática de literacia autêntica realizada com estudantes do 6.º ano do Ensino Básico, com idades compreendidas entre os 11 e os 12 anos, de uma escola urbana portuguesa, com um propósito de compromisso cívico e democraticamente participativo. A atividade didática foi desenvolvida por três professoras de Português, autoras deste artigo, e supervisionada por dois docentes investigadores, também autores deste artigo.

Os objetivos subjacentes à atividade didática escolhida (a escrita de uma carta endereçada ao povo ucraniano) foram os de ensinar aos estudantes que a literacia é uma prática social e que esta pode ser participativa e transformadora.

Para a consecução destes objetivos foram delineadas estratégias, operacionalizadas em grande grupo e individualmente, que se explicitam a seguir.

A literacia como prática transformadora

Routman (2018) enfatiza a necessidade de, no contexto de uma educação democrática e participativa, os estudantes serem envolvidos em atuações pedagógicas que lhes permitam conceptualizar o seu lugar na escola e no mundo como cidadãos. Cidadãos com capacidade de se comprometerem e de serem participantes inteligentes na democracia. É, aliás, também esta a perspetiva de Feebody (2010) quando advoga a relevância de programas de literacia socialmente responsáveis:

A socially responsible literacy education programme should lead to socially responsible learners, to the teaching of literacy in socially responsible ways in and out of classrooms, and to an emphasis on the social nature of the benefits of literacy. That is, it should orient us toward a literate society as a goal, making us alert to, and advocates of, the positive, long-term civic consequences that arise from the distribution of literacy capabilities via strong educational programmes (Feebody, 2010, pp. 40-41).

Desenvolver práticas de ensino-aprendizagem promotoras da curiosidade intelectual e que estimulem os estudantes a ler e a querer ler, compreendendo os textos de uma forma sofisticada e abrangente, bem como a escrever e a querer escrever voluntariamente, mantendo o interesse pelo questionamento, constitui, provavelmente, um dos maiores desafios para um docente de língua.

Este princípio de uma atuação pedagógica democrática, participativa, comprometida socialmente e preocupada com o mundo extraescolar pode ser concretizado através de atividades de literacia autênticas, que respeitem o estudante como pessoa, que o tornem coparticipante no processo de ensino- -aprendizagem e que lhe forneçam as ferramentas para aprender a agir social e civicamente na pólis. Os estudantes podem e devem ser envolvidos, por exemplo, nas decisões a tomar quando se trata de concretizar atividades de literacia autênticas ou resolver problemas que surjam em contexto de sala de aula (Routman, 2018). Eles podem também analisar e debater situações problemáticas ou desafiadoras do mundo extraescolar e propor ideias para mitigar ou tentar resolver essas situações. A prática da literacia, na linha dos escritos de Paulo Freire de uma educação emancipadora, pode ser, como enfatizam Lisa Stevens e Thomas Bean (2007), potencialmente uma ferramenta para empoderar ou retirar poder aos sujeitos.

Um abraço para a Ucrânia: contexto e descrição da atividade didática

No âmbito da situação de guerra (Grayling, 2017) que assola a Ucrânia, e mediatamente a Europa e os seus cidadãos, mergulhados numa informação omnipresente sobre a morte, a barbárie, a violência, a destruição e as vagas de refugiados, buscou-se, com a atividade didática a seguir descrita, desenvolver nos estudantes uma consciência social e cívica ligada às práticas de literacia. O pressuposto subjacente é o de que as práticas de literacia devem ser autênticas e relevantes para os estudantes, permitindo-lhes apropriar-se da língua, mobilizá-la em situações reais e realizar, com ela, atos de linguagem com capacidade perlocutiva. As práticas de literacia devem permitir um comprometimento cívico (Routman, 2018). Em conexão com este pressuposto, os autores deste artigo assumem igualmente que a motivação dos estudantes constitui um elemento fundamental no processo de aprendizagem e que, por conseguinte, importa estimular emoções e sentimentos positivos (Saneleuterio, 2020). O êxito do processo educativo recai em três vértices que articulam a educação: o conteúdo da matéria, os estudantes e as competências para essa aprendizagem (Salinas et al., 2014).

Neste sentido, no contexto de um debate, em sala de aula, sobre a situação de guerra e de devastação vivida num país europeu (a guerra na Ucrânia) e à luz da recolha coletiva de alimentos e bens de primeira necessidade para envio para esse país, os estudantes de um 6.º ano do Ensino Básico, com idades entre os 11 e 12 anos, desenvolveram uma prática de brainstorming e acordaram como estratégia de ajuda e de mitigação da dor e do sofrimento experienciado pela população desse país a escrita de uma carta com mensagens positivas e de esperança sobre o futuro pessoal e coletivo.

Assumida essa estratégia pela turma e pela professora da disciplina de Português, a mesma foi, posteriormente, partilhada com mais duas turmas de 20 estudantes cada, tendo-se acordado, com o apoio das professoras, a redação de uma missiva, com o formato textual da carta, dirigida a habitantes de cidades ucranianas. As cartas seriam acompanhadas de um desenho ou de elementos icónicos que os alunos considerassem adequados, com vista não só a resolver um problema levantado por eles próprios, como também à integração da atividade com a disciplina de Expressão Plástica e Visual. As cartas, num total de 60, foram enviadas para a Ucrânia, acompanhadas de bens materiais (roupa, alimentos, medicamentos, brinquedos etc.) recolhidos pelos alunos e seus familiares, docentes e funcionários da escola, com o apoio do município.

Na eventualidade de alguém querer agradecer e responder à carta recebida, nomeadamente partilhando a sua história de vida ou outra situação, foi criado, sob proposta dos estudantes, um e-mail para correspondência.

A atividade didática seguiu os princípios do ciclo da escrita (Barbeiro e Pereira, 2007). A escolha desta estratégia didática teve como objetivos: consciencializar os estudantes para a existência de um processo de escrita que antecede o produto final; ajudá-los a identificar e a conhecer as fases desse processo; treinar esse processo e desenvolver a capacidade de refletir sobre o seu domínio do processo, visando ensinar os estudantes a escreverem para aprenderem a escrever.

Os estudantes, em diálogo com as docentes, que partilhavam a lecionação das disciplinas de Português e de História, debateram, nessas aulas, o que sabiam sobre a guerra (mobilização do conhecimento), tendo, posteriormente, sido solicitados a trazer para a aula de Português informações sobre a situação atual de guerra vivida na Ucrânia.

A recolha de informações sobre este tópico traduziu-se em documentos vídeo, peças jornalísticas e informações orais aportadas pelos alunos. Esta recolha e seleção da informação ajudou os estudantes, por um lado, a aprender a realizar pesquisa orientada e, por outro, a saber selecionar informação com base numa reflexão sobre um tópico específico.

Posteriormente, as informações aportadas pelos estudantes foram convertidas em palavras-chave e organizadas, pelas docentes, num mapa semântico, que foi construído coletivamente e exposto no quadro da sala (organização da informação). O mapa incluía as seguintes categorias: contexto da guerra, agressor, razões da guerra, consequências da guerra (materiais, humanas, socioemocionais).

Em seguida, os estudantes recordaram o modelo de estrutura de uma carta (Costa, 2014), já trabalhado em aulas anteriores, a saber: o seu contexto de produção (autor, destinatário, objetivo, modalidade e suporte), o tema, estrutura e marcas linguísticas. Quanto à estrutura, os estudantes recordaram que a carta deveria indicar o local e a data, possuir uma fórmula de abertura, uma estrutura do corpo do texto e fórmulas de encerramento, não esquecendo a assinatura do seu remetente. O registo linguístico poderia ser mais formal ou informal, tudo dependendo dos objetivos atribuídos ao texto, do seu destinatário e dos efeitos perlocutivos desejados.

Os estudantes sabiam que deveriam redigir uma carta endereçada a cidadãos da Ucrânia a viver a situação de guerra. Ora, a carta, enquanto género textual específico, supõe uma determinada forma de organização da informação, e o seu conteúdo e adequação ao destinatário exigem a tomada de decisões relevantes, por forma a que o texto consiga alcançar os efeitos perlocutivos desejados.

Com a informação organizada num mapa semântico e com o modelo de estrutura de uma carta presentificado, passou-se à fase seguinte: a textualização da carta, que os estudantes realizaram com grande entusiasmo, até porque o contexto escolar em que estão inseridos apela ao respeito e à inclusão de pessoas das mais diversas culturas. As cartas foram redigidas individualmente, em língua portuguesa. A textualização objetivou a comunicação, mediante a explicitação do conteúdo, da formulação linguística e da articulação linguística (Barbeiro & Pereira, 2007), tendo possibilitado, aos estudantes, de uma forma profunda, a ativação das competências compositiva, ortográfica e gráfica.

Depois de redigidas as cartas, procedeu-se à fase de revisão dos textos escritos. A atividade foi desenvolvida individualmente e os estudantes buscaram, entre outros aspetos, verificar a articulação e conexão das frases entre si, o uso dos conectores, as seleções lexicais, o uso adequado da pontuação. Optámos pela revisão do texto realizada individualmente, porque, enquanto avalia o seu próprio trabalho, o estudante desenvolve a sua consciência sobre o processo de escrita. Este foi o momento em que foram tomadas as decisões acerca da configuração gráfica do texto e foi elaborado um desenho que, de algum modo, pudesse expressar visualmente o conteúdo semântico da carta, até porque, como foram redigidas em língua portuguesa, não era expectável, à partida, que os seus destinatários conhecessem a língua. Esta questão foi, aliás, levantada pelos próprios estudantes e foram eles que, coletivamente, buscaram propostas de solução para mitigar o problema linguístico existente. Uma das soluções passou, como explicitámos, pela associação de um desenho ao texto , e outra pela tradução do conteúdo da carta para língua ucraniana, utilizando a ferramenta informática disponível (Google Tradutor), procedimento apoiado pelas três docentes das disciplinas.

O envio da carta para a Ucrânia, acompanhado do desenho e da tradução do seu conteúdo para língua ucraniana, configurou a última fase do ciclo de escrita, a atribuição de funções ao produto escrito, mostrando aos estudantes que a literacia é uma competência com implicações sociopolíticas que lhes permite agir na pólis.

A análise às cartas: principais linhas ideológicas expressas verbalmente

Das 60 cartas redigidas pelos estudantes, procedeu-se uma amostra aleatória de 20 cartas, analisando e interpretando o seu conteúdo.

De um modo geral, os textos são redigidos dirigidos a uma segunda pessoa do singular (tu) e, em casos mais esporádicos, a um todo coletivo (vós). Alguns textos explicitam linguisticamente um nível de respeito e de estima que o remetente sente pelo destinatário (“meu caro”, “querido senhor”).

As fórmulas de encerramento das cartas variam entre o impessoal (“adeus e boa sorte”, “com os melhores cumprimentos”) e o carinhoso e familiar (“beijinhos”).

Encontramos, igualmente, algumas ideias e palavras-chave comuns em várias cartas, desde o desejo de força e de esperança, ao apoio da escola e de Portugal, entendido como uma comunidade coletiva, para com a Ucrânia sofredora. A Tabela 1 exibe essas principais linhas ideológicas.

Tabela 1 Linhas ideológicas das cartas 

Expressão do desejo de paz A1: “Espero que consigam ter paz e que a guerra acabe rápido.” A2: “(...) tenho fé de que isso acabará em breve e que logo estarás bem e em total segurança.”
Expressão do desejo de força e de esperança A3: “(…) muita força, pois é o que é preciso, estamos aqui para tudo”. A4: “(…) vai correr tudo bem, porque muitos países estão a ajudar-te a ti e ao teu país.” A5: “Tens de ter fé, porque, num abrir e fechar de olhos, esta guerra vai acabar.” A6: “(…) continuamos com esperança que isto tudo acabe.” A7: “Vocês são incríveis! (...). Em comparação com a Rússia, o vosso país é pequeno, mas a vossa população é espetacular!”
Expressão de perda e de lamento A8: “(…) nós lamentamos o que está a acontecer com vocês. Isto não se deseja a ninguém.”
Expressão de empatia A8: “(…) não me consigo imaginar no vosso lugar, a perder a família, a perder a casa.” A2: “Sinta-se abraçado por mim.”
Apoio de um eu coletivo representado pelo país Portugal A1: “Nós, aqui, em Portugal, estamos a apoiar-vos.” A1: “Nós estamos a tentar ajudar-vos, dando comida, roupas, medicamentos.” A5: “Espero que esta carta te acalme, porque estamos nisto juntos!” A6: “Estamos todos aqui a torcer por vocês (…)” A7: “A minha escola já vos ajudou com comida, medicamentos, …”

Simultaneamente, conseguimos notar algumas linhas que diferenciam as cartas e que marcam a identidade da sua autoria, nomeadamente marcações de posições políticas e exposições de opiniões e aspirações. Em jeito de exemplo, um dos estudantes optou por centrar a sua carta na sua opinião histórica e política sobre a guerra, expressando o seu descontentamento com o facto de “em pleno século XXI ainda haver guerra”.

De um modo geral, podemos constatar que os estudantes mobilizaram, nesta atividade, os seus sentimentos e opiniões, aspirando obter uma resposta por parte do destinatário.

A análise às cartas: principais linhas ideológicas expressas por meio do desenho

Para acompanhar a carta, os estudantes desenvolveram um desenho, de caráter livre, de forma a traduzir, de algum modo, o que tinham escrito. O desenho pretendia assegurar que a mensagem expressa verbalmente pudesse ser reconhecida pelo seu destinatário, já que, reiterando elementos de um repertório imagético comum à cultura visual de uma época de conflito militar, em que os papéis de beligerante e de vítima são reconhecidos e partilhados pelas crianças, a tradução do texto poderia ser considerada supletiva. Além disso, o desenho funcionaria, também, como primeiro impacto visual quando a carta fosse aberta.

Conseguimos perceber que, de forma bastante consensual, os estudantes optaram por desenhar a bandeira da Ucrânia como centro dos seus desenhos. Paralelamente, a acompanhar esta bandeira, alguns estudantes decidiram expressar o apoio português com o desenho da bandeira portuguesa em união à bandeira ucraniana. Notamos que os estudantes assumiram a bandeira como símbolo do país, reconhecendo e incorporando a dimensão nacional e, de certo modo, patriota da guerra.

Simultaneamente, a grande maioria dos desenhos apresentou apontamentos que remetem à paz e à esperança, desde o desenho de pombas e corações, o gesto de mãos a rezar, que retrata a fé, e, ainda, duas pessoas a abraçarem-se, remetendo para a união, com a bandeira ucraniana como fundo.

Um dos estudantes evidenciou, no desenho, as bandeiras dos países beligerantes com formato humano e um coração entre ambos com a palavra “paz” escrita em ucraniano (Figura 1).

Figura 1 Carta redigida por um estudante do 6.º ano de escolaridade 

Fonte: arquivo dos pesquisadores

Outra aluna (Figura 2) desenhou, de um lado, um menino e uma menina dando as mãos, e do outro, a bandeira ucraniana rodeada de pequenos corações encarnados. Estas representações gráficas dialogam profundamente com o texto ao sinalizar expressões de empatia e desejos de força e de esperança num futuro coletivo de paz e de harmonia entre os povos.

Figura 2 Carta redigida por uma estudante do 6.º ano de escolaridade 

Fonte: arquivo dos pesquisadores

Por fim, damos nota de que a grande maioria das ilustrações foi bastante positiva e empática. Ainda assim, de forma mais pontual, alguns estudantes mostraram ideologias políticas, representadas, em especial, pela repressão à utilização de armamento e outro material de guerra e pela ostensiva recusa do responsável pelo país beligerante (Figura 3).

Figura 3 Carta redigida por um estudante do 6.º ano de escolaridade 

Fonte: arquivo dos pesquisadores.

Este repertório imagético, decorrente de uma cultura visual (Camposet al., 2014) com que os estudantes contactam quotidianamente na comunicação social, exibe as marcas da subjetividade e da ideologia e configura um conjunto de discursos visuais, que constroem posições e que estão inscritos em práticas sociais (Dussel, 2009).

Conclusão

Os estudantes conheciam e dominavam o tema, fosse por influência da informação contínua partilhada nos vários canais de televisão, fosse pelo debate e reflexão levados a cabo nas aulas de História, e envolveram-se emocionalmente na situação. A adesão à escrita da carta, proposta numa turma de 20 estudantes, rapidamente se estendeu a outras turmas, tendo sido redigidas e enviadas 60 cartas, com grande entusiasmo e entrega.

Esta atividade de literacia desenvolvida nas aulas de Português de um 6.º ano de escolaridade permitiu, deste modo, presentificar uma situação real e, num contexto didático, mobilizar os estudantes para uma atividade de escrita que os ajudou a ter consciência de que o domínio das competências de literacia inclui, também, uma componente de transformação sociopolítica (Lankshear et al., 1997). A escrita serve para fazer coisas; é uma poderosa ferramenta que, estando na posse dos cidadãos, pode ajudá-los a participar democraticamente na sociedade e a transformar o mundo (Waxler & Hall, 2011).

Os objetivos enunciados foram, por conseguinte, alcançados: os estudantes aprenderam a utilizar a língua num contexto socialmente relevante e compreenderam que, materializada a língua em produtos de literacia autêntica (a carta), esta pode ter uma dimensão transformadora.

Agradecimentos

Este trabalho foi financiado por Fundos Nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia -, no âmbito do projeto do CIEC (Centro de Investigação em Estudos da Criança da Universidade do Minho) com a referência UIDB/00317/2020.

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Recebido: 29 de Maio de 2022; Aceito: 26 de Agosto de 2022

Iranita Maria de Almeida Sá Licenciada em Letras (UFC), com especializações em Língua Portuguesa (UECE) e Linguística (UFC), Mestrado em Educação (UFC), doutorada em Filosofia e Ciências da Educação (Universidad Nacional de Educación a Distância/ UNED MADRI) e pós-doutorada em Ciências da Educação (Universidade do Minho, Portugal). Foi membro do Conselho de Educação do Estado do Ceará (Brasil), tendo lecionado em instituições como a Universidade Aberta do Nordeste, Faculdade Católica Rainha do Sertão, Faculdade Evolutivo, SENAC, SENAI, INEP, IFCE, CEFEB/CEE, CENFOR e Universidad Interamericana de la República del Paraguay com funções docentes, funções de planeamento estratégico, acompanhamento, orientação e avaliação de atividades educacionais e pedagógicas. Atualmente é professora de Português, concursada, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará, em efetivo exercício, desde 2016, no IFCE-Cedro (Brasil). Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará, Campus de Cedro, Alameda José Quintino, s/n - Prado, Cedro - CE, 63400-000, Brasil / iranitasa@hotmail.com

Fernando Azevedo Professor Associado com Agregação do Instituto de Educação da Universidade do Minho, onde é o responsável pela regência de unidades curriculares de graduação e de pós-graduação nas áreas da Didática da Língua Portuguesa e da Formação de Leitores. É atualmente o diretor do Programa de Doutoramento em Estudos da Criança, sendo igualmente o responsável científico do Plano Local de Leitura de Braga e do Plano Local de Leitura de Guimarães. Possui o título de Doutor em Ciências da Literatura. É membro do Centro de Investigação em Estudos da Criança (CIEC). Integra o Observatório de Literatura Infantojuvenil (OBLIJ) e a Associação Portuguesa para a Literacia. Pertence à Comissão de Honra do Plano Nacional de Leitura. Possui obras publicadas nos domínios da hermenêutica textual, literatura infantil e formação de leitores. Centro de Investigação em Estudos da Criança (CIEC), Universidade do Minho, Instituto de Educação, Campus de Gualtar, 4710-057 Braga, Portugal / fraga@ie.uminho.pt

Andreia Figueiredo Licenciada em Educação Básica, frequenta a Prática de Ensino Supervisionada do Mestrado em Ensino do 1.º Ciclo do Ensino Básico e de Português e História e Geografia de Portugal no 2.º Ciclo do Ensino Básico, integrando o Centro de Investigação em Estudos da Criança da Universidade do Minho. Centro de Investigação em Estudos da Criança (CIEC), Universidade do Minho, Instituto de Educação, Campus de Gualtar, 4710-057 Braga, Portugal / andreia.ic.figueiredo@gmail.com

Liliana Ribeiro Licenciada em Educação Básica, frequenta a Prática de Ensino Supervisionada do Mestrado em Ensino do 1.º Ciclo do Ensino Básico e de Português e História e Geografia de Portugal no 2.º Ciclo do Ensino Básico, integrando o Centro de Investigação em Estudos da Criança da Universidade do Minho. Centro de Investigação em Estudos da Criança (CIEC), Universidade do Minho, Instituto de Educação, Campus de Gualtar, 4710-057 Braga, Portugal / lilianaguimaraesribeiro@gmail.com

Mariana Monteiro Licenciada em Educação Básica, frequenta a Prática de Ensino Supervisionada do Mestrado em Ensino do 1.º Ciclo do Ensino Básico e de Português e História e Geografia de Portugal no 2.º Ciclo do Ensino Básico, integrando o Centro de Investigação em Estudos da Criança da Universidade do Minho. Centro de Investigação em Estudos da Criança (CIEC), Universidade do Minho, Instituto de Educação, Campus de Gualtar, 4710-057 Braga, Portugal / marianarm1999@gmail.com

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