Introdução
O ensino-aprendizagem da língua visa dotar o aluno de um saber-fazer linguístico, social e cultural, e também, em larga medida, político, que lhe permita tornar-se coparticipante da vida na pólis. O documento curricular intitulado Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória (Ministério da Educação/Direção-Geral da Educação [ME/DGE], 2017), homologado pelo Despacho n.º 6478/2017, de 26 de julho, documento-matriz no âmbito da escolaridade obrigatória em Portugal, enfatiza a necessidade de as práticas pedagógicas se guiarem por “um apelo a pensar e a criar um destino comum humanamente emancipador” (Martins, 2017, p. 5), baseado nos pilares da educação de que fala Edgar Morin, e que respeite, como explicitou Guilherme d’Oliveira Martins (2017), os seguintes aspetos:
prevenção do conhecimento contra o erro e a ilusão; ensino de métodos que permitam ver o contexto e o conjunto, em lugar do conhecimento fragmentado; o reconhecimento do elo indissolúvel entre unidade e diversidade da condição humana; aprendizagem duma identidade planetária, considerando a humanidade como comunidade de destino; exigência de apontar o inesperado e o incerto como marcas do nosso tempo; educação para a compreensão mútua entre as pessoas, de pertenças e culturas diferentes; e desenvolvimento de uma ética do género humano, de acordo com uma cidadania inclusiva (Martins, 2017, pp. 5-6).
O artigo, a que este texto dá corpo, descreve e analisa uma prática de literacia autêntica realizada com estudantes do 6.º ano do Ensino Básico, com idades compreendidas entre os 11 e os 12 anos, de uma escola urbana portuguesa, com um propósito de compromisso cívico e democraticamente participativo. A atividade didática foi desenvolvida por três professoras de Português, autoras deste artigo, e supervisionada por dois docentes investigadores, também autores deste artigo.
Os objetivos subjacentes à atividade didática escolhida (a escrita de uma carta endereçada ao povo ucraniano) foram os de ensinar aos estudantes que a literacia é uma prática social e que esta pode ser participativa e transformadora.
Para a consecução destes objetivos foram delineadas estratégias, operacionalizadas em grande grupo e individualmente, que se explicitam a seguir.
A literacia como prática transformadora
Routman (2018) enfatiza a necessidade de, no contexto de uma educação democrática e participativa, os estudantes serem envolvidos em atuações pedagógicas que lhes permitam conceptualizar o seu lugar na escola e no mundo como cidadãos. Cidadãos com capacidade de se comprometerem e de serem participantes inteligentes na democracia. É, aliás, também esta a perspetiva de Feebody (2010) quando advoga a relevância de programas de literacia socialmente responsáveis:
A socially responsible literacy education programme should lead to socially responsible learners, to the teaching of literacy in socially responsible ways in and out of classrooms, and to an emphasis on the social nature of the benefits of literacy. That is, it should orient us toward a literate society as a goal, making us alert to, and advocates of, the positive, long-term civic consequences that arise from the distribution of literacy capabilities via strong educational programmes (Feebody, 2010, pp. 40-41).
Desenvolver práticas de ensino-aprendizagem promotoras da curiosidade intelectual e que estimulem os estudantes a ler e a querer ler, compreendendo os textos de uma forma sofisticada e abrangente, bem como a escrever e a querer escrever voluntariamente, mantendo o interesse pelo questionamento, constitui, provavelmente, um dos maiores desafios para um docente de língua.
Este princípio de uma atuação pedagógica democrática, participativa, comprometida socialmente e preocupada com o mundo extraescolar pode ser concretizado através de atividades de literacia autênticas, que respeitem o estudante como pessoa, que o tornem coparticipante no processo de ensino- -aprendizagem e que lhe forneçam as ferramentas para aprender a agir social e civicamente na pólis. Os estudantes podem e devem ser envolvidos, por exemplo, nas decisões a tomar quando se trata de concretizar atividades de literacia autênticas ou resolver problemas que surjam em contexto de sala de aula (Routman, 2018). Eles podem também analisar e debater situações problemáticas ou desafiadoras do mundo extraescolar e propor ideias para mitigar ou tentar resolver essas situações. A prática da literacia, na linha dos escritos de Paulo Freire de uma educação emancipadora, pode ser, como enfatizam Lisa Stevens e Thomas Bean (2007), potencialmente uma ferramenta para empoderar ou retirar poder aos sujeitos.
Um abraço para a Ucrânia: contexto e descrição da atividade didática
No âmbito da situação de guerra (Grayling, 2017) que assola a Ucrânia, e mediatamente a Europa e os seus cidadãos, mergulhados numa informação omnipresente sobre a morte, a barbárie, a violência, a destruição e as vagas de refugiados, buscou-se, com a atividade didática a seguir descrita, desenvolver nos estudantes uma consciência social e cívica ligada às práticas de literacia. O pressuposto subjacente é o de que as práticas de literacia devem ser autênticas e relevantes para os estudantes, permitindo-lhes apropriar-se da língua, mobilizá-la em situações reais e realizar, com ela, atos de linguagem com capacidade perlocutiva. As práticas de literacia devem permitir um comprometimento cívico (Routman, 2018). Em conexão com este pressuposto, os autores deste artigo assumem igualmente que a motivação dos estudantes constitui um elemento fundamental no processo de aprendizagem e que, por conseguinte, importa estimular emoções e sentimentos positivos (Saneleuterio, 2020). O êxito do processo educativo recai em três vértices que articulam a educação: o conteúdo da matéria, os estudantes e as competências para essa aprendizagem (Salinas et al., 2014).
Neste sentido, no contexto de um debate, em sala de aula, sobre a situação de guerra e de devastação vivida num país europeu (a guerra na Ucrânia) e à luz da recolha coletiva de alimentos e bens de primeira necessidade para envio para esse país, os estudantes de um 6.º ano do Ensino Básico, com idades entre os 11 e 12 anos, desenvolveram uma prática de brainstorming e acordaram como estratégia de ajuda e de mitigação da dor e do sofrimento experienciado pela população desse país a escrita de uma carta com mensagens positivas e de esperança sobre o futuro pessoal e coletivo.
Assumida essa estratégia pela turma e pela professora da disciplina de Português, a mesma foi, posteriormente, partilhada com mais duas turmas de 20 estudantes cada, tendo-se acordado, com o apoio das professoras, a redação de uma missiva, com o formato textual da carta, dirigida a habitantes de cidades ucranianas. As cartas seriam acompanhadas de um desenho ou de elementos icónicos que os alunos considerassem adequados, com vista não só a resolver um problema levantado por eles próprios, como também à integração da atividade com a disciplina de Expressão Plástica e Visual. As cartas, num total de 60, foram enviadas para a Ucrânia, acompanhadas de bens materiais (roupa, alimentos, medicamentos, brinquedos etc.) recolhidos pelos alunos e seus familiares, docentes e funcionários da escola, com o apoio do município.
Na eventualidade de alguém querer agradecer e responder à carta recebida, nomeadamente partilhando a sua história de vida ou outra situação, foi criado, sob proposta dos estudantes, um e-mail para correspondência.
A atividade didática seguiu os princípios do ciclo da escrita (Barbeiro e Pereira, 2007). A escolha desta estratégia didática teve como objetivos: consciencializar os estudantes para a existência de um processo de escrita que antecede o produto final; ajudá-los a identificar e a conhecer as fases desse processo; treinar esse processo e desenvolver a capacidade de refletir sobre o seu domínio do processo, visando ensinar os estudantes a escreverem para aprenderem a escrever.
Os estudantes, em diálogo com as docentes, que partilhavam a lecionação das disciplinas de Português e de História, debateram, nessas aulas, o que sabiam sobre a guerra (mobilização do conhecimento), tendo, posteriormente, sido solicitados a trazer para a aula de Português informações sobre a situação atual de guerra vivida na Ucrânia.
A recolha de informações sobre este tópico traduziu-se em documentos vídeo, peças jornalísticas e informações orais aportadas pelos alunos. Esta recolha e seleção da informação ajudou os estudantes, por um lado, a aprender a realizar pesquisa orientada e, por outro, a saber selecionar informação com base numa reflexão sobre um tópico específico.
Posteriormente, as informações aportadas pelos estudantes foram convertidas em palavras-chave e organizadas, pelas docentes, num mapa semântico, que foi construído coletivamente e exposto no quadro da sala (organização da informação). O mapa incluía as seguintes categorias: contexto da guerra, agressor, razões da guerra, consequências da guerra (materiais, humanas, socioemocionais).
Em seguida, os estudantes recordaram o modelo de estrutura de uma carta (Costa, 2014), já trabalhado em aulas anteriores, a saber: o seu contexto de produção (autor, destinatário, objetivo, modalidade e suporte), o tema, estrutura e marcas linguísticas. Quanto à estrutura, os estudantes recordaram que a carta deveria indicar o local e a data, possuir uma fórmula de abertura, uma estrutura do corpo do texto e fórmulas de encerramento, não esquecendo a assinatura do seu remetente. O registo linguístico poderia ser mais formal ou informal, tudo dependendo dos objetivos atribuídos ao texto, do seu destinatário e dos efeitos perlocutivos desejados.
Os estudantes sabiam que deveriam redigir uma carta endereçada a cidadãos da Ucrânia a viver a situação de guerra. Ora, a carta, enquanto género textual específico, supõe uma determinada forma de organização da informação, e o seu conteúdo e adequação ao destinatário exigem a tomada de decisões relevantes, por forma a que o texto consiga alcançar os efeitos perlocutivos desejados.
Com a informação organizada num mapa semântico e com o modelo de estrutura de uma carta presentificado, passou-se à fase seguinte: a textualização da carta, que os estudantes realizaram com grande entusiasmo, até porque o contexto escolar em que estão inseridos apela ao respeito e à inclusão de pessoas das mais diversas culturas. As cartas foram redigidas individualmente, em língua portuguesa. A textualização objetivou a comunicação, mediante a explicitação do conteúdo, da formulação linguística e da articulação linguística (Barbeiro & Pereira, 2007), tendo possibilitado, aos estudantes, de uma forma profunda, a ativação das competências compositiva, ortográfica e gráfica.
Depois de redigidas as cartas, procedeu-se à fase de revisão dos textos escritos. A atividade foi desenvolvida individualmente e os estudantes buscaram, entre outros aspetos, verificar a articulação e conexão das frases entre si, o uso dos conectores, as seleções lexicais, o uso adequado da pontuação. Optámos pela revisão do texto realizada individualmente, porque, enquanto avalia o seu próprio trabalho, o estudante desenvolve a sua consciência sobre o processo de escrita. Este foi o momento em que foram tomadas as decisões acerca da configuração gráfica do texto e foi elaborado um desenho que, de algum modo, pudesse expressar visualmente o conteúdo semântico da carta, até porque, como foram redigidas em língua portuguesa, não era expectável, à partida, que os seus destinatários conhecessem a língua. Esta questão foi, aliás, levantada pelos próprios estudantes e foram eles que, coletivamente, buscaram propostas de solução para mitigar o problema linguístico existente. Uma das soluções passou, como explicitámos, pela associação de um desenho ao texto , e outra pela tradução do conteúdo da carta para língua ucraniana, utilizando a ferramenta informática disponível (Google Tradutor), procedimento apoiado pelas três docentes das disciplinas.
O envio da carta para a Ucrânia, acompanhado do desenho e da tradução do seu conteúdo para língua ucraniana, configurou a última fase do ciclo de escrita, a atribuição de funções ao produto escrito, mostrando aos estudantes que a literacia é uma competência com implicações sociopolíticas que lhes permite agir na pólis.
A análise às cartas: principais linhas ideológicas expressas verbalmente
Das 60 cartas redigidas pelos estudantes, procedeu-se uma amostra aleatória de 20 cartas, analisando e interpretando o seu conteúdo.
De um modo geral, os textos são redigidos dirigidos a uma segunda pessoa do singular (tu) e, em casos mais esporádicos, a um todo coletivo (vós). Alguns textos explicitam linguisticamente um nível de respeito e de estima que o remetente sente pelo destinatário (“meu caro”, “querido senhor”).
As fórmulas de encerramento das cartas variam entre o impessoal (“adeus e boa sorte”, “com os melhores cumprimentos”) e o carinhoso e familiar (“beijinhos”).
Encontramos, igualmente, algumas ideias e palavras-chave comuns em várias cartas, desde o desejo de força e de esperança, ao apoio da escola e de Portugal, entendido como uma comunidade coletiva, para com a Ucrânia sofredora. A Tabela 1 exibe essas principais linhas ideológicas.
Tabela 1 Linhas ideológicas das cartas
Expressão do desejo de paz | A1: “Espero que consigam ter paz e que a guerra acabe rápido.” A2: “(...) tenho fé de que isso acabará em breve e que logo estarás bem e em total segurança.” |
Expressão do desejo de força e de esperança | A3: “(…) muita força, pois é o que é preciso, estamos aqui para tudo”. A4: “(…) vai correr tudo bem, porque muitos países estão a ajudar-te a ti e ao teu país.” A5: “Tens de ter fé, porque, num abrir e fechar de olhos, esta guerra vai acabar.” A6: “(…) continuamos com esperança que isto tudo acabe.” A7: “Vocês são incríveis! (...). Em comparação com a Rússia, o vosso país é pequeno, mas a vossa população é espetacular!” |
Expressão de perda e de lamento | A8: “(…) nós lamentamos o que está a acontecer com vocês. Isto não se deseja a ninguém.” |
Expressão de empatia | A8: “(…) não me consigo imaginar no vosso lugar, a perder a família, a perder a casa.” A2: “Sinta-se abraçado por mim.” |
Apoio de um eu coletivo representado pelo país Portugal | A1: “Nós, aqui, em Portugal, estamos a apoiar-vos.” A1: “Nós estamos a tentar ajudar-vos, dando comida, roupas, medicamentos.” A5: “Espero que esta carta te acalme, porque estamos nisto juntos!” A6: “Estamos todos aqui a torcer por vocês (…)” A7: “A minha escola já vos ajudou com comida, medicamentos, …” |
Simultaneamente, conseguimos notar algumas linhas que diferenciam as cartas e que marcam a identidade da sua autoria, nomeadamente marcações de posições políticas e exposições de opiniões e aspirações. Em jeito de exemplo, um dos estudantes optou por centrar a sua carta na sua opinião histórica e política sobre a guerra, expressando o seu descontentamento com o facto de “em pleno século XXI ainda haver guerra”.
De um modo geral, podemos constatar que os estudantes mobilizaram, nesta atividade, os seus sentimentos e opiniões, aspirando obter uma resposta por parte do destinatário.
A análise às cartas: principais linhas ideológicas expressas por meio do desenho
Para acompanhar a carta, os estudantes desenvolveram um desenho, de caráter livre, de forma a traduzir, de algum modo, o que tinham escrito. O desenho pretendia assegurar que a mensagem expressa verbalmente pudesse ser reconhecida pelo seu destinatário, já que, reiterando elementos de um repertório imagético comum à cultura visual de uma época de conflito militar, em que os papéis de beligerante e de vítima são reconhecidos e partilhados pelas crianças, a tradução do texto poderia ser considerada supletiva. Além disso, o desenho funcionaria, também, como primeiro impacto visual quando a carta fosse aberta.
Conseguimos perceber que, de forma bastante consensual, os estudantes optaram por desenhar a bandeira da Ucrânia como centro dos seus desenhos. Paralelamente, a acompanhar esta bandeira, alguns estudantes decidiram expressar o apoio português com o desenho da bandeira portuguesa em união à bandeira ucraniana. Notamos que os estudantes assumiram a bandeira como símbolo do país, reconhecendo e incorporando a dimensão nacional e, de certo modo, patriota da guerra.
Simultaneamente, a grande maioria dos desenhos apresentou apontamentos que remetem à paz e à esperança, desde o desenho de pombas e corações, o gesto de mãos a rezar, que retrata a fé, e, ainda, duas pessoas a abraçarem-se, remetendo para a união, com a bandeira ucraniana como fundo.
Um dos estudantes evidenciou, no desenho, as bandeiras dos países beligerantes com formato humano e um coração entre ambos com a palavra “paz” escrita em ucraniano (Figura 1).
Fonte: arquivo dos pesquisadores
Outra aluna (Figura 2) desenhou, de um lado, um menino e uma menina dando as mãos, e do outro, a bandeira ucraniana rodeada de pequenos corações encarnados. Estas representações gráficas dialogam profundamente com o texto ao sinalizar expressões de empatia e desejos de força e de esperança num futuro coletivo de paz e de harmonia entre os povos.
Fonte: arquivo dos pesquisadores
Por fim, damos nota de que a grande maioria das ilustrações foi bastante positiva e empática. Ainda assim, de forma mais pontual, alguns estudantes mostraram ideologias políticas, representadas, em especial, pela repressão à utilização de armamento e outro material de guerra e pela ostensiva recusa do responsável pelo país beligerante (Figura 3).
Fonte: arquivo dos pesquisadores.
Este repertório imagético, decorrente de uma cultura visual (Camposet al., 2014) com que os estudantes contactam quotidianamente na comunicação social, exibe as marcas da subjetividade e da ideologia e configura um conjunto de discursos visuais, que constroem posições e que estão inscritos em práticas sociais (Dussel, 2009).
Conclusão
Os estudantes conheciam e dominavam o tema, fosse por influência da informação contínua partilhada nos vários canais de televisão, fosse pelo debate e reflexão levados a cabo nas aulas de História, e envolveram-se emocionalmente na situação. A adesão à escrita da carta, proposta numa turma de 20 estudantes, rapidamente se estendeu a outras turmas, tendo sido redigidas e enviadas 60 cartas, com grande entusiasmo e entrega.
Esta atividade de literacia desenvolvida nas aulas de Português de um 6.º ano de escolaridade permitiu, deste modo, presentificar uma situação real e, num contexto didático, mobilizar os estudantes para uma atividade de escrita que os ajudou a ter consciência de que o domínio das competências de literacia inclui, também, uma componente de transformação sociopolítica (Lankshear et al., 1997). A escrita serve para fazer coisas; é uma poderosa ferramenta que, estando na posse dos cidadãos, pode ajudá-los a participar democraticamente na sociedade e a transformar o mundo (Waxler & Hall, 2011).
Os objetivos enunciados foram, por conseguinte, alcançados: os estudantes aprenderam a utilizar a língua num contexto socialmente relevante e compreenderam que, materializada a língua em produtos de literacia autêntica (a carta), esta pode ter uma dimensão transformadora.