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Da Investigação às Práticas

versão On-line ISSN 2182-1372

Invest. Práticas vol.12 no.2 Lisboa dez. 2022  Epub 28-Set-2022

https://doi.org/10.25757/invep.v12i2.312 

Artigos

Pequenos leitores e grandes desafios no ensino fundamental i: contribuições teóricas para uma prática ressignificada

Small readers and great challenges in elementary education i: theoretical contributions to a resignified practice

Petits lecteurs et grands défis au primaire i : apports théoriques à une pratique resignifiée

Pequeños lectores y grandes desafíos en la educación primaria i: aportes teóricos a una práctica resignificada

Adriana Morais de Sousa Baldoino1 
http://orcid.org/0000-0001-7943-0414

Fani Miranda Tabak1 
http://orcid.org/0000-0002-5647-1077

1Universidade Federal do Triângulo Mineiro-UFTM, Uberaba, Minas Gerais, Brasil


Resumo

O presente artigo discute questões relacionadas com a recepção do texto literário por parte de leitores no Ensino Fundamental I, bem como os desafios presentes nesta etapa. Tais desafios muitas vezes requerem da escola uma alteração dos percursos traçados e das estratégias utilizadas visando a ressignificação das suas práticas. Considerando que algumas abordagens do texto literário em sala de aula muitas vezes prejudicam a interação, o diálogo da criança com o texto, consequentemente prejudicando o exercício da construção de sentidos para a leitura, este artigo discute ainda questões que contribuam com a elaboração de um projeto de leitura viável que favoreça o ressignificar do trabalho com o texto literário e a recepção deste texto com leitores em formação. Sendo o texto literário espaço de interlocução, de diálogo, de troca de ideias, faz-se necessária a superação de práticas que engessem o texto literário com propostas que fecham as múltiplas interpretações sugeridas por ele.

Palavras-chave: Texto literário; Recepção; Formação de leitores; Ressignificação de práticas.

Abstract

This article discusses issues related to the reception of the literary text by readers in Elementary School, as well as the challenges present at this stage. Such challenges often require the school to change the paths traced and the strategies used in order to give new meaning to its practices. Considering that some approaches to the literary text in the classroom often impair the interaction, the child's dialogue with the text, consequently impairing the exercise of constructing meanings for reading, this article also discusses issues that contribute to the development of a viable project for reading that favors the redefinition of the work with the literary text and the reception of this text with readers in training. As the literary text is a space for interlocution, dialogue, and exchange of ideas, it is necessary to overcome practices that engender the literary text with proposals that close the multiple interpretations suggested by it.

Keywords: Literary text; Reception; Reader training; Resignification of practices.

Resumen

Este artículo aborda cuestiones relacionadas con la recepción del texto literario por parte de los lectores de la Enseñanza Básica, así como los desafíos presentes en esta etapa. Tales desafíos requieren muchas veces que la escuela cambie los caminos trazados y las estrategias utilizadas para redefinir sus prácticas. Considerando que algunas aproximaciones al texto literario en el aula a menudo perjudican la interacción, el diálogo del niño con el texto, afectando consecuentemente el ejercicio de la construcción de sentidos para la lectura, este artículo también discute cuestiones que contribuyen a la elaboración de un proyecto de viabilidad de la lectura que favorezca la resignificación de la obra con el texto literario y la recepción de este texto con lectores en formación. Siendo el texto literario un espacio de interlocución, diálogo e intercambio de ideas, es necesario superar las prácticas que asfixian al texto literario con propuestas que cierren las múltiples interpretaciones que éste sugiere.

Palabras clave: Texto literario; Recepción; Formación de lectores; Resignificación de prácticas

Résumé

Cet article traite des enjeux liés à la réception du texte littéraire par les lecteurs de l'école élémentaire, ainsi que des défis présents à cette étape. De tels défis obligent souvent l'école à modifier les chemins tracés et les stratégies utilisées afin de redéfinir ses pratiques. Considérant que certaines approches du texte littéraire en classe nuisent souvent à l'interaction, au dialogue de l'enfant avec le texte, nuisant par conséquent à l'exercice de la construction de sens pour la lecture, cet article aborde également les questions qui contribuent à l'élaboration d'un projet de une lecture qui favorise la resignification de l'œuvre avec le texte littéraire et la réception de ce texte auprès des lecteurs en formation. Puisque le texte littéraire est un espace d'interlocution, de dialogue et d'échange d'idées, il est nécessaire de dépasser les pratiques qui étouffent le texte littéraire par des propositions qui ferment les multiples interprétations suggérées par celui-ci.

Mots-clés : Texte littéraire; Réception; Formation des lecteurs; Re-signification des pratiques

Introdução

Pensar na formação de leitores é um grande desafio em qualquer etapa da escolarização. A possibilidade de uma leitura mais significativa, profunda, que carregue uma ação afetiva é quase uma utopia na mente do professor. Constringido pela organização habitual de atividades bastante repetitivas e por um currículo que está sempre em construção, o professor dialoga com um ideal e sua execução na rotina diária do chão da escola. Indagando sobre os processos de leitura, a aquisição da linguagem, o interesse dos conteúdos, as metodologias, inicia uma escuta que parte de um elemento fundamental em toda a formação escolar: o pequeno leitor. Esse indivíduo, de pequeno porte e grandes sonhos, é matéria fundamental para pensar qualquer ação que dialogue com uma ressignificação da leitura.

Essa escuta, no entanto, envolve primeiramente uma compreensão da própria natureza do texto literário, que não se deixa aprisionar tão facilmente. Em relação à leitura do texto literário, objeto de discussão deste trabalho, a ressignificação envolve vários desafios. Na escola, ações que deveriam convergir para a formação deste pequeno leitor de literatura são muitas vezes permeadas por objetivos que ofuscam o texto e a interação do leitor com tal texto, cerceando possibilidades que favoreçam o diálogo autor/texto/leitor.

Sendo a literatura um espaço para uma relação dialógica que requer a construção de sentidos por parte do leitor, convém atentar nas estratégias utilizadas no Ensino Fundamental I em relação ao contato da criança com o texto literário, observando-se se tais estratégias favorecem interação, diálogo, construção de sentidos para o texto, valorização da subjetividade do leitor que se pretende formar.

Teorias que discutem a importância do leitor muito podem contribuir para direcionar práticas de trabalho com literatura na escola. Tais teorias proporcionam reflexões sobre a importância do leitor no ato da leitura, a importância de tempos favoráveis ao diálogo deste leitor com as obras que lê bem como aos sentidos que ele constrói para os textos.

A contribuição de tais teorias no Ensino Fundamental torna-se ainda mais pertinente por se tratar de um período que recebe o leitor em formação, que necessita ser estimulado a interagir com o texto e ter esta interação valorizada com ações que lhe permitam expor suas impressões sobre a leitura. O leitor que se pretende formar é estimulado na infância e a maneira como se dá seu contato com o texto literário muito contribui para atraí-lo a manter o contato com os livros ou afastá-lo deste contato.

Convém ressaltar a atração que a ficção costuma exercer nas pessoas. As crianças costumam aderir a este universo ficcional próprio da Literatura com muita entrega pela própria necessidade de brincar presente nesta fase. A ludicidade atrai as crianças, o que faz com que o texto literário, que é, por excelência, espaço de jogo, de subjetividade, de fabulação, seja abordado de forma eficiente e proveitosa. Sendo assim, faz-se necessário estabelecer tempos e espaços escolares que promovam o livro literário nas aulas, desvinculando-o de propostas que lhe ofusquem os múltiplos sentidos, cercando-o de atividades que declinem para respostas únicas, pensadas para uma rápida execução sem muita reflexão e sem espaço para o debate que o texto pode proporcionar.

A recepção do pequeno leitor

Considerando questões que merecem atenção quanto à recepção de leitores na fase do Ensino Fundamental I, buscamos partir dos pressupostos teóricos de Jauss (1994) e Iser (1999), cujas teorias consideram a importância do leitor e muito têm contribuído aos estudos na área de formação do leitor literário. Estes teóricos, com suas considerações sobre a recepção do texto, formularam teorias dando visibilidade ao leitor, demonstrando o protagonismo dele e sua importância para a valorização das obras. Este leitor, de acordo com Jauss (1994) e Iser (1999), é a razão de ser de uma obra, é o componente que dá sentido aos textos literários. Ainda que os autores mencionados não se refiram particularmente à criança, mas ao leitor/professor adulto, é possível adquirir por meio de suas ideias importantes reflexões que podem nortear o trabalho com o público infantil, permitindo pensar as práticas educacionais com a literatura escrita para crianças.

No Brasil, as ideias deJauss (1994) eIser (1999) tiveram sua difusão com destaque importante para a professora e pesquisadora Regina Zilberman, pois, graças a ela, a Estética da Recepção entrou na discussão do ensino de literatura no Brasil. Em seu livro, intitulado Estética da Recepção e história da literatura, de 1989, a autora apresenta aos leitores as principais teorias desta corrente.

Segundo Jauss (1994, p. 6), o ensino tradicional de história da literatura “falha [...] na A\Afundamentação do juízo estético que seu objeto - a literatura, enquanto uma forma de arte - demanda”. É possível encontrar, nas palavras do autor, críticas relacionadas com as metodologias que engessam o texto literário, bem como os efeitos destas metodologias para o leitor. O fragmento a seguir esboça alguns dos modos tradicionais de ensino da literatura, que costumeiramente é possível identificar nas salas de aula.

[...] A história da literatura, em sua forma habitual, costuma esquivar- se do perigo de uma enumeração meramente cronológica dos fatos ordenando seu material segundo tendências gerais, gêneros e “outras categorias”, para então, sob tais rubricas, abordar as obras individualmente, em sequência cronológica. A biografia dos autores e a apreciação do conjunto de sua obra surgem aí em passagens aleatórias e digressivas à maneira de um elefante branco. Ou, então, o historiador da literatura ordena seu material de forma unilinear, seguindo a cronologia dos grandes autores e apreciando-os conforme o esquema de “vida e obra”- os autores menores ficam aí a ver navios - (são inseridos nos intervalos entre os grandes), e o próprio desenvolvimento dos gêneros vê-se, assim, inevitavelmente fracionado. Esta última modalidade de história da literatura corresponde sobretudo ao cânone dos autores da Antiguidade clássica; já a primeira encontra-se com maior frequência nas literaturas modernas, que se defrontam com a dificuldade - crescente à medida que se aproximam do presente - de ter de fazer uma seleção dentre uma série de autores e obras cujo conjunto mal se consegue divisar (JAUSS, 1994, p. 6-7).

A análise deste trecho permite inferir que o autor cita métodos até hoje vigentes em muitas salas de aula. Tomando como exemplo o Ensino Médio no Brasil, que tem em seu currículo o ensino de literatura, é possível constatar, por exemplo: estudos da sequência cronológica das obras literárias, enfoque na vida e obra dos autores, ênfase nos cânones que muitas vezes bloqueiam a inclusão de outros autores, sendo que essa inclusão é positiva, porque promove a ampliação do repertório de leituras do estudante por meio da diversidade de obras. Tais métodos tendem a anular o leitor, bem como os efeitos da receção de uma determinada obra nesse leitor. Jauss (1994), ao mesmo tempo que questiona a maneira de abordagem da história da literatura, propõe a construção de uma metodologia pela valorização da presença do leitor, atenta ao que acontece com o leitor na recepção dos textos literários, aos efeitos de sentidos provocados pela obra naquele que o recebe.

Nas palavras de Zilberman (2008ª, p. 92), “Jauss considera que, entre a obra e o leitor, estabelece-se uma relação dialógica”. A autora refere-se à relação que se estabelece por meio de um diálogo durante a leitura, logo, supõe um contexto de interlocução, de conversação. Assim, no ato de leitura do texto literário, autor, obra e leitor dialogam, sendo o leitor para Jauss (1994) um elemento não passivo, cujas reações merecem estar no foco das atenções.

Justamente nesse ponto, como bem lembra Zilberman (2008ª, p. 92), “o diálogo entre a obra e o leitor coloca frente a frente duas histórias, a partir da qual se estabelece uma troca”. Esta troca diz respeito à influência da obra na vida do leitor e vice-versa, ou seja, cada um deixa algo de si, como também leva algo daquele encontro. A obra, mesmo sendo ficção, não deixa de dialogar com a realidade, e o leitor, por meio da bagagem cultural que o acompanha, fará conexões entre o que leu com sua realidade, agregando novas experiências a cada leitura. Por isso, segundo Zilberman (2008ª):

Nenhum leitor fica imune às obras que consome; essas, da sua parte, não são indiferentes às leituras que desencadeiam. Portanto, para Jauss, o leitor constitui um fator ativo que interfere no processo como a literatura circula na sociedade (p. 93).

A interação do leitor contribui para a valorização das obras literárias. Muitos livros se perpetuaram ao longo de séculos permanecendo aos dias atuais por causa do acolhimento que tiveram entre os leitores, do debate que foram capazes de suscitar por meio da história ali contida e, com isso, desencadeando um processo de valorização validado pelos leitores que garantiram sua permanência. É importante destacar, entre os leitores, aqueles que pertencem à classe das academias, com conhecimento para fazerem a crítica literária das obras, contribuindo para dar destaque e repercussão a elas, ou seja, temos leitores em diferentes níveis, cada um, à sua maneira, tem sua importância na relação com o texto literário.

A Estética da Recepção, portanto, investe na ação do leitor, o que nos faz refletir sobre a ação da escola e a necessidade desta em investir também no leitor de literatura, potencializando essas habilidades, criando uma condição propícia para a leitura do texto literário, não apenas para a de outros gêneros. Ao discorrer sobre o papel da literatura na escola, Zilberman (2008b, p. 18) adverte: “O exercício da leitura é o ponto de partida para a aproximação à literatura. A escola dificilmente o promoveu, a não ser quando condicionado a outras tarefas, a maior parte de ordem pragmática”.

A crítica contundente da autora diz respeito ao problema recorrente nas salas de aula que é a utilização da literatura condicionada apenas ao estudo da língua e suas regras, marginalizando o texto literário e a experiência estética que este pode proporcionar. Percebe-se ainda a prevalência de atividades com o objetivo de desenvolver habilidades leitoras para a interação com gêneros textuais úteis para a vida prática cotidiana. No entanto, Zilberman (2008b, p. 16) adverte que se trata de: “[...] conceber a leitura não como o resultado satisfatório do processo de letramento e decodificação de matéria escrita, mas como atividade propiciadora de uma experiência única com o texto literário”.

A concepção de leitura na escola deve voltar-se também para a experiência com o texto literário. Este texto, sendo ficcional, tem no leitor um parceiro fundamental, conforme já discutido aqui, para a interação com o universo fictício contido ali, em que as linguagens se misturam, ou seja, o real presente na linguagem costumeira, cotidiana, vivenciada pelo leitor mescla-se com a ficção que usa outra linguagem para o introduzir em um universo que irá tirá-lo do familiar, oferecendo outras possibilidades que nem sempre ele encontrará no mundo real, pois só existe no mundo imaginário. Segundo Zilberman (2008b):

A leitura acontece quando a imaginação é convocada a trabalhar junto com o intelecto, responsável pelas operações de decodificação e entendimento de um texto ficcional. O resultado é a fruição da obra, sentimento de prazer motivado não apenas pelo arranjo convincente do mundo fictício proposto pelo escritor, mas também pelo estímulo dado ao imaginário do leitor, que assim navega em outras águas, diversas das familiares a que está habituado.

Definida enquanto criação, a obra literária não é produzida sem que outra imaginação seja ativada primeiro: a do escritor. Por isso, coincide com invenção, associa-se à fantasia, parece irreal. De um lado, simula lidar com coisas e pessoas conhecidas; de outro, porém, deixa claro que aquelas nunca tiveram existência concreta, tangível ou mensurável. Reais são apenas as palavras que as enunciam; essas, no entanto, também são impalpáveis (pp. 18-19).

De acordo com a autora, a fruição resulta da ação do intelecto, responsável pela interpretação, somado à imaginação. O leitor se entrega à fruição ao participar do jogo proposto pelo autor. Sendo convencido pelo mundo fictício proposto pelo escritor, aceita a linguagem usada para compor um universo diferente do familiar, quebrando a vivência do real com o qual está habituado. A interpretação proporciona o entendimento do texto enquanto a imaginação permite ao leitor, o que bem falou a autora, “navegar em outras águas, diversas das familiares a que está habituado”.

Continuando a discussão sobre a influência da Estética da Recepção para a formação do leitor, agora com base em proposições do teórico Iser (1999), veremos como seus postulados oferecem bases que podem ser usadas para refletir sobre a relação autor-texto- leitor no campo da literatura infantil. Uma vez que seus estudos se reportam particularmente ao leitor e aos efeitos que o texto provoca neste e ao modo como o ato de leitura incentiva-o a reagir. Os estudos de Iser também ressaltam o impacto que um texto literário é capaz de causar em um receptor e como este reage aos estímulos provocados pelos textos, interagindo e dando sentido ao que lê. Procuramos em suas teorias suportes que possam enriquecer as reflexões deste trabalho, tendo em vista o público a que este se refere.

Em O ato da leitura: uma teoria do efeito estético,Iser (1999) descreve o processo de leitura e o potencial do texto para estimular o leitor a interagir, conferindo a este importante papel no ato da leitura. Segundo Iser (1999, p. 6): “é preciso descrever o processo de leitura como interação dinâmica entre texto e leitor”, não podendo a comunicação (texto) ser “uma rua de mão única do texto para o leitor”.

Um leitor estimulado desde a infância, que foi incentivado a ler, a construir um repertório de leituras, ou seja, conviveu em ambientes - familiar ou escolar - em que o livro estava presente no seu quotidiano, poderá ter menos resistência ao processo de leitura, estará mais propenso a interagir, pelo estímulo que recebeu desde cedo. Por outro lado, um bom estímulo à interação com a leitura é um bom texto, uma narrativa atraente, capaz de fisgar a atenção do leitor pelo enredo surpreendente. Estes e outros fatores costumam mostrar-se eficientes quando se pretende quebrar resistências para a interação com o texto.

De acordo com Iser (1999, p. 6), “a leitura só se torna prazer no momento em que nossa produtividade entra em jogo, ou seja, quando os textos nos oferecem a possibilidade de exercer nossas capacidades”. Tais ideias afastam-se da presença de um leitor passivo, que não sente ou não reage aos estímulos provocados pelo texto, ao contrário, supõem um leitor em atividade, que produz sentidos. Sobre isso, escreveu Iser (1999, p. 97): “Sendo uma atividade guiada pelo texto, a leitura acopla o processamento do texto com o leitor; este, por sua vez, é afetado por tal processo. Gostaria de chamar tal relação recíproca de interação”.

Por meio do excerto citado em que o autor define interação no ato da leitura e destaca que esta afeta o leitor, estabelecendo uma relação de reciprocidade, convém nos preocuparmos em preparar os estudantes para essa relação, dando a eles condições para que interajam e não fiquem à margem diante das leituras que fazem pela carência de habilidades leitoras. Para reagir ao texto, interpretando, fazendo inferências, estabelecendo conexões entre o texto e sua realidade, ou seja, construindo significados, é necessário que o leitor tenha a oportunidade de ampliar suas capacidades leitoras e diversificar seu repertório de leituras por meio do trabalho feito na escola.

Em se tratando de um leitor ainda em construção, ainda em processo de letramento, tais postulados interessam a esta pesquisa uma vez que entre os desafios que permeiam o trabalho com literatura no Ensino fundamental I está o de estimular a interação dinâmica da criança com o texto, permitindo que ela possa ter condições de participar ativamente daquilo que o ato da leitura pressupõe por meio do texto: a construção de sentidos, a comunicação entre autor-texto-leitor, a percepção dos efeitos provocados por essa comunicação e os impactos disso para esse leitor em formação.

É de Iser (1999) a expressão “lugar vazio”, usada para se referir às lacunas que um texto literário possui por meio daquilo que não está explícito ou que sugere ambiguidades, o que exige do leitor o preenchimento para completar os sentidos do texto. Sendo assim, caberá ao leitor pensar possibilidades para construir sentidos para essas indeterminações , visando suprir aquilo que não está explícito no texto. Iser (1999, p. 190) diz que “tirar algo não-dado de sua ausência e dar-lhe presença representa a capacidade da ficção”. A possibilidade de um texto literário apresentar espaços para a ação do leitor no preenchimento dos denominados lugares vazios de certa maneira faz com que reflitamos sobre o que tanto Jauss (1994) quanto Iser (1999) defendem, a importância do leitor, a importância que deve ser dada à recepção e aos efeitos destas sobre ele. Segundo Iser (1999, p.106): “O não-dito de cenas aparentemente triviais e os lugares vazios do diálogo incentivam o leitor a ocupar as lacunas com suas projeções. Ele é levado para dentro dos acontecimentos e estimulado a imaginar o não dito como o que é significado”.

Esta passagem, que ilustra um leitor levado para dentro dos acontecimentos de uma história, sugere a necessidade de este leitor fazer projeções, pensar possibilidades ao adentrar essa história, uma vez que esta carece de sua participação, de sua atividade para a construção de sentidos. Deverá este leitor estar habilitado para fazer projeções do que está implícito. A leitura de textos literários, que por natureza possuem essa incompletude , havendo sempre um não-dito que requer a participação do leitor, muito contribui para a formação deste. Estes lugares vazios dão sua contribuição à medida que o instigam, aguçam sua curiosidade e o desafiam a mobilizar a imaginação, seu repertório de leitura, suas experiências em busca de soluções.

Valorizar o leitor, dando o espaço de que este precisa para progredir no processo de letramento literário, é criar oportunidades de interação dele com o texto literário, na perspectiva dos postulados da Estética da Recepção. É incentivar a sua participação, pois o letramento literário é uma condição alcançada pelo exercício da leitura literária, que, por sua vez, contribui para a formação do leitor que precisa saber agir no ato da leitura, mobilizando conhecimentos, ativando seu repertório cultural, recorrendo à sua visão de mundo para criar sentidos para cada leitura que realiza. É algo que conduz à apropriação, à autonomia do leitor, para a constituição de leitores capazes de ultrapassar as fronteiras superficiais de um texto literário.

A subjetividade no processo de leitura

A perspectiva subjetiva da leitura, embora bastante discutida, não é praticada comumente, uma vez que os próprios planos de aula, pensados para respostas objetivas, dispõem de um tempo que muitas vezes não comporta o exercício da subjetividade dos múltiplos sujeitos que se encontram nas salas de aulas. Sendo diferentes, eles projetam subjetividades diversas, ainda que muitas vezes suas interpretações venham a convergir para um mesmo ponto de vista. Importa-nos aqui a subjetividade e o exercício dela, especialmente na vida do leitor aqui retratado, ancorando-nos em pressupostos de alguns autores que abordaram o tema no livro Leitura subjetiva e ensino de literatura.

O mediador precisa estar atento às tentativas de banir a subjetividade durante as leituras literárias. Geralmente, esse banimento acontece em prol da “correta” apropriação do entendimento do texto, e daquilo que já foi traçado, já foi predefinido no plano de aula pelo mediador. Cuidar para que a subjetividade não seja cerceada é respeitar a importância desta, especialmente para a criança, leitor em formação, que realiza a leitura subjetiva. Primar pelo exercício da subjetividade é respeitar a singularidade de cada um, dentro da diversidade. Não convém querer domesticar o leitor com intervenções rasas que anulam seu direito a uma interferência pessoal e subjetiva do texto literário, que é, por natureza, polissémico e, assim sendo, dá margem a recepções diversas.

Ao interpretar um texto, todo leitor carregará traços da sua individualidade, do seu mundo particular, das suas vivências e do seu contexto cultural e social para suas interpretações. Este sujeito, enquanto leitor, também será único.

O leitor possui papel importante na leitura, seja ela de textos literários ou não; suas reações (subjetividade) estarão presentes durante a leitura e, a partir de sua experiência de vida, ele dará sentido ao que lê, conferindo exclusividade, ou seja, particularizando uma interpretação individual ao texto lido. A importância de estimular essa subjetividade no contexto supõe a participação do indivíduo carregado de subjetividade, que contribui para a produção de sentidos. Sendo a leitura subjetiva importante, nos interessa discutir as relações entre essa subjetividade e a leitura literária realizada pela criança: como acontece, a importância dela no ato da leitura, a importância de estimular essa subjetividade no contexto escolar. Ora, se o leitor é responsável por dar sentido ao texto e ativar as instâncias significativas deste (Jauss, 1994; Iser, 1999), não convém anulá- lo ou marginalizá-lo.

Segundo Resende (2013, p. 7): “Cada um possui sua história de vida, seu repertório de leituras (se alfabetizado), uma trajetória cultural e social, e se insere em uma determinada comunidade. Sendo diferentes os sujeitos, configuram, também, subjetividades múltiplas [...]”. Ora, a autora enfatiza que o facto de cada leitor ser único - com história particular e experiências de vida ligadas a um determinado contexto comunitário, contexto esse que interferiu na formação cultural e social deste leitor - faz com que, naturalmente, ele manifeste considerações singulares a respeito das leituras que realiza. Acrescenta-se ainda que dar liberdade para a subjetividade envolverá o leitor no diálogo com a obra.

Segundo os argumentos de Langlade (2013, p. 30-31): “As reações subjetivas, ao invés de excluir as obras para ‘fora da literatura’, seriam na verdade catalisadoras de leitura que aumentariam o trajeto interpretativo até sua dimensão reflexiva”. A dimensão reflexiva acontece por meio de um envolvimento maior no ato da leitura; envolvido com o texto, o leitor estará mais sensível às mensagens suscitadas pelo enredo; no diálogo com o texto o leitor experimenta reações que despertam para reflexões, para lembranças de si e dos outros, para fazer conexões entre o que lê e suas vivências e entre outras leituras presentes no seu repertório.

Nesse sentido, as emoções, as lembranças suscitadas pela leitura, os sentimentos provocados no leitor e as conexões que este faz com sua vivência e o lido contribuem para provocar uma dimensão mais profunda na leitura, que, sendo mais profunda, longe está de favorecer o distanciamento entre leitor e literatura, ao contrário, o aproxima, arrastando-o para dentro da obra. Ao contrário disso, priorizar a objetividade é fechar o texto, provocando o apagamento do sujeito leitor, bem como das várias possibilidades de leitura, resultantes do olhar e vivência individuais.

Laglande (2013) assevera sobre a participação do leitor como indispensável para que este experimente a sensação de apropriação de uma obra, ou seja, o sentimento de posse, garantido pelo livre exercício da subjetividade. A apropriação lhe confere também a liberdade de atuar sobre o texto, completando lacunas, vivenciando a interação de forma significativa. Conforme pontua Langlade (2013, p. 35), “Se admitirmos que uma obra literária se caracteriza por seu inacabamento, somos levados a pensar que ela só pode realmente existir quando o leitor lhe empresta elementos do seu universo pessoal”. O inacabamento da obra diz respeito às lacunas deixadas pelo autor, espaços que serão preenchidos por meio das intervenções do leitor, pela criação advinda da subjetividade deste, que convocará elementos de sua vivência para resolver os vazios do texto.

Como não basta refletir, ações são necessárias para que a escola cumpra o desafio de formar o leitor autónomo, que interpreta e dá sentido às suas leituras.

Replanejar o ensino de Literatura na escola implica minimizar desafios que vão desde a atenção para com o professor, elemento primordial no processo educativo, a outros fatores, tais como: a) organização de tempos e espaços para o trabalho com leitura literária; b) diversificação do acervo, planejamento e execução de projetos que insiram o texto literário entre as variedades de leituras; c) práticas culturais que permeiam o ambiente escolar, dando enfoque às suas especificidades para que a literatura seja abordada de maneira estética e não utilitária. Esse replanejamento visa a atenção para com a criança, leitor ainda em formação, em desenvolvimento da capacidade cognitiva, portanto, ainda com dificuldades de lidar com a recepção de determinados conteúdos, e visa a criação de oportunidades de aproximação entre alunos e livros através de outros organismos de divulgação do texto literário, como livrarias, feiras, editoras, teatro, encontro com escritores/ilustradores, círculos de leitura.

Sobre a atenção para com o professor, como forma de minimizar os desafios com o trabalho do texto literário, vale lembrar que, não sendo este professor, em primeiro lugar, um leitor, que busca conhecer, inteirar-se a respeito da literatura, dificilmente se disponibilizará para refletir possibilidades de melhorar o trabalho de mediação. Isso faz com que prevaleçam as indagações: Como alguém que não lê, estará munido de argumentos para incentivar a leitura? Como estará motivado para o trabalho como mediador?

Rever posturas metodológicas no ato de ensinar a ler é replanejar e requer compromisso para mediar as demandas que surgem por parte dos alunos após as leituras. Não basta entregar um livro, professor e alunos terão esforços a realizar no intuito de atribuir sentido a esta atividade. Nesse sentido, mediação envolve expectativas ao elaborar aulas; é preciso ao professor saber o que pretende atingir, de forma a ficar claro para o aluno que se espera algo dele.

Leitura literária: Um desafio de planejamento e mediação

O assunto literatura na escola direciona para questões sobre quem promove e como propiciar a leitura literária, envolvendo preocupações sobre a atuação daqueles que se propõem a formar leitores, daí, o debate constante sobre a figura do mediador em torno do qual muitos estudiosos têm dissertado. No Ensino Fundamental I, define-se mediação como o trabalho com atividades de prática de leitura literária para e com a criança, de maneira que a interação entre leitor e texto seja incentivada. Uma boa mediação deve envolver docentes e discentes (sujeitos principais na história da formação de leitores) com a convivência e a propagação da arte literária.

No contexto escolar, o mediador é o professor. É ele o intermediário entre o contato dos alunos com os livros, bem como as questões que envolvem o texto literário e sua recepção pela criança. Esta afirmação fundamenta-se nas palavras de Oliveira (2010,p. 45): “Na escola, quem propõe a fantasia, quem estimula a imaginação da criança, é o professor, quando faz boas mediações oferecendo textos literários com qualidade”. O professor se faz presente na contação de histórias, nas oficinas que promove, na condução da turma à biblioteca, nas rodas de leitura, na criação de espaços que destaquem a presença do livro literário no ambiente escolar, na escuta dos alunos sobre sentimentos e sensações despertados pelos livros lidos e pelas histórias contadas. Por ser esse facilitador do contato aluno/livro, é um propagador da fantasia presente nos livros, como defende a autora citada, sendo assim, a referência que estará na memória da criança, na história de sua trajetória com a literatura.

Para mediar é necessário, entretanto, que o professor seja, em primeiro lugar, leitor, com repertório diversificado, com paixão pelos livros, conhecedor do acervo disponível na escola e tenha em sua trajetória registros de mediações realizadas para que possa, com base nos sucessos e fracassos de suas intervenções, reinventar-se constantemente, pois é nessa reelaboração que as ações se refazem visando superar dificuldades relacionadas ao assunto em questão. Se ele tem uma relação afetiva com a literatura, será mais fácil o trabalho de estimular as crianças a desenvolverem também esta afetividade. Quando o mediador não gosta de ler, torna-se mais difícil o trabalho, conforme já mencionado, comprometendo a eficácia da mediação. Não gostar de ler dificultará o incentivo à leitura, pois um dos melhores argumentos para tal incentivo é a experiência própria.

O mediador precisa estar consciente dos pressupostos necessários à elaboração de bons projetos para o ensino de literatura. Estes pressupostos passam pela necessidade primordial de entendimento da literatura como arte da palavra, um fenómeno que se manifesta em textos que ganham sentido a partir da interferência do leitor, por meio das leituras que este faz.

Como arte da palavra, a literatura dialoga, por meio da ficção, com a realidade que cerca o sujeito, provocando reflexões acerca de si e do mundo. As peculiaridades da linguagem literária requerem um trabalho que valorize as especificidades desta linguagem e as múltiplas interpretações que esta permite, não podendo estar a serviço de uma interpretação única que pretende reforçar uma opinião. Falar de peculiaridades da linguagem literária no campo da literatura infantil é lembrar da ludicidade tão presente em tudo que a criança faz. A brincadeira faz parte na vida do ser humano desde o nascimento, sendo a infância o auge desse gosto pelo lúdico, e brincar com as palavras é uma das especificidades da literatura. A dimensão artística da palavra presente na literatura é um potencial atrativo para a criança e contribui para a formação de sua competência literária.

A literatura em sua função lúdica apresenta-se como uma ponte entre o texto literário e o leitor, facilitando o contato entre ambos, aproximando-os. Na infância, a ludicidade presente no faz-de-conta do texto literário atrai a criança para esta aproximação, além de permitir a participação desta no jogo, não só o autor pode brincar com as palavras, o leitor também é desafiado a participar, explorando o texto e construindo sentidos por meio da interpretação do jogo feito com as palavras. É por meio desta participação que a criança vai percebendo o belo e os múltiplos sentidos contidos nas palavras. De forma lúdica, ela poderá aprender por meio da literatura e enriquecer suas capacidades de compreensão da plurissignificação das palavras.

Este contato da criança com o texto literário favorece o despertar da apreciação literária, a intimidade com o texto e a construção de seu repertório pelo que ouve e lê. O texto literário constitui-se um espaço de possibilidades de aprendizagens para a criança por meio da fantasia, além de mostrar a esta as possibilidades de uso da linguagem, para além do sentido referencial, denotativo. Estes outros sentidos são elementos próprios do texto literário, tais como: a plurissignificação presente em figuras de linguagem que permitem a extrapolação do sentido original de determinadas palavras para outros campos semânticos; a ficcionalidade que permite a vivência com o mundo construído pela fantasia, de modo que possibilita à criança a experiência com as fronteiras entre ficção e realidade, visto trazer para os livros seres, situações e lugares que não existem no mundo real; o uso de recursos visuais, como as ilustrações; e os apelos sensoriais geralmente traduzidos pelas onomatopeias, aliterações, repetições, rimas que produzem sonoridade, musicalidade.

Todos esses recursos constituem o trabalho criativo com a linguagem, devendo ser devidamente explorados para que a criança perceba como a construção de sentidos envolve a interpretação destes recursos no ato da leitura. Quanto mais polissémicos forem os textos, mais desafiadores. Quanto mais desafiadores, mais espaço haverá para a criança construir significados, preencher lacunas, articular informações verbais e não-verbais para solucionar implícitos e construir o entendimento, a interpretação.

É a escrita diferenciada, o trabalho com a palavra e seu aspeto conotativo, o diálogo da ficção com a realidade que constituem o atrativo do texto literário. Explorar esta escrita particular da literatura na infância repercutirá neste leitor no presente e contribuirá para sua formação futura, pois será a base para leituras mais complexas que esta criança fará posteriormente na fase juvenil e adulta. Essa é a diferença entre práticas de leitura literária e letramento literário, ou seja, são as práticas que consolidam o letramento, visto que este se desenvolve em um processo gradativo de leituras, que precisa de ser frequente para ser efetivo, necessita que cada prática envolva situações novas, diferentes, que acrescentem experiências novas, mais complexas, mais desafiadoras em relação a outras experiências já vivenciadas, enriquecendo o percurso do leitor e ampliando seu acervo.

Para que as experiências com a função lúdica da linguagem possam ter êxito, vale lembrar que a qualidade estética e literária dos livros escolhidos para a formação deste leitor tem importância fundamental. Portanto, deve-se primar por livros que tragam enredos capazes de surpreender, de desafiar a capacidade imaginativa, que possam deslumbrar pelas palavras, ilustrações, e outros recursos que provoquem o encantamento e o desejo de prosseguir a leitura, o que nos faz mais uma vez lembrar a importância de mediadores que sejam leitores de literatura, pois, para selecionar é preciso ler. Não sendo o professor um leitor, como procederá no cuidado com a seleção?

Primar pela qualidade estética das obras nos chama para o cuidado como estas são muitas vezes abordadas nos livros didáticos. Ao serem transportadas para estes suportes, as obras são muitas vezes mutiladas, prejudicando a qualidade literária destas. Soares (2011, p. 37) nos adverte quanto a alguns aspetos que configuram a abordagem inadequada das obras literárias na escola, dentre os quais ela destaca a questão da “transferência de uma obra do seu suporte literário para um suporte didático, a página do livro didático”. Segundo a autora, que defende a escolarização adequada da leitura literária:

Ao ser transportado do livro de literatura infantil para o livro didático, o texto tem de sofrer inevitavelmente transformações, já que passa de um suporte para outro: ler diretamente no livro de literatura infantil é relacionar-se com um objeto-livro-de-literatura completamente diferente do objeto livro-didático: são livros com finalidades diferentes, aspecto material diferente, diagramação e ilustrações diferentes, protocolos de leitura diferentes. Se a necessidade de escolarizar torna essas transformações inevitáveis, é, porém necessário que sejam respeitadas as características essenciais da obra literária, que não sejam alterados aqueles aspectos que constituem a literariedade do texto (SOARES, 2011, p. 37).

O texto literário no livro didático é citado de forma recorrente como motivo de preocupação por pesquisadores como Magda Soares, pela descaracterização que este sofre. As transformações citadas pela autora alertam para a diferença entre proporcionar o contato da criança com o livro original e o prejuízo que pode haver quando se opta pela obra fragmentada.

Nesse sentido, a partir da premissa de que o livro didático não se constitui como uma opção única de suporte para as atividades de leitura em geral e também do texto literário, temos a liberdade de fazer escolhas de acordo com a qualidade dos textos presentes nele, utilizando-os ou refutando-os. Assim, não havendo, como mencionou Soares (2011), a preservação das características essenciais da obra, convém lembrar que devemos fazer a opção pelo texto integral, que proporciona o enriquecimento da leitura não apenas por causa do texto verbal e a preservação da literariedade deste, mas por outros recursos que também fazem parte da qualidade estética como: material com que o livro é confecionado, ilustrações, cores, formatos, dentre outros.

Além das especificidades da linguagem literária, outras questões relevantes são: a preocupação com a criança, leitor em formação, que fará leituras em que prevalecerá a subjetividade, pois estes ainda não apresentam maturidade para a leitura proficiente, uma vez que ainda se encontram em fase de ampliação do vocabulário e amadurecimento da linguagem em suas várias formas de expressão; a preocupação em conceber a escola como espaço privilegiado, tendo ciência da necessidade que tem o mediador de incluir, nos tempos e espaços escolares, momentos de leitura literária; a atenção ao poder da literatura para a formação, uma vez que esta, por meio da ficção - uma de suas principais características - dialoga com o mundo real, com a vida e seus dilemas por meio da palavra. Unindo real e imaginário, a literatura, para além do prazer estético, contribui para a formação da consciência crítica do leitor, enriquecendo e dando sentido à própria existência e chamando a atenção para a percepção da existência do outro e suas diferenças.

Tirar o leitor da condição de descodificador de um texto é tirá-lo da mera condição de receptor para uma situação de interação. É levá-lo a conseguir, no ato dialógico que é a leitura, a interação com o texto. O leitor que interage e constrói sentidos por meio da mobilização de saberes já existentes em seu repertório linguístico, cultural, social, etc.

A leitura literária contribui de sobremaneira para a formação desse leitor. Desbravar textos literários, interpretando os vários desdobramentos de sua linguagem, analisando o dito e criando possibilidades para o não dito, dar vazão à imaginação, estabelecer contato com outros mundos, povos e histórias, através da ficção, só são ações possíveis para o leitor que teve a oportunidade de desenvolver competências leitoras que lhe permitam interpretar o mundo presente no texto literário e com ele interagir.

A escola precisa formar esse leitor. Formá-lo significa honrar sua histórica responsabilidade de entregar cidadãos conscientes do dever de utilizar a educação recebida para contribuir com o processo contínuo de construção de uma sociedade mais justa, humana e democrática. É pelas vias da democratização da leitura literária a escola deve se pautar, sabendo que ela em muito contribui para o processo de viabilizar tanto a sociedade mais democrática quanto o próprio sujeito, visto que é capaz de atravessar fronteiras e, através da ficção, trazer à tona os mais variados assuntos.

Clarice Lispector e a criança leitora

Clarice Lispector , que possui uma vasta produção literária, não deixou de se reportar também ao público infantil, embora com um volume de apenas cinco publicações. Apesar de resumido, este é marcante em valor estético, visto que se tratam de histórias capazes de fecundar a imaginação das crianças pela criatividade das narrativas e dos desafios propostos por elas. São livros que dialogam diretamente com a criança leitora, convidando-a para um jogo, desafiando-a aventurar-se em mistérios e soluções de problemas juntamente com personagens que vão do real ao imaginário, o que nos motivou a pensar uma proposta de mediação com as narrativas da referida autora.

Envolver as crianças é a especialidade da escritora, por meio de histórias que estabelecem de imediato uma cumplicidade com o leitor, pois ela usa a linguagem de forma muito sedutora, muito convidativa, assim, vai dialogando com a criança no intuito de conseguir a adesão desta ao jogo. Com muita valorização do poder da oralidade, dos recursos de linguagem de um bom narrador, Clarice Lispector construiu histórias em que estabelece um diálogo direto com a criança receptora, pensando em divertí-la, em arrastá-la para dentro dos livros de maneira que esta deseje participar, queira envolver-se e tomar partido solucionando mistérios, experimentando o dilema dos personagens, aventurando-se em um mundo repleto de imaginação, de fantasia, de sensações.

Pode-se dizer que Clarice Lispector contribui para desenvolver nas crianças a transcendência no ato da leitura, a oportunidade de fabular, de exercitar o poder da criação pela imaginação. Seus livros convidam à experiência com a ficção, não se constituem meras leituras para meras e rasas interpretações, pois seus personagens convidam os leitores à criação, à co-autoria.

O exemplo que consta no Apêndice deste trabalho é resultado de uma proposta de mediação de leitura do livro A vida íntima de Laura, de Clarice Lispector realizada com estudantes do 4º Ano do Ensino Fundamental de uma escola de Belo Horizonte-MG. A proposta na íntegra contém treze momentos distribuídos em 18 aulas que incluíram atividades como rodas de conversa, rodas de leitura, oficinas e registro escrito.

Os vários formatos de atividades visavam criar momentos de escuta das impressões dos estudantes sobre a leitura e tornar o registro de tais impressões mais lúdico de forma que a subjetividade dos leitores pudesse ser expressada. Para encerrar o diálogo proposto ao longo deste artigo resgatamos o quarto e o sexto momento da intervenção, em que os estudantes já haviam realizado a leitura individual do livro.

Note-se que o trabalho desenvolvido considera a opinião dos alunos sobre o que foi lido, mas essa participação será mediada por uma cadeia de atividades orais e escritas que deverão tornar a leitura algo mais enriquecedor. Nessa altura, o jogo de opiniões aponta para uma visão mais aprofundada do que foi mobilizado pela leitura, podendo favorecer o exercício da contemplação. Ou seja, a partir de uma exploração multipla de sentidos do texto posso então exercer o meu posicionamento como interação da leitura.

Considerações finais

Ter ciência de discussões que permeiam a leitura literária, bem como dos benefícios do letramento literário para o aluno e para a sociedade, faz com que a escola se coloque no lugar de planejar e mediar o processo que favoreça o acesso do aluno ao bem cultural que é a literatura, assim como o de promover a equidade no acesso às etapas que contribuem para o letramento dele.

Neste sentido, planejar com a finalidade de formar leitores de literatura é propor ações para aproximar alunos e livros para que o gosto pela leitura se concretize; é criar atividades com o objetivo de desencadear a convivência deles com o universo literário presente na escola e fora dela, fazendo surgir dessa interação um leitor competente. Enquanto que mediar é colocar-se entre, é ser ponte, é ser canal, com o fim principal de compartilhar algo que, sem mediação, seria bem mais difícil de ser alcançado.

Sendo assim, é necessário que mediadores se mobilizem em torno de um plano, para que a escola seja uma porta de acesso à leitura literária e, com isso, cumpra o seu papel na formação de uma comunidade leitora. Ser comunidade leitora não é ler somente na escola, embora seja principalmente através da escola que essa comunidade passa a sentir necessidade de buscar, em outros meios, a convivência com a literatura. Para isso, todos os envolvidos na formação do leitor deverão prepará-lo, de modo que o contato deste com o texto literário não se encerre com sua saída da escola.

É necessário, portanto, que em sua passagem pela escola este aluno tenha aprendido a apreciar a literatura. Se suas experiências com esta foram marcadas mais pela necessidade de ler para a aprovação e para a promoção, dificilmente ele se abrirá para a continuidade de sua trajetória de leitor literário, para além da sala de aula. A experiência fabulatória é um exercício para a vida, constitui-se enquanto alimento fundamental para a formação do indivíduo.

Referências Bibliográficas

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Jauss, H. R. (1994). A história da literatura como provocação à teoria literária. Tradução de Sérgio Tellaroli. Ática. [ Links ]

Langlade, G. (2013). O sujeito leitor, autor da singularidade da obra. In A. Rouxel; G. Langlade; N. L., Rezende (Eds.). Leitura subjetiva e ensino de literatura. Alameda. [ Links ]

Lispector, C. (1999). A vida íntima de Laura. Rocco. [ Links ]

Lispector, C. (2011). A vida íntima de Laura e outros contos. JPA. [ Links ]

Oliveira, A. A. (2010). O professor como Mediador das Leituras Literárias. In A. Paiva, et.al. Literatura: Ensino Fundamental. (Coleção Explorando o Ensino). Ministério da educação, Secretaria de Educação Básica. [ Links ]

Soares, M. (2011) A Escolarização da Literatura Infantil e Juvenil. In A. Evangelista, et. al. Escolarização da Leitura Literária: o jogo do livro infantil e juvenil. Autêntica. [ Links ]

Rezende, N. L. (2013). Apresentação ao leitor. In A. Rouxel; G. Langlade; N. L. Rezende (Eds.). Leitura subjetiva e ensino de literatura. Alameda. [ Links ]

Zilberman, R. (2008a). Recepção e leitura no horizonte da literatura. Rev. Alea, 1(10), 85-97. [ Links ]

Zilberman, R. (2008b). O papel da Literatura na escola. Via Atlântica, 14, 11-22. [ Links ]

APÊNDICE - Plano Parcial de Atividade

QUARTO MOMENTO

Duração: 1 aula.

Objetivos: Perceber a roda de conversa como um recurso de socialização do pensamento e debate de ideias.

Manifestar impressões sobre o texto baseado na leitura individual realizada.

Desenvolver a argumentação.

Desenvolver a prática da exposição de ideias por meio da oralidade.

Exercitar o debate de ideias.

Exercitar a escuta do outro.

Escutar a leitura pela professora.

Visualizar o texto no projetor percebendo este como uma das várias possiblidades de leitura do texto.

DESCRIÇÃO DAS ATIVIDADES

Primeiro passo

Conversa sobre a discussão feita na aula anterior em torno da expressão “vida íntima” com a turma, em comparação com o que a autora relatou sobre o mesmo assunto na primeira página do livro. As considerações feitas pela autora se assemelham com o que foi discutido pelo grupo?

Segundo passo

Roda de conversa sobre a história lida.

Comparações com as impressões registradas pelos alunos, com base apenas nas imagens que receberam previamente à leitura do livro na aula inicial do projeto e as impressões que tiveram após a leitura individual.

Terceiro passo

Projeção do livro em PDF para realização da leitura da história pela professora.

SEXTO MOMENTO

Duração: 1 aula.

Objetivos: Compartilhar opiniões sobre o texto lido.

Perceber os sentidos diversos imaginados para a história.

Desenvolver o exercício da subjetividade.

Promover o exercício da fabulação.

Desenvolver o exercício da escuta.

Exercitar a convivência respeitosa com a opinião do outro.

DESCRIÇÃO DAS ATIVIDADES

Primeiro passo

Jogo de opiniões.

Entrega de fichas com balões para os alunos com as palavras: Concordo e Discordo. Por meio das fichas eles concordarão ou discordarão da autora em relação a algumas questões sobre o texto. A sala será dividida em dois espaços para onde os alunos irão, conforme a opinião da ficha escolhida. A cada pergunta, os alunos que se dirigiram para o espaço da sala destinado aos que concordam ou aos que discordam deverão justificar a escolha feita.

Fichas com trechos da história para o Jogo de opiniões.

Balões:

Fonte imagens nos balões:

Trechos escolhidos para o Jogo de opiniões:

“Laura é bastante burra. Tem gente que acha ela burríssima, mas isto também é exagero: quem conhece bem Laura é que sabe que Laura tem seus pensamentozinhos e sentimentozinhos.”

“Luís passeia o dia inteiro no terreiro entre as galinhas, de peito inchado de vaidade. É porque ele pensa que, sabendo cantar de madrugada, manda na Lua e no Sol.”

Segundo passo

Leitura da primeira ficha para que os alunos sinalizem se concordam ou discordam. Após os alunos se dirigirem para o espaço destinado aos que concordam ou discordam, pedir que justifiquem as escolhas.

Leitura da segunda ficha.

Justificativa dos alunos.

Recebido: 27 de Dezembro de 2021; Aceito: 04 de Fevereiro de 2022

Adriana Morais de Sousa Baldoino Mestre em Letras- Português na Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Especializações em: Linguística Aplicada pela Faculdade Piauiense- FAP, Ensino Lúdico, Cultura e Literatura e Ensino Lúdico, pela Faculdade de Educação São Luís. Professora de Língua Portuguesa nas redes de Ensino dos municípios de Contagem e Belo Horizonte, Estado de Minas Gerais/Brasil. Experiência como Articuladora de Leitura e participação na Seleção de livros literários para os estudantes, ambas na Rede Municipal de Belo Horizonte/MG. Tem Artigo publicado em Revista Nacional. Universidade Federal do Triângulo Mineiro-UFTM, Uberaba, Av. Frei Paulino, 30 - Nossa Sra. da Abadia, Uberaba - MG, 38025-180, Brasil/ adrianamsb0102@gmail.com

Fani Miranda Tabak Professora Associada da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, com ênfase nos estudos de gênero e historiografia, bem como pesquisas que envolvem o trato da educação literária para a formação de jovens leitores e reavaliação dos métodos e conteúdo do ensino literário na escola. Coordenou cursos de Letras da Universidade Federal do Triângulo Mineiro e atualmente é Coordenadora do Grupo de Pesquisa Leitura Literária e Formação de Leitores. Universidade Federal do Triângulo Mineiro-UFTM, Uberaba, Av. Frei Paulino, 30 - Nossa Sra. da Abadia, Uberaba - MG, 38025-180, Brasil / fani.tabak@uftm.edu.br

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