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Da Investigação às Práticas

versão On-line ISSN 2182-1372

Invest. Práticas vol.12 no.2 Lisboa dez. 2022  Epub 28-Set-2022

https://doi.org/10.25757/invep.v12i2.331 

Artigos

Vozes cruzadas: Interação e aprendizagens intergeracionais em tempo de pandemia

Voix croisées: Interaction intergénérationnelle et apprentissage en temps de pandémie

Voces cruzadas: Interacción y aprendizaje intergeneracional en tiempos de pandemia

Crossed voices: Intergenerational interaction and learning in a time of pandemic

1 Centro de Investigação em Educação e Formação do Instituto Politécnico de Setúbal (CiEF)Setubal, Portugal

2 Instituto de História Contemporânea (IHC-NOVA FCSH/IN2PAST)Lisboa, Portugal


Resumo

O projeto idoSOS - intertwined voices, do Centro de Investigação em Educação e Formação da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal (ESE/IPS), decorreu entre setembro de 2020 e outubro de 2021 no âmbito da criação de respostas a problemáticas decorrentes da pandemia originada pelo SARS-Cov-2. Com o objetivo de investigar estratégias intergeracionais eficazes para minorar o isolamento social da população idosa, valorizá-la e reforçar a sua capacidade de enfrentar situações de emergência, procurou-se criar vias para o diálogo e encontro entre jovens e pessoas idosas que resultassem em processos empáticos de apoio e aprendizagem mútuos. Este artigo foca-se nas metodologias e estratégias adotadas, apresentando-se também os resultados do projeto.

Palavras-chave: Empatia; Intergeracionalidade; Pandemia

Abstract

The idoSOS - intertwined voices project, from the Education and Training Research Centre at the Higher School of Education of the Polytechnic Institute of Setúbal (ESE/IPS), took place between September 2020 and October 2021, as part of the creation of responses to issues arising from the SARS-Cov-2 pandemic. With the aim of investigating effective intergenerational strategies to reduce the social isolation of the elderly population, value them and strengthen their ability to cope with emergency situations, we sought to create pathways for dialogue and encounters between young people and the elderly that would result in empathic processes of mutual support and learning. This article focuses on the methodologies and strategies adopted and presents the results of the project.

Keywords: Empathy; Intergenerationality; Pandemic

Resumen

El proyecto idoSOS - intertwined voices, del Centro de Investigación en Educación y Formación de la Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal (ESE-IPS), transcurrido entre septiembre de 2020 y octubre de 2021 en el contexto de generar respuestas sociales à la pandemia por el SARS-Cov-2. Con el objetivo de investigar estrategias intergeneracionales efectivas para paliar el aislamiento social de la población mayor, valorizándola y fortaleciendo su capacidad para enfrentar situaciones de emergencia, se buscaron espacios de diálogo y encuentro entre jóvenes y mayores que resultasen en procesos empáticos y de aprendizaje mutuo. Este artículo se centra en las metodologías y estrategias adoptadas, presentando también los resultados.

Palabras clave: Empatía; Intergeneracionalidad; Pandemia

Résumé

Le projet idoSOS - intertwined voices, du Centre de recherche sur l'éducation et la formation de l'École supérieure d'éducation de l'Institut polytechnique de Setúbal (ESE/IPS), s'est déroulé entre septembre 2020 et octobre 2021, dans le cadre de la création de réponses aux problèmes découlant de la pandémie de SARS-Cov-2. Dans le but d'étudier des stratégies intergénérationnelles efficaces pour réduire l'isolement social des personnes âgées, les valoriser et renforcer leur capacité à faire face aux situations d'urgence, nous avons cherché à créer des canaux de dialogue et de rencontre entre les jeunes et les personnes âgées qui déboucheraient sur des processus empathiques de soutien et d'apprentissage mutuels. Cet article se concentre sur les méthodologies et les stratégies adoptées et présente les résultats du projet.

Mots-clés: Empathie; Intergénérationnalité; Pandémie

Introdução

O projeto idoSOS - Intertwined Voices foi apresentado e apoiado no âmbito de uma candidatura interna do Instituto Politécnico de Setúbal (IPS) com financiamento do Banco Santander relativa a projetos que procurassem dar resposta a questões desencadeadas pela pandemia originada pelo SARS-Cov-2. O problema considerado à data do primeiro confinamento (março de 2020) identificava a população idosa recolhida na residência, inclusivamente quem anteriormente frequentava centros de dia, como entre aquelas em maior risco de isolamento social. No caso das crianças, jovens e adultos, a situação de isolamento foi em parte minimizada pelo recurso a meios digitais de contacto e interação, tal foi menos frequente entre os mais velhos. Esta população, na sua maioria, não possuía nem competências no uso de meios digitais, nem acesso aos mesmos. Assim, os idosos foram, face à pandemia, os mais abalados, quer pelas perspetivas de risco associadas em particular a este vírus, quer pela quebra das suas rotinas diárias e, frequentemente, por um afastamento forçado da restante família. O confinamento residencial, sobretudo em meios rurais ou no centro de grandes cidades, sem redes de suporte familiar e/ou vizinhança e/ou solidariedade ativa, terá acentuado sentimentos de solidão, abandono, ansiedade e debilidade, obrigando as pessoas a uma vida mais sedentária, com consequências negativas no bem-estar e saúde, o que levou a uma diminuição ainda mais acentuada da sua qualidade de vida.

O projeto idoSOS - Intertwined Voices visou estimular as relações intergeracionais entre estudantes do ensino superior e idosos da comunidade, procurando investigar estratégias eficazes para minimizar o sentimento de solidão da população idosa, valorizá-la e reforçar a sua capacidade de enfrentar situações de emergência. Dos jovens participantes - estudantes da licenciatura em Animação e Intervenção Sociocultural (ESE-IPS) que, por sua iniciativa, se inscreveram na bolsa de voluntariado do projeto - era esperado que também desenvolvessem competências transversais, úteis à sua formação. Os participantes idosos foram escolhidos entre utentes de dois centros de dia do concelho de Setúbal, um em pleno centro urbano e outro em meio rural, com os quais foi estabelecida uma parceria. Adiante descreveremos em pormenor a metodologia utilizada tanto ao nível da intervenção no terreno, como ao nível dos meios de monitorização e investigação.

A equipa do projeto incluía quatro docentes da Escola Superior de Educação de Setúbal (ESE/IPS) e um docente da Escola Superior de Ciências Empresariais (ESCE/IPS), à data, em funções como responsável do IPS Solidário. O projeto (assim como as razões que o motivavam) foi elaborado pela equipa em junho de 2020 para vigorar entre setembro e dezembro de 2020, na perspetiva de que a pandemia se atenuaria a partir daí Contudo, tal não aconteceu, pelo que houve dois prolongamentos do projeto. O primeiro deveu-se ao facto de se considerar essencial a continuidade do projeto no terreno (até junho de 2021), visto persistirem as mesmas condições de partida (confinamento dos idosos à área de residência). O segundo prolongamento deveu-se à necessidade de analisar, interpretar os dados e partilhar os resultados obtidos (até dezembro de 2021). Atendendo à dinâmica de trabalho letivo no ensino superior dividido em dois semestres, considerámos a fase I correspondente ao 1º semestre e a fase II ao 2º semestre com a implementação de um grupo de estudantes voluntários, tendo-se conferido, em cada um deles, a possibilidade de continuidade entre semestres a quem o desejasse.

Neste artigo, decorrente da comunicação efetuada no 10º Encontro do CIED - Cidadanias: caminhos, processos e desafios no Século XXI, partilha-se a metodologia seguida, focando as estratégias adotadas nas duas fases e a reflexão sobre a mais-valia das mesmas para os objetivos estipulados no projeto. Analisam-se também os resultados alcançados, usando os dados obtidos através do sistema de monitorização que contemplou quer uma supervisão regular, quer a aplicação de instrumentos específicos ao longo do projeto, designadamente, questionários e entrevistas aos voluntários e aos idosos envolvidos. Procurou-se responder às seguintes questões de partida:

Interação entre o par:

- Quais os aspetos-chave que permitem gerar empatia entre o par?

- Quais os aspetos que geram dificuldades e entraves neste processo?

- Quais os resultados na satisfação e bem-estar de cada elemento do par?

- Quais os efeitos na forma como se vê o outro (e a sua diferença geracional)?

Metodologias/estratégias:

- Que impacto tiveram as estratégias/metodologias que foram utilizadas?

- Quais de entre elas são suscetíveis de replicação?

Formação:

- Que aprendizagens foram realizadas na interação?

- Que repercussões da experiência para a formação profissional dos estudantes?

Enquadramento Teórico

Definiu-se que, do ponto de vista teórico, este seria um enquadramento multifocal assente em três aspetos chave: empatia, intergeracionalidade e memória social e cultural. A empatia, por se apresentar como aspeto-chave da relação entre o par. A intergeracionalidade por ser o motor da relação que se procurou criar para diminuir a situação de isolamento e, por fim, a memória social e cultural por funcionar como ferramenta de valorização das histórias de vida dos idosos e da(s) comunidade(s) que integram (ou integraram) assim como de aprendizagens mútuas.

A empatia é um comportamento pró-social que leva uma pessoa a ajudar outra. Batson, Fultz e Schoenrade (citados por Azevedo et al., 2018) descrevem dois tipos de resposta face às necessidades ou sofrimento do outro: a empatia como resposta humana que leva a um comportamento de ajuda; a angústia da própria pessoa, que desencadeia uma resposta motivada com o fim de diminuir a sua própria angústia. Esta definição pareceu-nos importante atendendo ao contexto de pandemia em que este projeto foi lançado e à ideia de que algumas populações estão mais fragilizadas em situação de emergência. No entanto, a empatia é mais do que um comportamento de ajuda ou de autoajuda; é entendida também como competência socio-emocional, integrando-se, designadamente, no modelo de Inteligência Emocional criado por Goleman (1995; 2010). Significa uma disposição para reconhecer “o outro, todos os outros como uma possível versão de “eu” ... permitindo-nos reconhecer diretamente “os outros” como pessoas como nós” (Zanna, 2015, p.212).

A importância de uma sociedade capaz de criar cidadãos empáticos é tal que, por todo o mundo, ocorrem programas educativos com esse objetivo, pois, como todas as competências associadas não apenas à socialização primária, mas também à secundária, a empatia pode ser desenvolvida. Atendendo à dinâmica de par que se pretendia construir, era fundamental ativar e/ou desenvolver a empatia no seu seio. Conscientes, contudo, das diferenças entre formas de estar, viver, falar e agir que poderiam enformar cada um dos membros deste par, afigurava-se também importante entender como a intergeracionalidade tem de ser atualmente algo a promover enquanto fator de coesão societal. Se naturalmente as relações entre gerações se faziam sobretudo no interior das famílias e através de dinâmicas comunitárias que as podiam juntar (as comemorações, as festas, as feiras…), a sociedade e as comunidades foram perdendo estes lugares naturais de encontro. No seio familiar, a família alargada tem dificuldade em sobreviver num mundo polarizado pelas relações de trabalho e escolarização, com pouco tempo para o lazer comum. Ao mesmo tempo, também a comunicação entre os seus membros foi progressivamente ocorrendo por meio digital e a distância. Assim, os mais velhos da família, a maior parte já desconectados do mundo do trabalho e da escola, têm o tempo que os outros não têm, mas dificuldade em encontrar lugar na família, sobretudo quando residem distantes e/ou são menos capazes e/ou menos disponíveis de cumprir as tarefas que a família consideraria úteis (tais como ir buscar os mais novos à escola). Igualmente, com dificuldade em usar os meios de comunicação digital, são eles os que mais sentem a falha de ligação entre as diferentes gerações. Os momentos de encontro intergeracional no seio da comunidade também foram diminuindo; muitas das festividades e/ou eventos autárquicos (por exemplo, o Março Jovem ou o Mês das Pessoas Idosas) fazem-se em função de destinatários específicos e são construídos em função das necessidades que neles se identificam. A intergeracionalidade informal, vivida naturalmente na família e nas comunidades, tem vindo a ser substituída por um conjunto de intervenções programadas, sobretudo na área da educação não formal, com vista a fomentá-la. A título de exemplo de um conjunto de programas deste tipo, referimos o da Câmara Municipal de Mafra em que se procurara realizar “encontros intergeracionais entre crianças das escolas básicas e idosos institucionalizados do concelho de Mafra [em] … espaços públicos como as bibliotecas públicas e escolares da região” (Filipe, 2015, p.337). Por sua vez, Antunes e Moreira (2018) referem um programa intergeracional que teve a parceria da Universidade do Minho e foi desenvolvido entre um Centro de Atividades de Tempos Livres e um Centro Comunitário, envolvendo 17 idosos e 15 crianças com idades compreendidas entre os 10 e os 14 anos. Neste enquadramento, criaram-se várias oficinas, destacando-se vivências partilhadas no âmbito do património cultural local. Em geral, os objetivos destes programas são efetivamente centrados na ideia de que a “riqueza de saberes que estas pessoas transportam na sua memória pode e deve ser revelada às gerações mais novas” (Filipe, 2015, p.337).

Acontecimentos comunitários como festas populares e religiosas, feiras e bailes constituem elementos estruturantes da memória individual, funcionando, também, como um espaço privilegiado de estruturação das memórias coletivas que “conferem um sentido de pertença às populações atuais … [Simultaneamente, os] acontecimentos cíclicos vividos pelas comunidades refletem as alterações sociais, culturais, políticas e económicas ocorridas, mas também, enquadram a construção social do território” (Alcântara, 2021, p.28-29). Assim, a recolha das memórias sobre acontecimentos coletivos vivenciados pelos séniores que foi implementada no projeto idoSOS visou o estabelecimento dum diálogo intergeracional que potenciasse a valorização das vivências da população idosa e a aprendizagem cultural dos jovens através do contacto com saberes e acontecimentos associados a outros modos e experiências de vida.

Contudo, não temos das relações intergeracionais uma visão unilateral, atentamos que, a ser assim, poderá haver algumas falhas no aproveitamento do potencial que elas contêm. Considerar que apenas os mais jovens aprendem com os mais idosos é também entender que a população idosa não conserva em si capacidade de aprendizagem e de se confrontar com alguns (novos) desafios. A população idosa também pode aprender com os mais jovens, assim como estes se poderão sentir valorizados por terem algo para partilhar. Antunes e Moreira referem a importância da “aprendizagem na terceira idade … [como] um instrumento importante para um envelhecimento bem-sucedido, um fator motivacional que ajuda a dar sentido à vida, levando os idosos a, através dos seus tempos livres, enriquecerem os seus conhecimentos e aumentarem a sua valorização pessoal” (2018, p.28).

Para concluir, há a referir que a OMS definiu idadismo como uma forma de discriminação a combater neste século XXI. Idadismo ocorre sempre que a idade é usada para categorizar e dividir as pessoas, conduzindo a danos, desvantagens e injustiças, corroendo a solidariedade entre gerações (WHO, 2021). Dois exemplos comuns: uma pessoa jovem pode ser ridicularizada por iniciar um movimento político (veja-se o caso de Greta Thunberg) e uma pessoa mais velha pode não ser admitida num emprego pela idade que tem. Assim, não há, quanto a nós, um bom programa intergeracional se não afetar igualmente as representações sociais dominantes sobre a(s) idade(s) e sobre as gerações e, sobretudo, se não diminuir os preconceitos que lhes estão associados. Esta foi a tónica que procurámos considerar neste projeto, considerando a pandemia originada pelo SARS-Cov-2 como condicionante séria, mas também como oportunidade e desafio para a promoção do diálogo entre pessoas de diferentes idades.

Metodologia

A metodologia adotada implicou dois tipos de procedimento. O primeiro, focado nas estratégias de intervenção destinadas a desenvolver o projeto no terreno. Algumas dessas estratégias foram adotadas tanto na fase I como na II, outras apenas numa das fases, em virtude de caraterísticas contextuais desse período ou da avaliação intermédia que ditou continuidade ou abandono. Um segundo procedimento integrou as estratégias de monitorização e de investigação associadas a esta intervenção, com vista a estudá-la e perceber a sua pertinência e interesse, assim como ilações para a continuidade e replicação nesta situação e contexto, mas eventualmente também noutros, com as devidas adaptações.

Estratégias de Intervenção

Formação de pares e contactos telefónicos

Uma das estratégias foi o emparelhamento voluntário/idoso, no que designaremos como Par, a fim de criar e dar continuidade à relação. O conhecimento da identidade de cada idoso, à data do início do projeto, resumia-se a elementos básicos fornecidos por cada Centro de Dia. Assim, o emparelhamento foi feito ao acaso, apenas na fase II tivemos em conta alguns critérios, tais como a continuidade dos elementos do par, sempre que ela foi possível. Em regra, cada estudante voluntário estabeleceu relação com uma pessoa idosa e/ou um casal, contudo, alguns estudantes fizeram-nos com dois, obviamente com o acordo de todas as partes envolvidas. Havia a obrigatoriedade de um contacto telefónico semanal, a gerir entre o par, mas respeitando o mais possível os compromissos de cada um dos elementos. A duração das chamadas era livre, sem tempo máximo nem mínimo para a interação.

Na fase I, houve 13 pares estudantes/idosos, sendo que havia 9 voluntários envolvidos e 13 idosos, pelo que alguns jovens, em função da sua disponibilidade, contactavam com dois idosos. Dos 9 voluntários, três continuaram para a fase II, os outros voluntariaram-se aquando do início desta fase. A maior parte não continuou por ter um estágio curricular muito intenso no 2º semestre (4), enquanto outros não continuaram por não terem tido uma experiência tão bem-sucedida quanto supunham (2). De realçar que o compromisso inicialmente feito era apenas para um semestre e que, desde logo, equacionámos que, em caso de continuação, necessitaríamos de novos voluntários. Na fase II, houve 11 estudantes voluntários, 9 novos e 3 da fase anterior e 14 idosos, a maior parte dos idosos em continuidade. Na segunda fase, verificou-se uma situação muito similar à primeira relativamente ao sucesso da comunicação e da relação estabelecida e à capacidade de recolha de dados.

Fotografia

Neste projeto, o uso da fotografia é uma adaptação do conceito e metodologia do Photovoice. O conceito original desta metodologia (concebida, em 1997, por Caroline Wang e Mary Ann Burris) consiste na utilização de uma técnica específica em que os participantes capturam as suas realidades quotidianas sob a forma de fotografias. Assim, o termo Photovoice encerra em si mesmo a ideia central deste método - dar voz à experiência individual ou coletiva através do registo fotográfico, tratando a imagem visual como poderoso meio de comunicação (Santos, Veiga e Botelho, 2017). De acordo com Campos (2011, p.238), as metodologias visuais, utilizadas em diferentes áreas do saber, têm vindo a afirmar-se como vias credíveis e legítimas de exploração da realidade social e cultural, sendo cada vez mais utilizadas nomeadamente com idosos. Estes processos de trabalho constituem-se como mediadores no seio de uma comunidade, uma vez que permitem identificar problemáticas vigentes, trabalhando-as com os grupos envolvidos e, por último, garantindo que a comunicação dessa mensagem é transmitida e percecionada de forma correta pelo mundo exterior, dando de certa forma voz à comunidade. Normalmente, nestas tipologias de trabalho, existe a necessidade de criar arquivos que guardam documentos que ilustram todo o processo desenvolvido, tais como vídeos e fotografias que serão, posteriormente, oferecidos à comunidade.

Das infindáveis formas de produção imagética salientámos, neste projeto, a utilização da fotografia enquanto meio de expressão e comunicação, que permitiu recordar, captar e eternizar alguns momentos. Outra das potencialidades desta ferramenta diz respeito à sua capacidade de permear a aproximação entre os vários intervenientes. A fotografia foi utilizada de diferentes formas e em diversos momentos do projeto, promovendo: a) o desenvolvimento de reflexões identitárias e relações sociais entre idosos e estudantes; b) a rememoração de memórias passadas; c) a fomentação de diálogos sobre temáticas específicas; d) a análise de imagens; e) possibilidade de captar o momento.

Histórias de vida

Uma das estratégias de intervenção que se constituiu como um dos focos de atuação dos voluntários foi a recolha das histórias de vida e das memórias de acontecimentos comunitários vivenciados pelos idosos. Através deste processo, procurou-se não só valorizar e conhecer o percurso de vida de cada indivíduo, mas, também, reconstruir episódios, conteúdos e relatos que refletissem memórias associadas a vivências coletivas passadas. Assim, procurou-se valorizar a pessoa idosa, estimular a sua memória pessoal e, a partir da partilha de informações e sentimentos, potenciar a comunicação intergeracional e a relação afetiva de cada Par. Tanto na fase I como na II procedeu-se à recolha de memórias relativas a acontecimentos comunitários vivenciados durante a infância e juventude dos idosos, fixados pelos estudantes de acordo com a metodologia da história oral, porque os acontecimentos cíclicos, como festas, feiras ou bailes constituem-se como elementos estruturantes da memória individual e coletiva e o momento de questionamento funciona, também, como espaço privilegiado de partilha e diálogo. Procurou-se, assim, a valorização e o estímulo intelectual do elemento mais velho do par, enquanto se potenciou a aprendizagem, a empatia, o saber ouvir e a competência para a manutenção de diálogos vivos, por parte dos mais novos.

As histórias de vida recolhidas serviram de inspiração documental para os estudantes voluntários, mas também estudantes não voluntários com as quais estas foram partilhadas, serviram igualmente para construir pequenas curtas de teatro, mobilizando as linguagens artísticas no interior do projeto, como seguidamente referiremos. As curtas de teatro foram depois, em múltiplas formas, “devolvidas” aos próprios idosos, como forma de valorizar as suas memórias.

Linguagens artísticas - a música e o teatro

A mobilização de linguagens artísticas, nomeadamente a música e o teatro, enquanto meios potenciadores de expressão, comunicação e partilha pessoal e afetiva, sociocultural e identitária, foi também parte integrante do conjunto de estratégias de intervenção. No que se refere à componente musical, e tendo como indutor os universos sonoros significativos e as preferências musicais partilhadas pelos idosos com o voluntário do respetivo Par, foi-se delineando uma banda sonora associada a cada pessoa idosa. Com base numa seleção dessas bandas sonoras, e da conveniente compatibilização com as potenciais competências musicais dos voluntários envolvidos, definiu-se o reportório final e preparou-se uma performance para partilhar nas visitas porta-a-porta ou em momentos de encontro. Procedimentos muito similares aos referidos foram adotados relativamente à componente teatral, designadamente no que se refere aos processos de recolha, registo, seleção e preparação conducentes à ulterior interpretação performativa. A diferença registou-se, particularmente, nos conteúdos que, neste caso, incidiram sobre episódios, histórias, memórias, momentos, temáticas relevantes na história de vida dos idosos. Assim, as canções e as curtas teatrais foram articuladas numa performance global a partilhar presencialmente com os idosos.

Visitas porta-a-porta

Inicialmente previmos a realização de visitas porta-a-porta com todo o grupo de voluntários numa periodicidade mensal. Considerámos que este era um veículo fundamental para estreitar relações estabelecidas a distância e alargar as relações preferenciais com um estudante a um grupo maior. Contudo, as restrições da pandemia impuseram-se na fase I do projeto, tornando praticamente impossível a ideia da visita de grande grupo e com a periodicidade equacionada. Ainda assim, conseguiu-se organizar pequenos grupos e foram realizadas performances musicais e teatrais à porta da residência dos idosos que mostraram essa disponibilidade. Houve idosos que não quiseram ser visitados, por motivos vários, entre eles o receio de um potencial contágio. Nos meios urbanos, o silêncio ainda era maior do que no meio rural e o eclodir da música podia ser mal compreendido; houve, neste sentido, cuidados redobrados. Na fase II, com a chegada da primavera e os números de infetados por SARS-Cov-2 a diminuírem, atenuaram-se um pouco as condicionantes das visitas, mas acentuaram-se as dificuldades de preparação em grupo. Por esta razão, implementou-se outro tipo de estratégia de visita, a visita individual entre o par. Deste modo, diversificaram-se as hipóteses: podia ser uma visita à porta (ou à janela), uma saída comum ao exterior (um passeio no jardim, uma ida à biblioteca ou ao café) ou até uma visita no interior da habitação, se desejada pela pessoa idosa (e cumprindo todas as normas de segurança).

As linguagens artísticas foram mobilizadas também de um outro modo, através da preparação de pequenas apresentações teatrais - “Curtas de Teatro «Histórias de vida e memórias coletivas - património imaterial em cena»” no âmbito da Unidade Curricular (UC) de Animação, Promoção e Património Cultural (2º ano da licenciatura de Animação e Intervenção Sociocultural, ESE/IPS), desta vez baseadas sobretudo nos acontecimentos culturais e comunitários relatados pelos idosos. Estas curtas de teatro foram no final do ano letivo apresentadas a alguns dos idosos envolvidos no projeto, aquando de uma visita à ESE/IPS.

Estratégias de monitorização e investigação

A supervisão organizou-se em torno de reuniões on-line com todos os voluntários, com periodicidade semanal na fase I e quinzenal na fase II. Estas reuniões tinham três objetivos: a) perceber se a interação voluntário-idoso ocorria efetivamente; b) efetuar sugestões em torno dessa interação e de alguns tópicos de conversa e atividades (por exemplo, relativamente à pandemia), criando suporte técnico e científico; c) ouvir os voluntários relativamente às suas questões, dúvidas e sentimentos experimentados, disponibilizando suporte emocional.

Foram construídos dois questionários sobre conceções intergeracionais, um destinado aos jovens e outro aos idosos, aplicados no início da fase I. Houve algumas dificuldades na obtenção de respostas junto dos idosos, quer porque ainda não conheciam bem os voluntários, quer pelo teor das perguntas. Assim, dada a dificuldade de aplicação de questionários a distância à população idosa, abandonámos este tipo de instrumento daí em diante e substituímo-lo por uma pequena entrevista (via telefone), com vista a obter informação que permitisse responder às questões de partida. Relativamente aos jovens voluntários, o questionário foi aplicado também no começo da fase II.

Em termos de resultados da aplicação destes instrumentos, não obstante os esforços feitos, não foi possível obter as respostas da totalidade do universo de respondentes. Relativamente aos idosos participantes, em cada fase, só foi possível obter metade das respostas. No que diz respeito aos voluntários, na fase I, todos responderam e na fase II responderam 9 dos 12 voluntários. Estes 3 casos de ausência de resposta por parte de voluntários enquadram situações distintas: um deles efetivamente não participou no projeto, pois nunca chegou a construir um par relacional com o idoso que lhe foi atribuído; relativamente aos outros dois jovens houve uma interação pouco satisfatória entre os elementos do par.

Para além das respostas aos questionários iniciais, temos também dados das reuniões de supervisão, questionários finais aplicados em ambas as fases do projeto, entrevistas de balanço final e testemunhos pessoais dos estudantes, gravados de forma autónoma de acordo com sugestão feita pelos próprios.

São os dados obtidos a partir da aplicação destes instrumentos, tratados de forma quantitativa ou qualitativa, que nos permitem equacionar os resultados em torno das questões de partida.

Resultados

A relação entre o par

Elementos facilitadores

Consideramos que um elemento básico de sucesso, mas ainda assim não garantido, foi a existência de um telemóvel próprio por parte do idoso, com possibilidade de utilização autónoma. Alguns dos idosos tinham apenas telefone fixo ou acesso a um telemóvel de um familiar, o que constituiu um obstáculo importante à comunicação, levando ao fracasso da interação de alguns pares.

Entre os elementos facilitadores mais pertinentes, está a capacidade de o elemento mais velho dar um feedback positivo ao mais jovem sobre a interação. Nas entrevistas, os idosos mencionam aspetos tais como: «Tu dás-me atenção.»; «Tu fazes-me companhia»; «Isto é uma alegria para mim»; «Sabes falar comigo, gente dessa é muito importante para mim». É de frisar que este feedback valorizador da comunicação não se expressou apenas na entrevista final, foi ocorrendo ao longo do período de contacto. Outro elemento facilitador foi, sem dúvida, a disponibilidade para o contacto presencial por parte dos idosos, assim como haver essa vontade manifesta por parte dos voluntários, quer para as visitas porta-a-porta coletivas, quer para as individuais. A disponibilidade do idoso evidenciava confiança no jovem, surgindo nas entrevistas de ambos os elementos do par como fator importante para desbloquear ou aprofundar a interação.

Aprendizagens mútuas

Os idosos são mais capazes de reconhecer que aprendem algo com os jovens do que reconhecer que eles próprios lhes ensinam algo. Alguns desvalorizam-se a si próprios: «Eu nem sei para mim, quanto mais para ensinar as pessoas mais instruídas que eu»; «Ensinou-me você mais a mim do que eu a si, aliás acho que não lhe ensinei nada, mas você sim»; «Eu estou sempre fechada em casa, não devo ter ensinado nada». Foi preciso por vezes a ajuda dos próprios jovens para identificarem o que têm para transmitir, como referiu uma das voluntárias, afirmando que lembrou à idosa o que tinha aprendido com ela sobre plantas e flores. Quando identificam conhecimentos que procuraram legar aos jovens, é sobretudo a experiência de vida que sobressai, sob a forma de «dei-te conselhos»; «ensinei-te a dar a volta por cima». Nessa experiência são muitas vezes os valores que sobressaem: «Ensinei-te a ser uma menina boa e doce, pelo menos comigo és». Decorrente da faceta de registo relativo ao património cultural desenvolvida no projeto, a transmissão de conhecimento relativo a canções, danças ou receitas surge como algo positivamente considerado. Relativamente ao que eles próprios aprenderam com os jovens sobressai, sem dúvida, que a interação permitiu valorizá-los enquanto pessoas: «Sentia-me útil e valorizada»; «Sim, afinal os jovens gostam de ouvir os de mais idade, e que nem todos são impacientes connosco.»; «Aprendi que vocês são alegres e gostam de falar com pessoas de idade». Duas das idosas têm frases exemplares relativamente a esta dinâmica intergeracional: «Com as pessoas de mais idade elas estão sempre a chorar.»; «Contigo são conversas mais espertas, conversas malucas».

As respostas ao questionário (sobretudo as da fase II) revelam por parte dos estudantes algumas aprendizagens bastantes impactantes para o seu desenvolvimento e enriquecimento pessoal, tais como a perceção de que «a partilha funciona para ambos os lados, não podemos esperar que uma pessoa partilhe um pouco de si se não partilhamos um pouco de nós com ela» e que a «capacidade de escuta» foi uma das competências mais desenvolvidas.

Aspetos em comum

Apesar da diferença etária, há afinidades que se descobrem, o que leva a crer que a idade não representa um fosso entre as pessoas, se existir disponibilidade para escutar o outro. Os aspetos que mais se encontram em comum entre jovens e idosos dizem respeito à proximidade cultural: «Tu és alentejano, eu também sou»; a traços de personalidade: «É impossível não notar na boa disposição que ambas temos, uma maneira de encarar a vida com um sorriso»; à experiência e forma de lidar com a vida: «Ambas somos trabalhadoras».

Conceções sobre o outro

Destacamos em particular duas das questões inseridas no questionário sobre conceções intergeracionais. A primeira procurava compreender se os jovens considerariam positivo ter uma pessoa idosa na chefia de um projeto e/ou organização na qual trabalhassem e vice-versa. A segunda, a quantidade de amigos idosos que os jovens tinham. Em relação à liderança de uma pessoa idosa, a maior parte dos jovens, tanto na fase I como II manifesta uma posição neutra. Ainda assim, apenas um dos jovens, em cada uma das fases, considera essa possibilidade como sendo positiva, enquanto há dois a consideraram como negativa. Relativamente à segunda questão, a maior parte dos estudantes, tanto na fase I como II, afirma ter entre 2 a 5 pessoas idosas como amigas, o que representa o ponto intermédio da escala. Estes posicionamentos evidenciam que não há propriamente um corte intergeracional, o que aliás seria de esperar de um conjunto de jovens que se voluntariam para um projeto deste tipo. Contudo, a escala intermédia evidencia também que há aspetos a melhorar na compreensão e valorização intergeracional. No questionário final da fase II, um dos voluntários chega mesmo a referir que percebeu ao longo do seu envolvimento no projeto «que amizades entre um jovem e um idoso podem existir».

Dificuldades

Supõe-se muitas vezes que, por se sentir sozinha e fragilizada, a população idosa está ávida de comunicação, sendo, como tal, fácil estabelecer a interação com uma população jovem. Não foi exatamente isso que encontrámos neste projeto. É verdade que as condições de comunicação a distância constituem por si só uma importante limitação, tanto assim que os jovens, em ambas as fases do projeto, marcaram como maior dificuldade «não conhecer presencialmente o/a idoso/a». Acrescem como dificuldades significativas «sentir empatia» e «compreender a forma como falavam». Outras dificuldades menos significativas, mas ainda assim que nos parecem de acautelar em projetos intergeracionais, dizem respeito à linguagem usada por uns e outros, exigindo esforço de compreensão de ambas as partes. Nem sempre foi fácil encontrar temáticas que constituíssem motivo de afinidade ou de interesse para uns e outros sobre assuntos igualmente importantes para ambos - o caso mais paradigmático foi o interesse por História de uma idosa, sendo algo que a jovem, de todo, não apreciava. Alguns dos jovens demonstraram ainda alguma insegurança, bem expressa na frase: «O medo de não ser o que os idosos queriam/precisavam para se sentirem melhor». Os problemas emocionais, de saúde física ou mental (do próprio ou do cônjuge) ou de natureza cognitiva (demências) dos idosos, foram, nos casos de abandono do projeto por parte do par, o motivo principal. Mas também houve pelo menos um caso, em cada uma das fases, admitido por um dos elementos do par, de falta de empatia.

Impacto das estratégias de intervenção utilizadas

Interação entre o par e os contactos telefónicos

Embora não seja o meio de comunicação ideal, o contacto telefónico regular revelou-se o meio mais adequado para estabelecer uma relação jovem-idoso em contexto pandémico, não obstante as limitações da ausência de imagem (esta mais limitadora para os jovens, a ela habituados). A questão da regularidade é o aspeto mais decisivo, pois nem sempre se consegue voltar a estabelecer a comunicação após uma pausa, seja ela causada por um ou o outro elemento do par. A duração das chamadas foi muito variável (de 2 minutos a 1 hora) e, apesar de importante, tem um impacto menor face à regularidade.

O uso da fotografia

Ao longo da fase I, esta ferramenta de trabalho foi utilizada como indutor com duas finalidades distintas. Em primeiro lugar, a fotografia surge como um meio facilitador do processo de aproximação e conhecimento do par, dando origem a uma primeira conversa. Na impossibilidade de haver um primeiro contacto presencial entre os membros participantes do projeto, devido a uma série de restrições no âmbito pandémico, foi enviada para cada idoso uma fotografia autoral com o retrato do estudante com quem este iria contactar posteriormente. Apesar de considerarmos que este primeiro contacto teria sido mais profícuo em formato presencial para o estabelecimento de um laço afetivo inicial, a fotografia foi assumida como um ponto positivo por um dos participantes: «estou a falar e tenho uma cara para associar à voz». Relativamente a este último tópico, podemos destacar o testemunho de um idoso que, referindo-se ao estudante, indica: «A tua foto está ao pé das da minha família».

A sequência pela qual se usou a fotografia foi pensada na própria metodologia do projeto. Inicialmente, usaram-se as fotografias que os próprios idosos selecionaram dos seus álbuns para situar a sua história de vida e através dela criarem uma ligação aos estudantes. Posteriormente, foram selecionadas fotografias face ao que se conheceu dos interesses, saberes e necessidades de cada idoso, como por exemplo referências relativamente a músicas, atividades de lazer, etc. Por último, foram usadas fotografias de eventos ligados à comunidade, nomeadamente bailes e festas comunitárias. No decorrer do projeto, a fotografia constituiu-se ainda como uma forma de registo que serviu para a proliferação de imagens nas redes sociais e meios de comunicação, permitindo dar visibilidade às comunidades e às suas problemáticas. Por último, assumimos a fotografia como forma de documentação e registo dos diversos momentos de interação entre os estudantes e os idosos intervenientes no projeto, permitindo, mais tarde, dialogar com o passado e com as memórias. Como refere Kossoy, “o fato se dilui no instante em que é registado: o fato é efémero, a sua memória, contudo, permanece - pela fotografia” (Kossoy, 2007, p.42).

Esta forma de registo visual assim como o audiovisual foi utilizada pelos docentes e estudantes, na tentativa de captar a riqueza dos diversos momentos, como por exemplo durante as visitas presenciais realizadas porta-a-porta.

As visitas porta-a-porta

Em ambas as fases, embora com diferentes modalidades (coletivas na fase I, individuais na fase II), as visitas foram um elemento essencial para consolidar a relação estabelecida entre os elementos do par através dos contactos telefónicos. A população idosa profere afirmações tais como: «foi a partir da visita que as nossas conversas se tornaram mais interessantes e consistentes»; «daí em diante ficámos amigas»; «foi bom ver-te e conhecer-te assim pessoalmente». Tanto a dimensão da visita em grupo, como as individuais são valorizadas por razão idêntica: permitirem estreitar a relação. Contudo, são também percecionados os elementos que as tornaram diferentes, evidenciado que, no futuro, ambas podem ter lugar. Assim, relativamente à visita de grupo, são valorizadas as linguagens artísticas usadas como fator de coesão: «gostei de terem cantado e tocado para mim»; «podem fazer mais umas 2 ou 3. … passámos ali um momento bom». No que diz respeito às visitas individuais, é realçada a conversa, o momento de convívio, bem retratado na afirmação: «gostei de todos os minutos, desde a chegada à hora do lanche. Foi muito agradável mesmo, e uma tarde bem passada». Os motivos que impediram as visitas centram-no nos receios face à interação causados pela pandemia e por uma reserva imposta pelas famílias, por motivos que por vezes não foram simples de apurar, mas obviamente sempre respeitados.

O teatro e a música como instrumentos de identidade e partilha

As narrativas orais recolhidas são fontes documentais preciosas para a perceção do património cultural imaterial das comunidades das pessoas entrevistadas. Esta foi, portanto, uma oportunidade de dispor de um património oral único e de, a partir dele, compor um todo narrativo que deu eco às diferenças e afinidades que se revelam nas relações e contactos intergeracionais, tais como algumas práticas tão distantes da realidade juvenil atual, como o ter «de pedir às mães das moças para dançar com elas … [e] se a mãe não gostasse dizia logo à menina que não podia dançar», ou vivências com paralelos na atualidade, como «quando uma pessoa vinha à feira, vinha à cidade e havia muito movimento» ou «as barracas … tinham loiças muito bonitas, mas eu só podia ver, não tinha dinheiro para as comprar».

Como já anteriormente referimos, na fase II do projeto, implementou-se uma parceria com a UC "Animação e Promoção do Património Cultural" da licenciatura em Animação e Intervenção Sociocultural (ESE/IPS; docentes responsáveis Ana Alcântara e José Gil; ano letivo 2020-21). A partir da leitura das histórias de vida e memórias recolhidas pelos voluntários junto dos idosos, os estudantes desta UC escreveram e construíram pequenas apresentações teatrais, as Curtas de Teatro anteriormente referidas. O questionário preenchido pelos voluntários no final da fase II revela que esta metodologia teve uma avaliação francamente positiva. A apresentação das Curtas de Teatro no anfiteatro da ESE/IPS foi, igualmente, um momento muito valorizado pelos idosos, não só por verem algumas das suas vivências e memórias transportas para o palco, mas também pelo momento de convívio e de visita à «escola do meu jovem».

Bem-estar e melhoria da situação de solidão e/ou isolamento

A interação com um jovem teve dois efeitos para minorar o efeito de sofrimento causado pela situação pandémica. O primeiro efeito é claramente referido como informativo, de clarificação face ao conjunto de notícias a que os idosos se encontravam expostos, sem terem capacidade de as descodificar inteiramente e/ou precisando de algum tipo de explicitação. Na fase I, as restrições e os cuidados a ter para evitar a infeção foram o tópico principal: «conversamos sobre os cuidados que devemos a ter, sobre evitar saídas desnecessárias e quando necessárias usar as máscaras, manter distanciamento, evitar tocar em objetos e superfícies». Na fase II, a vacinação foi o tópico mais abordado entre os elementos do par: «a menina até me ajudou com a situação da vacinação». O segundo efeito foi de natureza mais emocional, refletindo-se na ajuda em lidar com o próprio sofrimento causado pelo confinamento. Neste âmbito, são relatados sentimentos de maior alegria, calma e confiança: «… o telefonema a alegrou»; «ajudou a combater a tristeza». O que a relação lhes traz em termos de bem-estar está muito focado nos termos companhia, conversa e alegria: «gostei da companhia, da maluqueira, das risadas e dos choros»; «o que eu gostei foi sempre da tua companhia e de irmos falando todas as semanas, deixava-me mais feliz»; «quando a gente conversa com uma pessoa que gosta, é só conversa de animação, é a realidade... posso estar à vontade». Relativamente ao que os jovens evidenciam de satisfação, tanto na fase I como na II, os questionários mostram como significativas as ideias de «sentir-me socialmente útil» e «sentir que contribuí para o meu desenvolvimento pessoal», respetivamente. Embora o mote da pandemia tenha sido gerador do projeto, a apreciação feita de «poder contribuir para minorar os efeitos da pandemia COVID19» ocupa o terceiro lugar, com mais jovens a referi-lo na fase II do que na fase I.

Que razões, face aos resultados positivos mencionados para a melhoria do bem-estar global, para as desistências por parte dos idosos ou de pares? Os idosos identificam, nas entrevistas, sobretudo aspetos positivos, talvez se coibam, pela sua generosidade ou timidez de focar os menos bons. Apenas através das instituições foi possível perceber as razões para as desistências, sendo, por ordem de importância, a incapacidade do par em estabelecer relações de empatia e as dificuldades mais instrumentais relativas ao equipamento telefónicos e/ou aos horários de contacto.

As estratégias de monitorização e investigação

A monitorização, sob a forma de supervisão da equipa docente, do trabalho dos jovens voluntários e entre a coordenadora e os centros de dia foi essencial para que o projeto chegasse a bom termo. Ela tem obviamente um aspeto de controlo do que é desenvolvido no terreno, essencial quando se trata de um projeto contratualizado como este, mas também de suporte científico e emocional. Neste aspeto, o que aprendemos é que não obstante o voluntariado se poder desenvolver como um ato isolado, a sua integração no seio de uma equipa em que o diálogo ocorre com frequência e tem características de ajuda mútua é essencial. Não consideramos absolutamente fundamental que sejam docentes a coordenar como aqui ocorreu, até poderá ser interpares, mas é necessário que seja uma liderança reconhecida e com capacidade de agregação. Notámos, aliás, que uma menor disponibilidade da coordenação ou pausa maior na interação eram fatores que causavam menor coesão e potencialmente atenuariam o fator de compromisso, se não em relação a todos os jovens (quando a relação com o idoso/a já era muito forte), mas pelo menos para alguns deles.

Efeitos na formação dos estudantes

Os jovens estudantes de Animação e Intervenção Sociocultural (ESE/IPS), nas duas fases, assinalam no questionário (questão de resposta aberta) competências eminentemente ligadas à sua futura profissão e à melhoria da «capacidade de relacionamento com um público idoso e capacidade de refletir em atividades para serem aplicadas» foram, também, expressas em frases como: «desenvolvimento de novas competências na área de atividades adaptadas ao público sénior»; «aprendi a lidar melhor com idosos»; «aprendi a saber respeitar e dar o espaço que cada pessoa precisa, sem me tornar “invasiva”»; «aprendi que os idosos se sentem mais confortáveis a falar de si e que dessa maneira desenvolvem mais a conversa». Quando assinalam os aspetos que mais gostaram no projeto (questão de resposta fechada): efetuar uma experiência que está ligada à minha futura profissão tem uma percentagem significativa de respostas (aparece em terceiro lugar). Mas referem também o seu próprio desenvolvimento pessoal e cívico e até cultural. Em termos pessoais, indicam a melhoria das suas capacidades de escuta, de partilha e de altruísmo. Em termos cívicos, pontuam a responsabilidade e o compromisso nas palavras que usam. E, em termos culturais, as tradições, sobretudo ligadas ao território de Setúbal e do Alentejo, a importância do «passar conhecimento de geração para geração» foi bastante valorizada assim como a aquisição de conhecimentos relativos a outros países («aprendi imensas tradições de diversos países, que eu não conhecia») e aos hábitos e histórias de vida das pessoas idosas.

Considerações finais

Consideramos que o projeto idoSOS - intertwined voices possibilitou entender aspetos importantes da relação intergeracional, criando lastro para futuros projetos nesta área. Constitui também uma confirmação relativamente à necessidade da intergeracionalidade como fator de coesão social, independentemente da situação social e económica da população sénior, pois a maior parte experimenta sentimentos de solidão inerentes ao seu ciclo humano de vida. Para os jovens, é uma oportunidade de desenvolvimento e enriquecimento pessoal e social. As metodologias usadas evidenciaram todas um potencial muito interessante para o fomento das relações intergeracionais, ainda que no contexto em que foram utilizadas, se tivessem colocado algumas limitações. Por exemplo, a troca de fotografias é condicionada por questões económicas quando o suporte é a sua impressão em papel e, por questões de acesso ao digital por parte dos idosos, quando é esse o meio escolhido. O projeto demonstrou ainda que o contacto com jovens pode ser um importante impulso à menorização do sofrimento da população idosa em situações de emergência, tais como as que vivemos durante a pandemia de SARS-COV-2.

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Recebido: 01 de Junho de 2022; Aceito: 08 de Setembro de 2022

Carla Cibele Figueiredo Doutorada em Educação, especialidade de Administração e Políticas Educativas (IE/UL, 2011), Mestre em Relações Interculturais (UA, 2004), licenciada em Psicologia, variante Educacional (1996) e bacharel em Magistério Primário (1987). É atualmente docente adjunta da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal e co-coordenadora do Centro de Investigação em Educação e Formação (CIEF/IPS) de que é membro fundador. Centro de Investigação em Educação e Formação do Instituto Politécnico de Setúbal Campus do IPS - Estefanilha, 2910-761 Setúbal /carla.cibele@ese.ips.pt

Ana Alcântara Doutorada em História, especialidade História Contemporânea (FCSH/NOVA, Lisboa, 2019), mestre em Ciência e Sistemas de Informação Geográfica (ISEGI/NOVA, 2011) e licenciada em História variante Arqueologia (FCSH/NOVA, 2004). É atualmente docente adjunta convidada da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal (ESE-IPS), investigadora integrada do Instituto de História Contemporânea (IHC-NOVA FCSH/IN2PAST) e investigadora efetiva do Centro de Investigação em Educação e Formação (CiEF/IPS). Centro de Investigação em Educação e Formação do Instituto Politécnico de Setúbal Campus do IPS - Estefanilha, 2910-761 Setúbal /ana.alcantara@ese.ips.pt

Filipe Fialho É docente Assistente do Departamento de Artes na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal (ESE-IPS), desde 1997. No domínio da sua formação académico-profissional concluiu os cursos de: Formação Avançada em Avaliação em Educação (IE-UL, 2012), Mestrado em Educação com especialização em Formação Pessoal e Social (FC-UL, 2007), Licenciatura em Professores de Educação Musical do Ensino Básico (ESE-IPS, 1998), Bacharelato em Professores do 1º Ciclo do Ensino Básico (UE, 1994) e Técnico de Gestão e Promoção Turística, especialização em Entidades Públicas (CEDRA, 1991). É investigador efetivo do Centro de Investigação em Educação e Formação (CIEF/IPS). Centro de Investigação em Educação e Formação do Instituto Politécnico de Setúbal Campus do IPS - Estefanilha, 2910-761 Setúbal / filipe.fialho@ese.ips.pt

Joana Matos Doutorada em Belas-Artes, especialidade de Ciências da Arte (FBAUL, 2020), mestrado e licenciatura na área da Educação Visual e Tecnológica (ESE-IPS, 2008, 2010). Atualmente é professora adjunta convidada da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal (ESE-IPS) e da Escola Superior de Educação do Politécnico de Lisboa, investigadora integrada do Centro de Estudos e de Investigação em Belas-Artes (FBAUL/CIEBA) e investigadora efetiva do Centro de Investigação em Educação e Formação (CIEF/IPS). Centro de Investigação em Educação e Formação do Instituto Politécnico de Setúbal Campus do IPS - Estefanilha, 2910-761 Setúbal / joana.isabel.matos@ese.ips.pt

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