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Da Investigação às Práticas

versão On-line ISSN 2182-1372

Invest. Práticas vol.13 no.2 Lisboa dez. 2023  Epub 22-Set-2023

https://doi.org/10.25757/invep.v13i2.350 

Artigos

Por uma investigação científica útil e ao serviço das pessoas: Contributos da investigação ação participativa para o exercício de uma democracia participada

For an useful and people-oriented scientific investigation: Contributions of participatory action research to the practice of participatory democrac

Por una investigación científica útil y al servicio de las personas: Contribuciones de la investigación-acción participativa al ejercicio de una democracia participativa

Pour une recherche scientifique utile et au service des hommes: Apports de la recherche-action participative à l’exercice d’une démocratie participative

1 Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade de Coimbra

2 Escola Superior de Educação, Instituto Politécnico do Porto


Resumo

A constante evolução, descobertas e transformações de um mundo globalizado, influenciam os paradigmas que norteiam o/a investigador/a na forma de fazer e conceber a ciência. No campo sócioeducacional, mais do que uma procura explicativa dos fenómenos e da realidade social, a investigação almeja uma descrição e compreensão dos mesmos para neles se atuar. Neste contexto, emergem e ganham sentido as investigações de natureza qualitativa, que privilegiam uma produção de conhecimento comprometida com a transformação e emancipação das pessoas e das comunidades. De entre as metodologias que integram este tipo de pesquisa, destacamos a investigação ação participativa, a qual será o objeto de análise e reflexão do presente artigo. Esta metodologia destaca-se pelo facto de valorizar a voz das pessoas - sobretudo daquelas que pertencem a grupos minoritários e marginalizados -, incentivando-as a se envolverem e a participarem na transformação e melhoria das suas vidas, e na determinação dos acontecimentos sociais que as afetam.

Palavras-chave: Educação; Paradigma qualitativo; Investigação ação participativa; Marginalização

Abstract

The constant evolution, discoveries and transformations of a globalized world influence the paradigms that guide the researcher in the way of doing and conceiving science. In the socio-educational field, more than an explanatory search for phenomena and social reality, the investigation aims at a description and understanding of them to act. In this context, investigations of a qualitative nature emerge and gain meaning, which privilege a production of knowledge committed to the transformation and emancipation of people. Among the methodologies that integrate this type of research, we highlight the participatory action investigation, which will be the object of analysis and reflection in this article. This methodology stands out for the fact that it values the voice of people - especially those who belong to minorities and marginalized groups - and encourages them to get involved and participate in the transformation and improvement of their lives, and in determining the social events that affect them.

Keywords: Education; Qualitative paradigm; Participatory action research; Marginalization

Resumen

La constante evolución, descubrimientos y transformaciones de un mundo globalizado influyen en los paradigmas que guían al investigador en la forma de hacer y concebir la ciencia. En el ámbito socioeducativo, más que una búsqueda explicativa de los fenómenos y la realidad social, la investigación tiene como objetivo una descripción y comprensión de los mismos para actuar sobre ellos. En este contexto, emergen y adquieren sentido investigaciones cualitativas, que privilegian una producción de conocimiento comprometido con la transformación y emancipación de las personas y las comunidades. Entre las metodologías que integran este tipo de investigación, destacamos la investigación-acción participativa, que será objeto de análisis y reflexión de este artículo. Esta metodología destaca por valorar la voz de las personas -especialmente aquellas que pertenecen a grupos minoritarios y marginados-, alentándolas a involucrarse y participar en la transformación y mejora de sus vidas, y en la determinación de los eventos sociales que les afectan.

Palabras clave: Educación; Paradigma cualitativo; Investigación acción participativa; Marginación

Résumé

L’évolution, les découvertes et les transformations constantes d’un monde globalisé influencent les paradigmes qui guident le chercheur dans sa façon de faire et de concevoir la science. Dans le domaine socio-éducatif, plus qu’une recherche explicative des phénomènes et de la réalité sociale, la recherche vise à les décrire et à les comprendre afin d’agir sur eux. Dans ce contexte, des enquêtes qualitatives émergent et prennent tout leur sens, qui privilégient une production de savoirs engagés dans la transformation et l’émancipation des personnes et des communautés. Parmi les méthodologies qui intègrent ce type de recherche, nous soulignons l’investigation de l’action participative, qui fera l’objet d’analyse et de réflexion de cet article. Cette méthodologie se distingue par le fait qu’elle valorise la voix des personnes - en particulier celles qui appartiennent à des groupes minoritaires et marginalisés -, les encourageant à s’impliquer et à participer à la transformation et à l’amélioration de leur vie, ainsi qu’à la détermination des événements sociaux qui les concernent.

Mots-clés: Éducation; Paradigme qualitatif; Recherche-action participative; Marginalisation

Introdução

As realidades e os fenómenos humanos e sociais ao serem, na sua essência, de origem subjetiva e dinâmica, não se deixam captar pela objetividade. E a objetividade não é o ambicionado em determinado tipo de investigações, as de âmbito mais qualitativo. Nestas, mais do que se almejar um conhecimento-sobre, ambiciona-se a construção de um conhecimento-com (Santos, 2018) que permita aceder às perspetivas, desejos, inquietações das pessoas da realidade social investigada. Investiga-se para se conhecer. Conhece-se para se intervir. Intervém-se para se mudar. Uma mudança que é sentida como necessária e desejada pelas pessoas e pelas realidades investigadas.

Na investigação qualitativa as pessoas investigadas são vistas como protagonistas. Protagonistas com voz, capazes de participarem e de se comprometerem com a melhoria da sua realidade, independentemente das suas características, modos de vida, posição social, capacidade financeira, entre outras. Todos/as podem e devem ser considerados/as e escutados/as, sendo valorizadas e tidas em conta as suas perspetivas (Amado & Cardoso, 2014). Os fenómenos são estudados de forma holística e observados nos contextos em que acontecem.

Uma investigação desta natureza privilegia uma produção de conhecimento comprometida com a transformação e a emancipação das pessoas, sobretudo daquelas pertencentes a grupos marginalizados. Ao invés de ser usada como instrumento de controlo e de condicionamento da ação destes grupos, procura contribuir para ultrapassar as condições que criam e perpetuam a opressão dos mesmos (Amado, 2011; Coutinho, 2013, 2014; Elias & Scotson, 2000). A investigação ação participativa, em particular, é uma metodologia que concorre neste sentido, ao estimular, nas pessoas, um olhar critico sobre a sua própria realidade, e ao valorizar as suas competências para autodeterminar o curso da sua vida e para gerir os condicionamentos (internos e externos) que enfrentam (Padilla, 2017).

Tendo por base os princípios enunciados, o presente artigo pretende debruçar-se sobre as vicissitudes de uma investigação de natureza qualitativa, sobretudo em realidades que se encontram à margem da sociedade, em que as condições e as relações de poder põem tantas vezes em causa os direitos fundamentais das (ou de muitas) pessoas.

Na primeira parte, serão analisados os pressupostos em que assenta a investigação qualitativa, assim como a sua validade e fiabilidade. Na segunda, focar-nos-emos nos princípios, fundamentos e compromissos da investigação ação participativa (IAP). De seguida, será narrada uma investigação concreta realizada numa unidade residencial, com pessoas realojadas de bairros sociais. Conclui-se este trabalho com as considerações finais e as referências bibliográficas utilizadas.

A investigação de natureza qualitativa: pressupostos, validade e fiabilidade

À medida que o mundo evolui, se complexifica e se transforma, novos problemas e necessidades emergem, e novas descobertas acontecem, o que influencia o modo de se fazer e conceber a ciência.

O paradigma positivista, que dominou durante largo tempo a Ciência, defendia e defende uma separação entre as ciências sociais e naturais, já que considera(va) que só estas últimas poderiam aceder ao verdadeiro conhecimento científico. Assente na noção de verdade estanque, o único conhecimento considerado válido seria aquele em que a realidade estudada poderia ser observada, quantificada e compartimentada (Santos, 1990, 2020). Ora, se conhecer significa quantificar, tudo o que é subjetivo, e por isso não mensurável, seria cientificamente irrelevante. Se assim fosse, muitos aspetos da realidade ficariam por conhecer. Por se reconhecerem as limitações deste modo de investigar, emergiu um novo paradigma, designado de sócio critico e pós-moderno, o qual advoga a importância de se compreender, mais do que mensurar (Santos, 1990, 2020). Investigar, neste paradigma, exige a assunção de uma postura crítica, reflexiva e não dogmática dos fenómenos. O conhecimento que se constrói procura ser agregador das várias realidades e subjetividades existentes (Amado, 2014), e tem em conta o dinamismo natural do comportamento humano, da própria sociedade e dos fenómenos que nela ocorrem. A procura da certeza, da verdade absoluta, não é mais ambicionada (Dal Rosso et al., 2002).

No paradigma sócio crítico e pós-moderno, a investigação é indissociável da ação transformadora. Em educação e intervenção social, em particular, investiga-se em prol do desenvolvimento das pessoas, das suas realidades e da sociedade (e.g., Amado, 2014; Baptista, 2012; Santos & Bertão, 2020; Timóteo & Bertão, 2012; Veiga & Antunes, 2016), o que exige uma visão holística e reflexiva, assente em princípios éticos, e uma constante construção e desconstrução metódica dos fenómenos que possibilitem a sua compreensão (Amado, 2014; Serrano, 2004). Pela complexidade dos fenómenos do campo educativo e social, não raras vezes se realizam investigações mistas - qualitativas e quantitativas -, que permitem que os mesmos sejam compreendidos e analisados de forma mais rigorosa, profunda e integral (Serrano, 2004).

Um dos princípios basilares deste paradigma é que o conhecimento precisa de ser colocado ao serviço das pessoas e de ser construído com elas, e não para elas. Neste sentido, a ciência deve ser democratizada, ao invés de ser colocada ao serviço dos interesses dos centros de poder económico, social e/ou político (Elias & Scotson, 2000; Santos, 2020). Assim sendo, no processo investigativo, o/a investigador/a não pode deixar de refletir acerca das relações de poder em jogo, tomando consciência se está a favorecer a autonomização e o empoderamento das pessoas que investiga ou o seu controlo e condicionamento (Amado, 2014; Baptista, 2012). O uso abusivo do poder por parte do/a investigador/a, muitas vezes de forma inconsciente por deficit ausência de uma reflexividade constante, pode obstaculizar o desenvolvimento dos/as investigados/as e ser mesmo uma forma de violência e opressão, que cria injustiças e que reforça e reitera a posição à margem em que muitos/as se colocam e são colocados/as.

As questões ligadas à validade e à fiabilidade dos estudos qualitativos são de suma importância, porque sem rigor a investigação é desprovida de sentido e, consequentemente, deixa de ser útil (Coutinho, 2013). Todavia, porque os processos investigados são complexos e exigem não raras vezes uma análise in loco, um enquadramento baseado em padrões investigativos pré-concebidos não se coaduna nestas formas de investigar (Amado, 2014; Dal Rosso et al., 2002; Lopes, 2008). Uma investigação desta natureza privilegia processos indutivos. Investiga-se e conhece-se a realidade através da ação, numa relação de proximidade, e os significados que se acedem e se constroem são sempre intersubjetivos (Ferreira & Bertão, 2017; Serrano, 2004; Veiga et al., 2017). As inconsistências são presença constante em pesquisas qualitativas e não devem ser depreciadas, mas relevadas, pois permitem uma análise mais rica da realidade, evidenciando-a em toda a sua complexidade, diferença e especificidade (Coutinho, 2013).

Para se conhecer com rigor o objeto em estudo, há que o analisar detalhadamente no seu território e nas suas circunstâncias, e só posteriormente se poderão mobilizar conceitos e teorias que enquadrem a análise feita (Amado et al., 2014; Santos, 1990, 2020). Depreende-se assim que as pesquisas qualitativas dependem da experiência e da prática, não se centrando em conceitos determinísticos, e são aprimorados através de constantes reformulações, à medida que decorre a investigação em contextos específicos (Coutinho, 2013; Amado & Vieira, 2011, citado por Amado & Vieira, 2014). Neste sentido, será importante que a comunidade científica, ao ler as descrições do/a investigador/a - as quais devem ser o mais minuciosas e fidedignas possíveis -, consiga perceber como foi construído o conhecimento e como aconteceu o processo dedutivo. Neste processo, a evidência da triangulação das fontes e dos métodos de recolha de dados torna-se necessária (Amado & Vieira, 2014; Coutinho, 2013).

A neutralidade, em investigações desta natureza, será alcançável se as conclusões da investigação se centrarem nas diferentes perspetivas e vozes dos/as participantes, tornando-os/as visíveis, e não nas ideias e conceitos predefinidos pelo/a investigador/a. Não obstante, pela relação intrincada, investigado/a e investigador/a são coautores e corresponsáveis pelo processo de conhecimento e de mudança, sendo que é expectável que este último adote uma conduta permanentemente reflexiva, sensível e flexível, conseguindo um distanciamento ótimo - entre a proximidade equilibrada e a completa emersão na realidade -, sem o qual os resultados da investigação poderão ser colocados em causa (Amado & Vieira, 2014; Coutinho, 2013; Fernandes & Marchi, 2020).

Investigação ação participativa (IAP): princípios, fundamentos e compromissos

A IAP procura desfazer dualidades. Dualidade entre teoria e prática, entre ação e investigação, investigador/a e investigados/as. Considera o processo de produção de conhecimento cíclico e a ação surge sempre aliada à reflexão, numa relação complementar, que permite ir aprimorando os métodos, os dados e as interpretações (Amado & Cardoso, 2014; Coutinho et al., 2009; Lima, 2003; Padilla, 2017). Neste tipo de investigação, as pessoas são também investigadoras e colaboram com o/a investigador/a externo numa relação horizontal, para uma melhor compreensão da sua realidade, do que será necessário melhorar e dos recursos que podem utilizar para alcançarem as mudanças necessárias a uma melhor vivência pessoal e coletiva. Envolvendo-se as pessoas no processo de conhecimento e de transformação da sua realidade, estas passam a ser percecionadas como “autores do seu próprio destino e, como tal, protagonistas privilegiados de um viver em comum”, não sendo assumidas como “meros recursos, nem meros beneficiários” (Carvalho & Baptista, 2004, p. 52). Assim sendo, a participação e a implicação constituem-se pedras basilares nesta metodologia, garantindo o acesso a um conhecimento mais específico e validado da realidade, assim como a uma intervenção mais ajustada e efetiva em prol de uma mudança significativa na vida das pessoas e/ou das comunidades (Ansara, 2012; Coutinho, 2013; Lima, 2003; Santos, 1990).

A íntima relação entre investigação e ação faz deste um processo educativo, na medida em que a produção de conhecimento é realizada de um modo colaborativo e participativo, nos contextos de vida das pessoas, o que permite que a intervenção subsequente seja direcionada para necessidades e problemas concretos das suas realidades, transformando-as (Amado & Cardoso, 2014; Ferreira & Bertão, 2017; Padilla, 2017; Veiga et al., 2017). A permanente articulação entre teoria e prática permite que os/as atores/as sociais se tornem mais capazes de produzir conhecimentos e novos entendimentos acerca dos fenómenos, e potencia o desenvolvimento de capacidades, designadamente de reflexão crítica sobre a sua realidade, o que potenciará o seu desenvolvimento e mudança (Lima, 2003). Vários são os exemplos de projetos de educação e intervenção social, desenvolvidos com populações e em contextos variados, que contribuíram para a transformação das realidades dos/as participantes. Mobilizando a IAP, nestes projetos foi possível que as vozes de pessoas com dificuldade intelectual e desenvolvimental (e.g., Veiga et al., 2013), com doença mental (e.g., Ferreira & Bertão, 2017), em situação de sem-abrigo (e.g., Ferreira & Veiga, 2014), pessoas idosas (e.g., Miranda, 2014; Veiga et al., 2017), crianças e jovens institucionalizados em contextos variados (e.g., Ferreira & Pessanha, 2014; Oliveira, 2014; Pereira & Pessanha, 2014; Veiga & Antunes, 2016; Veiga & Cardoso, 2011), adultos em Centros Novas Oportunidades (Mendes et al., 2014), famílias beneficiárias de Rendimento Social de Inserção (Santos & Bertão, 2020), entre outros, se tivessem tornado (mais) audíveis. A sua participação foi estimulada e valorizada, assistiu-se à emergência de novos e mais profundos relacionamentos, e sobretudo à assunção de um papel mais ativo na determinação da sua realidade pessoal e coletiva. De referir que neste processo de investigação, em que todas as pessoas investigadas são vistas como protagonistas, não faz sentido a existência de um nivelamento entre quem terá maior ou menor competência para ser considerado e escutado. Todas as perspetivas são válidas, assim como as do/a investigador/a externo/a. É nesta senda que todos podem e têm o direito de contribuir - nas possibilidades de cada um -, para a melhoria das suas vidas, sendo este princípio que alimenta a força transformadora desta investigação (Reis, 2008, Amado & Cardoso, 2014; Padilla, 2017; Silva et al., 2018).

Ainda que possa ser mobilizada nos mais diversos contextos, importa refletir sobre as ou algumas das limitações e desafios que a IAP apresenta. Para que haja efeitos positivos, é imperativo o investimento por parte de todas as partes envolvidas. Tal como alerta Cornish et al. (2023), participar implica tempo e dedicação. Dificuldades de diversa ordem como debilitadas condições de saúde ou deficiência, dos próprios ou de outros que tenham ao seu cuidado, dificultam a participação, pela necessidade de focar o pouco tempo que têm à sobrevivência, da melhor forma possível (Cornish et al., 2023). Alguns contextos institucionais podem evidenciar resistências a uma investigação participativa, que exige tempos, ritmos e compromissos muitas vezes distintos dos observados ou mesmo almejados pelos mesmos. “Fazer para” será sempre mais rápido do que “fazer com”. Além disso, o modo como o poder é distribuído e exercido é distinto nas duas abordagens. Também os tempos em que os projetos decorrem podem representar um desafio. Por exemplo, no âmbito académico ou no caso de projetos financiados, o seu término está definido a priori. Esta condição pode limitar as intervenções ou impedir a sua conclusão efetiva, sendo por isso necessário ter sempre em conta o tempo de que se dispõe, para não deixar as pessoas desamparadas quando a intervenção cessa.

A IAP pretende que as pessoas desenvolvam um olhar critico sobre a sua própria realidade, que acreditem na sua capacidade de procurar ativamente soluções para os seus problemas, que se consigam libertar da opressão e dos condicionamentos externos, e que possam autodeterminar o curso da sua vida. Sustentada nestes pressupostos e princípios, numa relação de poder equitativa entre investigador/a e investigados/as, este modo de investigar contribui para a emancipação dos sujeitos e das comunidades, assim como para a diminuição das desigualdades e injustiças sociais. Uma vez que os sujeitos são detentores de um saber prático e os investigadores/as são detentores/as de um saber científico considera-se que se está, neste tipo de investigação, perante um investigador coletivo. Como afirma Lima (2003, p. 323), “o conhecimento constrói-se em diálogo, e essa co autorização não é por isso pertença de um ator, mas de um investigador coletivo que foi edificando com os contributos analisados”. E é na articulação destes dois saberes que o conhecimento pode ser edificado e a intervenção pode ser perspetivada.

Como se sabe, muitas são as pessoas colocadas à margem, por diversas e distintas razões. Estar à margem, ser marginalizado, significa não aceder a muitos bens, serviços e direitos, já que estes são-lhes (muitas vezes) vedados (Bordenave, 1994; Ferreira & Bertão, 2017; Santos & Bertão, 2020). Os sistemas de interesses, centrados no setor económico e político, contribuem para a sistemática renovação das desigualdades, na medida em que a monopolização de riqueza e privilégios é conseguida, não raras vezes, com o sacrifício de quem pouco ou nada tem. O Estado, ao apoiar ou não questionar estes sistemas de interesses, contribui para a limitação da possibilidade de participação de quem pouco tem e de quem “pouco é” (Santos, 2020). Ora, o exercício de poder é muito mais do que adquirir e/ou gerir bens e ganhos materiais. É um fim social em si mesmo, atendendo ao facto de que, ser humano, significa participar na determinação dos acontecimentos sociais que afetam a própria vida, sendo algo aprendido e não inato (Park, 1992; Bordenave, 1994; Elias & Scotson, 2000). O ato de participar é o que permite influir nas dinâmicas da sociedade, nas tomadas de decisões, no usufruto de benefícios e de direitos.

Participar com qualidade consegue-se quando as pessoas são capazes de conhecer e refletir sobre as suas realidades, quando conseguem lidar com os desafios com que são confrontadas, quando se respeitam a si e aos outros, quando antecipam problemas e consequências (Bordenave, 1994). Participar implica também pertencer, poder argumentar e ser ouvido, encetar novos relacionamentos, ter novas experiências, e viver de forma genuína e digna. Todavia, muitas destas pessoas que estão à margem não conseguem participar, porque não conseguem acompanhar o ritmo alucinante de um mundo globalizado que busca expansão, ganho e crescimento a níveis vários, porque estão focadas em satisfazer necessidades básicas, sem o conseguirem muitas das vezes; outras, porque têm uma cultura diferente, alguma incapacidade física e/ou psicológica, uma dada idade, fenótipo ou género, entre tantas outras razões que as condicionam e limitam a níveis vários. Por não se enquadrarem nos cânones considerados normais e ideais, o espaço de participação é-lhes vedado ou reduzido, não sendo a sua voz ouvida nos processos de tomada de decisão, mesmo quando as situações e as decisões lhes dizem respeito e as afetem diretamente.

Efetivamente, as políticas sociais são tomadas, na generalidade, sem consultar as pessoas a que se destinam, o que leva a que muitas intervenções aconteçam sem terem em conta as necessidades específicas das mesmas, as suas prioridades, os seus recursos e potencialidades. As intervenções acabam por ser, muitas das vezes, práticas assistencialistas que promovem a dependência, em vez de contribuírem para a capacitação e emancipação destas pessoas. Na IAP, o/a investigador/a, valorizando a voz e dando palco a estas populações marginalizadas, procura, com as mesmas, encontrar respostas que não sejam condescendentes ou paternalistas, mas que considerem e afirmem os seus desejos e reivindicações, que permitam a sua afirmação enquanto sujeitos e cidadãos plenos, que devem poder aceder e usufruir dos direitos mais universais.

A IAP ambiciona uma sociedade mais justa, em que as pessoas, seja qual for a sua condição, não sejam divididas entre quem pode e quem não pode; em que possam ser por inteiro e tenham poder para decidir e participar em tudo o que as envolva. Como muitas das desigualdades são estruturais, esta investigação pretende apoiar atividades organizadas por pessoas que caminham nas margens, trazendo-as para o centro, ajudando-as na sua capacitação, a fim de adquirirem as ferramentas e os recursos (externos/internos) que lhes permitam romper com os grilhões que as condicionam na sua luta por uma vida mais justa e plena. A participação destas pessoas acontece ou pode acontecer na sua comunidade - a chamada micro participação -, sendo esta uma preparação que as capacita para uma participação em maior escala, a macro participação (Bordenave, 1994). Todavia, só se houver um maior equilíbrio nas relações de poder é que as pessoas se poderão olhar e encarar como iguais, trabalhando em conjunto para um bem comum. É por este motivo que a IAP rompe com a hierarquização habitual entre investigador/a (especialista) e investigados/as (beneficiários/as de uma intervenção). As transformações que decorrem da IAP são profundas e duradouras, pois decorrem das perspetivas e dos olhares dos/as participantes, os/as quais vão ganhando consciência dos seus direitos e como os podem reivindicar, o que lhes permite elevarem-se ao lugar que lhes é democraticamente devido (Padilla, 2017).

No que se refere à validade desta investigação, a proximidade do/a investigador/a aos contextos pode, se não houver a devida reflexão, comprometer a objetividade, e colocar em causa o caminho e resultados da investigação. Outro aspeto prende-se com a possível generalização dos resultados deste tipo de investigações. Por serem tão específicas e detalhadas, é preciso reconhecer esta impossibilidade, na medida em que cada intervenção é única (Amado & Cardoso, 2014). Ainda assim, podem ser importantes fontes de reflexão e inspiração para futuras investigações.

Um projeto de investigação-ação participativa em contexto residencial

A presente narrativa espelha a investigação desenvolvida por uma profissional da área da educação e intervenção social, durante um ano e meio, numa Unidade Residencial que albergava pessoas realojadas de conjuntos habitacionais demolidos. Uma investigação que partiu de um conhecimento aprofundado da realidade e próximo dos/as atores/as sociais, a fim de potenciar a transformação necessária e almejada por todos/as. Neste processo investigativo foi mobilizado um conjunto de técnicas, das quais se destacam a observação participante, as conversas intencionais e a análise documental, técnicas afetas a investigações de carácter qualitativo (Coutinho et al., 2009). Como refere Coutinho (2013), é através do recurso a diferentes técnicas que se consegue efetivamente um conhecimento mais aproximado e aprofundado da realidade que se quer conhecer. Dado que o modo como a recolha de informação se realiza é condicionada também pelas características pessoais e sociais do investigador (Costa, 1986), revela-se essencial que este adote uma postura de permanente autoanálise e autorreflexão acerca do trabalho que desenvolve.

A investigadora, no processo de conhecimento da realidade e de desenho e desenvolvimento da intervenção, procurou sempre envolver os/as atores/as sociais, valorizar as suas vozes, fazê-los/as autores/as e protagonistas do processo de mudança e de transformação da sua realidade, pessoal e coletiva. Este processo foi sempre acompanhado por uma avaliação contínua e sistemática de todo o processo desenvolvido. A investigação-ação que será doravante narrada teve estas preocupações como pano de fundo, as quais orientaram todo o percurso calcorreado.

A Câmara Municipal de uma cidade do centro do país estava a construir um conjunto de habitações sociais para realojamento, a fim de proceder à eliminação de habitações clandestinas e abarracadas. Foram, simultaneamente, contruídos equipamentos, a fim de colmatar necessidades da comunidade realojada. A Unidade Residencial (UR) aqui descrita, foi um dos equipamentos.

Nesta UR habitavam mais de sessenta pessoas, com idades compreendidas entre os 16 e os 87 anos, naturais de Portugal e dos PALOP. A equipa que prestava apoio era composta por auxiliares de ação direta (AAD’s) e por uma diretora técnica. Foi nesta equipa que uma das coautoras deste artigo foi integrada, enquanto profissional de educação e intervenção social.

Assumindo uma postura investigativa desde o primeiro momento, esta profissional procurou conhecer em profundidade esta realidade social, com as suas rotinas e atividades, os/as seus/suas atores/as sociais, as suas parcerias, entre outras dimensões. Fazendo uma triangulação constante da informação - decorrente da sua observação participante, das perceções dos/as atores/as sociais e da análise documental - pôde gradualmente conhecer a realidade onde desenvolvia a sua investigação-ação.

Num enquadramento relacional marcado pela proximidade e a confiança, os/as atores/as sociais puderam partilhar, com a investigadora, a sua visão da realidade institucional e da sua própria realidade, evidenciando os problemas, as necessidades, os recursos e as potencialidades que identificavam, priorizando os que consideravam ser mais pertinentes e os de maior urgência de intervenção, tendo em conta os recursos e os constrangimentos existentes.

Um dos problemas identificados, era relativo às pessoas com doença física e mental (algumas das quais com demências), que residiam na UR. Percebeu-se que poucas tinham acompanhamento médico especializado e/ou faziam tratamento farmacológico; além disso, um grande número de pessoas tinha comportamentos aditivos, particularmente consumo de álcool, o que tinha grande impacto na vivência comunitária. Em consequência destes consumos excessivos, observavam-se, não raras vezes, alterações comportamentais que geravam episódios de violência entre os/as residentes, e entre estes/as e os/as profissionais. Outro problema identificado consistia no facto de entre os/as residentes predominavam fortes carências socioeconómicas e as redes sociais eram muito reduzidas ou mesmo inexistentes. Apenas uma ínfima parte das pessoas trabalhava, estando a maioria desempregada ou reformada por invalidez. A maioria estava totalmente desocupada, sem objetivos nem ambições. Os seus dias eram todos iguais. Muitos/as expressavam sentimentos de solidão e de isolamento social, quebrados pelos momentos das refeições. Por isso, estes momentos eram sempre muito aguardados. Apesar de algumas pessoas ali residirem há mais de uma década, havia indivíduos que não se conheciam.

A UR era dividida em dois blocos unidos por um corredor. Um dos blocos, integrava uma sala concebida como local de encontro, um centro de convívio, mas que era muito pouco frequentada. Só quatro a seis residentes frequentavam este espaço. Em conversa intencional com os/as residentes, estes/as expressaram que almejavam ter mais atividades, a fim de darem sentido aos seus dias e vivê-los de forma mais acompanhada. Lamentavam a forma como alguns/algumas AAD’s os/as tratavam, seja pela forma ríspida que muitas vezes eram abordados/as, seja por não se sentirem vistos/as nem ouvidos/as quando solicitavam apoio ou esclarecimentos. Ao auscultar os/as AAD’s, estes/as referiam que os/as residentes “não se sabem comportar” e que “deviam ter apoio médico para controlar os comportamentos”. Por seu lado, a diretora técnica expressava preocupação pela vivência quotidiana dos/as residentes - uma vivência desocupada e sem objetivos - e pela crescente animosidade na relação entre alguns/algumas residentes e os/as AAD’s.

Ouvidos todos/as os/as atores/as sociais da UR, foi desenhada, juntamente com os/as mesmos/as, um projeto de intervenção, que se desenvolveria em dois eixos - eixo 1, mais focado nos/as AAD’s; eixo 2, mais focado nos/as residentes - com o intuito de se potenciar a melhoria da qualidade de vida, pessoal e coletiva.

A participação das pessoas foi um princípio basilar de toda a investigação-ação desenvolvida. Como referido anteriormente, quando as pessoas são coadjuvadas a reconhecer e a usufruir dos seus direitos, a lutar e a zelar por si e pelos outros, então podem ser autoras e protagonistas do processo de mudança, contribuindo para o seu desenvolvimento, autonomia e empoderamento.

Particularizando a investigação-ação realizada, poder-se-á evidenciar que:

No que concerne ao Eixo 1, foram desenvolvidas, uma vez por semana, no centro de convívio, sessões com os/as AAD’s e com a diretora. Estas sessões, orientadas pela investigadora, foram desenvolvidas no sentido de os/as profissionais poderem refletir acerca das suas práticas, particularmente no que respeita à gestão das relações com alguns/algumas residentes. Numa primeira fase, criaram-se desafios para que os/as profissionais refletissem acerca dos sentidos e das consequências do processo de realojamento dos/as residentes, nomeadamente no que concerne à sucessão de perdas vividas (habitação, redes de vizinhança e de familiares, identidades). Foi promovida, de seguida, uma reflexão acerca da pessoa dos/as residentes, enunciando algumas das suas características e procurando fazer uma análise compreensiva dos comportamentos observados. Discutiu-se sobre os sintomas característicos de algumas das patologias diagnosticadas nos/as residentes, assim como sobre os impactos da ausência de acompanhamento médico e farmacológico, entre outros assuntos que se evidenciavam relevantes para uma compreensão mais plena e ajustada das pessoas e das dinâmicas relacionais vividas.

Foram desenvolvidas seis sessões, no total, tendo sido estas muito participadas. A maioria dos/as AAD’s referiu que estas sessões permitiram olhar para os/as residentes de uma forma mais compreensiva e reconheceram a influência dos seus próprios comportamentos nas dinâmicas relacionais instaladas. Pelo impacto tido, os/as atores/as sociais reconheceram a importância de dar continuidade a estas sessões, tendo a Direção instituído, então, um espaço de reflexão entre todos acerca das práticas profissionais e vivências institucionais, periodicidade mensal.

O eixo 2 foi centrado nos/as residentes. Tendo em conta a vontade expressa de enriquecerem os seus dias com atividades que os satisfizessem e que permitissem romper o isolamento em que se encontravam, a investigadora conversou com todos/as, no sentido de perceber o estado e o desejo de cada um/a, as características e os interesses comuns, assim como os recursos e as potencialidades pessoais e coletivas.

Considerou-se que seria proveitoso dinamizar o centro de convívio, no sentido de possibilitar a criação e reforço de laços, entre residentes. Como este centro se encontrava no Bloco A, sendo desconhecido por alguns/algumas residentes do Bloco B, foi necessário divulgar a existência do espaço. O primeiro passo centrou-se na criação de um lugar acolhedor. No sentido de envolver e valorizar as experiências e saberes dos/as moradores/as, uma das paredes foi pintada por quatro pessoas com experiência em construção civil. Nela foram desenhadas listas com as cores das bandeiras de todos os países de origem dos/as residentes. Foi uma pintura simbólica na medida em que muitas cores são comuns a várias bandeiras, criando a ideia de unidade, unidade a que todos aspiravam.

Tendo a televisão uma centralidade na vida destas pessoas, foram desenvolvidos momentos de discussão de notícias. Apresentavam a sua perspetiva sobre os temas abordados, clarificavam dúvidas, expandiam conhecimentos, numa relação que gradualmente se foi tornando mais cúmplice.

As pessoas que não tinham nascido em Portugal demonstravam saudades e orgulho dos seus países de origem. Foram, então, promovidos momentos em que os/as residentes puderam partilhar as suas realidades de origem e as suas memórias, sendo as atividades perspetivadas e desenvolvidas de acordo com os interesses e as vontades das mesmas. Como todos/as gostavam muito de música, sugeriram que, uma vez por semana, fossem realizados lanches convívio, com uma playlist - inicialmente criada pela investigadora - composta por músicas originárias de todos os países representados. Gradualmente, alguns/algumas moradores foram sugerindo músicas e tornaram-se responsáveis pela playlist musical.

Através do desenvolvimento de jogos tradicionais de mesa, foi possível que muitos/as participantes falassem pela primeira vez. A continuidade destes momentos permitiu que se criasse um espaço de convívio e de conhecimento mútuo.

Relativamente às pessoas que não quiseram frequentar este espaço, a investigadora envolveu-os noutras atividades e favoreceu dinâmicas relacionais que puseram os/as residentes em contacto e interação, permitindo a expansão e o aprofundamento das redes relacionais.

Devido à criação de novos laços, a intervenção da investigadora deixou de ser necessária, já que as pessoas haviam adquirido a sua autonomia e mostravam-se zelosas pelo bem-estar uns/umas dos/das outros/as. As novas interações e o reforço dos laços originaram episódios de grande solidariedade entre todos/as, contribuindo para a diminuição de situações de carência e de vulnerabilidade vividos por algumas pessoas em particular.

Outro dos efeitos multiplicadores deste projeto prendeu-se com o bom acolhimento e inclusão de residentes recém-realojados/as, decorrentes do convívio e das atividades instituídas.

Na avaliação final, feita com todos os/as atores/as sociais, foi evidenciada a diminuições dos conflitos entre todos/as, o alargamento das redes sociais, a maior e mais prazerosa ocupação dos tempos dos/as residentes, ganhando estes/as um novo sentido na e para a sua vida pessoal e coletiva.

Considerações finais

A ciência pós-moderna advoga a necessidade de existirem propostas metodológicas que permitam investigar e conhecer todo o dinamismo que caracteriza o mundo e as pessoas, que ultrapasse o meramente observável (Santos, 1990; 2020). Para que se consiga aceder e conhecer uma determinada realidade de forma efetiva, há que identificar, também, o que não está visível, o que está oculto e o que aparentemente não existe ou não acontece. Isto significa que se tem de ir além do que os quadros teóricos permitem ver, numa busca de novas ideias, novas indagações, novos olhares, novas interpretações. Neste processo, a curiosidade, a criatividade, a capacidade indagadora e reflexiva dos/as intervenientes, tornam-se imperativas para investigar e, assim, aceder-se ao conhecimento da realidade social, cientes de que cada realidade é única e complexa, e que os olhares sobre a mesma podem ser múltiplos e diversos. Ainda que se privilegie uma relação horizontal entre os/as intervenientes e que as vozes e perspetivas das pessoas sejam valorizadas, tal não significa que o lugar de cada um deixe de ser claro.

Estas investigações, como referido anteriormente, são únicas e irrepetíveis, porque se fazem com as pessoas, em relações de proximidade, e em terrenos que têm, cada um deles, a sua singularidade. As características pessoais dos participantes - idade, género, características sociais, nível de escolaridade, vivências, experiências sociais e afetivas, opiniões e juízos de valor, entre outras - assim como as especificidades dos contextos, e do/a próprio/a investigador/a, podem influenciar o modo como se desvenda, se conhece, se sente e se explora a realidade em investigação. Pela responsabilidade que tem, considera-se que o/a investigador/a tem de ter um elevado compromisso ético com as pessoas junto de quem desenvolve a investigação-ação, o que o/a obriga a desenvolver e apurar a sua capacidade crítica e reflexiva. Num exercício de autoanalise ou de prática supervisionada/intervisionada, é importante que ele/a identifique vieses nas suas observações, que seja ponderado/a, sensível e perspicaz, que respeite a vida, os valores e o quotidiano das pessoas. Estas são algumas das exigências que se impõem na postura do/a investigador/a.

Sendo um processo de recuperação e de descoberta, a IAP, mais do que se focar nos problemas, deve centrar-se nas potencialidades e nos recursos das pessoas e da realidade, mobilizando-os/as para a transformação da(s) mesma(s). Neste sentido, julga-se que esta investigação tem um caráter prospetivo e não meramente retrospetivo.

A IAP sustenta-se na crença de que todas as pessoas têm capacidades e um potencial de desenvolvimento, e que, dentro das suas possibilidades, podem e têm o direito de participar na melhoria das suas realidades. O/a investigador/a coadjuva-as a afirmarem a sua voz e a explorarem novos e possíveis caminhos. Percebe-se, neste enquadramento, a importância de uma educação para a participação, que consciencialize as pessoas de toda a sua realidade, dos seus constrangimentos e potencialidades, a fim de que as mesmas se consigam libertar dos grilhões imposto por relações de poder desiguais. O fim último será o exercício autónomo de uma democracia participada.

A proximidade do/a investigador/a a um determinado contexto, se não for um processo suficientemente refletido e maturado, pode colocar em causa a validade das investigações. Também o tempo disponível pode afetar a qualidade e a validade das mesmas. De acordo com Padilla (2017), nem sempre o processo de pesquisa cíclico - que implica, necessariamente, uma repetição dos passos - é possível em investigações com termo anunciado, como as investigações académicas. Sendo estas investigações tão específicas, e tendo as pessoas ritmos tão diferentes, ter um término previamente definido, pode condicionar o processo investigativo/interventivo. Assim, revela-se uma questão de ética investigativa a necessidade de definir, com realismo, o que será possível ser realizado, com o tempo estipulado. Deste modo, evitar-se-á que a investigação fique incompleta/inacabada e, sobretudo, que as pessoas investigadas fiquem desamparadas e com as suas expectativas goradas.

Na IAP, tendo em conta que o que se pretende é a capacitação e a autonomização das pessoas, a ação do/a investigador/a baseia-se, desde o primeiro momento, no princípio da dispensabilidade (Timóteo & Bertão, 2012). À medida que as pessoas participantes - porque têm voz, um saber único e inestimável sobre as suas vidas e realidades, e um potencial de desenvolvimento - se vão assumindo como coautoras e coatoras da (transformação da) realidade que almejam, o/a investigador/a esbate a presença e a sua ação, até não ser mais necessário/a. Pese embora nesta metodologia o papel e a postura do/a investigador/a se assumam distintos dos arrogados tradicionalmente - porque menos imperativos -, eles não são de menor importância no cenário investigativo. O seu papel assume contornos mais ligados ao papel de facilitador, orientador e até mesmo de dinamizador do processo da investigação (Herber 2005; Villegas 2012), que o desafiam. Segundo Lopes, Galinha e Loureiro (2010, p. 180), este é um processo complexo, no entanto, vantajoso “para o próprio, para este melhor se conhecer, se enriquecer, para dar atenção ao Outro, para relativizar pontos de vista e saberes, para procurar compreender aquilo que os outros pretendem transmitir e para fazer sentir ao Outro que aquilo que nos diz tem interesse.”

Por fim, gostaríamos de salientar que dada a complexidade do mundo atual, o/a investigador/a é obrigado/a a atualizar-se constantemente, seja através de leituras, da troca de experiências e saberes, de uma reflexão sobre as práticas, a fim de respeitar e considerar as inúmeras verdades e possibilidades existentes (Rosso et al. 2002; Lopes, 2008). O conhecimento, no campo social, deve estar ao serviço da diminuição ou eliminação das injustiças sociais, e deverá ser a metodologia a nortear as escolhas do/a investigador/a, para que este propósito seja conseguido (Coutinho, 2013; Amado, 2014). A Investigação Ação Participativa, sendo uma das modalidades da investigação qualitativa, ao pretender fomentar a participação das pessoas nas investigações permite que o conhecimento adquirido as empodere e emancipe, deixando o lugar de invisibilidade em que as relações desiguais de poder muitas vezes as colocam e as enclausuram.

Agradecimentos

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDP/05198/2020 (Centro de Investigação e Inovação em Educação, inED)

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Recebido: 25 de Março de 2023; Aceito: 13 de Agosto de 2023

Notas Biográficas Joana Vaz Ferreira Doutoranda em Ciências da Educação, na Universidade de Coimbra, Investigadora na área da proteção internacional da pessoa humana. Mestre em Educação e Intervenção Social, pelo Politécnico do Porto. Experiência profissional na intervenção social em diversos contextos, com pessoas em situação de grande vulnerabilidade. Exerceu as funções de Assistente Convidada na Universidade de Coimbra. Tem artigos publicados em revistas nacionais e participou, enquanto oradora, em eventos nacionais e internacionais. https://orcid.org/0000-0003-1759-432X Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra - Rua do Colégio Novo 3000-115 Coimbra joanavazferreira@fpce.uc.pt

Sofia Veiga Doutorada em Psicologia. Especialista em Psicologia da Educação e em Psicologia Clínica e da Saúde, com especialidade avançada em Psicoterapia, pela Ordem dos Psicólogos Portugueses. Professora Adjunta da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto, orientando estágios da licenciatura de Educação Social há mais de duas décadas. Psicóloga clínica no Centro de Intervenção Psicopedagógica da ESE.IPP. Investigadora Integrada do Centro de Investigação e Inovação em Educação (inEd) da ESE.IPP. De entre a sua formação complementar, salientam-se as Formações Especializadas em Psicoterapia Psicodinâmica e em Psicodrama, sendo Membro Didata da Sociedade Portuguesa de Psicodrama. É autora de diversos artigos científicos, nomeadamente no domínio da Educação e Intervenção Social. https://orcid.org/0000-0001-9674-3295 Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto - Rua Dr. Roberto Frias, 602 4200-465 Porto sofiaveiga@ese.ipp.pt

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