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Revista da Sociedade Portuguesa de Dermatologia e Venereologia

versão impressa ISSN 2182-2395versão On-line ISSN 2182-2409

Rev Soc Port Dermatol Venereol vol.78 no.4 Lisboa dez. 2020  Epub 10-Set-2021

https://doi.org/10.29021/spdv.78.4.1275 

Caso Clínico

Endometriose Cutânea Primária: Diagnóstico Raro e Desafiador

Primary Cutaneous Endometriosis: Rare and Challenging Diagnosis

Allen de Souza Pessoa1 
http://orcid.org/0000-0002-0608-8918

Juliana Câmara Mariz1 
http://orcid.org/0000-0002-7292-1648

Bárbara de Oliveira Martins1 
http://orcid.org/0000-0002-6650-1719

Laura Franco Belga1 
http://orcid.org/0000-0002-8355-4185

Evelyne Mara Costa1 
http://orcid.org/0000-0002-0159-626X

Daniel Lago Obadia1 
http://orcid.org/0000-0001-9536-1615

1Departamento de Dermatologia, Hospital Universitário Pedro Ernesto, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil


RESUMO

A endometriose ocorre em cerca de 10% das mulheres em idade reprodutiva, é histopatologicamente definida pela presença de tecido glandular endometrial e/ou estroma fora da cavidade uterina. A principal localização cutânea é o umbigo. A endometriose cutânea primária é rara e subdiagnosticada. Deve ser suspeitada na presença de nódulo eritemato-violáceo com tendência a sangramento, especialmente durante o período menstrual, mesmo na ausência de cirurgia abdominal anterior ou história de endometriose pélvica. A ressecção cirúrgica é o tratamento de escolha. A avaliação ginecológica é recomendada, visto

que a associação com a doença pélvica ocorre em 26% dos casos de endometriose cutânea. Relatamos caso de paciente sem história de cirurgias abdominais e/ou endometriose, com nódulo violáceo em cicatriz umbilical com um ano de evolução, com sangramento durante o período menstrual e após traumas.

PALAVRAS-CHAVE: Doenças da Pele; Endometriose; Umbigo.

ABSTRACT

Endometriosis occurs in about 10% of women of reproductive age. It is histopathologically characterized by the presence of endometrial glandular tissue and/or stroma outside the uterine cavity. The main cutaneous site is the umbilicus. Primary skin endometriosis is rare and underdiagnosed. It should be suspected in the presence of an erythemato-violaceous nodule with a bleeding tendency, especially during the menstrual period, even in the absence of previous abdominal surgery or history of pelvic endometriosis. Surgical resection is the treatment of choice. Gynecological evaluation is recommended, since the association with pelvic disease occurs in 26% of cases of skin endometriosis. We report a case of a violaceous nodule on an umbilical scar showing bleeding during menstruation, which evolved over a year following trauma, in a patient with no history of abdominal surgeries and/ or endometriosis.

KEYWORDS: Endometriosis; Skin Diseases; Umbilicus.

INTRODUÇÃO

A endometriose, doença estrogénio-dependente1,2inicialmente descrita por Rokitansky em 1860,1,3acomete cerca de 10% das mulheres em idade reprodutiva.2,4,5

Histopatologicamente é definida pela presença de tecido glandular endometrial e/ou estroma fora da cavidade uterina que pode ocorrer por transformação metaplásica, metástase ou iatrogenia.1,3,5Os sintomas mais frequentes incluem dor pélvica, dispareunia e dismenorreia, mas variam consoante a localização dos implantes endometriais podendo ser assintomática em 50% dos casos.1 É causa conhecida de infertilidade e tem como localização mais frequente os órgãos pélvicos, principalmente os ovários e trompas uterinas.1-3

Em cerca de 12% dos casos de endometriose são encontradas lesões extragenitais, que ocorrem em qualquer órgão, incluindo cérebro, pulmão, fígado, mesentério, intestino, pleura e pele.2,3,5A endometriose cutânea é um evento raro,3 representando 5,5% dos casos de endometriose extrapélvica.6A sua patogênese ainda não está bem definida,2permanecendo como um desafio diagnóstico.6

CASO CLÍNICO

Paciente feminina, 31 anos, nulípara, apresentava nódulo violáceo na cicatriz umbilical há 1 ano, medindo cerca de 0,5 cm de diâmetro (Fig. 1). Relatava sangramento espontâneo coincidente com o período menstrual e aos mínimos traumas. Negava doenças ginecológicas e procedimentos cirúrgicos abdominais ou pélvicos prévios. Foi feita a excisão cirúrgica da lesão, com incisão fusiforme perpendicular à linha alba. A sutura simples foi realizada com mononylon 4-0. Ao exame histopatológico, foram observadas estruturas glandulares dilatadas no meio de estroma celular do tipo endometrial e infiltrado linfocítico perivascular (Fig.s 2 e 3), achados compatíveis com endometriose cutânea. Avaliação ginecológica descartou endometriose pélvica. A paciente evoluiu com resultado estético satisfatório, e não houve sinais de recidiva da doença após dois anos de seguimento clínico.

Figura 1 Nódulo violáceo medindo 0,5 cm de diâmetro na cicatriz umbilical com 1 ano de evolução. 

Figura 2 Estruturas glandulares dilatadas em meio a estroma celular do tipo endometrial e infiltrado linfocítico perivascular (H&E, 100x). 

Figura 3 Detalhe da estrutura glandular endometrial imersa em estroma frouxo mixóide (H&E, 400x). 

DISCUSSÃO

A endometriose cutânea acomete mulheres sobretudo entre os 30 a 35 anos6 e tem como localização principal o umbigo5 - acredita-se que seja pelo fato do seu funcionamento como cicatriz fisiológica.6 A maioria dos casos (70%) são secundários à cirurgia pélvica anterior como cesariana - que aumenta o risco em 27 vezes -, exérese de cisto de glândula de Bartholin, injeções intrauterinas para abortamento, laparoscopia, amniocentese, ligação tubária, episiotomia, além de apendicectomia e hernioplastia inguinal ou abdominal.1,3,6

A endometriose cutânea surge cerca de 30 meses após estes procedimentos cirúrgicos.6Em 0,5% a 1% de todos os casos não houve cirurgia prévia - trata-se de endometriose primária ou espontânea,2,6como no presente caso. É também chamada nódulo de Villar - médico que primeiro descreveu em 1886.6,7

A lesão cutânea tem dimensão média de 2 a 3 cm e pode ter apresentação clínica variável, com coloração vermelha, azulada, roxa ou acastanhada, dependendo da profundidade e quantidade de hemorragia, e é circundada por eritema.1,2,6,7 A endometriose cutânea pode ser assintomática em 80% dos casos, ou cursar com edema, dor e sangramento associados ao ciclo menstrual.6 É uma patologia subdiagnosticada, havendo uma diversidade de diagnósticos diferenciais, que incluem hérnia, persistência/lesão do úraco, granulomas, melanoma, abscesso, fístula, nevo benigno, lipoma, queloide, nódulo de Irmã Maria José (metástase cutânea umbilical).2,6-9

A patogénese da endometriose umbilical ainda não está bem esclarecida,2,8a teoria mais aceita é a que sugere a migração de tecido endometrial a partir da menstruação retrógrada, havendo, então a implantação das células endometriais na superfície peritoneal dos órgãos pélvicos.2 Há, ainda, a descrição da migração linfática ou vascular, metaplasia celular, cujo processo envolve transformação de células mesoteliais do peritoneu de origem celômica em células endometriais; e a metástase iatrogénica, associada a disseminação de células endometriais a partir de procedimentos cirúrgicos, com implantação das células na cicatriz.1,2,6No que se refere a endometriose umbilical isolada, o acometimento pode ser em virtude da transformação metaplásica de remanescentes do úraco ou, ainda, advindo da contaminação do cordão umbilical por células endometriais após o nascimento.2

A investigação é baseada na anamnese, exame físico detalhados e no exame histopatológico.6,7A dermatoscopia ao evidenciar coloração avermelhada homogénea com pequenas estruturas globulares vermelhas pode contribuir para o diagnóstico.6,7A punção por agulha fina guiada por ultrassom é um método controverso, uma vez que tem precisão variável e há o risco de implantação de tecido endometrial além do sítio de punção e é inadequada para exclusão de malignidade.2,6Assim a confirmação diagnóstica está dependente do exame histopatológico.2,6O estudo da endometriose cutânea deve ser complementado com avaliação ginecológica e exames de imagem como ultrassonografia pélvica/abdominal, ressonância magnética e tomografia computadorizada,1,2,6,8para avaliar outras lesões intra-abdominais que ocorrem em 26% dos casos de endometriose cutânea.3

O tratamento de escolha é a ressecção cirúrgica.2,6,9Não há técnica estabelecida em virtude da raridade desta patologia, podendo ser realizada mediante excisão completa do umbigo com ou sem reconstrução da fáscia subjacente e peritoneu ou remoção apenas do nódulo endometrial, poupando o umbigo, como no presente caso.10 A terapia hormonal é sugerida por alguns autores como forma de reduzir o tamanho da lesão e aliviar sintomas, no entanto, o uso de análogos da hormona libertadora de gonadotrofinas, danazol ou anticoncepcional hormonal oral2,8,9,10no pré-operatório pode levar a excisão incompleta com recorrência.2,6A recorrência é rara,9 mas pode acontecer nos 2 anos que se seguem à excisão inicial.10

Na literatura, está bem descrito, apesar de rara, a possibilidade de transformação maligna a partir de um endometrioma umbilical,1-3o que corrobora a escolha da ressecção cirúrgica como melhor opção terapêutica e a necessidade de uma exame histopatológico.3,7A aspiração por agulha fina com exame citológico pode levar a resultados falso-positivos para malignidade pela identificação de atipias nas células glandulares.3

CONCLUSÃO

A endometriose umbilical primária é uma patologia extremamente rara e frequentemente subdiagnosticada, gerando múltiplas idas a diversos médicos e atraso no diagnóstico, podendo levar de 9 a 12 anos entre o início dos sintomas e a confirmação diagnóstica para todos os tipos de endometriose.4 Sendo assim, é importante manter alta suspeição diagnóstica diante de um paciente com massa palpável na parede abdominal, mesmo sem história de cirurgia prévia, atentando para os sintomas associados ao ciclo menstrual.2,6

A condução do caso deve envolver uma equipe multidisciplinar composta por cirurgião geral, radiologista, dermatologista e ginecologista.2

REFERÊNCIAS

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1© Autor (es) (ou seu (s) empregador (es)) 2020 Revista SPDV. Reutilização permitida de acordo com CC BY-NC. Nenhuma reutilização comercial. © Author(s) (or their employer(s)) 2020 SPDV Journal. Re-use permitted under CC BY-NC. No commercial re-use

Recebido: 11 de Setembro de 2019; Aceito: 04 de Outubro de 2020

Correspondência: Bárbara de Oliveira Martins Dept Dermatologia/Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rua Visconde de Pirajá, 180/403, Ipanema CEP 22410-000 - Rio de Janeiro, Brasil E-mail:bomartins1@gmail.com

Conflitos de interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho. Fontes de financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo. Confidencialidade dos dados: Os autores declaram ter seguido os protocolos da sua instituição acerca da publicação dos dados de doentes. Consentimento: Consentimento do doente para publicação obtido. Proveniência e revisão por pares: Não comissionado; revisão externa por pares. Conflicts of interest: The authors have no conflicts of interest to declare. Financing support: This work has not received any contribution, grant or scholarship. Confidentiality of data: The authors declare that they have followed the protocols of their work center on the publication of data from patients. Patient Consent: Consent for publication was obtained. Provenance and peer review: Not commissioned; externally peer reviewed

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