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Revista da Sociedade Portuguesa de Dermatologia e Venereologia

versão impressa ISSN 2182-2395versão On-line ISSN 2182-2409

Rev Soc Port Dermatol Venereol vol.79 no.3 Lisboa set. 2021  Epub 30-Set-2021

https://doi.org/10.29021/spdv.79.3.1308 

Case Report

Doença de Milroy: Relato de um Caso Exuberante e Nove Familiares Acometidos

Milroy Disease: An Exuberant Familiar Case

1Complexo Hospitalar Padre Bento de Guarulhos, São Paulo - Brasil

2Hospital Sírio-Libanês, São Paulo - Brasil


RESUMO

A doença de Milroy é uma condição relativamente rara de linfedema crónico primário congênito que influencia a qualidade de vida e requer acompanhamento médico devido ao risco de infecções secundárias e malignização. Relata-se o caso de paciente feminina, 49 anos, que apresenta quadro exuberante de linfedema dos membros inferiores desde a juventude, evoluindo com lesões cutâneas sobrejacentes, bem como intercorrências infecciosas neste período. Este caso ilustra o padrão de herança genética autossômica dominante da doença, com nove familiares acometidos.

PALAVRAS-CHAVE: Fibrose; Linfedema/congénito; Linfedema/genética

ABSTRACT

Milroy disease is a relatively rare condition of congenital primary chronic lymphedema that affects quality of life and requires medical follow-up due to the risk of secondary infections and malignancy. We report the case of a 49 years’ old female patient with an exuberant lymphedema in the lower limbs since her youth, progressing with unusual overlying skin lesions, as well as infectious complications. There are nine members of the family similarly affected, illustrating the pattern of autosomal dominant genetic inheritance of the disease.

KEYWORDS: Fibrosis; Lymphedema/congenital; Lymphedema/genetics.

INTRODUÇÃO

A doença de Milroy, também chamada de Doença de Milroy-Meige-Nonne ou linfedema congénito hereditário, foi inicialmente descrita em 1982 por Willian Milroy, num trabalho que avaliou 22 casos dentro de uma única família.1Trata-se de uma forma rara de linfedema primário caracterizado por herança genética autossómica dominante com penetrância variável (80%-90%).2-4,6O gene FTL4, associado ao desenvolvimento da doença, foi mapeado no locus cromossómico 5q35 e codifica a proteína VEGFR3 (receptor de fator de crescimento endotelial vascular), que possui um papel importante na linfangiogénese e desenvolvimento linfático.3-6O desenvolvimento linfático anormal culmina em drenagem inadequada e consequente acumulação de linfa nos tecidos moles, levando a inflamação crónica e fibrose do tecido subcutâneo.2 Estima-se a sua frequência em 1:6000 nascimentos, sendo uma doença relativamente rara, com acometimento mais comum em mulheres (2,3:1).3

RELATO DE CASO

Paciente do sexo feminino, de 49 anos, observada com edema crônico dos membros inferiores (MI) desde a juventude, evoluindo com formação de lesões cutâneas sobrejacentes e episódios infecciosos recorrentes no local (Fig.s 1 e 2). Apresenta obesidade (peso 120 kg, altura 1,54 m, IMC > 50), dificuldade de deambular, bem como hipertensão arterial primária controlada com losartan 50 mg/dia. Referiu que nove familiares (pai, avó paterna, irmã, 3 tios paternos e 3 primos) sofriam também de edema crónico dos MI desde a infância ou juventude, conforme heredograma (Fig. 3), porém com quadro menos pronunciado que o da doente e variado quanto à intensidade do linfedema e ao acometimento uni ou bilateral (Fig. 4).

Ao exame físico observou-se edema acentuado não depressível dos membros inferiores até altura das coxas, sem sinais flogísticos como eritema ou calor local, e com pulsos periféricos preservados. A superfície cutânea apresentava múltiplas lesões verrucosas, papilomatosas e crostosas confluentes formando sulcos profundos entre elas e envolvendo circularmente os 2/3 inferiores das pernas e pés, com padrão de elefantíase e pé musgoso (Fig.s 1 e 2).

O estudo anatomopatológico de biópsias cutâneas em três locais distintos dos MI evidenciou fibrose dérmica, acantose, hiperqueratose epidérmica e áreas de papilomatose, sem sinais de malignidade (Fig. 5). A ultrassonografia com Doppler dos MI não revelou alterações no sistema venoso nem eventos trombóticos.

Foi decidido tratamento sintomático e medidas para melhorar higiene e redução do edema. Foi prescrito permanganato de potássio diluído (10 mg em 4 L de água) em banhos de imersão dos MI, 2x/dia, para auxiliar na higiene e redução de infecções secundárias. Além disso, orientamos elevação dos MI e solicitamos acompanhamento conjunto da cirurgia vascular, que descartou tratamento cirúrgico. Durante o acompanhamento, apresentou alguns episódios de infecção secundária das lesões caracterizados por odor fétido, sinais flogísticos e exsudação, porém sem sinais sistêmicos, mas que necessitaram de antibioterapia oral com cefalexina e clindamicina.

Figura 1 Paciente aos 49 anos de idade, com múltiplas lesões ver-rucosas, papilomatosas e crostosas confluentes formando sulcos profundos e envolvendo circularmente os 2/3 inferiores das pernas e os pés. 

Figura 2 Detalhe das lesões de linfedema da perna Dª. 

Figura 3 Heredograma que apresenta a forma de transmissão da doença entre os familiares (autossômica dominante), representando a paciente a 3ª geração (III-6), identificada pela seta. 

Figura 4 Imagem da irmã de 45 anos, representada no heredogra-ma por III-7, com discreto edema unilateral do MI iniciado pelos 30 anos de idade e sem lesões sobrejacentes ao fim de 15 anos (A) e da tia paterna de 68 anos, representada no heredograma por II-3, com lesões que se iniciaram pelos 20 anos, afectam ambas as pernas e se caracterizam também por edema não depressível e esclerose do terço distal, mas com lesões menos exuberantes mesmo em idade mais avançada. 

Figura 5 Estudo histopatológico evidenciando acantose, áreas de papilomatose e hiperceratose epidérmica, com fibrose dérmica e ausência de sinais de malignidade (Hematoxilina & Eosina, 50x). 

DISCUSSÃO

A doença de Milroy caracteriza-se clinicamente por edema ge-ralmente bilateral (85%) restrito aos membros inferiores, indolor, não ultrapassando a altura dos joelhos em 94% dos casos.3,6Também podem ocorrer veias varicosas (23%), celulite (20%), papilomatose (10%) e hidrocelo nos homens (37%).3,6Um achado característico da área edematosa é a presença de esclerose cutânea levando à ausência do sinal do cacifo (ou godet).1,6Alterações ungueais também são descritas, como unhas do halux em “ski-jump”, espessamento ungueal e coloração amarelada.6

Os sintomas podem surgir desde o nascimento (97%) ou na juventude e é possível observar variação de apresentação entre membros da mesma família, desde acometimento apenas dos pés até lesões com extensão acima dos joelhos.1-3,6No caso relatado, o edema só foi notado pela paciente no início da adolescência e houve expressiva variação clínica entre os membros da família acometidos, sendo esta paciente o caso mais grave.

Existem outros tipos de linfedema primários, além da doença de Milroy, porém em geral mais raros e associados a anomalias congênitas, como polidactilia, sindactilia, colestase, malformação vascular cerebral, quilotorax, etc.2 As formas secundárias de linfedema são mais frequentes e ocorrem como consequência a algum evento obstrutivo ou inflamatório, como neoplasias com compressão extrínseca, radioterapia, sarcoidose, filariose, infecção estreptocócica de repetição (elefantíase nostra verrucosa), etc.2,4

As lesões cutâneas não costumam evoluir com malignização, porém há cinco relatos de desenvolvimento de tumores vasculares: hemangioendotelioma retiforme, hemangioendotelioma kaposiforme, linfangiosarcoma e angiossarcoma e todos apresentaram atraso no diagnóstico por se apresentarem clinicamente como “feridas infectadas” ou eczema.5 No caso apresentado, a presença de lesões de aspecto verrucoso de longa duração suscitou a busca ativa de lesões sugestivas de transformação maligna, mas biópsias cutâneas em 3 locais descartaram a presença de malignidade.

Outra complicação frequente é o desenvolvimento de infecções secundárias, como celulite, descrita em 20% dos casos, a qual pode ser recorrente e demandar o uso prolongado de antibióticos.6 No caso relatado, chamava atenção a grande quantidade de sulcos e vales entre as diversas lesões hipertróficas, o que dificultou as medidas de higiene, culminando em episódios infecciosos recorrentes como celulite e miíase, necessitando de tratamento específico.

O diagnóstico definitivo da doença de Milroy é realizado por estudos genéticos, porém é frequentemente feito com base na história clínica e familiar compatíveis, associada a exames complementares de imagem, como linfocintigrafia e linfangiografia.4,6No caso relatado, foi realizado apenas o heredograma da paciente devido às limitações de recursos do hospital.

O tratamento consiste em medidas anti-edema como elevação dos membros inferiores, uso de bandagens elásticas compressivas e drenagem linfática manual.1-3,6Podem também ser utilizados diu-réticos intermitentemente1 e realizar dietas hipocalóricas e hipossódicas apropriadas.2 É importante realizar uma rotina de cuidados e higiene da pele para evitar fenômenos infecciosos (erisipela/celulite) e linfangite.2

Existem, ainda, opções cirúrgicas nos casos mais avançados e refratários às medidas clínicas.1,2,5Estas consistem na remoção de tecido linfedematoso e de papilomas, assim como realização de anastomose linfaticovenosa ou transferência de tecido contendo linfonodo vascularizado, criando uma via alternativa para a drenagem de linfa no membro acometido.2

No caso relatado, foi optado por instituir apenas medidas clínicas anti-edema e orientações de higiene para as quais a paciente manifestou sempre baixa aderência. Acreditamos que, neste caso, o atraso na instituição do tratamento, a obesidade e a dificuldade na higiene contribuíram para o desenvolvimento de quadro exuberante com infecções secundárias recorrentes.

REFERÊNCIAS

1. Milroy WF. Chronic hereditary edema: Milroy's disease. JAMA. 1928; 91: 1172-5. [ Links ]

2. Santos OLR, Souto LA, Paz PL, Azulay MM, Azulay DR. Doença de Milroy- Meige - Nonne. An Bras Dermatol. 1995;70:27-9. [ Links ]

3. Bolletta A, Di Taranto G, Chen SH, Elia R, Amorosi V, Chan JC, Chen HC. Surgical treatment of Milroy disease. J Surg Oncol. 2020;121:175-81. [ Links ]

4. Rodríguez EU, Molpeceres RG, Vazquez MAP, Garcia HG. Linfedema congénito secundario a enfermedad de Milroy. An Pediatr. 2017;86:169-70. [ Links ]

5. Arriola AGP, Taylor LA, Asemota E, Boos MD, Elder DE, Weber KL, Micheletti RG, Zhang PJ. Aty-pical retiform hemangioendothelioma arising in a patient with Milroy disease: A case report and review of the literature. J Cutan Pathol. 2017;44:98-103. [ Links ]

6. Brice G, Child AH., Evans A, Bell R, Mansour S, Burnand K, Sarfarazi M, Jeffery S, Mortimer P. Milroy disease and the VEGFR-3 mutation phenotype. Med Genet. 2005;42:98-102 [ Links ]

1Conflicts of Interest: The authors have no conflicts of interest to declare. Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship. Confidentiality of Data: The authors declare that they have followed the proto-cols of their work center on the publication of data from patients. Patient Consent: Consent for publication was obtained. Provenance and Peer Review: Not commissioned; externally peer reviewed. Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho. Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo. Confidencialidade dos Dados: Os autores declaram ter seguido os protocolos da sua instituição acerca da publicação dos dados de doentes. Consentimento: Consentimento do doente para publicação obtido. Proveniência e Revisão por Pares: Não comissionado; revisão externa por pares

2© Author(s) (or their employer(s)) 2021 SPDV Journal. Re-use permitted under CC BY-NC. No commercial re-use. © Autor (es) (ou seu (s) empregador (es)) 2021 Revista SPDV. Reutilização permitida de acordo com CC BY-NC. Nenhuma reutilização comercial

Recebido: 24 de Novembro de 2020; Aceito: 12 de Março de 2021

Corresponding Author: Mariana F Valente Address: Rua Artur Prado, 433. Ap 1012. Bela Vista. São Paulo-SP. Brasil. CEP: 01322-000 E-mail: marianadfvalente@gmail.com/ marivalente09@hotmail.com

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