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CIDADES, Comunidades e Territórios

On-line version ISSN 2182-3030

CIDADES  no.27 Lisboa Dec. 2013

https://doi.org/10.7749/citiescommunitiesterritories.dec2013.027.art03 

ARTIGO ORIGINAL

 

Remigrar e Retornar. Estado e História na Arquitectura das Etnicidades Pós-coloniais em Portugal

Remigration and Returnees. State and History in the Formation of Post-colonial Ethnicities in Portugal


Nuno DiasI

[I]DINÂMIA’CET-IUL, Instituto Universitário de Lisboa, Portugal. email: nmfds@iscte.pt.

 

 


 

RESUMO

Uma parte significativa do campo de estudos de migrações tem sido preenchido por debates teórico-empíricos em torno de uma caracterização, que é também valorativa, dos diferentes modelos de enquadramento político dos fenómenos migratórios. Todavia, mais ou menos próximas do modelo assimilacionista, multiculturalista ou, até, interculturalista, as principais propostas analíticas neste campo centram-se largamente num conjunto de pressupostos agenciais do actor migrante, das suas características e competências, que, eventualmente, lhe definiriam as probabilidades de uma trajectória mais ou menos favorável. Mas a necessidade de identificar variáveis explicativas e sentido sociológico para o que se aceitam ser regularidades enquadradas na categoria da nacionalidade, reconfigurada na ideia homogeneizante de comunidade, tem deixado um espaço reduzido para pensarmos o impacto de medidas de âmbito estrutural sobre a realidade migratória. Este artigo, tem o objectivo de problematizar a importância do Estado, enquanto agente de criação de políticas públicas de consolidação de dinâmicas de incorporação social de populações migrantes, e as suas consequências no que diz respeito à produção de identidade étnica, num contexto espácio-temporal particular e para duas populações: a população migrante designada por ‘retornada’; e a população migrante de origem indiana. Em simultâneo, recupera-se a ideia de consolidação do Estado Social no âmbito das políticas públicas desenhadas para enquadrar a população retornada como consequência do processo de descolonização.

Palavras-chave: Remigração; Etnicidades pós-coloniais; História das Migrações


 

ABSTRACT

A significant part of the field of migration studies has been built around a debate, not merely academic, over distinct political models of the incorporation of migrants in host societies. However, the main analytical proposals (whether they are more close to the assimilationist, to the multiculturalist or even to the more recent interculturalist perspective) tend to focus, broadly, on the assessment of certain characteristics and skills of the migrant and on an expected value of those features to evaluate and even predict its trajectories. But the need to find sociologically relevant variables that can adjust to common sense stereotypes about the imagined regularities of national categories of migrants, sometimes enunciated as (homogeneous) communities, and that often make its way into academic conclusions, has hampered analysis that try to study the impact of structural measures (or the lack of) over migrant populations.  The objective of this article is to consider the role of the State, as the main agent designing the framework that will determine the conditions according to which migrants will be allowed to incorporate themselves, and its consequences to the development or dilution of group and ethnic identities. To accomplish this problematization we will resort to the coinciding trajectories of two populations that ‘arrived’ in Portugal at the same time: the population that became known as the ‘returnees’; and the Indian origin migrants that were settled in Mozambique until its independency. Simultaneously, we reclaim the idea of the emergence and consolidation of the Welfare State in Portugal as a consequence of the public policies aimed at facilitate the reincorporation of the white population that was returning from the liberated colonies. 


Keywords: Ethnicity; Remigration; Returnees; Welfare State.


 

Introdução

Este trabalho é resultado da síntese de um conjunto de reflexões em torno de uma parcela da história das migrações indianas e das continuidades, observáveis entre os períodos colonial e pós-colonial, nos diferentes processos de estabelecimento das populações que formaram esta história. Em concreto, a ligação triangular que une o subcontinente indiano, a costa oriental africana e as ex-metrópoles imperiais, na definição das trajectórias socioeconómicas dos seus múltiplos protagonistas, foi o cerne empírico a partir da qual nos propusemos problematizar a relação entre etnicidade e imigração.

O motivo pelo qual apresentámos à revista CIDADES, Comunidades e Territórios a análise aqui proposta prende-se justamente com a vontade de participar no debate em torno das categorias que ocupam com maior frequência a investigação de carácter empírico em torno de populações imigrantes e os processos de produção identitária que as mesmas protagonizam. Assim, resolvemos destacar do trabalho maior, citado atrás, a relação entre etnicidade e imigração, pensada enquanto consequência da acção do Estado e do papel que este desempenha enquanto agente principal quer na administração política do território quer na produção dos modos legítimos de o habitar. Examinar conceptualmente esta relação, a partir do universo de experiências das populações com quem trabalhámos, permitiu identificar dinâmicas sociais, genéricas e específicas, determinantes do modo como as populações imigrantes são diferenciadas e se diferenciam no curso do processo migratório.

Mas, se no âmbito do trabalho original, o objectivo era analisar comparativamente os percursos de populações[2] com características e trajectórias relativamente próximas (imigrantes indianos hindus estabelecidos em colónias africanas) sob diferentes matrizes nacionais (Portugal e Inglaterra, coloniais e pós-coloniais), este artigo, mantendo a primazia de enfatizar as constantes estruturais dos processos migratórios, nos seus momentos de deslocação e de incorporação, cumpre um propósito analítico de natureza distinta. Ao invés de comparar populações com origens partilhadas em diferentes territórios, olha-se para populações, marcadamente diferenciadas nos discursos públicos que sobre elas são produzidas, num mesmo contexto. O objectivo é compreender quais as principais variáveis na activação de identidades étnicas colectivas em contexto migratório. Assim, empiricamente, esta problematização centra-se nos processos de estabelecimento, no Portugal pós-colonial, de duas populações com alguns traços distintivos: por um lado numa população de ascendência indiana que se consolida, em Portugal, depois da independência moçambicana; e, por outro lado, na população, igualmente resultante da descolonização portuguesa, que se reconstituiu ao abrigo da categoria de retornados.

Problematizar processos coevos de reconstituição das redes sociais e familiares de populações distintas, no mesmo contexto migratório, permitirá, como referíamos atrás, discernir as dinâmicas de produção e conservação das variáveis determinantes para a organização dos referenciais étnicos de um determinado contexto sócio-histórico. Deste modo conseguiremos eventualmente contribuir para superar uma tendência frequente na literatura, especializada e outra, em que as realidades migratórias são tratadas a partir de substantivos homogeneizadores: de um lado a ‘sociedade de acolhimento’, entidade inteira aglomerante, e idealização relativamente à qual todos os processos migratórios são apreciados; do outro os imigrantes, ‘comunidades’, uniformes no pretexto à chegada, e culturalmente monolíticas.

Importa, portanto, operacionalizar, para efeito da argumentação comparativa aqui proposta, o conceito de etnicidade com que trabalhamos e explicar em que medida é urgente rejeitar a ideia de ‘comunidade’ no espaço da pesquisa sobre as dinâmicas sociais atinentes ao estabelecimento de populações migratórias. A definição genérica de grupo étnico que criou lastro dentro da antropologia, e também da sociologia, comenta o antropólogo Fredrik Barth (1969), refere-se à ideia de uma população endogâmica e a uma partilha de valores culturais fundamentais num espaço de comunicação e interacção com cuja pertença se identifica e, por elementos externos a essa população, é identificada – constituindo, assim, uma categoria distinta de outras categorias da mesma ordem. Para o autor, este entendimento, culturalista, ao aceitar a naturalização das fronteiras sociais entre grupos como uma consequência inelutável das características dos mesmos impedia a compreensão da circunstância e dos mecanismos de produção do grupo étnico. A etnicidade não aparece como uma consequência de uma tendência comunitarista, intrínseca a grupos particulares ou a putativas disposições partilhadas, mas antes enquanto efeito de práticas de classificação e de categorização, das quais não podemos, evidentemente, excluir processos de auto-definição.

A ideia de que “os grupos étnicos e as sua características são produzidos em circunstâncias particulares, tanto interaccionais, como históricas, económicas e políticas, sendo, portanto, altamente situacionais e não primordiais” (Barth, 2003: 20) é um dos aspectos centrais  da teorização de Barth. Um argumento que, de acordo com Brubaker (2004: 65) pode, com as devidas ressalvas, ser alargado à interpretação das nações e das questões raciais. Com a intensificação dos fluxos migratórios com origem no hemisfério sul em direcção ao hemisfério norte, no pós Segunda Guerra e no sequente movimento de independência das colónias africanas e asiáticas, o conceito de etnicidade, na sua função protocolar de sucedâneo do conceito de raça[3], criou raízes em torno do paradigma minoritário – de acordo com o qual a identidade étnica definida por um conjunto de práticas e valores culturais, na sua maioria negativamente estereotipados por uma dada sociedade de acolhimento está no centro de uma relação assimétrica protagonizada por um grupo, minoritário, social e politicamente subordinado a um grupo dominante (Tajfel e Turner, 1979). Teorias do nacionalismo, da etnicidade e da identidade social misturam-se em quadros teóricos nem sempre claros quando se trata de operacionalizar processos de formação, e também de dissolução, de identidade étnica. A emergência de uma base subjectivista da pertença étnica, em simultâneo com a sua dimensão de heteronomeação, criou novos desafios práticos à ideia política de nação como espaço de lealdades primordiais[4]. Como consequência da sucessão de independências as ex-metrópoles redefinam as regras e os limites de pertença por via da rectificação do quadro jurídico da nacionalidade. A chegada de contingentes estrangeiros à Europa do pós-guerra e pós-colonial, sobretudo a chegada dos ex-súbditos dos impérios coloniais, marcou o início de um momento crítico de reflexão sobre os significados da retórica assimilacionista e igualitária relativa à organização social colonial. Os impérios fragmentaram-se e aos discursos inclusivistas, os da irmandade de sentimentos que irredutivelmente ligavam colónias e metrópoles, seguiram-se os sinais que confirmavam o peso de uma matriz epígona do social darwinismo e que (re)conhecia no ‘sangue’ a legenda que atestava a ancestralidade partilhada. O pós-império conta-nos, assim, uma história complexa de testes à fundamentação ideológica e política da nação na ideia de homogeneidade étnica e conformidade cultural. A aplicação dos modelos de ius sanguini, em substituição do modelo ius soli, em Portugal, como, por exemplo, em Inglaterra, assinalam o momento em que os contornos de pertença se etnicizam oficialmente – na medida em que são remetidos para uma consanguinidade territorialmente ancorada e institucionalizam diferentes modelos de acesso ao direito a pertencer, isto é, à cidadania (Dias, 2010). No caso inglês é após a segunda guerra que um conjunto de leis da nacionalidade e de imigração se sucedem, definindo, e progressivamente estreitando, as normas de entrada na ‘britanidade’ em oposição ao princípio aglutinador do império. Para o caso português, após a descolonização, registou-se uma mudança equivalente nos fundamentos legais de atribuição e reconhecimento da nacionalidade. Os súbditos, na acepção de Mamdani (1996), e o tipo de relação que os diferenciava dos cidadãos são (re)materializados na categoria de ‘imigrante’, um significante com sentidos mais enraizados do que a denominação oficial de ‘estrangeiro’. Não obstante o seu desaparecimento enquanto realidade política e administrativa, o império ecoa através das ‘políticas do reconhecimento’ (Taylor, 1994) que constituem assim o núcleo do processo formal de transformação dos imigrantes em cidadãos. Uma transformação conflituosa que subentende a uniformidade e a especificidade, quer da sociedade de acolhimento, quer das populações imigrantes, e portanto parece apenas deixar a estas últimas, como possibilidade de incorporação, a assimilação por aculturação ou a coexistência pela segmentação cultural.

Neste sentido, mais do que negar a relevância da categoria que nomeia o ‘grupo’, e que se argumenta conter o respaldo da ‘comunidade’, importa salientar o carácter contingencial da estrutura que o produz e sustenta. O momento histórico de que é protagonista a população ‘retornada’ é, entre outras coisas, um exemplo paradigmático da relevância  do Estado no processo de estabelecimento de populações migrantes, em particular da importância do contexto político para o tipo de processos de incorporação desencadeados e respectivas consequências, independentemente das características das populações. Ao escolhermos dois processos protagonizados por duas populações distintas, pelo menos tratadas na literatura académica enquanto tal, concomitantes na contingência espácio-temporal, pretendemos identificar justamente quais as variáveis explicativas centrais que permitem ligar ambos os processos na sua relação com o Estado. Por outras palavras, em que medida podemos convocar os conceitos de etnicidade e etnicização quando falamos das populações e dos processos em análise.

 

Descolonizar e repatriar: o IARN[5] como fundação do Estado Social

O conflito militar, que opunha o Portugal metropolitano às reivindicações autonomistas das populações autóctones dos territórios coloniais, que se mantinha desde o início da década de 60 erodiu progressivamente um bloco de lealdades políticas e sociais, em larga medida, responsável, até esse período, pela durabilidade do regime autoritário. A frustração, pós-primavera marcelista, das expectativas relativas a uma abertura do regime e a uma mudança de curso na orientação política relativa à guerra colonial que pudesse precipitar o seu fim esteve na origem do redobramento das pressões sobre o Governo[6] e sobre a orgânica colonial portuguesa. A questão colonial concentrou sobre si, progressivamente, um conjunto de desacordos que fizeram dela um epicentro de movimentações políticas, militantes e sociais que conduziram ao derrube do regime e ao consequente processo de descolonização (Costa Pinto, 2001). Neste sentido, e com a emergência e alargamento de um espaço público caracterizado pela multiplicidade de autonomias e legitimidades populares e por uma incondicional orientação anticolonial do MFA (Movimento das Forças Armadas) que defendia a libertação imediata das ‘províncias ultramarinas’ do vínculo formal da subalternidade colonial, não se pode compreender ou interpretar o contexto social e político pós-25 de Abril desligado do que era a percepção predominante na metrópole sobre o tema ‘colónias’ – quer relativamente ao valor humano consumido por mais de uma década de conflito, quer relativamente ao direito à autodeterminação das populações colonizadas. Assim, a vindicação aguardada pela população que entra em Portugal na sequência do processo de descolonização colide com o conteúdo político do Processo Revolucionário em Curso. Como interpretar este processo e as suas consequências para as populações que o protagonizaram?

À distância de quatro décadas e após os significativos movimentos migratórios de entrada das décadas de 80, 90 e 2000 percebe-se melhor a ordem de grandeza do fenómeno do repatriamento com que Portugal foi confrontado. Dos territórios que já negociavam os detalhes da transição para a autonomia política, chegam cerca de 500 000 pessoas vindas maioritariamente de Angola (61%) e de Moçambique (34%) – um número que representava cerca de 5% do total da população recenseada em 1981 e que, embora em termos absolutos pudesse ter sido inferior ao milhão de repatriados da Argélia que chegam a França na década de 60, foi proporcionalmente o principal contingente de repatriados a entrar num país europeu (Pires, 2003: 189,192). O volume inusitado de entradas em Portugal durante este período e a relativa celeridade com que estas populações se terão dissipado na sociedade portuguesa levou alguns autores a considerar este desenvolvimento como um exemplo excepcionalmente bem sucedido de um processo de integração assimilativo (Pires et al., 1984: 19).

O quadro interpretativo dominante foi construído a partir de um modelo que, embora reconhecendo a influência do Estado no processo de incorporação da população repatriada, atribuiu uma centralidade relativa a um conjunto de características médias desta população. A existência de saberes, qualificações, estilos de vida e valores específicos do contingente repatriado, comparativamente à população média que se encontrava na ex-metrópole, explicariam a ocorrência de dinâmicas assimilacionistas. Rui Pena Pires (2003: 249), propõe um quadro de hipóteses decorrentes da investigação, e que podem ser replicadas, em maior ou menor grau dependendo da variável em questão, no enquadramento de qualquer população imigrante, que confirma, para o autor, tanto o diagnóstico assimilacionista como a virtude do modelo. Estas ‘particularidades’, em articulação com a reconstrução de redes sociais de repatriados (um processo que pode, pelo menos parcialmente, permitir questionar a teoria vigente da diluição quasi instantânea destas populações); a existência de laços sociais e familiares que são activados no momento da chegada a Portugal continental teriam produzido uma conjuntura indutora de ‘dinâmicas de individualização e assimilação’ por oposição a dinâmicas de ‘comunitarização e etnicização’.

Não questionamos o efeito combinado das diferentes variáveis analisadas por Pena Pires e equipa no condicionamento das trajectórias das populações repatriadas. Contudo, temos algumas reservas sobre o peso relativo atribuído a cada uma delas e, em particular, sobre o que entendemos ser uma problematização insuficiente do Estado, quer enquanto produtor das condições que favorecem o dito processo assimilativo, quer da dependência das restantes variáveis relativamente à estrutura de oportunidades e de reconhecimento criada pelas sucessivas intervenções estatais. Se quisermos ainda alargar esta linha de problematização podemos pensar as condições em que esta população, em média mais qualificada do que a sua congénere metropolitana, é resultado, justamente, de uma política de fomento da fixação e do desenvolvimento económico colonial. Isto traduziu-se em grandes obras de investimento público, na criação de estruturas de formação, de administração do território, expedientes facilitadores do acesso à terra, de emprego público e de um clima político e social menos conservador – por outras palavras, a população colonial não pode deixar de ser interpretada para efeitos explicativos da categoria de cidadão colonial branco médio como a consequência de um aparelho de Estado com alargadas preocupações sociais. Mas não é esta a tese que aqui nos cumpre sustentar. Ao chegar a Portugal esta população encontra um período de profundas transformações na estrutura dominante de valores políticos e sociais. A tese que ensaiamos é a de que foi, justamente, essa transformação política em curso que permitiu o desencadeamento da circunstância de apoio específico a uma população com reivindicações particulares. Circunstância essa que, mais tarde, se converterá em quadro de apoio alargado ao resto da população – um processo que, sublinhamos, foi fundamental para a ‘descomunitarização’ da população repatriada, mais do que as eventuais competências particulares desta população. Para clarificar a tese de que é com a criação de uma política alargada de enquadramento da população repatriada que se organizam os mecanismos políticos centrais do que podemos designar como Estado-social ou do seu alter-ego das democracias ocidentais, o Estado-providência, importa compreender o desenrolar do processo em que esta população é protagonista e das ligações que lhe deram continuidade.

O processo de repatriamento ocorre num momento de cavadas transformações políticas, económicas e sociais em que Portugal vê a sua balança comercial desequilibrar-se fortemente, a inflação e o desemprego a aumentarem e uma resiliente indefinição política. A este quadro é adicionado um contingente demográfico que, além da carência material, traz consigo uma orientação política sobre a questão colonial. Não obstante o antagonismo político com vários flancos que ocupava a sociedade portuguesa de então, a questão colonial era provavelmente das que menos dividiam a sociedade portuguesa. 

Numa perspectiva institucional, no interior do Ministério da Coordenação Interterritorial, que sucedia ao defunto Ministério do Ultramar, existiam duas entidades que poderiam enquadrar a questão do repatriamento: a Comissão Administrativa e de Assistência aos Desalojados (CAAD) – criada para deslocar portugueses de Goa; e o Centro de Apoio aos Trabalhadores Ultramarinos – que tinha como missão assistir caboverdeanos no processo de migração laboral para Portugal. Como estes gabinetes se revelaram insuficientemente equipados para lidar com o problema, o Ministério cria, em Agosto de 1974, o Grupo de Apoio aos Desalojados do Ultramar (GADU) – que teve como tarefas imediatas a atribuição de subsídios de emergência e de apoio ao nível de transporte, de alojamento e de refeições à população a repatriar. Decidiu-se, no entanto, quase de imediato, face à dimensão da tarefa, que esta deveria ser entregue a uma entidade sob a dependência directa da Presidência do Conselho de Ministros, ao invés da sujeição a um ministério. Surge então, a 31 de Março de 1975, com o propósito de promover a plena integração da população repatriada, o IARN – o objectivo seria assistir a população abrangida no acesso a subsídios sociais, a trabalho, a crédito, a ajuda legal, a habitação, a cuidados de saúde, etc. (Hoefgen, 1985: 6-7). O volume de casos e o tratamento merecido exigiu um investimento inédito, quer em matéria de recursos financeiros, quer em matéria de recursos humanos – de cerca de 60 funcionários que se encontravam no IARN no início das actividades passou-se, em poucos meses, para um universo de cerca de 3000 funcionários, através de uma estrutura em permanente reconfiguração (Hoefgen, 1985: 7).

Em Outubro de 1975, sob a égide do Ministério dos Assuntos Sociais, é criada a Secretaria de Estado dos Retornados que tutelará o IARN. O Decreto-Lei n.º 584-B/75 é promulgado pelo Presidente Francisco Costa Gomes e reconhece que “na presente conjuntura, verificada a insuficiência dos meios de ação adotados, com a criação do Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais, considera o Governo oportuna a constituição de uma nova Secretaria de Estado dos Retornados, no âmbito do Ministério dos Assuntos Sociais. Com a presente Secretaria de Estado tem-se em vista incrementar as ações destinadas aos retomados das ex-colónias, considerando-se como seu objetivo fundamental a integração social desta população nos territórios do continente e ilhas adjacentes. A nova Secretaria de Estado visará o estudo e a análise da situação, bem como o planeamento de ações e a criação de medidas de política imediatas, a curto e a médio prazos, e a sua execução.” Seguem-se um conjunto de resoluções, desde logo a definição oficial de ‘retornado’ e das condições de elegibilidade para aceder aos sistemas de assistência desenhados para efeito do seu enquadramento. Define-se ‘retornado’ na esteira da nova arquitectura determinada para os cidadãos da república regulada pelo Decreto-Lei n.º 308-A/75 e o critério étnico, ancorado no princípio do ius sanguinis, de  acesso pleno à cidadania, é instituído. Para Pena Pires a intervenção do Estado português pode ser interpretada como acção promotora da integração com um carácter transitório e assistencialista (Pires, 2003: 231). É este aspecto que nos parece insuficientemente problematizado na análise do processo de repatriamento das colónias portuguesas.

As estruturas de apoio à população retornada tiveram, de modo evidente, a consequência de produzirem identidade por via da sua formalização e institucionalização. Através dos apoios, da consequente definição oficial da categoria, da sua inclusão nos formulários do recenseamento nacional, e das políticas públicas desenhadas para facilitarem o acesso da população retornada a um conjunto de recursos, a ideia de retornado vai-se materializando na sociedade portuguesa. As infra-estruturas criadas operaram ao nível da logística de transporte e realojamento mas, com análoga importância, são fundados programas de atribuição de crédito com condições particulares, geridos pela comissão interministerial de financiamento a retornados (CIFRE) e que em 1979 passaria a estar na dependência da Secretaria de Estado das Finanças sob a forma de Direcção do Crédito CIFRE. A criação de um quadro geral de adidos que funcionou como um sistema de gestão dos recursos humanos tornados excedentários após a descolonização (com funções entre Abril de 1976 e Fevereiro de 1984) teve como objectivo a implementação de uma política de recolocação de pessoal na transferência para a ex-metrópole e permitiu reinstalar um segmento significativo deste contingente. Por outro lado, um aspecto não despiciendo deste processo, assenta justamente na transferência progressiva de um conjunto de programas de apoio à população alargada de retornados, em particular os programas de acção social como a atribuição de bolsas, de subsídio de alojamento, de subsídios de desemprego e de abono, bem como outro tipo de prestações sociais, no quadro de uma política de âmbito nacional que é plasmada na criação do sistema de segurança social em 1977.

Se é certo que esta população se concretiza nesta dimensão pública que adquire, enquanto receptora de um conjunto de políticas de enquadramento e enquanto categoria oficial – categoria essa que viria a permitir o extensivo retrato sociográfico desta população no exercício censitário de 1981 –, não é menos verdade que a dita diluição da mesma no espaço público é também produto de uma acção directa do Estado que após a extinção, em 1981, do IARN elimina paulatinamente a categoria do universo institucional português. Não obstante a permanência e presença coloquial da expressão ‘retornados’ em determinados contextos narrativos, a desinstitucionalização da categoria, em conjunto com a ausência de marcadores fenotípicos generalizados desta população e as variáveis já adiantadas em trabalhos citados acima parece-nos ter contribuído directamente para um putativo processo de assimilação[7]. Uma outra dimensão podia acrescentar-se a esta discussão mas falta-lhe ainda a profundidade que permitiria o seu desenvolvimento argumentativo e que aponta no sentido da tese da população repatriada ser portadora de um conjunto de valores e de atitudes menos conservadora comparativamente ao contexto de recepção carecer ainda de uma comparação rigorosa com o que representou em matéria de mudança social, ao nível dos valores e das atitudes da população portuguesa, o 25 de Abril de 1974. Mas esse é um outro trabalho.

 

Comunitarizar a diferença: o repatriamento hindu

Desafiando noções historicamente dominantes de vínculos imperiais, sustentadas numa mitologia de entretecimento racial, o ‘refluxo do império’ assinalou o derradeiro teste às linhas reais de divisão que configuraram a experiência colonial. A pesquisa que nos permitiu observar, para as populações migrantes hindus com quem trabalhámos, as semelhanças na organização de padrões de relações inter-étnicas entre espaços de origem e de destino, interligando ex-metrópoles, Gujarate e África Oriental, confirmou os desafios particulares que estas populações enfrentaram, na pós-colonialidade, no momento de reclamarem pertenças formais. Embora os contextos coloniais que discutimos nesse trabalho – Moçambique e também Quénia, Tanganyika e Uganda– sejam espaços com histórias próprias, sobressairam processos comuns relativamente ao tratamento consagrado genericamente às populações asiáticas. Os estereótipos derrogatórios, as intenções perenes de restrição de liberdades manifestadas por diferentes sectores sociais e agentes económicos, a evolução do seu estatuto formal e os episódios que envolveram as independências foram momentos que podemos considerar cruciais nas histórias destas populações[8].

A história das populações hindus em Portugal continental não é descoincidente das de outras populações hindus na Europa Ocidental. A sua migração ocorre de acordo com o modelo migratório tradicional entre antigas colónias e ex-metrópoles (Castles e Davidson, 2000, Alba e Silberman, 2002) tendo Moçambique como local de partida principal. As continuidades entre o período colonial e pós-colonial são, pois, partes constitutivas dos processos de incorporação de populações imigrantes provenientes desses territórios emancipados e dão azo a particularidades que distinguem esses mesmos processos entre diferentes ex-metrópoles. A imigração, em particular a migração de agregados familiares multigeracionais, implica um exercício de planeamento complexo e tem frequentemente na sua raiz um conjunto de acontecimentos que, mais ou menos traumáticos (Alexander, 2004), implicam todavia riscos objectivos – económicos e físicos – como aliás é visível no caso das populações repatriadas portuguesas[9]. A apreciação desses mesmos riscos, bem como as opções resultantes, não foi uniforme, também no caso das populações hindus. A ‘disposição familiar principal’, como a designa Pina Cabral (2003), manifestou-se no envio adiantado dos filhos, por parte de algumas famílias, para a Índia ou Portugal, para continuação dos estudos, afastados das ondas de choque dos conflitos independentistas; ou, em menor número, na decisão de abandonar o território antecipando eventuais ressonâncias étnicas dos conflitos em curso – à imagem do que tinha já sucedido em territórios próximos[10].

Em Portugal, entre finais da década de 70 e início da década de 80, as populações hindus fixaram-se sobretudo nos subúrbios mais acessíveis que se multiplicavam à volta da cidade de Lisboa: em particular em locais como Santo António dos Cavaleiros ou em bairros como a Quinta da Vitória e o Vale do Areeiro que eram já, ou vieram cedo a ser, percepcionados como “zonas residenciais de carácter étnico” (Malheiros, 1996: 140). A multiplicidade de experiências verificadas entre os hindus imigrados para Portugal durante este período é igualmente reveladora da discricionariedade com que as condições de acesso à nacionalidade, e por conseguinte do acesso às estruturas de apoio locais da IARN, foram definidas e conduzidas. A naturalidade tornou-se uma prerrogativa que determinava quem teve e não teve acesso às condições estruturais de facilitação do processo de repatriamento e de incorporação no novo contexto receptivo criadas pelo Estado Português. Se, por um lado, é garantido acesso automático à nacionalidade portuguesa aos naturais dos territórios indianos sobre os quais Portugal teve soberania, por outro lado, são ‘deixados de fora’ os indivíduos de ascendência indiana nascidos em Moçambique, inclusivamente os que tinham cumprido o serviço militar obrigatório[11]. Assim, no período em que assistimos à emergência de um arranjo institucional que garante, a par com os direitos políticos que se redistribuíram após o 25 de Abril, os direitos sociais que estarão na base do Estado-Providência como o conhecemos, são também definidas as regras de pertença à ‘comunidade política’ que se refundava. As novas regras, apesar do contexto político, introduziram o critério étnico como elemento determinante para obtenção do estatuto de pertença o que permitiu a transferência do estatuto das populações minoritárias do território colonial para a ex-metrópole. A incorporação destas populações minoritárias fez-se assim maioritariamente no mercado secundário de trabalho, por via do auto-emprego ou em sectores desqualificados como a construção civil. A ocupação de espaços comerciais desvalorizados, como foi o caso da zona do Martim Moniz, tornou-se visível nas lojas e pensões que foram ocupadas após a descolonização por comerciantes de origem indiana, tanto hindus como muçulmanos (sunitas e ismailis)[12]. O baixo preço das rendas praticadas naquele espaço atraiu os primeiros hindus a chegar a Portugal e a transferência e activação das redes sociais consolidadas em Moçambique reconstituíram progressivamente nesse local o que Waldinger (1994) designaria por ‘nicho étnico’. A reconstituição e manutenção das redes de sociabilidade étnicas, forjadas em contexto de segregação colonial, são assim, também, coadjuvadas pelas características sociais, económicas e políticas da pós-colonialidade, contribuindo para um processo de coalescência étnica.

Entre os últimos anos da década de 70 e os primeiros da década de 80, o número de hindus em Portugal continuou a aumentar. E, apesar da carência de um local de culto apropriado não ter sobressaído como necessidade primária para as primeiras famílias que se fixaram em Portugal, com o passar do tempo, o contexto social específico mencionado acima determinaram a configuração de um ‘comunitarismo etno-religioso’. O número de hindus vindos de Moçambique estabelecidos em Portugal na segunda metade da década de 70 não era ainda significativo e as questões prementes estavam mais relacionadas com a demanda por uma habitação adequada à recomposição do agregado familiar e com o recomeço da actividade profissional. As datas do calendário hindu eram assinaladas no espaço familiar, o que não era estranho à vivência doméstica das práticas religiosas hindus-gujaratis nem a uma certa autoridade feminina sobre esta dimensão[13].

Em 1976, é criada uma comissão ad hoc com o objectivo de organizar eventos culturais e recreativos para a população hindu residente na Grande Lisboa. No início dos anos 80, o número de hindus em Portugal aumentou e, mais precisamente em 14 de Janeiro de 1982, é feita a escritura pública da associação. Em 1985 é negociado com a Câmara Municipal de Lisboa a cedência de um espaço na zona de Sapadores por um período de três anos que acabou por se estender a dez. Nesse momento, a associação já se encontrava formalmente organizada e a denominação adoptada, Comunidade Hindu de Portugal, anunciava o desiderato conciliador da direcção face a eventuais dispersões. A capacidade de negociação com as autoridades oficiais é evidente na concessão do apoio da autarquia de Lisboa ao ambicioso projecto de construção de um espaço polivalente que acolha um mandir como peça central de um complexo que reuniria um conjunto de espaços aptos a receber diferentes tipos de eventos e fornecer diferentes tipos de serviços sociais a uma população específica, como um restaurante, um infantário, um centro de dia, entre outros. A cedência do espaço é surpreendentemente uma conquista acessível que permite pôr em curso o desejado projecto que chegou a ser publicitado como um dos maiores templos europeus. Com um terreno com uma área de 8 750 m2, a planta dos edifícios compunha uma área de construção de cerca de 15 000 m2 divididos pelo templo, centro social, auditório, parque de estacionamento e zona de jardins dentro de muros. De acordo com as informações de diferentes interlocutores, o financiamento foi obtido através de doações, num sistema de patrocinato, das famílias hindus mais afluentes. Em 1987 a Comunidade Hindu de Portugal é reconhecida como Instituição Particular de Solidariedade Social, o que lhe permite posteriormente uma maior capacidade de negociação dentro da esfera pública; por exemplo, através da promoção de cursos de formação profissional, patrocinados pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional, leccionados no espaço da associação, possibilitando um acesso privilegiado a instâncias de capacitação formal por parte dos seus associados.

A particularidade suplementar das populações hindus que tomámos como objecto prende-se com o carácter repetente da experiência migratória e com algumas etapas que faziam já parte de uma memória colectiva destas populações em particular com a migração pós-descolonização para Portugal. É verdade que esta memória colectiva reforça sentimentos de coesão, sem esquecer também que falamos de uma população que existe enquanto grupo alóctone há mais de um século, primeiro no leste africano e depois na Europa. A endogamia prevalente tem, igualmente, reactualizado os sentimentos de pertença a um colectivo religioso. A população com que trabalhámos era constituída na sua quase totalidade por pequenos e médios comerciantes. Retalhistas e pequenos grossistas com qualificações baixas que dificilmente se poderiam reinventar no novo contexto de acolhimento e cujas redes, que estavam em condições de activar, eram compostas por co-étnicos. Um processo que facilmente desencadeia mal-entendidos analíticos entre o peso das ‘disposições étnicas’, o ‘sentimento de pertença comunitarista’ e a influência dos constrangimentos estruturais presentes na ex-metrópole – parte original, parte transferida das ex-colónias. Contudo, apesar da segmentação social, estas populações converteram capital económico em capital educativo nas segundas gerações, um investimento que tem contrariado nas novas gerações o que alguns interlocutores hindus citam como constante de carácter étnico que predispõe para a actividade comercial. Para além da questão fenotípica evidente, e que diz mais sobre as representações da população maioritária sobre populações minoritárias do que sobre as populações minoritárias em si mesmas, a ideia de ‘comunidade hindu’ foi reforçada por bloqueios estruturais que estavam presentes no mercado de trabalho e na matriz de acesso à nacionalidade. Ultrapassados esses constrangimentos, esta população presta-se justamente a poder representar a categoria de controlo para a hipótese assimilacionista tal como parece ter sido assumida por omissão para os outros ‘retornados’. O não reconhecimento da nacionalidade e o resultante arredamento da rede de apoio preparada para as populações repatriadas, a não existência de redes familiares estabelecidas no território e a cor da pele produziram as condições suficientes para a concentração residencial e a consolidação de redes sociais de co-étnicos como instrumentos de diminuição do riscos inerentes à condição de grupo minoritário, tal como tinha sucedido em contexto colonial.


Conclusão

Em retrospectiva, a tese da assimilação da população retornada no contexto da descolonização não nos parece, pelo menos na generalidade, controversa. É irrefutável que houve um primeiro momento de tensão social, pública, durante a primeira fase de instalação desta população na ex-metrópole que nos anos seguintes se terá rarefeito. Surpreendentemente, a tese que nos parece que neste ponto ainda não mereceu dedicação analítica suficiente é justamente a da emergência do Estado Social no contexto de acolhimento à população repatriada e dos seus efeitos sobre estas, e que foi já aventada em trabalhos internacionais[14]. Consequentemente, fica por discutir a importância do Estado Social e de políticas de redistribuição na produção de processos de horizontalização das relações sociais entre grupos minoritários e maioritários. Do mesmo modo perde-se a oportunidade de olhar para o papel do Estado na diluição de marcadores distintivos e de fronteiras étnicas e sociais entre grupos sociais. O que torna este período mais excepcional, do nosso ponto de vista, é que ele ocorre em pleno processo de redefinição da identidade nacional. Ser retornado, apesar de tudo, neste contexto, significava ser português, o que combinado com o fenótipo não discrepante da sociedade maioritária e a recolocação ocupacional para os funcionários públicos criou, reactivamente, mas desde cedo, as condições que permitiram uma invisibilidade social relativa destes indivíduos. Quando Pires (2003, p. 252) refere que a regulação estatal do processo de integração dos retornados esteve mais centrado na criação de estrutura de oportunidades do que na adopção de mecanismos de discriminação positiva está a baralhar semanticamente a análise ao excluir da avaliação da citada estrutura de oportunidades um conjunto de categorias de indivíduos que não têm entrada na dita estrutura criada. É neste ponto que as populações hindus permitem discutir a consequência de modelos políticos que definem a cidadania a partir de critérios exclusivistas de base étnica, tal como aconteceu com o critério estabelecido de acesso à cidadania plena no Portugal pós-colonial. A definição da nacionalidade por linha sanguínea produz a raia na participação permitida a diferentes grupos de cidadãos instalando a ideia de etnicidade no campo político, vinculada à ideia de cidadania. A tese que nos ocupou neste artigo, e que é merecedora de uma pesquisa mais alargada, centra-se na ideia de que, relativamente à população retornada, o Estado português enquadrou a excepcionalidade do seu contexto reivindicativo material, de modo particularista, para depois a diluir por via do alargamento dos programas de acção social concebidos para esse efeito primordial. Ou seja, o Estado Social, como o entendemos hoje, é também uma consequência dos problemas sociais concretos criados pelo contingente retornado. O que é relevante, neste processo, em particular para a tese que nos ocupa, é o argumento inferido de que o aparente conflito social em curso se terá atenuado e dissolvido após a satisfação de necessidades primárias das populações repatriadas (habitação, acesso a cuidados de saúde, à educação e a prestações sociais de protecção das classes trabalhadoras), e  em simultâneo, evitado um alegado choque de valores através da universalização do acesso aos instrumentos que permitiram responder a essas mesmas necessidades que se manifestaram agudamente no quadro do retorno colonial.

 

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Notes

[2] Como âncora descritiva optamos por usar o substantivo ‘população’ justamente por este se encontrar menos denotativamente vinculado a um imaginário de homogenia moral e de conformidade nas atitudes e nas disposições do que o conceito de comunidade. E, também, por permitir mais obviamente desvendar os mecanismos estruturais e políticos subjacentes à dimensão processual de produção de categorias sociais.

[3] Para uma descrição do processo de discussão oficial em torno da anulação científica do conceito de raça e respectiva substituição pelo conceito de etnicidade ver Montagu, 1972.

[4] Vd. Gellner, 1983.

[5] Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais.

[6] Para uma cartografia das diferentes pressões da esquerda à direita no exercito como na resistência e nos quadros técnicos como no movimento operário, ver Rosas, 1998.

[7] Pelo menos no sentido apontado pela refundação do conceito proposta por Alba e Nee (1997).

[8] Deve resalvar-se neste ponto a excepção outorgada aos indianos originários dos territórios do subcontinente sob administração portuguesa até 1961. Sobre esta questão veja-se Dias (no prelo).

[9] Ver inter alia Leandra (1984) e Oliveira (2004).

[10] Ver Dias (no prelo).

[11] Para uma discussão mais detalhada das consequências do decreto-lei que veio regular o critério pós-colonial de distribuição da nacionalidade portuguesa ver Dias (2010).

[12] Ver a propósito da sobrerepresentação das populações indianas na zona do Martim Moniz e eixos da Av. Almirante Reis e Rua do Benformoso Malheiros (1996).

[13] Uma reconfiguração que se tinha, aliás, já consolidado no leste africano (Morris, 1956).

[14] Veja-se, por exemplo, Hoefgen (1985) e Cardoso (2001).

 

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