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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.29 Lisboa dez. 2014

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Cururu: os recantos do espaço vivido no canto proferido.

Cururu: The innermost secrets of the space lived by the rhythm.

Jane VictalI; Vitor Sartori CordovaII

[I]Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Brasil. e-mail: janevictal@puc-campinas.edu.br.
[II]
Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Brasil. e-mail:vitorcordova@yahoo.com.br.

 




RESUMO

Este artigo apresenta um dos mais típicos habitantes do interior dos sertões brasileiros e uma de suas práticas culturais, o caipira e o cururu. Indivíduo em grande contato com a natureza e fruto da miscigenação entre portugueses e índios, foi um dos principais povoadores e desbravadores dos sertões desde as caravanas articuladas pelo governo português em busca de ouro e mão de obra escrava indígena, as denominadas bandeiras. Após a coroa portuguesa se desinteressar pela já decadente e rala economia aurífera e pelas mal fadadas tentativas de implantação da monocultura açucareira no século XVI, aos poucos se fixaria nas antigas paragens formadas ao longo dos caminhos que percorria, tornando-se algumas dessas em freguesias, vilas e posteriormente cidades. Desta maneira, o artigo visa apresentar, a partir de uma sucinta exposição do caipira, não só a importância da herança cultural incorporada pelos povos que lhe deram origem, mas também a relação com o espaço que nutriu no decorrer do desbravamento que realizava pelos sertões, principalmente o paulista. Desta forma, o artigo esboça um pouco da cultura desse tipo humano por intermédio do cururu, sua manifestação musical mais típica e ainda resistente nos meios urbanizados do interior do estado de São Paulo, fazendo com que esta representação sócio-espacial ainda se mantenha viva neste canto. O cururu seria então entendido aqui não só como uma ferramenta que evidencia um passado existente, mas uma articulação entre tradição (identidade) e memória que ainda realça sua importância no presente.

Palavras-chave: tempo-espaço; cidades paulistas; cultura; caipira; cururu.


ABSTRACT

This article presents one of the most typical inhabitants of Brazilian hinterlands as well as one of his major cultural practices: the caipira and the cururu, respectively. The caipira have always been in great contact with nature and is the result of miscegenation between the Portuguese people and the Brazilian Indigenous. They were the major settlers and explorers of Brazilian hinterlands after the caravans, also known as bandeiras, were established by the Portuguese in the search for gold and indigenous slave labor. Once the Portuguese Crown lost interest in the decaying and weak auriferous colony and after unsuccessfully attempting to establish sugar cane monoculture during the 16th century; parishes, villages and cities were slowly established in the stops previously founded along the way. Thus, by means of briefly presenting the caipira, this article aims at discussing the importance of their cultural heritage as well as the relationship established between these people and the space created while exploring Brazilian hinterlands, especially the territory of São Paulo. Furthermore, the present study also outlines the major cultural aspects of these people by means of presenting cururu, their most typical form of musical expression. Cururu resists in the urbanized centers of the interior of São Paulo, thereby allowing the social-spatial representation to outlive in this chant. Therefore, cururu is understood not only as a tool that evinces the past, but also as a means of articulating tradition (identity) and memory which continues to reinforce its importance at present.

Keywords: space-time; cities of São Paulo; culture; caipira; cururu.


 

1. O Caipira: a formação do ser vivente

O Estado de São Paulo se divide em dois tipos de áreas quanto ao seu povoamento (Fukui, 1979). Têm-se áreas de povoamento antigo, ocupados nos primórdios da colonização e se caracterizando tanto pela agricultura de mantimentos como por não ter atravessado os diferentes ciclos econômicos que, mais tarde, passou a economia paulista [3] e as zonas de povoamento recente, que se deu a partir do século XIX até começo do século XX, se caracterizando pelo desenvolvimento da cultura cafeeira e da açucareira que contou com várias modernizações no modo de produção pelos engenhos centrais [4] e depois com as usinas [5].

Na primeira fase de ocupação, figura com destaque o bandeirante explorador dos territórios do sertão paulista. Abreu (1930) destaca que o português desbravador do sertão não era o tipo de indivíduo que costumava fazer paragens entre um ponto ao outro do caminho percorrido. Em sua jornada, a única coisa que importava era a chegada ao local para onde se destinava, porém, para a descoberta desses caminhos era primordial a abertura de picadas na mata. Como conseguir se situar numa floresta densa como a que se encontrava nesses caminhos sem um mínimo conhecimento do território? É de se supor que para tal tarefa muitos desses portugueses utilizavam a prática do “cunhadismo”[6].

Esse sistema largamente usado pelo português recém-chegado se caracterizava pelo seu ingresso e participação na família do índio. Essa era uma das formas, senão a única, que o português encontrou para realizar uma maior aproximação com o nativo, incorporando seu conhecimento sobre a geografia e as técnicas de subsistência que garantiriam a conquista do território descoberto. O individuo gerado pela união dos portugueses com as índias, denominado mameluco, herdava as trocas culturais entre os dois grupos étnicos participantes no processo da miscigenação.

O mameluco desenvolvia um senso itinerante com um extraordinário conhecimento da topografia, da fauna e da flora, responsável por sua orientação entre os caminhos e de sua fixação, mesmo que temporária, neste território. Desta forma, o bandeirante destacado na literatura clássica, o mesmo fundador de pousos e conhecedor dos caminhos, na verdade, não seria o português, mas sim este indivíduo miscigenado. Acostumado com as mais diversas dificuldades que encontrava, tinha pela troca cultural uma maneira peculiar de ocupar o território que habitava [7]. Sendo a terra a ser ocupada de imenso tamanho, os bandeirantes se utilizavam de paragens ao longo dos caminhos tornando-as pousos obrigatórios. Esta ocupação fornecia a oportunidade perfeita para se conhecer a região circunvizinha quando estabelecido um ponto fixo.

“Se é preciso descer um grande curso de água, não contam o tempo; aboletam-se e acampam na margem; abatem árvores gigantescas, de cujos troncos e às vezes das cortiças, formam esquadrilhas de canoas carcomendo-as a fogo. Quando se julgam prontos, logo embarcam numerosos no meio do alarido de todas as vozes. Quando o alimento e as munições se esgotam, ou quando a terra lhes nega a caça ou os vegetais reparadores, não desanimam: acampam de novo, queimam a vegetação bravia em longos tratos com a terra e fazem a roça, onde semeiam os cereais. Esse acampamento dura até a colheita que é, sobretudo, de milho, por mais pronta e rápida; e nesse meio tempo, enquanto o milharal cresce, toda a terra circunvizinha, num raio de muitas léguas, fica conhecida”. (Cortesão, 1969: 184-185)

Na medida em que a economia colonial se desinteressava pela caça ao índio e a atividade aurífera se exauria, este indivíduo caracterizado por uma vida seminômade - morando em casebres denominados “ranchos” (denunciando a efemeridade da permanência no local) -, passou a se fixar nas antigas paragens dos caminhos pelos quais percorria. A ocupação dessas paragens deu origem a um tipo de formação territorial que compreende além de um reconhecimento mútuo entre as pessoas que o ocupavam - posteriormente resultando num pertencimento ao lugar e ao grupo por laços de parentesco, de vizinhança e de cooperação mútua -, a um reconhecimento topográfico e topológico. Fomentou inclusive a formação de uma rede de pousos que, com o tempo, influiu na localização de assentamentos, povoados e finalmente na elevação de alguns desses em freguesias, vilas e cidades.

A partir deste momento, o bandeirante (em grande contato com os fenômenos da natureza) uma vez fixado, começa a se transformar num tipo humano que viveria do plantio e da colheita do seu alimento, além de conhecer os ciclos das estações anuais e as condições meteorológicas para realizar suas atividades, ficando conhecido na literatura por caipira. Em seu livro “Conversas ao pé do fogo”, Pires (1987) analisa o termo “caipira” que designa um tipo de aldeão, um lavrador da terra, um camponês. A origem do nome deriva da palavra do idioma tupi-guarani “capiâbiguâra”, no qual se denota o derivativo “caipirismo”, que seria um tipo de acanhamento, um indivíduo vergonhoso e de pouca experiência no âmbito social. Dividindo a palavra “caipira” tem-se o prefixo “caí” que em tupi-guarani significa “gesto do macaco ocultando o rosto” e “capipiara” que significa “aquilo que é do mato”. Esta palavra deriva de “capiã”, ou seja, “de dentro do mato”. Estes vocábulos fazem menção à “caapi”, “aquele que trabalha na terra”, que “lavra a terra”.

No folclore brasileiro há alguns personagens que derivam dessas palavras apresentadas, o “curupira” e a “caipora”, conhecidos como demônios malfazejos que habitam os confins das florestas. Neles constata-se que “curupira” termina com “pira” que remete à “Capipara”, “o que é do mato”, e “Caipora” que apresenta o prefixo “caí”. Muito relevante observar tais termos encontrados em alguns personagens folclóricos brasileiros em comparação com o caipira, pois este é encarado como algo oposto ao cidadão. Este tipo humano é classificado por aquilo que ele não possui e visto como o próprio personagem folclórico, ou seja, como algo que não existe, que não é visto ou impossível de qualquer forma de existência.

Associado ao lugar onde mora, ou seja, o “mato” (sempre aqui visto como um lugar vazio, inóspito ou exótico), é caracterizado como alguém que não habita numa povoação e não consegue se adequar aos padrões de civilidade ocidentais, tornando-se foco de adjetivações pejorativas. Na historiografia, mais precisamente sobre a formação da rede urbana do sudeste do país, o caipira é encarado com os mesmos olhares de desprezo e desatenção. Isso se dá, pois, na formação secular do povo e da cultura brasileira, a ocorrência do trabalho escravo indígena e africano pautou por mais de três séculos a história do Brasil, moldando essa visão segregativa na maioria dos viajantes que excursionaram pelos seus sertões. Na maior parte dessas visões, por exemplo, é fácil encontrar os senhores de terras - os detentores da mão de obra escrava com empenho progressista permeado pela influência política e econômica - mantendo lugar cativo nas decisões sobre os rumos das pequenas localidades. Para o viajante que adentrava o sertão, imperava-se o olhar eurocêntrico quanto a estes habitantes autóctones das terras brasileiras. A unilateralidade de suas análises contribuía para o dualismo societário entre senhores de terras e escravos, pois esta relação seria a mais visível num país pautado pela economia monopolista da metrópole, da concessão estatal de terras e da monocultura que tanto marcou a economia brasileira respaldada pelo grande latifúndio.

O homem propriamente livre começou a se tornar fato possível somente no século XIX com lei número 601 de 1850 [8] que outorgava o título de posse de terras por compra e com a abolição da escravidão em 1888 [9], leis estas que contribuíram para que o Brasil entrasse em definitivo no patamar de um país ausente do escárnio da servidão. Antes disso, este homem livre raramente era registrado pelos viajantes que se aventuravam pelos sertões brasileiros, como era o caso do próprio caipira [10]. Sendo habitante da terra, raramente tinha o título de propriedade e, desta maneira, era muitas vezes forçado a abandoná-la quando por determinações da lei era obrigado a buscar outras repartições a qual pudesse sobreviver.

Desta forma, Candido (1964) - no resgate deste habitante em “Os parceiros do Rio Bonito” -, busca traçar o perfil sociológico e antropológico deste tipo humano que habita, em grande maioria, no interior da parte sudeste do território brasileiro, retratando-o como um homem inserido numa economia de subsistência e que mesmo com comportamento peculiar de isolamento, ainda mantém um mínimo de sociabilidade com seus semelhantes. Num primeiro momento envolve a discussão do termo “rural” onde habita o caipira em oposição ao meio urbano. Dessa maneira, este termo exprime não uma mera localização, mas sim um lugar que classifica um tipo social e cultural. Convém-se lembrar de que nos séculos XVI, XVII (e até mesmo XVIII) era muito difícil designar o que era urbano e rural no Brasil, visto que as atividades econômicas do país neste período foram majoritariamente pautadas pelo latifúndio monopolista e pelas pequenas unidades rurais de agricultura de subsistência. Há ainda autores que defendem que esse sistema econômico monopolista era parte estratégica para o desenvolvimento urbano somente da metrópole, constituindo-se a colônia como uma retaguarda rural aos avanços urbanísticos europeus [11].

Candido (1964) diz que para o caso do caipira - que sempre esteve à margem dos processos econômicos voltados a um sistema de excedente e de exportação –, rústico se traduz melhor para o seu modo de existência, exprimindo assim as modalidades étnicas e culturais que se manifestavam no contato e ajustamento do português com o meio que encontrou no novo continente. Desta forma, o autor apresenta um quadro muito interessante quando analisa este homem do campo designando-o por “caipira”. Sua especificidade enquanto ser humano inserido numa localidade, num território, enquanto luta pela sua sobrevivência num meio que lhe oferece resistência, cria certos símbolos os quais vão, aos poucos, oferecendo um esquema cognitivo que usa para explicar não só sua própria existência, mas também a relação das coisas ao seu redor. Uma característica destas trocas culturais é a forma de ocupação do território.

A província do Sul [12], uma vez muito distante de qualquer jurisdição, era uma grande extensão de terra a ser ocupada. De primeira vista tem-se a ideia de um povoamento disperso incitando uma conclusão precipitada de isolamento, mas esta característica não condiz com este homem encontrado no sertão paulista, mesmo na sua condição de vida andeja. Um homem isolado, sem contatos mínimos, pouco poderia realizar a tarefa de simbolizar sua própria existência. Tal atividade só pode ser realizada por meio da existência de “um outro” e na condição de que este outro seja partícipe do mesmo nível de vivência. Assim, a existência de um grupo social pressupõe a obtenção de um equilíbrio relativo entre as suas necessidades e os recursos do meio físico, requerendo da parte deste grupo soluções adequadas e completas as quais dependem da eficácia e da própria natureza daquele equilíbrio. Candido (1964) afirma que as necessidades têm um duplo caráter que se designam como natural e social, pois se sua manifestação primária são impulsos orgânicos, a satisfação destes impulsos se dá por meio de iniciativas humanas que vão se complicando cada vez mais e dependem do grupo para serem realizadas. Quando as necessidades se complicam e perdem em parte o caráter estritamente natural para se tornarem produto da sociedade, pode-se dizer que esta sociedade começa a se caracterizar pela natureza das necessidades de seu grupo e pelos recursos de que dispõe para satisfazê-las. Desta maneira, o equilíbrio social depende em grande parte da correlação entre as necessidades e sua satisfação [13].

Assim, quando habitado por seres humanos, enquanto necessidade e satisfação estiverem equilibrados, o caráter físico de um lugar não se altera por inteiro. Sua paisagem [14], ou melhor, a imagem que o homem faz dela, se mantém coesa tanto quanto pode para fornecer o que a mente humana tem de melhor para classificar e significar seu meio vivente, ou seja, a capacidade de imaginação e de simbolização (Langer, 1971). O lugar obriga uma constante necessidade de adaptação por parte do homem ao mesmo tempo em que lhe oferece, na medida em que se dá a sua adaptação, oportunidades para a simbolização. A imagem que o homem faz do lugar é que lhe dá o caráter de pertencimento. Quando o homem engloba o lugar em suas atividades de sobrevivência, faz uma ponte entre ele (lugar) e o próprio homem, numa simbiose de copertença e existência autêntica.

Desta forma, nada atrapalha a identificação que o homem tem com o seu próprio ser, fazendo com que as coisas que lhe aparecem, pertençam a uma totalidade referencial coerente para ele. No momento em que o lugar se apresenta ao homem, não se apresenta somente como algo cheio de matéria, objetos, entre outros artefatos físicos, mas sim como algo que reúne uma capacidade de reter sensações, emoções. Especificando, o lugar é a confluência ou a reunião de um meio físico com uma percepção aguda, sensitiva, que só um ser humano pode desenvolver.

Em sua obra “Ensaios Filosóficos”, Langer (1971) utiliza-se do termo “sentir” de forma mais ampla, como a criação de formas perceptíveis expressivas do sentimento humano. Assim, a palavra sentimento (sentir) aplica-se a tudo quanto possa ser sentido. Segundo Langer (1971), pode-se entender que a capacidade de percepção de um ser humano reúne não só seu aspecto fisiológico, mas a capacidade que o homem tem de ordenar e transformar esses fatos do campo fisiológico em coisas racionalmente classificáveis. Da satisfação das necessidades à obtenção dos meios de subsistência, o modo como o indivíduo reage a estes fatores determina a maneira de seu viver, não ficando essa relação pautada por uma simples reprodução de sua existência física.

A coerência das atividades em busca da sobrevivência entre indivíduos apresenta também um esquema que exprime o caráter de um grupo, onde se pode contemplar o equilíbrio entre as necessidades, os recursos que o meio oferece e os tipos de organização que se desenvolvem em consequência dessas necessidades e recursos. Desta forma, o meio natural parece de início como um grande “celeiro potencial” a ser utilizado conforme as possibilidades de operação do grupo (Candido, 1964). O homem, na relação que tem com o mundo, com os animais e com as plantas do ponto de vista da cultura e da sociedade, os concebe na medida em que os reconhece, seleciona e os define.

Assim, Candido (1964) explica que a expansão geográfica dos bandeirantes nos séculos XVI, XVII e XVIII, por exemplo, resultou não apenas a incorporação de território às terras da coroa portuguesa na América, mas também a constituição de certos tipos de cultura e de vida social condicionados em grande parte pelo grande fenômeno de mobilidade. Ao se analisar certas porções do grande território percorrido pelas bandeiras, as características culturais europeias recém-chegadas a este continente se desdobraram numa variedade subcultural do tronco português, formando um novo indivíduo e um novo tipo de aculturação com atividades sociais, culturais e lúdicas específicas chamada de “cultura caipira”.

“A vida social do caipira assimilou e conservou os elementos condicionados pelas suas origens nômades. A combinação dos traços culturais indígenas e portugueses obedeceu ao ritmo nômade do bandeirante e do povoador, conservando as características de uma economia largamente permeada pelas práticas de presa e coleta, cuja estrutura instável dependia da mobilidade dos indivíduos e dos grupos. Por isso, na habitação, na dieta, no caráter do caipira, gravou-se para sempre o provisório da aventura. A sua casa (significativamente chamada de rancho por ele próprio, como querendo exprimir o seu caráter de pouso) é um abrigo de palha, sobre paredes de pau a pique, ou mesmo varas não barreadas, levemente pousadas no solo”. (Candido, 1964: 20) As técnicas e instrumentos rudimentares de trabalho da cultura improvisada do nômade, encontrando condições para sobreviver, também condicionavam uma coerente sociabilidade pautada na desnecessidade do trabalho compulsivo favorecendo a preservação dos costumes da vida do homem do campo. Esta sociabilidade que se enquadrava num povoamento disperso, na verdade, não constituía um isolamento, mas sim uma congregação por cooperações vicinais e pela vida lúdico-religiosa. Essas congregações também se pautariam nas mais diversas manifestações culturais como a musical que, no caso, se corporifica num canto típico desses caipiras, a saber, o cururu.

 

2. A música: a viola e o cururu

Deve-se compreender que o costume à miscigenação e ao contato com outras culturas por parte do português já acontecia em território metropolitano com escravos negros, contribuindo desde o início para um abrandamento e adaptação a diferentes culturas por parte do lusitano. Desta forma, entende-se que a adaptação ao meio, mais precisamente no sertão paulista, só veio em consequência da compreensão, ou melhor, de uma sensibilidade cultural por parte do português de muito tempo exercitada. A facilidade de relações que portugueses e espanhóis estabeleceram com povos africanos explica desde já o “intercurso sexual” dos colonizadores, representando uma característica muito peculiar da zona ibérica (Tinhorão, 1972). O contato do europeu com negros da Guiné nas construções dos primeiros quadros de serviços urbanos, por exemplo, já datam de 1400. Contudo, o que chama a atenção do contato do português com outras culturas é a forma como era empregada essa mão de obra.

“Ora, com esses negros, embora sujeitos ao regime escravo (outro costume que os árabes haviam encarregado de difundir na Península), só em parte se destinava, em Portugal e na Espanha, ao trabalho organizado dos campos e da indústria artesanal, as suas relações com os senhores se estabeleceram quase sempre com caráter familiar, como já havia acontecido, aliás, na antiguidade clássica, em muitas cidades gregas”. (Tinhorão, 1972: 118)

A contribuição dos negros levados à região ibérica influenciou muito a cultura portuguesa e os seus costumes urbanos, mas outros povos também se apresentaram à zona da península como, por exemplo, os árabes. Estes trouxeram consigo um instrumento que, segundo Vilela (2004-2005), é conhecido por “oud”. Este instrumento foi o genitor de todos os outros de cordas dedilhadas, possuindo um braço em que as notas podiam ser modificadas. A partir do “oud”, que tinha cinco cordas duplas (totalizando dez), surgem na Espanha as “vihuelas” e em Portugal as “violas de mão”.

“Na Espanha, depois das vihuelas aparece a guitarra mourisca, a guitarra barroca, o tiple e, mais próximo de nosso tempo, o violão. Em toda a Europa o “oud” se transfigura no alaúde, agora com cordas simples e trastes (pequenas barras que fracionam o braço do instrumento em semi-tons). Em Portugal há uma proliferação de instrumentos. O cavaquinho, lá conhecido como machete, bandolins, bandolão, bandocelos, bandobaixos, violiras e guitarras portuguesas. Lá, cada região cria sua própria viola no norte, a viola braguesa, no nordeste a viola amarantina ou de dois corações, no centro a viola campaniça. Elas variavam no tamanho, na forma e no número de cordas, podendo estas ser simples, duplas ou triplas”. (Vilela, 2004-2005:79)

Da mesma forma que os povos na Península foram se misturando, suas culturas seguiriam o mesmo caminho e foram se afinando em singular harmonia. Na época dos grandes descobrimentos, a viola se destacava como um instrumento de grande popularidade musical em Portugal tanto no meio popular quanto na corte (Vilela, 2004-2005). Tanta popularidade que chega a terras brasileiras e se adapta rapidamente aos costumes nacionais, ganhando até nomes próprios como: viola caipira, viola cabocla e viola nordestina.

Porém, o ato de tocar viola era visto como um dom de pessoas importantes ou predestinadas. Na comunidade onde o tocador de viola ou o violeiro vivia, era ele quem acompanhava os ofícios religiosos que exigiam música como na folia de Reis, na festa do Divino, na de São Sebastião e nas danças de São Gonçalo. Tocar viola passa a ser uma atividade de extrema importância, fazendo com que as pessoas atribuíssem ao violeiro um dom divino que poucos mortais conseguiam obter. Essa atividade singular de tocar, até mesmo dá ao executante o poder de escolher a pessoa a quem ele transmitirá seus conhecimentos, ficando um privilégio de poucos o ofício de ser violeiro (Vilela, 2004-2005).

O ato de tocar a viola também fica ligado a uma proximidade com o sobrenatural, com os animais ferozes que se encontravam mata adentro e com o domínio sobre o demônio. Atos como simpatias em cemitério, em encruzilhadas que envolviam os dentes ou o guizo de cobra (cascavel), são utilizados para se obter poderes na hora de executar as músicas no instrumento com grande destreza. O violeiro passa a ser uma entidade mediadora do sagrado ao profano tocando na folia de Reis, mas ao mesmo tempo faz tratos com satanás para poder tocar melhor. Este ato, mesmo com o violeiro tratando com duas entidades antagônicas, ou seja, Deus e o Diabo, não o exclui da comunidade em que reside.

É por este viés que é possível averiguar como a fusão racial entre portugueses e índios daria frutos no quinhão cultural, vide a música do caipira que se denomina cururu. O cururu é um canto praticado pelos caipiras de São Paulo, podendo ser encontrado em certas zonas do estado paulista como a Baixa Sorocabana, nos estados de Goiás e Mato Grosso e até na periferia da capital paulista. Consta de uma dança rodeada em que se tem a predominância do sexo masculino em sua apresentação, consistindo numa saudação aos presentes, numa louvação aos santos e finalmente nos desafios cantados, tal qual um repentismo.

Nesta manifestação, os cantadores [15] propõem uns aos outros problemas de fundo religioso ou profano, visando derrotar o adversário e exaltar a própria pessoa. Comumente, o sorteio para ver quem canta primeiro se dá colocando em pequenos papéis o número dos cantadores participantes. Na medida em que vai se sorteando esses números, os cantadores vão se organizando para ver quem começa a cantar. Algumas vezes é respeitada a idade dos cantadores, deixando o mais velho começar a cantoria. Usado como ferramenta pelos padres jesuítas para catequizar os “selvagens”, seu conteúdo acabou incorporando os textos da religião católica.

“Caso mais indiscutível ainda dessa fusão ameríndio-jesuítica é o do Cururu. Em certas festas populares, religioso-coreográficas, tais como a dança de São Gonçalo e a dança de Santa Cruz, pelo menos nos arredores de São Paulo, após cada número do cerimonial, dança-se um Cururu. Ora, os processos coreográficos desta dança tem um tal e tão forte sabor ameríndio, pelo que sabemos de danças brasílicas com a cinematografia atual, que não hesito em afirmar ser o Cururu uma primitiva dança ameríndia, introduzida pelos jesuítas nas suas festas religiosas, fora (e talvez dentro) do templo. E esse costume e dança permaneceram até agora.” (Candido, 1999: 37)

Genericamente, “cururu” é o nome dado a um sapo que na cultura indígena (principalmente tupi-guarani, dentre outras que sofreram suas influências) está presente nos mitos sobre a origem do fogo. O conteúdo inicial do canto (antes de passar pelo sincretismo cristão) era o roubo do fogo por animais, motivo muito presente nas tribos da América do Sul. Assim, o roubo da faísca era efetuado por uma raposa ou por um sapo, sendo este animal o mais predominante nas tribos da grande família linguística dos tupis-guaranis. O sapo tinha a singular capacidade de engolir coisas ardentes como cigarros e brasas, confundindo-os com vagalumes.

Na representação dramática do mito “do rapto do fogo” podem ocorrer verdadeiras “danças do sapo” em que os dançadores refazem o processo mítico. Este processo consistia em que o chefe da tribo levantava-se, dançava alguns passos e sentava-se tragando um grande cachimbo ao final do ritual. Isso se repetia por diversas vezes como demonstrado por Herbert Baldus, antropólogo citado por Candido (1999) em seu artigo denominado “Cururu”, onde pôde constatar esta prática na tribo tupi dos Guajajara, localizados no rio Grayahú no Maranhão em 1927.

“A cada intervalo do baile punha-se o chefe a cachimbar. Que isto lhe era necessário evidenciou-se depois. Ateou- se um fogo ao redor do qual os rapazes morenos pulavam em estado de embriaguez completa. De repente o chefe acocorou-se e pôs-se a saltitar pelo fogo a soltar o hu, hu, hu do sapo. Depois tomou uma brasa e pondo-se a assoprá-la, engoliu-a devagar. Isso foi o ponto culminante do baile, mas não o único. A dança durou, quase sem interrupção, toda a noite. E sempre se repetia a cena de engolir da brasa”. (Baldus apud Candido, 1999: 39).

Candido (1999) assinala que a reinterpretação do ritual na cultura caipira, no caso de sua difusão, tenha ocorrido por meio da catequese jesuíta. Os padres aproveitaram cantos e danças dos índios para levá-los a compreender e aceitar mais depressa a doutrina cristã, mas nem por isso foram bem compreendidos pelas autoridades eclesiásticas que viam neste aproveitamento um desvio da boa norma doutrinária e consequentemente como um ato pagão. Quanto ao desenvolvimento da religião católica no Brasil, esta deu lugar a fenômenos de acentuado sincretismo em que a pureza das expectativas eclesiásticas foi muitas vezes adornada por novas práticas e sentimentos devido à hibridização que sofreu da nova população formada.

De tons aberrantes à ortodoxia católica, o sincretismo cristão fora útil à disseminação da religião, mesmo que para os jesuítas (os quais compreendiam que a adoção de práticas indígenas era uma técnica provisória) ainda fosse possível acreditar que este sincretismo poderia servir de passagem à perfeita identificação do índio catequizado com a cultura religiosa. Mas o que se deu de fato foi a incorporação de práticas mágico-religiosas do índio à sociedade formada pela catequese por intermédio da “tolerância estratégica” do catequista.

“O compromisso que eles [jesuítas] encaravam como ponte transitória, no dizer do seu historiador, foi na realidade parte definitivamente incorporada à vida social do neo-brasileiro de São Paulo – e tal incorporação, valendo como prova do caráter aculturativo da nova sociedade, representa o que poderíamos definir como reação da necessidade organizatória, determinada pelas características estruturais e culturais desta sociedade contra a superimposição da camada dominante europeia. Depois, foi-se processando a diferenciação entre um estrato superior (em que se conservaram melhor os padrões europeus; ou que foi se re-europeizando) e a massa caipira – onde se preservaram os traços característicos das fases iniciais da sociedade paulista, meio portuguesa, meio índia”. (Candido, 1999: 41-42)

A hipótese que Candido (1999) coloca é que, nas festas católicas, padres e índios ajustavam não só os passos e o canto, mas os demais elementos constitutivos das crenças indígenas. Primeiramente tinha-se um quadro ritualístico que se constituía em louvor de personagens sobrenaturais, relato de feitos, debate poético e a oportunidade de afirmação pessoal. Os temas apresentavam as façanhas e mortes dos antepassados onde também se tratava de pássaros, cobras e outros animais, tudo trovado por comparações. Estas trovas se faziam de repente com um motim que ia se apresentando de um em um num terreiro e ambos se “enfrentavam” (chegando algumas vezes à luta corporal simulada), até que alguém cansasse. Quando isso ocorria, outra pessoa vinha para substituí-lo. Mais tarde, houve a incorporação dos feitos dos santos católicos fixando-se numa parte do canto do cururu chamada de louvação [16].

Vale lembrar a respeito do improviso. Este elemento permitia a ampliação da participação, pois os presentes podiam intervir na manifestação a qualquer momento lembrando os da tribo Guaianá que cantavam fatos e acontecimentos baseados em parte nesse aproveitamento poético do quotidiano, elemento importante no desenvolvimento do cururu. Frequentemente, este aproveitamento poético constitui a base do debate que, por sua vez, é a substância do canto. Resumidamente, a hipótese de Candido (1999) se pauta em que o cururu significa, na sua forma primitiva, uma reinterpretação e parcialmente uma reconstrução de danças cerimoniais das tribos tupis-guaranis.

“Diz o autor que quando os jesuítas criaram a dança de Santa Cruz, ligou-se a ela como complemento; o mesmo aconteceu ao se ajustar aqui à dança portuguesa de São Gonçalo, cuja estrutura coreográfica sofreu influência marcada do cateretê; finalmente, já com certeza em pleno século XVIII, ela se ligou também à festa portuguesa do Divino Espírito Santo. De maneira menos acentuada, ligou-se aos festejos juninos e do Natal, que em si não são coreográficos nem musicais. O cururu se entrosa, portanto, no sistema total das festividades religiosas do caipira paulista e, na ausência de documentos, este fato basta como fiança da sua antiguidade e do significado profundo que tinha para ele. A hipótese levantada contém implicitamente a sugestão de (...) que encontramos todos os elementos constitutivos do cururu nas danças indígenas descritas pelos cronistas, e modernamente pelos etnólogos e, o que é mais importante, a recíproca é verdadeira. Nenhuma outra festividade paulista apresenta número tão elevado de traços coerentemente estruturados cuja origem pode, sem dificuldade histórica, sociológica ou lógica, ser vinculada à cultura das tribos tupi; o próprio cateretê e a dança de caiapó não apresentam este caráter de maneira tão nítida. Supondo-se que não provenha diretamente duma dança ritual do sapo, resta a conjetura alternativa (e mais prudente) que é devido a uma reorganização dos referidos traços, por convergência”. (Candido, 1999: 47-48)

Desta maneira, o cururu corresponde a uma constelação de elementos que teve origem na sociedade tribal e reinterpretada em vista da integração de uma nova sociedade que não era primitiva, mas rústica. As danças das tribos tupis-guaranis apresentavam um conjunto de elementos que foram integrados na dança caipira do cururu, num processo de reintegração e orientação complementares. De um lado, encontra-se a pressão cultural exercida por intermédio dos jesuítas na forma de catequese religiosa, por outro, as necessidades de organização manifestadas pela nova sociedade oriunda do contato racial e cultural.

Na província do Sul, a pressão cultural no sentido de incorporação de padrões do português manifesta-se pela estratégica tentativa feita pelos missionários jesuítas de incorporar o índio à sua ideologia. Porém, as necessidades da nova sociedade motivaram frequentemente uma dissolução dos elementos puramente europeus quando não os rejeitando e conformando-os ao meio. Nos lugares onde se estabeleceu um estrato social dominante e ligado intimamente à tradição do reino português como, por exemplo, no nordeste brasileiro, a cultura portuguesa pôde se impor imediatamente, tendo como consequência o desenvolvimento de dois planos culturais, o português e o que Candido (1999) chama de sincrético (este último acentua-se pela contribuição africana). Estabelecia-se assim uma distância visível entre a camada dominante e a camada dominada, tanto no plano estrutural quanto no cultural.

Já em São Paulo, área mais à margem da administração metropolitana, os estratos sociais e seus modos de vida não se diferenciavam agudamente. A superposição de camadas profundamente diferenciadas se fará a partir do século XVIII e principalmente XIX, fomentadas pela nova organização econômica que passará o sudeste brasileiro pelas economias cafeeira e açucareira. Portanto, houve em São Paulo condições mais favoráveis e duradouras para a mistura de traços e para a formação de uma sociedade relativamente homogênea onde o fazendeiro, o morador, o agregado, estavam muito mais próximos uns dos outros do ponto de vista racial, cultural e social do que os latifundiários nordestinos.

Mesmo sofrendo abalos com as atividades monocultoras do café e do açúcar, principalmente no estado de São Paulo, a cultura caipira e suas manifestações culturais como a música (cururu) ainda conseguem transparecer em algumas cidades do interior paulista. Empurrados pouco a pouco para estas cidades pelo avanço da concentração latifundiária das grandes unidades produtoras, principalmente as de açúcar, mesmo habitando o espaço urbano, estes indivíduos ainda conseguem manter um padrão de vivência que é visível com suas casas comportando hortas, criações de animais, grandes quintais, assim como no meio rural onde residiam. Além do mais, é possível identificá-los no meio urbano na medida em que se organizam através das rodas de cururu em que muitos deles ainda participam. Desta maneira, o cururu seria uma forma desta cultura se reorganizar perante as várias temporalidades contidas na cidade contemporânea oferecendo não um refúgio a elas, mas sim uma pequena adaptação e uma constante afirmação de sua real identidade.

 

3. Breves observações sobre o fenômeno: a manifestação do cururu em Iracemápolis

Quanto à observação do fenômeno do cururu em cidades de médio e pequeno porte do Estado de São Paulo, foi constatada certa facilidade para se achar esta manifestação em suas malhas urbanas. Devido à densidade populacional, os encontros entre os participantes e organizadores pela cidade eram mais frequentes, facilitando-lhes a organização das rodas de cururu. Assim, para o acompanhamento dessas rodas foi escolhida a cidade de Iracemápolis, que contém pouco mais de vinte mil habitantes e que fica a 169 km da capital paulista.

Mesmo se encontrando numa região de forte cultivo de cana-de-açúcar, principalmente a partir do final do século XIX com os engenhos centrais e no século XX com as usinas, a região onde se encontra esta cidade é também conhecida como “Segundo Oeste Paulista” devido a sua importância na economia cafeeira, principalmente com a contribuição de cidades vizinhas como Limeira e Rio Claro. Utilizando-se em larga escala do sistema de trabalho escravocrata - importando vários e trazendo outros de regiões vizinhas quando as leis de proibição do tráfico negreiro ainda não agiam com extremo rigor -, posteriormente foi uma das primeiras regiões a realizar experimentos com o sistema de colonato com a vinda de imigrantes alemães, suíços e mais tarde italianos.

Entretanto, antes do ciclo do café, esta região dotava-se de um importante atributo: era sertão de passagem de exploradores de ouro no século XVIII, pois ficava no caminho que levava às minas de Mato Grosso e Goiás. Desta maneira, a região onde se encontra esta cidade sofreu grandes influências desta cultura caipira por meio da expansão das bandeiras exploradoras do sertão paulista, atingindo e englobando posteriormente em seu bojo esses imigrantes vindos para o trabalho em série nas grandes lavouras, tornando-se alguns deles seus porta-vozes e mantenedores. Mesmo estando situada numa grande área de desenvolvimento do capital agroindustrial, a cidade de Iracemápolis ainda apresenta um cenário rústico em sua malha urbana com casas contendo forno à lenha, grandes quintais destinados ao cultivo de hortas e criação de animais como galinhas, dentre outros aspectos que contribuem para a economia de subsistência caipira. A preservação destas práticas em Iracemápolis conduziu a escolha desta cidade para a pesquisa de campo, cuja pertinência foi posteriormente verificada nos resultados.

Outro fator importante desta localidade é que, mesmo com o aumento da malha urbana impulsionado pela economia cafeeira e açucareira que foi responsável pela expulsão de um grande contingente rural que habitava nos limites municipais de Iracemápolis e região, esta mesma situação propiciou às pessoas que outrora moravam espalhadas pela zona rural, com esporádicos contatos entre si [17], a morarem muito mais próximas fisicamente, acarretando contatos sociais mais frequentes e auxiliando no compartilhamento de experiências que tinham em comum e na sua adaptação no meio urbano. Desta forma, nas trocas de ovos, de carnes, de roupas, de hortaliças e ervas que plantam no fundo do quintal, foi possível para o pesquisador constatar o fenômeno da manifestação do ser-caipira.

Assim, a forma de se encontrar este tipo de manifestação (musical) foi facilitada quando se seguiu os vestígios do mundo conhecido por este ser humano: os galinheiros encontrados nos quintais das casas nos bairros circundantes onde é realizado o cururu, as hortas que se encontram nesta mesma situação, nas casas com alpendres e varandas (formas arquitetônicas típicas do habitat rural do sudeste brasileiro), nos pequenos altares para rezas e benzimentos encontrados dentro ou fora das casas, nas vestimentas e nos hábitos alimentares e sociais, como é o caso da organização das rodas de cururu.

Como exemplo, num dos eventos presenciados de cururu foi observado um fato curioso. Um dos curureiros que participava das rodas organizadas na cidade acabou hospitalizado por causa de um acidente que o deixou ferido na cabeça e na perna e, desta maneira, precisou de repouso por vários dias. Mesmo aposentado, o complemento de seu orçamento doméstico vinha do cultivo de uma horta e da venda de vassouras que ele próprio confeccionava. Porém, após sua estadia no hospital, sua pequena plantação ficou à mercê das inclemências climáticas e, consequentemente, acabaram murchando e estragando.

Quando seus amigos e vizinhos (cantadores, donos de hortas e violeiros) mais próximos souberam de sua dificuldade econômica, organizaram uma roda de cururu para angariar mantimentos com os quais pudesse se manter. Assim, com a realização desta roda de cururu, os donativos foram chegando um a um, envolvendo um tipo de atividade comunitária. O evento, além de contemplar uma celebração entre amigos, também serviu como um ato beneficente, o qual foi alertado pelas pessoas que ali se encontravam como um ato não só pela pessoa em questão, mas também um ato para Deus. Após este acontecimento, numa declaração feita em uma conversa informal com o pesquisador, o curureiro que foi auxiliado contou ainda que a quantidade de donativos que lhe foram doados ultrapassava o consumo de sua casa. O resultado foi que parte desses donativos foram levados para o programa de assistência social da igreja católica da cidade.

Na organização destas rodas de cururu também foram observados outros aspectos como a data da realização, o local e a convocação dos participantes. Para isso, os convites eram feitos informalmente, com os conhecidos sendo informados ao longo da semana em encontros esporádicos pela cidade. Mas, em se tratando do evento em si, havia várias regras envolvendo, por exemplo, o sorteio da ordem dos cantadores [18] e das rimas. As transgressões desta ordem eram punidas imediatamente por meio de agressões verbais ou a não convocação para rodas futuras.

Outra característica observada na ocasião foi o cuidado em que os cantadores procuravam saber os nomes dos participantes e de alguns ouvintes na plateia. A notoriedade, respeito ou carinho despertado no cantador pela pessoa era sempre ressaltada no começo do canto. Neste momento era feito o reconhecimento e a efetiva presentificação daqueles que estavam envolvidos na roda de cururu, fossem eles participantes efetivos ou ouvintes da manifestação. Assim, após agradecer a presença de todos, não raro nominalmente, o canto começava a engrenar.

As rimas (que identificam a estrutura do canto do cururu e também conhecidas por carreiras) mais utilizadas eram as do “a”, a de São João (onde as linhas cantadas terminam em “ão”) e a do dia (onde as rimas terminam com “ia”). O primeiro cantador a ser sorteado para cantar estabelecia a carreira cantada para si e para os demais que lhe iam responder o canto. Algumas vezes, a rima poderia ser feita a partir do santo celebrado em questão. Por exemplo, se o cururu estivesse comemorando o dia de Nossa Senhora Aparecida, a carreira mais indicada era a do “dia”. No caso específico, as rodas de cururu observadas não coincidiram com esses feriados religiosos, mas alguns cantadores afirmaram a prática desta tradição em suas cantorias.

 

4. Conclusões

Sendo um desafio cantado, o cantador de cururu desenvolve várias habilidades. Uma é de provocar seu adversário ao ponto de desestabilizá-lo no desafio (aqui se respeita o decoro quanto a palavras de baixo calão, deficiências e não é permitido agressões físicas) confundindo-o ou calando-o e de apresentar um vasto repertório do cotidiano em que vive: a vida na roça, casos sobrenaturais, temas religiosos e até questões políticas da cidade.

O cantador de cururu, assim como o violeiro que lhe acompanha, sempre é visto como uma pessoa importante na comunidade onde vive principalmente nos ofícios religiosos como nas festas de São Gonçalo, na Folia de Reis ou nas simples rodas feitas no espaço urbano. Este dom ou dádiva de cantador que lhe é concedido o torna um porta-voz dos conhecimentos sobre o mundo de seus semelhantes e também do mundo sobrenatural. Ainda mais que o próprio cantador é a fonte de conexão com as divindades, rememorando por meio do canto o dia que lhes concerne e seus atributos, já que alguns dos cantadores de cururu também são benzedeiros e muitos adeptos do feitio de simpatias para a cura de diversas enfermidades.

Para a realização da cantoria, ou melhor, a razão de ser realizada, também é muito importante. A roda de cururu não é uma mera manifestação de um tempo livre depois de um dia de trabalho, mesmo sendo realizada nos dias atuais nas tardes de domingo, mas sim a celebração da persistente presença de uma tradição perpetuada por aqueles que participam desta manifestação musical.

Na atualidade, os dias de apresentação podem ser feitos na semana de algum feriado religioso ou por meio de concursos amadores ou profissionais, mas o que persiste é a realização da roda com intenção de auxílio alheio, ou seja, quando alguém conhecido carece de ajuda em casos de doenças, mortes, necessidades pecuniárias ou mesmo em razão de encontros entre amigos que há muito tempo não se encontravam. Para a realização das rodas de cururu observadas, tais motivos eram os que mais se apresentavam.

 

REFERÊNCIAS

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Notas

[3] Mas já no século XVI tem-se a primeira tentativa de implantação da cultura monocultora açucareira com a construção do primeiro engenho em terras brasileiras com Martin Afonso de Souza em São Vicente, litoral paulista.

[4] Engenhos que se utilizavam de maquinário importado da Europa com seu funcionamento à água, eletricidade ou combustível fóssil. Destaca-se neste período, em meados do século XIX, uma tentativa de alavancar a produção açucareira paulista com a modernização da produção separando o setor fabril do agricultor. Neste sistema, o grande detentor de capital que instalava engenhos desta estirpe desejava produzir açúcar para o mercado externo recebendo a matéria prima por pequenos ou grandes fornecedores que não tinham capital suficiente para empregar um sistema tão caro e moderno de produção. Porém, estes médios e pequenos agricultores participavam ativamente deste novo tipo de economia fornecendo cana-de-açúcar. Pouco mais de uma década depois, este sistema falharia em São Paulo pela pouca aceitação do açúcar produzido nestes engenhos centrais tanto no mercado interno como no externo (aqui também vale a ressalva que no mercado externo, o açúcar preferido era o produzido nas Antilhas sob domínio francês devido à localização geográfica desse conjunto de ilhas ser mais próxima da rota até a Europa) e nos diversos problemas com o fornecimento de cana por parte dos sitiantes e pequenos fazendeiros que a plantavam, preferindo estes moê-las em seus próprios engenhos mais atrasados tecnologicamente, vendendo-os no mercado interno onde já detinham uma aceitação maior..

[5] Sistema de produção que já aliava tanto o sistema fabril desenvolvido pelos engenhos centrais quanto a concentração fundiária para o fornecimento contínuo da matéria prima. Como consequência, além de ganhar o mercado interno e externo desmembrando vários engenhos pequenos, este sistema foi responsável por um êxodo rural espantoso no começo do século XX no estado de São Paulo. A compra das terras dos pequenos fornecedores conformava os trabalhadores rurais como seus assalariados em vilas operárias, contribuindo para o inchaço das cidades interioranas e também da capital..

[6] Cf. Damatta (2004).

[7] Compreendendo este território os estados atuais de: São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Goiás e Paraná.

[8] Lei de terras.

[9] Lei Áurea.

[10] Quando registrados, sempre eram retratados como preguiçosos e vadios.

[11] Cf. Reis Filho, Nestor Goulart (1964; 2000).

[12] Lembrando que esta província se refere à entrada por São Vicente, localizada no litoral do atual estado de São Paulo.

[13] Apesar de que a diferença primordial da vida comunitária e da societária é que esta última se pauta, na maioria das vezes, por poderes de cunho vertical, com algumas distinções de prestígios políticos, sociais e econômicos das pessoas constituintes de um grupo. Já na comunidade estes fatores podem existir, mas não são tão pertinentes quanto na divisão societária, pois a divisão comunitária pauta-se numa horizontalização dos padrões de vivência vigendo, na maioria das vezes, aspectos de idade, coragem entre outros tipos de prestígio conquistados e atestados pelo grupo de forma unânime.

[14] Aquilo que seria visível ao homem, o produto do processo de adaptação do homem ao seu meio vivente.

[15] Expressão utilizada para chamar uns aos outros aos desafios nas rodas de cururu. Muito difícil se utilizarem da expressão cantores.

[16] Alguns cantadores que se utilizam de passagens da bíblia para entornar seu canto são chamados de “cantadores de folha”.

[17] Mas, mesmo assim, conectadas por fortes laços comunitários como os de parentesco ou os de cunho religioso e habitando em pequenas unidades familiares de subsistência ou de prestação de serviços a fazendeiros mais abastados como os cultivadores de café e cana-de-açúcar.

[18] O sorteio era feito por meio de pequenos papéis onde constava o número de cantadores da roda em questão. Foram colocados dentro de um chapéu e sorteados um a um.

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