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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.31 Lisboa dez. 2015

https://doi.org/10.15847/citiescommunitiesterritories.dec2015.031.art09 

ARTIGO ORIGINAL

 

A Avenida de Sta. Cruz, em Coimbra: entre a modernidade e a nostalgia.

Avenida de Sta. Cruz, Coimbra: between modernity and nostalgia.

José Cabral DiasI

[I]Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, Porto. e-mail: jcabraldias@gmail.com




RESUMO

Em 1944, Etienne de Gröer (1882-?) concebe o Plano de Urbanização para Coimbra, no âmbito dos Planos Gerais de Urbanização, programa de redesenho do ambiente urbano português, criado por Duarte Pacheco, em 1934.

Com este artigo pretendemos perceber de que modo é que este plano, através da nova Avenida de Santa Cruz, valida as hesitações entre tradicionalismo e abertura a um novo tempo – hesitações essas que perpassam muitas das opções do Estado Novo, em diversos domínios da vida portuguesa. Em concreto, trata-se de abrir pistas que permitam refutar a hipótese (geralmente aceite e difundida) que encara Etienne de Gröer como exemplar de um modelo de cidade e/ou de opções urbanísticas que estariam plenamente alinhadas com o Poder, no quadro dos Planos Gerais de Urbanização. No contexto, a Avenida de Santa Cruz – posicionando-se entre uma imagem urbana que possibilitava configurar a face do Estado Novo e novos modos de entender o território em movimento, com o automóvel – consubstancia-se como metáfora de uma realidade que a ultrapassa. Ou seja, a Avenida de Santa Cruz permite abrir pistas para perceber que a cidade desse período é também marcada pelo sempre presente embate entre as visões mais conservadoras do Regime e as que ambicionavam uma sociedade mais modernizada; a mesma avenida permite, ainda, nesse contexto, negar que Etienne de Gröer tenha sido um profissional em total sintonia com o Estado Novo, em matéria de urbanismo.

Palavras-chave: Planos Gerais de Urbanização, Coimbra, Estado Novo, Etienne de Gröer.


 

 

 

Introdução

Em 1994, Etienne de Gröer (1882-?) – urbanista e professor de urbanismo em França[2] – concebe o Plano de Urbanização para a cidade de Coimbra. Fá-lo no âmbito da elaboração dos Planos Gerais de Urbanização, programa de redesenho do ambiente urbano português, criado por Duarte Pacheco[3] e por diploma legal, em 1934.

O plano elaborado por de Gröer para Coimbra é demonstrativo de princípios morfológicos que, ao alinharem-se com o seu tempo, encontram justificação no automóvel. As distâncias propostas entre as diversas áreas da cidade, bem como a fluidez do traçado são disso testemunho; junta-se-lhes a ossatura do plano[4] que, ao ser constituída sobre as seis saídas da cidade[5], é também sinal da relevância deste veículo na conformação espacial.

 

 

Esse mesmo sentido é legível na organização das extensões da cidade: Sudeste, Sueste, Noroeste, Nordeste e Santa Clara, a que se juntam cinco Aldeias-Satélite. De Gröer assume, como pressuposto fundamental, que a descentralização da cidade ocorra graças ao poder de movimento deste veículo: sem o automóvel, o distanciamento ao centro de cada uma dessas extensões seria totalmente injustificado.

Nesse âmbito, e no centro da cidade, uma nova avenida conduz os automóveis do rio à Praça 8 de Maio, rompendo os quarteirões da Baixa (entre a Avenida Emídio Navarro e a Igreja de Santa Cruz). Trata-se do triunfo local do automóvel, ao expressar-se uma opção clara por este meio de transporte, que vence a estrutura histórica da cidade[6].

Não se ignora que o desejo de abrir uma ligação entre o centro urbano e a frente ribeirinha é um desejo antigo, em Coimbra. A abertura da Avenida Sá da Bandeira, no início do século XX, leva cosmopolitismo à ligação entre as cotas alta e baixa da cidade. Consequentemente, o traçado de alameda/passeio público altera a correlação de forças no tecido urbano: ainda que interrompido ainda antes de alcançar a Rua da Sofia, o novo perfil da avenida introduz tensão sobre os quarteirões e as ruas de pequena largura da Baixinha. Até às primeiras ideias de rasgamento do tecido urbano em direcção ao rio, seria uma questão de tempo. Os Planos Dias Urbano, em 1928, e Luís Benavente, em 1936, anunciam, com radicalidade, a proposta da Avenida de Santa Cruz proposta por de Gröer[7]. É sobre esta nova avenida, deste urbanista que, como referimos, nos debruçaremos.

Esta avenida inaugura um outro tempo. Os Planos Gerais de Urbanização introduzem umo novo pensamento para a cidade, com maior complexidade. Dir-se-á que a ideia de cidade que se formula com esses planos poderá corresponder à tentativa de estabelecer uma regeneração urbana com o qual o Estado Novo se identificasse[8]. Será no âmbito dessa tentativa que localizaremos este artigo e a Avenida de Santa Cruz, entre a modernidade e a nostalgia.

 

Aproximação

Após a oficialização do Regime, com a Constituição de 1933, a cidade portuguesa é pensada de modo sistemático e com abrangência territorial, dos pequenos aos grandes aglomerados, de Norte a Sul. São criadas bases para intervenção em mais de 400 núcleos urbanos, com o intuito de levar a ordem do desenho e do Estado – mesmo que apenas tentada e não concretizada, no todo ou em parte – de Lisboa ao Portugal mais mergulhado na província.[9]

Todavia, o entendimento do que se passará não será localizável apenas em solo nacional, nem tão-só no terreno político. A chave está no plano internacional. Com o automóvel, o território e a sua compreensão mudam radicalmente. O espaço passa a medir-se não por unidades de distância, mas por relações de espaço/tempo. O seu entendimento fica, portanto, fora da possibilidade da experiência estática e, em paralelo, a cidade vê transformadas, tanto a sua escala, como a sua definição. Isto é, novas configurações espaciais – pensadas com inovadoras relações entre a forma urbana, a população e a arquitectura – determinam uma ordem também nova. Ou seja, formulam-se novas hipóteses para a organização da cidade, já não dependentes da proximidade física entre os habitantes, mas baseadas em redes de mobilidade mais complexas. Afirmar-se-á, no entanto, que equacionar o automóvel só a partir de novas funcionalidades será limitador. Com o novo veículo, a mobilidade afasta-se da utilidade estrita: reflecte uma apologia que aprofunda uma expressão estética e é já produto de um fascínio pela máquina, que vai substituindo a máquina em si mesma. Com efeito, as soluções e ideias não decorrem de necessidades a satisfazer, mas de uma atitude conceptual e estética, de que o manifesto futurista será o maior expoente[10]. Dir-se-á que, assim, o automóvel é colocado na condição de símbolo e, enquanto símbolo, condiciona aspirações, desejos e liberta-se da objectividade.

Essa realidade passará também pelo espírito dos Planos Gerais de Urbanização. Na verdade, o discurso que os informa aceita colocar-se com definição plástica, ideológica, conceptual, doutrinária e, por essa via, vai reiterar a alteração dos paradigmas espaciais e as motivações estéticas que condicionam esses mesmos paradigmas. Nas propostas portuguesas de desenho urbano, as vias circulares, o parkway, a segmentação e hierarquização da circulação e do espaço, a organização em Unidades de Vizinhança, a circunscrição dos limites urbanos a partir das vias de circulação automóvel exteriores aos aglomerados (e dedicadas ao automóvel), espelham conceitos que contribuem para reconfigurar o pensamento sobre o universo urbano.

Esses conceitos são tão fortes, nesses Planos, quanto a defesa da vida urbana o é, também aí, relativamente às grande velocidade ou velocidade acelerada (designações que passam a ser consideradas pelos diversos arquitectos/urbanistas) ou, ainda, tão fortes quanto as demolições efectuadas para permitir essa mesma circulação, com eficácia[11], e no mesmo âmbito.

Neste contexto, o automóvel servir-nos-á de metonímia da abertura (ainda que parcial) a um novo tempo, isto na cidade portuguesa do Estado Novo: encará-lo-emos como veículo de afirmação de um pensamento de modernidade, por entre ideias mais conservadoras e tradicionalistas e com a construção de paradoxos nem sempre equacionados.

Concretizando, verifica-se que os planos, embora avançando com propostas que dão clara importância ao automóvel, não conseguem romper com um modo tradicional de habitar e moldar o território. Contudo, ao contrário que tem sido avançado, o Estado nem sempre se comporta como protagonista de imobilismo, imobilismo esse reflectido em projectistas que, supostamente (segundo as interpretações que têm sido veiculadas), sublinham a falta de vocação do Regime para produzir um novo tempo. Ou seja, nem mesmo a acção dos projectistas mais conservadores (alegadamente seleccionados por se mostrarem fiéis interpretadores de conceitos que o Estado Novo pretendia ver implantados no terreno) deverá ser lida, sem reservas, como caixa de ressonância de ideias que vinham de cima.

Etienne de Gröer, responsável pelo desenho das propostas urbanísticas para as mais significativas cidades portuguesas é aqui incontornável: o vínculo deste urbanista a Portugal tem sido apontado como paradigmático da perfeita ligação entre o país político e o seu território urbano. Nesse âmbito, Coimbra será o nosso laboratório de análise, cidade-chave no contexto dos Planos Gerais de Urbanização[12]. Como foi dito, focar-nos-emos na Avenida de Santa Cruz.

 

Enquadramento

Para a abordagem aqui seguida, propomo-nos alargar o foco. Ao estudar o universo de elaboração dos Planos Gerais de Urbanização, percebe-se que o realismo é, sem negar um desejo de transformação da geografia urbana nacional, o campo de actuação da Tutela: o Estado move-se nas margens de discursos que constroem narrativas convenientes ao desenho, mais do que possibilidades de actuação – diante dos decisores passam fluxos de ideias ou argumentos que se pretendem autolegitimar. O espaço de ligação à realidade, no caso concreto de Coimbra e destas linhas, apela a um menor conservadorismo. Como se constata em várias frentes – de âmbito social, patrimonial e simbólico –, o Conselho Superior de Obras Públicas (CSOP) não deixa de pretender empurrar de Gröer para outra abertura ao tempo e a ideias mais progressistas (apesar dos elogios iniciais que o projectista recebe deste Conselho). O espaço da cidade é outro, num tempo paradoxal.

Devemos sublinhar que, desde o surgimento da Ditadura Militar, até à institucionalização do Regime e à sua consolidação ao longo dos anos, as políticas económicas ou os posicionamentos doutrinários confirmam ambiguidades. Trata-se de hesitações entre a ruralidade e a industrialização, entre mentalidades mais progressistas e outras mais apegadas à herança do passado e empenhadas, portanto, em fazer perdurar essa mesma herança.

Podemos afirmar que la importancia de estudiar la vida de las personas en los cerros de Valparaíso, radica en cómo la estructura social influye en la configuración del espacio y de las relaciones que en él se producen. De este modo, "el punto crucial de entender por qué ocurren los desastres es que no son sólo los eventos naturales los que los causan. También son el producto del medioambiente social, político y económico (diferente del medio ambiente natural) debido a la forma en que estructura la vida de diferentes grupos de personas" (Blaikie et at., 1996:9). En este sentido, no debemos confundirnos, aquello de lo que intentamos dar cuenta, no es cómo enfrentar un desastre natural, o qué espacio es apropiado para un asentamiento. Blaikie indica el peligro que esta concepción de los fenómenos puede implicar: "hay un peligro al tratar los desastres como algo peculiar, como eventos que merezcan su propio enfoque especial. Al estar separados de las estructuras sociales que influyen, se da demasiado énfasis en la gestión de los desastres, a las amenazas naturales propiamente dichas y no suficiente al ambiente social y sus procesos" (Blaikie et at., 1996:10).

As contradições jogam-se como os autores defendem (Rosas e Brito, 1996: 317), como tentativa de assegurar a continuidade do regime e não com a preocupação de construção de uma política económica coerente e, diremos, que reflectisse um modo de pensar e estruturar uma doutrina unitária. Para Salazar (1889-1970) tratava-se de um jogo de cintura para se manter na chefia do Estado e fazer perdurar o regime, mesmo que com os engulhos de admitir alguma modernização e até suavizar a visão de um Estado assente nas virtudes da terra. Com efeito, Salazar constrói os equilíbrios e compromissos que lhe permitem estabelecer a unidade ideológica indispensável à construção e permanência do poder. O meio é heterogéneo: "(...) a matriz corporativa; antIdemocrática e antiliberal; do catolicismo conservador do Centro Católico salazarista; os contributos do ultramontanismo monárquico e tradicionalista lusitano; as preocupações da direita republicana conservadora-liberal; as ambições desenvolvimentistas da ‘direita das realizações’, dos ‘engenheiros’ e dos ‘técnicos’ que associavam a viabilidade do fomento industrial ou da ‘reforma agrária’ à existência de um Estado forte, esclarecido e interventor" (Idem, Ibidem).

 

 

Nesse cenário, Ferreira Dias (1900-1966) ficará como autor do único projecto de industrialização pensado e elaborado durante toda a vigência do Estado Novo. Antes dele, era inexistente qualquer vislumbre de mentalidade ou estratégia industrial. Depois dele, e apesar da falta de resultados eficazes, não houve acção nem pensamento que lhe retirasse importância e protagonismo.[13]

Num outro plano, a promoção e divulgação da etnografia conduzida pelo SPN/SNI liderado por António Ferro (1895-1956) é mediada pela visão política, visando a construção de um país idealizado. O antagonismo tem correspondente nas palavras de Fernando Rosas e Brandão de Brito: "(...) durante o Estado Novo o discurso dominante para consumo das massas (...) foi pegando nas narrativas históricas e querendo aproximar os leitores do que seria o seu tesouro comum, as imagens e os objectos, os ritos e as crenças populares (...)" (Idem: 421).[14]

Em contradição com os seus anos do modernismo, o esforço de Ferro na área da etnografia tratava de educar o gosto e de agir sobre as escolhas estéticas, condensadas na tradição mais imediatista. O enfoque estava direccionado para a população urbana – com objectivos de educação estética (Alves, 1997: 240) – visando convencê-la da beleza do modo de vida simples e despojado, desligado de bens materiais, em sintonia com o território e a imagética da população do campo. O projecto do SPN/SNI visando, portanto, a criação de símbolos e mitos para alimentação dos meios urbanos e mesmo cosmopolitas - das classes média e mais elevada - centra-se na "apropriação da cultura popular" (Alves, 1997: 240) do modo mais conservador.

O concurso da Aldeia Mais Portuguesa de Portugal (1938) é o referente mais eficaz dessa política. Monsanto é enaltecida como "síntese da raça" – nas palavras do próprio Ferro (1947 apud idem: 238). Na cerimónia de entrega do Galo de Prata a esta aldeia, em 1939, as palavras são demonstrativas da estratégia de Ferro: "Este concurso vale, sobretudo, pelo pretexto que nos dá de mergulhar na terra portuguesa, de lhe arrancar alguns do seus segredos, de encontrar aqui e além escondidas entre as rochas, no alto das Montanhas ou no coração dos vales, as nascentes da raça." (Ferro, 1947 apud idem: 246).

Na mesma cerimónia, António Ferro mostra a essência do olhar sobre a cultura popular e sobre o ícone em que Monsanto se transforma, em contraste com as cidades: "A imagem empolgante da nossa pobreza honrada e limpa, que não inveja a riqueza de ninguém. (O seu) (…) povo vive contente, a rezar, a dançar e a cantar, dando lições de optimismo às cidades fatigadas, pessimistas, compreendendo como poucos, o ressurgimento português mais ávido de bens espirituais– a escola, a Igreja, a família – do que de bens materiais" (Idem: 250). Monsanto emerge, portanto, como ícone, no que se refere à descoberta das raízes da cultura popular, no âmbito de uma descoberta que tem como base um critério de base estética, ou seja, uma escolha mediada e não fundamentada em qualquer critério que não seja o de conveniência plástico-expressiva.[15]

 

 

Como as palavras permitem intuir, esse ambiente cultural transforma "(…) Monsanto na alegoria perfeita de um país imaginado" – diz Vera Marques Alves (Alves, 1997: 256).[16]

Em suma, o "povo-esteta" (Eurico Sales Viana apud Alves, 1997: 84)[17] configura uma construção fundamental no discurso do SNI/SPN. Este discurso – que se coloca próximo da simplicidade, pureza, integridade e genuinidade da vida do campo, em contraposição à população da cidade – permite, aliás, introduzir interna e externamente a cultura popular como símbolo apologético da portugalidade.

Num outro extremo, Duarte Pacheco promove um país em ruptura com o seu tempo. Ao pretender exaltar e afirmar uma nova era que confirmasse uma mudança de imagem e de estratégia para Portugal, o Ministro aceita novos paradigmas. Duarte Pacheco lança um vasto programa para construir a imagem ao País – afirma-a por uma política de infra-estruturação em ruptura com a realidade precedente e o colapso da I República[18]. Nesse contexto, a extensão da cidade assume um papel-chave, de acordo com os novos tempos. A cidade do Estado Novo propõe-se no espaço que se alarga segundo uma nova geografia de também novas áreas urbanas. Consolida-se, ainda, segundo outros conteúdos, com novos equipamentos. Assim, muda o significado do espaço e as distâncias que o separam. Na época emergente, já não há extensão urbana sem automóvel. A cidade é agora a cidade alargada por este meio de transporte. Pensá-la, é desenhá-la em função de uma nova forma de a percorrer e de um novo modo de equacionar os seus espaços, de acordo com novas necessidades. Está em causa uma nova funcionalidade, é certo, mas também uma nova estética, isto é, um novo deleite que se materializa sobre o território e sublima as anteriores formas de mobilidade.

Como leitura dos processos descritos, podemos dizer que, se o regime adopta como dogma permanente e durável, "a fusão entre nação e império", como expressão da "grande razão de ser português" (Pinto, 2004: 61), é compreensível a dificuldade em estabelecer pontes para o futuro. Contudo, mesmo os instrumentos de promoção política não se libertam das contradições: paradoxalmente, esboçam rupturas com a teia do "mundo rural". Na verdade, Portugal vive permanentemente entre ideias tendentes à modernização – de um lado – e convergentes – do outro – com o nacionalismo que ambiciona a manutenção, a promoção e a afirmação de mitos do passado e da ruralidade (do ambiente e dos valores).

 

Argumentos

Avançando para Coimbra, constata-se que o parecer que avalia o plano de Gröer (parecer elaborado pelo Conselho Superior de Obra Públicas, em 1945) valida as contradições que o país constrói. Na verdade, este enfoque mostra como a verdade tem sido muitas vezes considerada de modo parcial. Os equívocos nascem das interpretações parciais dos factos. Nesse parecer " diz-se (…) que o plano é incontestavelmente um trabalho de mestre (que) patenteia uma solução equilibrada, justa e económica, a par, portanto, de um conhecimento técnico profundo (…)" (CSOP, 1945: 1). Mas o encontro entre o automóvel, de Gröer e Coimbra ajudará a outra visão. Para explicitação do discurso, convoca-se um outro exemplo: o Ante-plano de Urbanização de Vila Nova de Gaia (Arménio Losa, 1949). Entre o parecer que o Conselho Superior de Obras Públicas elabora para avaliação do Plano de Coimbra e o que também produz para o de Gaia (em 1952), abre-se o espaço de todas as ambiguidades.

Para Coimbra é dito:

O estudo apresentado pelo Sr. Arquitecto de Gröer merece realmente, não uma simples aprovação, mas uma menção especial de apreço e louvor pela técnica perfeita com que está elaborado e pelo sensato critério que revela. São de apreciar, e de apontar como exemplo, não só a relutância em adoptar soluções modernistas onde elas não têm cabimento, mas sobretudo a expressa e constante preocupação em respeitar a natureza, os pormenores tradicionais ou típicos (…) (Idem, ibidem).[19]

Quanto a Gaia, o entendimento das alterações é distinto: "Considera o Conselho aceitáveis, de um modo geral, as fases de actuação estabelecidas no anteplano, bem como as normas genéricas para acautelar a sua realização (…)".

O Conselho Superior de Obras Públicas "(…) é de parecer que o anteplano de urbanização de Vila Nova de Gaia constitui um trabalho consciencioso, que nas suas linhas gerais merece aprovação" (Idem, 1952: 41).

 

 

Ou seja, observa-se que o elogio, tanto recai sobre a tradição (mais conservadora) e a negação dos princípios mais radicais (que de Gröer advoga para Coimbra), como sobre o seu antagonismo, com convicta colagem à Carta de Atenas (que Losa defende para Gaia)[20].

Entre Gaia e Coimbra, percebe-se que não existe uma ideia fechada sobre a matéria urbanística e os modelos de cidade: os pareceres do Conselho Superior de Obras Públicas suportam a complexidade do tema ao permitirem compreender o modo como a verdade tem sido considerada de modo incompleto. Ou seja, em matéria de cidade, progressismo e conservadorismo convivem pacificamente, em Portugal.

Focando o tema, observa-se que, em Coimbra, como à semelhança do que se passa no restante país, as ideias identificam a cidade do automóvel como outra: é mais hierarquizada e é também dotada com um novo sistema de espaços, articulados de modo também ele novo.

As soluções visam uma mudança semântica – com novos espaços – e de sintaxe – com formas diversas de os integrar e relacionar entre si e, também, com o meio físico.

O automóvel passa a ser a unidade de medida da circulação e o espaço urbano vai reflecti-lo, como resultado de opções que o amplificam – por superação de qualquer indicador objectivo ou racional. É significativo que se anule o factor competitivo do comboio a favor dos transportes por estrada. Segundo as palavras de de Gröer, e passamos a citar:

As pequenas linhas de caminho de ferro com pouco tráfego, como a da Lousã, não podem lutar contra os autocarros, mais convenientes para o utente, mais económicos e mais flexíveis na prestação do serviço (Idem: 48; Idem). Consequentemente , (...), propomo-nos retirar os trilhos da linha da Lousã e transformá-la em auto-estrada, servindo-nos das obras de arte existentes (pontes, túneis, etc.) (De Gröer, 1944: 48; tradução do autor).

 

 

Se hoje duvidamos da utilidade de uma auto-estrada a ligar Coimbra à Lousã, podemos perceber as motivações da época. O discurso explicita o triunfo do mito do automóvel. A realidade já não serve para aferir o mundo; foi substituída pela dimensão onírica ou simbólica e pela abertura de auto-estradas.

Esse percurso de crença na modernidade, ao conduzir a brechas que separam o Estado e as ideias para Coimbra, servir-nos-á de foco. Trata-se de uma cisão que tem fundamentos morfológicos. Sabe-se que o conceito de Unidades de Vizinhança – importante recurso de separação entre a vida e o automóvel - é encarado como via para a organização das expansões urbanas[21]. Nos diversos planos, como em Coimbra, a segmentação da cidade reflecte-se na separação dos grupos sociais, organizados em áreas diversas, exclusivas, sem contaminações. Mas esta visão – a dos planos – não é acompanhada pelo Estado. Em divergência, a Tutela manifesta uma outra preferência: "(...) unidades residenciais (...) socialmente equilibradas (...)" (CSOP, 1947: 66), o mesmo é dizer, "(....) que devem conter em si todas as classes sociais (...)"(Idem: 67)[22].

Dando força a esse primeiro sinal, pretende-se expressar que embora partindo de referência comuns, a cidade que de Gröer e o Estado pretendem não é mesma. E não o é em termos de geografia social, nem em termos espaciais e/ou simbólicos – o que se disse é ampliado no centro da cidade. Aí, o triunfo do automóvel é marcado pela abertura a que se faz referência: a Avenida de Santa Cruz. Esta rompe os quarteirões da Baixa entre a Avenida Emídio Navarro e a Igreja de Santa Cruz, e nem a representação engana: o desenho que acompanha a memória descritiva pretende demonstrar as possibilidades de materialização deste arruamento. É mostrada uma mudança de escala da Baixa (definida sobre a demolição das construções), que expõe um desejo de cosmopolitismo a que a representação gráfica dos automóveis vem conferir sentido, o que demonstra a opção clara pelo novo veículo, como unidade de medida do espaço[23]. Na verdade, trata-se de ligar as novas gares ao centro urbano, segundo o próprio afirma[24], num exercício que se nos mostra – sublinha-se – em antagonismo com o elogio do pitoresco e a permanência da tradição. A opção progressista é, no entanto, apenas parcial. As edificações dos limites exteriores das ruas que definem o novo canal são mantidas. É uma permanência que o Autor defende – "(...) com as velhas e bonitas fachadas (...)" (De Gröer, 1944: 49-50, trad. do autor) – como um gesto para a integração da nova avenida na zona arqueológica e, também, na sua "(...) individualidade arquitectural e histórica" (Idem: 50, Idem). O gesto nasce, dir-se-á, da mesma linhagem que observa as casas que se localizam em torno do Mosteiro de Celas, consideradas de carácter aldeão e muito pitorescas (Idem: 77; Idem).

 

 

De modo mais focado, trata-se, também, de uma outra face da hesitação que conforma o plano e que ganha rosto pela ideia de monumentalidade que os grandes eixos ajudam a construir (referimo-nos ainda a esta avenida ou, na extensão Sueste, ao eixo do estádio ao liceu).[25]

Na verdade, a Avenida de Santa Cruz assume-se como importante paradigma de confronto com a tradição. Para o Conselho Superior de Obras Públicas, é completamente injustificada, a manutenção das fachadas no limite do canal de abertura da avenida em causa, estrutural na proposta e no raciocínio que o Autor apresenta no plano.

Como refere o Conselho Superior de Obras Públicas: "A conservação de todos os prédios existentes nos alinhamentos exteriores das duas estreitas ruas actuais, uns bons, outros maus (embora mais os maus do que os bons) e uns altos e outros baixos, num desarranjo pitoresco, vincado mais pelo desalinhamento que uns têm relativamente a outros (é injustificável, defende-se)" (CSOP, 1945:76).

Para a Tutela, o novo gesto que se abre com a Avenida, com o centro da cidade e com o simbolismo da proposta de per si, não se coaduna com conceitos atávicos.

O CSOP irá mais longe, também em confronto com de Gröer, que declara: "(...) nas novas zonas arqueológicas as novas construções devem ser nos estilos históricos existentes nos respectivos bairros (...)" (De Gröer, 1944: 104).

Esta controvérsia funda-se, sublinha-se, no ideário e na obra teórica de Etienne de Gröer. No longo artigo que publica na edição de 1945/1946 do Boletim da Direcção Geral dos Serviços de Urbanização, é notório o carácter doutrinário do texto (como um verdadeiro manual de orientação para a realização de planos de urbanização), bem como a coincidência com a argumentação que aqui desenvolvemos. O urbanista expõe no artigo, com efeito, o seu pensamento conservador, particularmente vincado quando aborda a zona central comercial e cívica da cidade. Aí vê localizados os bairros "(…) mais pitorescos e os mais artísticos (…)" (De Gröer, 1945-46: 38), a manter intransigentemente. As demolições serão (…) somente parciais, para permitir conservar as fachadas das casas e, principalmente aqueles que são antigas. Muitas vezes, o urbanista acha indispensável atribuir uma parte da velha cidade a uma zona especial, sobreposta às outras: a Zona Arqueológica, sujeita a um Regulamento particularmente severo no que diz respeito à conservação dos edifícios antigos e do carácter geral do bairro." (Idem: 39).

Focando-se na proposta da Avenida de Santa Cruz, O Conselho prefere outra via, em oposição às orientações do urbanista. Em defesa de novos valores, preconiza um "(...) estilo que se harmonize com as construções antigas (...)"(CSOP, 1945: 2).

O Conselho pretende evitar "(...) que se vá exigir a construção de casa no estilo arcaizante ou anacrónico dos últimos decénios do Século XIX (...)" (Idem, ibidem). Em contraste, o CSOP anuncia o caminho que deve ser seguido: "(...) (que seja possível os) arquitectos poderem experimentar o seu talento na criação de obra moderna e original a par dos monumentos da antiguidade, sem a mais leve desarmonia" (Idem, ibidem)[26].

Esta orientação é tanto mais relevante, se tivermos em linha de conta que é conceptualmente divergente do ideário de Etienne de Gröer. Para este urbanista, só numa cidade nova, ao longo de certas vias, é admissível "(…) um género de construção mais moderna" (De Gröer, 1945-46: 39).

De Gröer está de facto numa orientação oposta à do Estado Novo no que concerne à ideia de cidade. Sujeita a códigos que possam ser normalizados e facilmente apreensíveis, para o Estado Novo, diferentemente, a cidade é um instrumento importante de comunicação e de presença junto das populações. Ou seja, a procura de uma marca urbana que supere o modo desordenado, precário, não programado, com se desenvolveu o universo urbano português, não se revê no argumentário de Etienne de Gröer. Para o urbanista, a cidade deveria, no limite, desvanecer-se e fundir-se com o campo. O tom moralista – que vê a cidade como origem da corrupção das virtudes humanas[27] – vai muito para além do pretendido pelo Estado Novo e deste não pode senão divergir. Segundo os padrões ensaiados nos Planos Gerais de Urbanização, a estratégia de comunicação governamental percebe, com efeito, que a proximidade física do Estado às populações, bem como os sinais de uma nova ordem não podem senão ser intuídos no espaço formal da cidade e na reconfiguração da rede urbana nacional[28]. E se é verdade que o tradicionalismo invade os Planos Gerais de Urbanização, a verdade é que estes incorporam a renovação dos equipamentos, das infrestruturas e dos modos de circulação no interior dos núcleos urbanos (não apenas cidades), o que estabelece, pelo menos desse ponto de vista, uma marca de regeneração.

Em suma, o Plano que de Gröer desenha para Coimbra desmistifica, na prática, as ideias que, amiúde, têm sido difundidas sobre a figura do Projectista. Este é reiteradamente salientado como figura grada do Regime, mas, mais do que isso, como fiel interpretador e materializador das ideias do Estado Novo em matéria de cidade. Como sublinhamos, as discordâncias sobrevêm com o significado e conformação urbana da Avenida de Santa Cruz . Nem sempre de Gröer afirma princípios em que a Tutela se reconheça: tradição não quer, apesar de tudo, dizer imobilismo ou pastiche.

 

Conclusão

Coimbra permite ler o seu tempo. O plano da cidade é, em si mesmo, reflexo das contradições entre a opção conservadora da Cidade Jardim e a modernidade da Carta de Atenas, ensaiada em Vila Nova de Gaia. E são essas contradições que se expressam através da Avenida de Santa Cruz: as de um país que oscila entre as ideias mais conservadoras e as políticas de modernização. Com efeito, a Avenida de Santa Cruz serve de espelho da cultura do Estado Novo, reflectida na arquitectura e, afirmamos, na cidade. Como símbolo, esta avenida posiciona-se entre as mentalidades mais progressistas e o atavismo; entre os desejos de industrialização de sectores políticos minoritários e os defensores do país rural; entre a estratégia etnográfica de Ferro e a herança dos seus anos do modernismo; entre o país das aldeias e os ímpetos mais modernizadores de Duarte Pacheco. Ou seja, a Avenida de Santa Cruz posiciona-se, tal como o país, entre as ideias que promovem a modernização das ambições que, opostamente, desejam a manutenção e a afirmação de mitos do passado e se fixam no atavismo do ambiente e dos valores.

De acordo com esses argumentos e com a exposição desenvolvida nestas páginas, abrimos pistas para afirmar, fundamentalmente, uma dupla negativa: nem as instituições estatais desejam que a cidade se construa com recurso à adopção de um tipo de arquitectura que se defina, exclusivamente, no tempo histórico; nem de Gröer é um fiel interpretador de uma ideia de cidade do Estado Novo que seja, exclusivamente, concebida nos limites do pitoresco. Desse ponto de vista, a avenida de Santa Cruz constitui um contributo significativo para desmistificar o mito que repetidamente se tem afirmado sobre a cidade que é pensada, em Portugal, no período dos Planos Gerais de Urbanização.

Concluindo, a Avenida de Santa Cruz é, metáfora do próprio país, imaginada entre a modernidade e a nostalgia.

 

 

REFERÊNCIAS

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Notas

[2] Étiènne de Gröer, nasce a 4 de Janeiro de 1882 em Varsóvia. Os pais, de origem russa, vivem entre Varsóvia e São Petersburgo, cidade onde faz o liceu e entra na Academia de Belas Artes, em 1908. Em 1917, termina os estudos e obtém os diploma de Architect- Artiste. Inicialmente, ingressa na Câmara Municipal de São Petersburgo. Juntamente com outros quatro arquitectos tem como tarefa a conservação dos monumentos artísticos e bens históricos, a intervenção no espaço central da cidade e na sua periferia. Torna-se um urbanista activo: é um dos fundadores da revista Gorogskoïé Diélo (A Questão Urbana), primeira publicação periódica russa consagrada à temática do urbanismo; faz conferências sobre o tema da cidade jardim e realiza projectos desse tipo de cidade para Petrogrado (designação que é adoptada por São Petersburgo a partir do início da Primeira Guerra Mundial, de 1914 até 1924). Com a Revolução Russa, em 1917, as condições de vida de de Gröer e de sua família degradam-se e, após uma curta passagem pela Finlândia, desloca-se para Paris. Aí adquire nacionalidade francesa e torna-se professor no Instituto de Urbanismo de Paris. Cf. Faria, J.M.S. (2000), pp. 2.1-2.3.

[3] Duarte Pacheco, 1900-1943. Ministro das Obras Públicas entre 1932 e 1836 e, mais tarde, entre 1938 e o ano da sua morte (1943), num intervalo temporal em que acumula essas funções com as de Presidente da Câmara Municipal de Lisboa.

[4] Terminologia usada no original. Vd. DE GRÖER, Etienne (1944) – Peças Escritas do Plan d’amenagement de Coimbra. Lisboa: Arquivo do Serviço de Estudos de Urbanização da Direcção-Geral do Ordenamento do Território e Desenvolvimento Urbano, p. 54.

[5] Porto, Lisboa, Figueira, Penela, Beira e Vale de Canas.

[6] Sublinha-se que entre os factores que de Gröer equaciona para o desenvolvimento dos Planos de Urbanização, as vias de circulação ocupam lugar de destaque. De Gröer é um urbanista da era do automóvel. A prová-lo está o facto de que é um urbanista preocupado com a sistematização de soluções para lidar com o automóvel nas cidades. No artigo "Introdução ao Urbanismo" publicado no Boletim da Direcção-Geral dos Serviços de Urbanização, o Urbanista, faz uma síntese dos seus princípios no tocante à organização dos planos. Nesse âmbito, entre as páginas 55 e 69 desenvolve um capítulo "REDE DE VIAS", que elenca diversas soluções para os problemas viários. Salientamos, para lá da classificação e caracterização das vias, estudos da dimensão dos quarteirões e do afastamento dos cruzamentos, com vista à separação dos peões e dos automóveis, com soluções inspiradas em Radburn, de que de Gröer se mostra entusiasta. Cf. De Gröer, E. (1945-46), pp. 55-69.

[7] José Santiago Faria (1943-2010), arquitecto, estudou a sucessão de planos em Coimbra. Atribui a esse período o nascimento da ideia de uma avenida a rasgar a cidade entre a Igreja de Santa Cruz e o Rio Mondego. Segundo refere, os dois planos fazem tábua rasa da malha ancestral da cidade e, com centro em Santa Cruz, propõem uma nova estrutura que se substitui a quase todas as preexistências, com excepção das Praça Velha. Cf. Faria, J.S. (2006), pp. 130-137.

[8] É este o modo como o regime instituído pela Constituição de 1933 se auto-intitula. O intervalo de tempo do Estado Novo considera-se compreendido entre 9 de Abril de 1933 (data de entrada em vigor da Constituição) e o Golpe Militar de 25 de Abril de 1974. Cf., Rosas e Brito (1996), p. 315.

[9] De acordo com os critérios elencados no Decreto-Lei, ficou determinado que as câmaras municipais teriam que sujeitar a elaboração de plano, não apenas a sede de município, mas, também, todos os aglomerados com mais de 2500 habitantes que houvessem registado um crescimento demográfico, entre recenseamentos, superior a 10%; ficaram ainda sujeitos ao Decreto-Lei os centros urbanos ou locais de interesse turístico, recreativo, climático, terapêutico, espiritual, histórico ou artístico a estipular por iniciativa governamental. Vd. Decreto-Lei 24 802, de 21 de Dezembro de 1934. Depois da morte de Duarte Pacheco, em 1943, e já com Cancela de Abreu na pasta das Obras Públicas, os planos são sistematicamente classificados como anteplanos. A nova figura jurídica é criada em 1946 e afasta a possibilidade de uma real política de solos - se exceptuarmos Lisboa e Porto (que ficam fora do âmbito da medida), as autarquias permanecem definitivamente impossibilitadas, por razões financeiras e legais, de realizar quaisquer expropriações. Com a medida, os planos deixam de produzir efeitos directos e são reduzidos ao papel de documentos reguladores da actividade de particulares.

[10] O Manifesto Futurista é publicado por Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944) no jornal Le Figaro, a 20 de fevereiro de 1909. O futurismo destrói os pontos estáticos de observação e é a glorificação da velocidade que trata de anunciar a aniquilação dos mesmos. Os pontos 4 e 5 do manifesto são os mais significativos neste âmbito: "(…) 4. Nós afirmamos que a magnificência do mundo se enriqueceu de uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um automóvel de corrida com o seu cofre enfeitado com tubos grossos, semelhantes a serpentes de hálito explosivo… um automóvel com o seu rugido, que parece correr sobre a metralha, é mais bonito que a Vitória de Samotrácia. 5. Nós queremos glorificar o homem que segura o volante, cuja haste ideal atravessa a Terra, lançada também numa corrida sobre o circuito da sua órbita. (…)." Marinetti, F.T. (1909), "Manifeste du Futurisme", Le Figaro. Paris, ano LV, 3ª série, nº 51. Também Vers Une Architecture, obra emblemática do perído moderno, da autoria de Le Corbusier (1887-1965), afirma de modo inequívoco o novo olhar sobre a máquina, a velocidade, o automóvel. Com efeito, nas páginas desta obra, o automóvel coloca em evidência a estreita aproximação entre forma e função – um binómio encarado como manifesto pelos arquitectos modernos –, como deixa patente, igualmente, a sua total sintonia com o tempo em que é criado. Confrontando fotografias de um Humber de 1917 e um Delage de 1921, Le Corbusier espera os mesmos resultados na comparação entre uma imagem do Templo de Paestum e outra do Partenon. Ao fazê-lo nas páginas da sua obra mais emblemática, o arquitecto põe em evidência a existência de standards, invariantes que se repetem, evoluindo com a evolução dos objectos que compõem, até à perfeição. Vd. Le Corbusier (1998; 1923).

[11] Novas nomenclaturas ocupam o território, de Norte a Sul: Variantes, circulares, vias periférias, anéis periféricos, anéis de circunvalação, artérias periféricas, vias de cintura, vias tangenciais à periferia do aglomerado. Novos conceitos e espaços articulam-se na nova síntese: espaços para afirmação da liberdade de circulação;parkway, via parque panorâmica, estrada de turismo; alargamentos, correcção de alinhamentos, esventramentos; separação entre habitação e circulação; antinomia peão/automóvel; faixas arborizadas ou relvadas, como espaços de mediação. Novos programas e espacialidades difundem-se na cidade: gares, estações de serviço, passagens aéreas e subterrâneas, nós viários. Vd., a propósito do papel que o automóvel irá ter na conformação de ideias e conceitos para a reformulação do universo urbano do país, no âmbito dos Planos Gerais de Urbanização, DIAS, José Cabral (2012), Episódios Significativos de Espacialização Urbana a Partir do Automóvel. os Planos Gerais de Urbanização; 1934 – 1960. Porto: Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, Dissertação de Doutoramento em Arquitectura.

[12] Etienne de Gröer ficará responsável pelo desenho das mais significativas capitais de Distrito, como Coimbra, Braga e Évora, designadamente De Gröer projecta a partir de princípios que se baseiam na cidade jardim, de que é um firme entusiasta, contra a construção em altura. Com efeito, o urbanista faz assentar as suas propostas na cidade jardim, no zoning e no uso da habitação unifamiliar. De acordo com esse modo de actuar, propõe, em Coimbra, um plano que assenta em cinco extensões – Extensão Sudeste, Sueste, Noroeste, Nordeste e Santa Clara e em cinco Aldeias-Satélite – Coselhas, Tovim, Chão-do-Bispo, Carvalhosa e Várzea. Inicialmente, De Gröer havia sido encarregue do concepção do Plano Geral de Urbanização e Extensão de Lisboa Lisboa, iniciado em 1938 e finalizado em 1943. O Plano em questão define as bases em que deveriam ser sustentados os diversos estudos parcelares e de pormenor para cada uma das zonas de expansão da cidade. O Plano, não chega, contudo, a ser aprovado. Vd. Costa, J.P. (2002). Nesses anos iniciais, de Gröer é também responsável pela revisão de um outro plano: o da Costa do Sol. Em 1938, o urbanista assume também esse encargo com a saída do autor original do plano, Donat-Alfred Agache (1875-1959), para o Brasil, em 1936, quando Duarte Pacheco deixa o Ministério das Obras Públicas. Sobre o contexto da saída de Agache para o Brasil vid. Lôbo, M.S. (1995; 1993), p. 89.

[13] Ferreira Dias, subsecretário de Estado do Comércio, fica responsável pelas Leis nº 2002 – de Electrificação Nacional – e nº 2005 – do Fomento e Reorganização Industrial – de 26 de Dezembro de 1944. A mudança com carácter doutrinário chega pela mão deste governante, através das suas ideias e iniciativas legislativas, acolhidas e promovidas pelo governo, como reconhecimento de que o país precisava de se modernizar. Tenta-o com o Plano de Ressurgimento da Indústria Portuguesa, para afastar a especialização da economia portuguesa no sector agrícola. Mas sem sucesso. Nos anos 1960, Ferreira Dias, já como ministro da Economia (1958-62), afirma: "A economia portuguesa tem de mudar de vida, mesmo que tenha de sentir o travo de alguma saudade [...], o país espera uma reforma séria da indústria; eu não me disponho a colaborar em simulacros de reforma." ROSAS, Fernando e BRITO, J. M. Brandão de, Op. Cit, p. 478.

[14] António Ferro é um intelectual reconhecido que mantivera contacto estreito com o primeiro modernismo português, tendo sido, inclusivamente, editor do órgão deste movimento – a revista Orpheu – a convite de Mário de Sá Carneiro (1890-1916). Esta revista, editada em Lisboa em 1915, só teve os dois primeiros números publicados, correspondentes aos primeiros trimestres desse ano – as dificuldades de financiamento ditaram o seu fim –, não sem que, contudo, deixasse uma forte e duradoura influência nos meios literários e na renovação da literatura portuguesa. Ficaria associada à introdução do movimento modernista em Portugal, através da associação de relevantes nomes das letras e das artes, como Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, José de Almada Negreiros ou Amadeo de Souza-Cardoso. O Secretariado de Propaganda Nacional foi criado em 1933 e transformado, em 1944, no Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo.

[15] Toda a promoção etnográfica se processa segundo propósitos de propaganda que, sublinhamos, se materializam através da manipulação e exibição mediada, não espontânea, não genuína. Verifica-se, aliás, uma desconfiança de base sobre a cultura popular, que tem que ser previamente sujeita ao crivo da selecção estética. As reservas do SPN sobre a cultura popular ficam patentes nas palavras de Francisco Lage (que dirigia o departamento de etnografia do SPN): "São pouquíssimos, mesmo raros, os ranchos ou grupos regionais que merecem confiança a este Secretariado para uma representação portuguesa em qualquer parte e muito menos fora de fronteiras. A grande maioria pelos trajos que usam, danças a cantares que exibem, não passam de fantasias de mau gosto, com deturpações horríveis e absolutamente influenciadas pelas revistas e teatros populares de Lisboa." Apud ALVES, Vera Marques (1997), "Os Etnógrafos Locais e o Secretariado da Propaganda Nacional. um estudo de caso", Etnográfica. Lisboa: Centro de Estudos de Antropologia Social, Vol. I (2), p. 240. O esforço de Ferro é dirigido tanto ao exterior – na afirmação de Portugal – como ao interior, sendo as elites – detentoras de apetência e poder económico – o veículo escolhido para a renovação estética pretendida pelo SNI. Vd. ALVES, Vera Marques (2007), "A Poesia dos Simples: arte popular e nação no Estado Novo", Etnográfica. Lisboa: Centro de Estudos de Antropologia Social, nº 11(1), p. 65. Segundo Vera Marques Alves, "podemos portanto dizer que quando António Ferro escolhe a arte popular para representar Portugal extramuros, nomeadamente nos certames internacionais, e faz das audiências estrangeiras um dos principais alvos da política folclorista desenvolvida pelo SNI, está a destacar a função identitária de toda a campanha etnográfica." Idem, p. 66. Como se disse, o processo é selectivo e dirigido. A encenação e esteticização promovida pelo Secretariado, não trata de mostrar as danças e cantares, as vestes e modo de vida dos camponeses; não trata de inventariar e multiplicar conhecimentos sobre os costumes locais; no seu programa etnográfico, o SPN dá ênfase aos objectos, "(…) silenciando (…) a pesquisa ou o interesse na publicação do material escrito € (…) encerra a tendência para a esteticização dos dados etnográficos e a transformação da cultura em puro objecto de encenação." ALVES, Vera Marques (1997), Op. Cit., p. 239. Trata-se, com efeito, da encenação de um modo de ser português e, nessa medida, todos os materiais etnográficos que não se adequam à encenação de um retrato esteticamente atractivo são banidos ou depurados. Referimo-nos aos sinais de pobreza ou de dureza das profissões ou da vida no campo. Segundo refere a mesma Autora, "subjacente ao uso privilegiado das representações visuais na área da etnografia estava a própria sobrevalorização da faceta artística da cultura material do mundo rural, com a consequente eliminação dos elementos pouco condizentes com uma imagem espiritualizada do ‘grande poeta que se chama povo português’ (segundo palavras do próprio António Ferro, de 1940) ". Idem, Ibidem.

[16] O tema repega nos ideais – com origem no século XIX e desenvolvidos ao longo do século XX– de que é nos rurais – que se encontra os verdadeira valores do país. Vd. Vera Marques Alves (2007), Op. Cit., p. 70.

[17] Eurico Sales Viana: erudito albicastrense que colaborava com o SNI nas campanhas etnográficas. Vd. ALVES, Vera Marques (1997), Op. Cit.

[18] Sob a direcção de Pacheco, o Ministério das Obras Públicas e Comunicações procurou reorganizar-se de forma a incentivar o fomento do país. A preocupação consubstancia-se na intenção de "(…) concretizar um plano de obras estruturais a uma escala nacional, virado para o futuro. " COSTA, Sandra Vaz (2012; 2009), O País a Régua e Esquadro: urbanismo, arquitectura e memória na obra pública de Duarte Pacheco. Lisboa: IST Press, p. 20.

[19] Carta de Luís da Costa Novais, assinada em nome do secretário-geral do Ministério das Obras Públicas, datada de 19 de Setembro de 1945, dirigida ao presidente do Conselho Superior de Obras Públicas.

[20] A Carta de Atenas surge na sequência do CIAM 4 (Congrès International d'Architecture Moderne ), realizado em 1933, a bordo do paquete Patris II (entre Marselha e a capital grega) mas é apenas publicado em 1943 com o título de La Charte d’ Athênes. Trata-se de um manifesto para reformular a cidade e a vida no seu espaço, à luz da modernidade e do movimento mecanizado (como Le Corbusier se lhe referia). Os CIAM foram fundados em Junho de 1928, no Castelo de la Sarraz, na Suiça. A última reunião desta organização, o CIAM XI, teve lugar em Otterlo, na Holanda em 1959, devido à divergência dos seus membros e ao abandono das ideias radicais que deram corpo à Carta de Atenas. Vd. MUNFORD, Eric (2000), The Ciam Discourse on urbanism, Cambridge, Massachusetts: The MIT Press.

[21] O sistema de Unidades de Vizinhança foi desenvolvido por Henry Wright nas imediações de Nova Iorque. O sistema foi aplicado em 1930, em Radburn, com vista a dar uma resposta à organização do espaço urbano na era do automóvel. Os bairros deveriam ser organizados à margem das vias de tráfego, mas não atravessadas por estas, e ser dotados de escolas de forma a que as crianças pudessem alcançar estes equipamentos confortavelmente numa deslocação a pé, sem se se cruzarem com automóveis; só as vias de trânsito local deveriam chegar ao coração dos núcleos residenciais. Segundo Etienne de Gröer ficou designado, pelos americanos, por "plano para a idade do automóvel [...]".Etienne de Gröer apud LÔBO, Margarida Souza, Op. Cit., p. 92.

[22] Este posicionamento é defendido como uma tendência do momento, sustentada na argumentação por inúmeros estudos contemporâneos. No texto, faz-se recurso do Relatório da New Towns Comittee (Ministério da Urbanização Britânico – Julho de 1946): "para que a comunidade seja verdadeiramente equilibrada, todas as classes sociais devem estar presentes. É indispensável a contribuição de cada tipo e classe de pessoas." CONSELHO SUPERIOR DE OBRAS PÚBLICAS (1947), Parecer 1774: Ante-projecto do plano de urbanização de Évora. Lisboa: Biblioteca e Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas, p. 67.

[23] O arruamento é aberto pela demolição das casas consideradas velhas, entre as Ruas da Moeda e Bordalo Pinheiro – segundo o Autor, estreitas e insalubres. Vd. Etienne de Gröer(1944), Peças Escritas do Plan d’amenagement de Coimbra. Lisboa: Arquivo do Serviço de Estudos de Urbanização da Direcção-Geral do Ordenamento do Território e Desenvolvimento Urbano, p. 49.

[24] Junto da nova gare de comboios, de Gröer prevê a estação de camionagem. Vd. Idem, p. 48.

[25] Na Extensão Sueste, o desenho proposto pela articulação do Estádio e de um equipamento de ensino por meio dos arruamentos consubstancia, também um gesto de procurada monumentalidade, em contraste, dir-se-á, com as habitações que rodeiam este conjunto.

[26] Trata-de uma contestação do Conselho Superior de Obras Públicas à redacção que o Projectista propõe, através do art. 79º do Regulamento da Construção. O organismo estatal pretende, em oposição, uma outra redacção contra a "(...) errada interpretação a que aquela redacção pode dar lugar (...)" e, portanto, menos atávica. Cf. Conselho Superior De Obras Públicas (1945), Parecer 1605: plano de arranjo e urbanização da cidade de Coimbra. Lisboa: Biblioteca e Arquivo Histórico do Ministério da Obras Públicas, p. 104.

[27] A defesa da ideias de boa cidade, posicionam-no num âmbito que se afasta da objectividade. Em passagens expressivas deste ponto de vista, o Urbanista faz uso de adjevitação para qualificar a degradação das condições de vida urbana, que coloca tónica no que pode ser classificado como moralista:"A desmoralização aumenta de dia para dia, ajudada pela miséria, a promiscuidade e a inveja". De Gröer, E. (1945-46), Op. Cit: 23. Em outra passagem, demostra paternalismo na manifestação do mesmo tipo de moralismo. "Os vossos filhos não mais brincam na rua com pequenos vagabundos de todas as espécies, mas divertem-se no vosso próprio quintal. A Senhora não se fatigará mais em os acompanhar nos passeios. (…) Mil trabalhos domésticos poderá fazer em vez dêstes passeios (…). O seu marido, voltando à tarde do escritório ou da oficina, também achará nêle muito prazer. Em vez de gastar dinheiro num café, na taberna ou num outro lugar onde os homens procuram distracções, voltará muito contente a sua casa para poder trabalhar um pouco no seu jardim. (…) Tôda a família será mais saudável e sentir-se-á mais feliz." Idem, p. 39. O tom que usa para defender a aplicação ao urbanismo do princípio de "mente em corpo são" é exactamente o mesmo. "(…) O mesmo princípio guia a ciência do urbanismo em toda a sua obra de transformação das cidades antigas e da criação de cidades novas. Com efeito, a humanidade inteira é composta de crianças grandes que precisam de condições para o seu desenvolvimento normal, e de boa educação, para virem a ser homens honestos e bons cristãos. Idem, p. 74.

[28] Reforçando a ideia que aqui defendemos, Sandra Vaz Costa vê a intervenção na cidade como um dos 3 momentos em que divide a polítca de Obras públicas. Nesse âmbito, situa o centro cívico – com os equipamentos a construir ou melhorar – como uma marca, em cada localidade, da presença do poder do Regime e do Estado. A Autora identifica, em suma, o programa dos Planos Gerais de Urbanização como uma intenção de ensaiar uma imagem urbanizada do regime. Costa, S.V. (2004), "A palavra Tornada Pedra", in Arquitectura Moderna Portuguesa, 1920 – 1970. Lisboa: IPPAR, p. 45. Em complemento dessas palavras, diremos que o programa dos Planos Gerais de Urbanização converge com as propostas ensaiadas em Lisboa. Aproximamo-nos do defendido por Nuno Portas: esses planos procuravam que o país se "(...) arrumasse em Avenidas largas à moda da Capital". Vd. Portas, N. (1973), "A Evolução da Arquitectura Moderna em Portugal: uma interpretação", in História da Arquitectura Moderna. Lisboa: Arcádia, Vol. 2, p. 727. No pólo oposto, de Gröer posiciona-se de modo mais atávico. Defende a teoria de Howard, que "(…) foi seguida e aplicada na prática e que deu resultados evidentes. " De Gröer, E., Op. Cit, p. 24. De modo tendenciso, dir-se-á, o Urbanista mostra-se, concomitantemente, detractor de Le Corbusier e da construção em altura: como refere, "a construção alta e densa acabou o seu tempo e foi apenas uma experiência" Idem, p 28. Sabemos que as experiências das teorias de Howard tiveram um campo de aplicação muito limitado e que a construção em altura não esgotou ainda o seu limite. Mais do que objectivo, esse argumentário pretende construir um modo de defender um desejo. Esse desejo materializa-se na negação da ideia de cidade concentrada. "Acreditamos da melhor vontade da possibilidade de ver, num dia qualquer, o desaparecimento total das construções colectivas e mesmo de todo o aglomerado urbano. Assim, se se admitir, por exemplo, que no futuro os transportes venham a ser muitíssimo mais rápidos e mais baratos do que hoje, pode pensar-se perfeitamente que ninguém precisará de cidades. A concentração de todas as actividades urbanas e da habitação num único ponto, viria a ser absolutamente inútil, e podia viver-se espalhado pelo campo e transportar-se ràpidamente à casa dos outros ou da casa ao escritório ou à fábrica onde se trabalha." Idem, p. 29. O urbanista usa aliás, a experiência da I Guerra Mundial para defender esse modelo: vê na dispersão da construção, através da habitação unifamiliar pelo território, uma defesa superior contra os bombardeamentos aéreos, em desfavor da concentração e da construção em altura, mais exposta ao fogo dos bombardeiros. Na dissertação de doutoramento que realizou, José Santiago Faria explora esta temática da organização urbanística em função das experiências bélicas, a propósito da obra escrita e do pensamento de de Gröer. De Groër tem mesmo escritos publicados sobre o tema - L’urbanisme et la Defense antiaérienne. Le Monde Souterrain, nº11, 1937. Cf. Faria, J.M.S., Op. Cit.

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