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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.31 Lisboa dez. 2015

 

RESENHA

 

Recensão do livro "A Cidade na Encruzilhada. Repensar a Cidade e a Sua Política"

Review of "A Cidade na Encruzilhada. Repensar a Cidade e a Sua Política"

 

 

Simone TulumelloI

[I]Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa, Itália. e-mail: simone.tulumello@ics.ulisboa.pt.

 

 

A Cidade na Encruzilhada. Repensar a Cidade e a Sua Política

João Seixas

Porto: Afrontamento, 2013

A Cidade na Encruzilhada é um articulado e caleidoscópico ensaio sobre os desafios da cidade e da sua governança. O objetivo do livro é «repensar a cidade», como aliás o subtítulo frisa, ou seja "contribuir para melhor se comporem os puzzles dos saberes urbanos e da construção de futuras estratégias para com as cidades" (p. 53), ultrapassando as divisões entre teoria (crítica) urbana e ação político-técnica. Esta perspetiva, aliás, resume boa parte do percurso profissional do seu autor, João Seixas e vale a pena apontar duas características deste percurso pela sua relevância na compreensão do livro. Primeiro, ao longo da sua carreira, João Seixas tem conjugado duas vertentes, que se foram sobrepondo ou alternando no tempo: a investigação em ambiente universitário e o envolvimento profissional, nomeadamente enquanto consultor em políticas urbanas à escala europeia e local – o presente livro, é em parte resultado de reflexões resultantes da experiência do autor na reforma administrativa da Câmara Municipal de Lisboa. Segundo, João Seixas é animado por um irremediável otimismo «da prática», ou seja por uma confiança na possibilidade da ação política – nas duas componentes de policy e politics – mudar efetivamente o estado das coisas. Estas duas características pessoais influenciam a qualidade do livro e também os seus limites: ficam, a meu ver, duas questões importantes em aberto. Debruçar-me-ei sobre estas questões na conclusão.

A Cidade na Encruzilhada é estruturado por um modelo analítico composto por três vetores (p. 49): a cidade como lugar de relação e das relações; a cidade como espaço e território; a procura de perspetivas integradas e sistémicas sobre a cidade. O livro por sua vez está organizado (embora não formalmente) em três partes: a primeira (capítulos 1 a 3) delineia os desafios para a ação pública urbana, resultantes das transformações e tendências recentes e globais de cariz social, económico, cultural e político; a segunda (capítulos 4 e 5) analisa o estado da arte da governação urbana; e a terceira (capítulos 6 a 8) oferece algumas propostas de reinvenção da(s) política(s) urbana(s). Nesta estrutura, o capítulo 3, intitulado "A política glocal", constitui o cerne entre as considerações de caráter mais global e suas implicações locais.

O livro abre com a apresentação dos objetivos e das questões de trabalho numa escala global, articulando-os em torno de quatro palavras-chave: "ritmos" das mudanças, "paradigmas" em mudança, "descompassos" e problemas urbanos, e, finalmente, "atitudes" perante path dependencies e novas ideias. Em linha com algumas posições recentes, no seio dos estudos críticos urbanos (vejam-se Brenner, 2009; Marcuse, 2010), é levantada a questão sobre se as mudanças radicais que as cidades têm vindo a atravessar (e, frequentemente, sofrer) devem ser entendidas como inevitáveis circunstâncias históricas (globalização e seus efeitos) ou antes o resultado de escolhas político-económicas específicas, nomeadamente a progressiva financiarização, e subsequente despolitização, das práticas e políticas urbanas (p. 32). De seguida (capítulo 2), são analisadas as principais dinâmicas de transformação urbana: a crescente importância das cidades nas redes globais económicas e de poder; as tendências para a transição das estratégias urbanas em direção à competitividade (frequentemente em detrimento da coesão); as dinâmicas espaciais contraditórias de urbanização e de-urbanização ou até contra-urbanização e seus efeitos nas mobilidades e acessibilidades urbanas; e finalmente a fragmentação social e os efeitos do reduzido papel regulador e redistribuidor do estado, entre polarização e incremento das inseguranças (laborais, económicas, percebidas, …). O terceiro capítulo enfatiza a forma como as mudanças sócio-espaciais foram acompanhadas pela "recomposição" das práticas de governança urbana, ao longo de cinco dimensões (p. 131): (1) os processos de descentralização político-administrativa; (2) as reformas das estruturas locais do sector público, e nomeadamente processos, eventualmente contraditórios, de modernização organizacional e cultural versus a empresarialização e privatização de serviços e responsabilidades públicas; (3) a emergência do planeamento estratégico e dos projetos de cidade; (4) a aposta em grandes projetos, com expetativa que estes catalisem dinâmicas económicas e de desenvolvimento, e city marketing, porém em detrimento das políticas públicas propriamente ditas; e (5) finalmente a emergência de práticas colaborativas e participativas visando uma cooperação na governança urbana dos demais setores sociais e económicos. Para melhor ilustrar estes processos, são apresentados exemplos a nível internacional.

Entramos assim na segunda parte, que explora os desafios, resultantes das questões previamente analisadas, para a governação urbana. As primeiras questões analisadas são «quem» governa as cidades e «como». O capítulo quarto debruça-se sobre as relações entre os atores e as práticas, enfatizando a emergência do «projeto» (especialmente dos grandes projetos) como catalisador da ação pública e privada, no contexto de uma cidade cada vez mais empreendedora (e consequentemente menos política). Para este fim é mobilizado um leque de reflexões teóricas sobre os regimes urbanos e a formação de comunidades políticas e são sistematizadas as expressões destes processos que acomunam as cidades da Europa do sul. Estas merecem destaque porque compõem um interessante caso de estudo (entre inovação e conservação, tendências Europeias e peculiaridades locais) e por constituírem o âmbito geográfico e conceptual do caso de Lisboa, que é posteriormente discutido pelo autor. O passo seguinte (capítulo 5) é a revisão critica do conceito de capital sociocultural, questionando o seu papel na construção das redes necessárias às práticas de governança – ou seja o «quem» e o «como». João Seixas desenha uma grelha em seis vertentes (p. 206), que pode ser aplicada como instrumento metodológico para estudos de caso: a forma da cidade e as relações entre complexidade espacial e processos sociais; a identidade da cidade; o conhecimento da cidade e a consolidação cultural; o associativismo e a mobilização sociopolítica; as práticas participativas de governança; o papel da liderança e das «elites».

Entramos na última parte do livro. Aqui o autor apoia-se nos conceitos e ideias desenvolvidas ao longo das primeiras duas partes para oferecer propostas, ao mesmo tempo teóricas e concretas, de reinvenção da política urbana. O capítulo sexto mobiliza um significativo leque de teorias – e autores como Henri Lefebvre, David Harvey, François Choay, Isabel Guerra o João Ferrão – e experiências concretas para delinear uma proposta sistémica para o "entendimento da governação urbana" (p. 247 e seg.) considerando três componentes (instituições de governo, redes de governança e capital sociocultural) e três valores (os instrumentos adequados, a democracia, a abertura). É importante sublinhar como a governança urbana torna-se, nesta proposta, uma componente – e não um substituto – das práticas de governo. Numa passagem crucial, João Seixas sustenta precisamente isso: "reafirma-se assim de novo, o essencial papel dos órgãos eleitos, dos governos urbanos e em geral do Estado nesta ordem de expectativas de evolução" (p. 252).

O sétimo capítulo constitui o coração do livro. Aqui, as teorias mobilizadas precedentemente são utilizadas para delinear uma proposta de análise e reforma do sistema e dos paradigmas de governação para a cidade de Lisboa: são delineados os princípios para tal reforma, analisadas as experiências precedentes de construção de estratégias, diagnosticado o estado da arte das estruturas de governação de Lisboa e finalmente delineados os grandes princípios para reforma (ver o quadro sintético, pp. 284-286). O conceito-chave para a proposta é a "criação de estruturas e de processos que permitam uma maior proximidade entre a política e o cidadão, e uma maior partilha dos destinos coletivos da cidade e de cada um dos seus bairros" (p. 282). Os grandes temas para a reforma são, de acordo com João Seixas, a centralidade do trabalho estratégico numa ótica participativa, a descentralização e a subsidiariedade, e a qualificação das estruturas administrativas. É importante sublinhar como, entre 2009 e 2012, a Câmara Municipal de Lisboa, com a participação decisiva do próprio Seixas, tem vindo a elaborar e aprovar uma reforma administrativa que, seja na descentralização vertical de competências para as freguesias, seja na reorganização horizontal dos departamentos municipais, é fortemente fundamentada pelos temas aqui evidenciados (ver Mateus et al., 2010).

O último capítulo enfatiza o momento presente de encruzilhada para as cidades e para Lisboa, entre riscos e possibilidades para «regenerar» (e reinventar) a polis. O livro é enriquecido por 30 caixas, muitas das quais de autoria de convidados, dedicadas a variados temas, como a qualidade de vida urbana, as políticas europeias da cidade, a Agenda 21 Local ou a relação cidade-campo. Um texto caleidoscópico, enfim, cujas múltiplas partes podem ser entendidas e lidas de forma diferente (mais teórica, mais conceptual, mais prática, mais crítica), mas são claramente acomunadas pelo seu objetivo final, o de encontrar pistas para repensar a política urbana. Em suma, A Cidade na Encruzilhada é uma leitura importante para quem está interessado nas (perspetivas para as) políticas urbanas contemporâneas e uma leitura obrigatória para quem está interessado nas políticas urbanas em Lisboa.

Vale a pena, em conclusão, realçar duas questões, entres riscos e possibilidades, que o livro deixa abertas. A primeira questão tem caráter prospetivo e político na cidade de Lisboa, mas não pode ainda ter resposta por razões temporais, a bem ver. O processo de reforma está, todavia, em curso e só será possível avaliar se objetivos e a realidade corresponderam às expetativas delineadas daqui a alguns anos. Porém, a governação da cidade, nos últimos anos, embora em presença de continuidade política, foi caraterizada por algumas contradições internas e a coexistência de políticas de cariz significativamente diferente. Ao mesmo tempo em que se reformava a máquina administrativa utilizando alguns dos princípios delineados neste livro (principalmente descentralização e qualificação), as políticas urbanas aplicadas no contexto da crise privilegiavam a competitividade sobre a coesão e até fomentavam a apropriação de algumas práticas participativas para agendas de caráter neoliberal (Tulumello, 2015). Será que a reinvenção da governação, se não for acompanhada por uma clara visão política de cariz progressista (ou até radical?), pode resultar na exaltação das mesmas tendências que quer contrastar?

A segunda pergunta, de ordem teórica, descende da primeira e tem a ver com as relações entre governo/governação/governança da cidade e as teorias críticas urbanas. Em geral, a primeira metade do livro tende a realçar o papel das práticas de governança, enquanto na terceira parte o papel do governo (público) é reafirmado (como precedentemente realçamos) – e o conceito de governação é perspetivado como síntese (p. 310). Notamos que o contributo do livro reside na tentativa de aproximar as perspetivas críticas (tendencialmente adversas à ideia de governança) e pragmáticas (que comummente enfatizam o papel da governança em detrimento do governo), suportando assim a reinvenção da política urbana nas dimensões das policies e politics. Porém, se generalizamos a primeira pergunta relativa a Lisboa, podemos evidenciar como algumas dimensões cruciais das politics, no quadro dos desafios decorrentes da recorrência de crises e da neoliberalização das políticas públicas, merecem ulterior reflexão – ver, para um debate, Ferrão (2015) sobre a governança democrática metropolitana. O papel dos movimentos sociais, por exemplo, e mais em geral das críticas de ordem estrutural à hegemonia do sistema neoliberal é deixado numa posição marginal no livro: será, enfim, que a reinvenção da política na cidade é possível no quadro das estruturas presentes? Esta pergunta não tem resposta no livro. Por um lado o «otimismo da prática» de Seixas parece sugerir que sim, será possível, sobretudo pela capacidade das cidades se organizarem em torno de visões construídas de forma deliberativa. Por outro lado, porém, os desafios levantados ao longo do texto podem sugerir que a mudança necessária é de ordem mais estrutural (uma nova hegemonia cultural e económica). É nesta encruzilhada, a meu ver, que o debate sobre o futuro da democracia urbana se irá desenvolver nos próximos tempos. E mais trabalhos como A Cidade na Encruzilhada serão bem-vindos para prosseguir um debate crucial em tempos de urbanização global.

 

AGRADECIMENTOS

Quero agradecer a Edalina Rodrigues Sanches a revisão do Português e úteis comentários.

 

 

REFERÊNCIAS

Brenner, N. (2009), "What is Critical Urban Theory?", City: Analysis of Urban Trends, Culture, Theory, Policy, Action, 13 (2-3), pp. 198-207.         [ Links ]

Ferrão, J. (2015), "Governança Democrática Metropolitana: Como Construir a ‘Cidade dos Cidadãos’", in A. Ferreira, J. Rua, R.C. de Mattos (orgs.), Desafios da Metropolização do Espaço, Rio de Janeiro: Consequência, pp. 209-224.         [ Links ]

Marcuse, P. (2010), "In Defense of Theory in Practice", City: Analysis of Urban Trends, Culture, Theory, Policy, Action, 14 (1-2), pp. 4-12.         [ Links ]

Mateus, A., Seixas, J., Vitorino, N. (orgs.) (2010), Qualidade de Vida e Governo da Cidade. Bases para um Novo Modelo de Governação da Cidade de Lisboa, Lisboa: ISEG. Available at: http://www.reformaadministrativa.am-lisboa.pt/fileadmin/MODELO_GOVERNACAO/Documentos/ISEG_governacao_abril2010.pdf.         [ Links ]

Tulumello, S. (2015), "Reconsidering Neoliberal Urban Planning in Times of Crisis: Urban Regeneration Policy in a ‘Dense’ Space in Lisbon", Urban Geography, advanced online publication, DOI: 10.1080/02723638.2015.1056605.         [ Links ]

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