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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.35 Lisboa dez. 2017

https://doi.org/10.15847/citiescommunitiesterritories.dec2017.035.art06 

ARTIGO ORIGINAL

 

Uma abordagem interpretativa aos usos dos meios deslocação e transporte nas mobilidades casa-trabalho: Um estudo exploratório (d)na Cidade do Luxemburgo

An interpretive approach to the uses of the means of transport and transportation in commuting mobilities: An exploratory study (of) in the City of Luxembourg

 

Heidi MartinsI; Emília AraújoII

[I]Universidade do Luxemburgo e Universidade do Minho, Portugal. e-mail: heidi.martins@uni.lu.

[II]CECS, Universidade do Minho, Portugal. e-mail: emiliararaujo@gmail.com.




RESUMO

Este artigo tem como objetivo descrever e analisar um conjunto de narrativas sobre os usos dos meios de transporte e deslocação recolhidas na Cidade do Luxemburgo através da modalidade de entrevista em movimento, conjugada com a utilização da observação direta. Estudos diversos têm versado sobre as mobilidades pendulares ligadas aos trajetos casa-trabalho e vice-versa, enquanto fenómenos estáticos, debruçando-se, nomeadamente, sobre a caraterização dos fluxos e dos motivos que levam os atores a usarem um ou outro meio de deslocação, de forma continuada e rotineira. Neste texto, apresentamos uma análise ao fenómeno que privilegia a dimensão criativa dos trajetos casa-trabalho, elucidando a forma como estes são objetos de composição e de construção, por parte dos sujeitos, refletindo formas de avaliar e pensar sobre a vida, assim como de participar de forma ativa na desconstrução e na crítica às formas de (re) produção social do espaço e do tempo da cidade. O texto formula algumas considerações acerca do interesse das abordagens centradas nas narrativas da mobilidade para a compreensão das escolhas e usos dos meios de transporte e deslocação.

Palavras-chave : tempo; espaço; quotidiano; transporte; experiência.


ABSTRACT

The aim of this article is to describe and analyze a set of narratives about the uses of transportation means. These narratives were collected in the City of Luxembourg through walking interviews, combined with the use of direct observation. Several studies have dealt with the home-work everyday mobilities, as a static phenomenon, focusing on the characterization of the flows and on the reasons given by actors to use certain means of displacement, in a continuous and routinized way. In this text, we present an analysis of the phenomenon that privileges the creative dimension of the home-work paths, clarifying the way these times and spaces are matters of personal composition and construction, reflecting modes of evaluating and thinking about life, as well as of participating actively in deconstruction and criticism of the forms of (re) social production of space and time in the city. The text makes some considerations about the interest of the approaches centered in the narratives of the mobility for the understanding of the choices and the uses of means of transport and displacement.

Keywords: time, space; everyday life; transportation, experience.


 

Introdução

Diariamente, mais de 160 mil trabalhadores residentes nos países limítrofes (França, Bélgica e Alemanha), deslocam-se para o Luxemburgo, onde representam 45% da força de trabalho (STATEC, 2016). Neste país relativamente pequeno – 2 586 km2 – e com cerca de 563 mil habitantes, esses migrantes contribuem todos os dias para o congestionamento automóvel nas autoestradas, assim como para o amplo espetro dos fluxos de mobilidade que caraterizam o Luxemburgo (STATEC, 2015:6). Em análises mais recentes, documenta-se que a grande parte das pessoas que circula na cidade usa maioritariamente o carro para se deslocar (Eurostat, 2015) [3], embora a utilização do comboio e de outros transportes coletivos se tenha intensificado [4] . O Luxemburgo tem desenvolvido programas e metodologias de intervenção diversificadas na área das mobilidades, justamente porque tem de lidar com os efeitos da elevada densidade de tráfego, em particular nas horas de “pico”, ditadas pelo início e fim do dia de trabalho. Mais recentemente, as entidades públicas têm levado a cabo estudos que enfatizam dimensões mais compreensivas, destacando o interesse em estudar o comportamento e as representações associadas às mobilidades [5] .

Este artigo pretende contribuir para essa compreensão das mobilidades casa-trabalho na cidade do Luxemburgo, propondo uma visão sobre as mesmas de caráter interpretativo. As perguntas que se colocam são as seguintes: de que modo simples e aparentemente rotineiras viagens como as que ligam a casa ao trabalho e o trabalho a casa podem revelar algum caráter extraordinário? Até que ponto e de que modo os meios de transporte entram nesta equação, tecendo com os sujeitos espaços e tempos de mediação, transição e comunicação? Como são vividas as durações da mobilidade e de que modo se expressam nas narrativas da mobilidade, tal como enunciadas pelos próprios sujeitos no momento em que as encetam? O texto é reflexivo e exploratório, comportando uma finalidade epistemológica que faz uso de abordagens mais recentes vincando o interesse em incluir e seguir no estudo das mobilidades – por serem fenómenos multidimensionais e, em parte, constituídos em emergência – metodologias que facilitem a captação dos sentidos e dos modos de narrar, tanto a mobilidade, como os meios de deslocação (Kaufmann, 1999; Andrea et al., 2011; Salazar et al., 2017). As narrativas acerca dos transportes, quando captadas no espaço-tempo da mobilidade em que ocorrem, permitem aceder a essas dinâmicas do quotidiano, denunciando-o ora como um tempo-espaço de rotina, ora como tempo e espaço de reflexividade e de rememoração. Cada meio de transporte figura, assim, como um objeto técnico em relação ao qual os sujeitos constroem sentidos e imaginários e através do qual reproduzem habitus e modos de vida.

O olhar e a intervenção dos decisores políticos sobre as infraestruturas viárias e as redes de transportes públicos estão ainda muito centrados e baseados numa perspetiva estrutural e não participativa. As pesquisas de ordem etnográfica que privilegiam a auscultação das estórias e das narrativas dos sujeitos oferecem o estudo de grupos e de realidades a uma escala microssociológica. Ainda que não permitam generalizações, possibilitam conhecimento sobre as expectativas e os olhares dos próprios sujeitos, facilitando, igualmente, a melhoria da ação política em tudo o que se refira aos meios de transporte, incluindo dimensões materiais e subjetivas.

Por essas razões, desejamos problematizar os percursos casa-trabalho apenas a partir das estórias e justificações acerca dos meios de transporte/deslocação utilizados. O estudo é exploratório, mas mostra o interesse em continuar e combinar estes estudos com investigações de caráter mais estrutural, realizados sobre as infraestruturas, facilitando a compreensão dos movimentos da população e das suas preferências e chamando atenção para o interesse da participação pública na definição da oferta de transportes. Seguimos uma metodologia que privilegia a narrativa acerca do meio e transporte em utilização, favorecendo a conceptualização da mobilidade em ato (living mobilities, na expressão de Cresswell, 2006).

Assume-se a existência de experiências e narrativas de enorme relevância sociológica e política que permitem clarificar os padrões de usos do espaço e do tempo na cidade e entender mais cabalmente os modos como os sujeitos se apropriam dos meios de transporte (como o carro, autocarro, bicicleta) e estão mais ou menos em disposição de partilhar o espaço e o tempo. Apoiamo-nos, predominantemente, na perspetiva de Georges Simmel (1985; 1987a) e Michel De Certeau (1980) e no paradigma das mobilidades, tal como elaborado por John Urry (2005) e Mimi Sheller (2003, 2004). Seguimos de perto abordagens que privilegiam a concetualização das mobilidades como realidades dinâmicas, sujeitas a variações contínuas e constituindo-se, também, mediante as componentes discursivas e narrativas dos sujeitos, tornando-se, portanto, performativas das identidades individuais e sociais (Büscher e Urry, 2009; Forsey, 2010; Jones, 2011; Pink, 2007; 2010).

 

Fundamentação teórica

Neste texto subscrevemos as tendências mais recentes que concetualizam as mobilidades enquanto realidades dinâmicas. Por um lado, porque se refazem dia-a-dia, fruto das relações sociais que emergem dos espaços e dos tempos em que a deslocação acontece, ou vai acontecendo, na sua própria dinâmica temporal (Cresswell, 2006; Rau e Stateleg, 2017; Salazar et al., 2017). Por outro lado, porque são realidades profundamente discursivas.

O percurso casa-trabalho corresponde a um tempo-espaço de mobilidade. Ou seja, assume-se que, ao deslocar-se, o sujeito percorre, no tempo, uma certa distância, assim construindo uma narrativa sobre a viagem – um elemento temporalmente constitutivo da experiência quotidiana. Tal como explica Jensen (2009), a cidade é um espaço multirelacional, no qual as identidades se redefinem continuamente (2009:139). Por isso, as narrativas recolhidas no momento em que a mobilidade acontece potenciam a comparação com mobilidades passadas, introduzindo e permitindo um certo grau de reflexividade. Esta não só atravessa dimensões objetivas no uso do transporte ou meio de deslocação, como combina memórias e estórias dos lugares, das relações e das situações de vida dos autores da narrativa, bem como de pessoas e outras personagens.

Em grande parte, esta abordagem compreende-se a partir do legado de Simmel acerca da dimensão experiencial do tempo e do espaço, bem como sobre o modo como os sujeitos desencadeiam várias operações de valorização simbólica e emocional do espaço e do tempo (uma via teórica desenvolvida pelos autores da Escola de Chicago e em Portugal, por exemplo, por Fortuna, 2002 e Pais, 2010). Simmel (1987a, 1987b) distinguiu os estilos de uso do tempo “simétrico-rítmicos” dos estilos “espontâneos”. Perspetivou que, frente à cidade emergente uniformizadora e estruturalmente determinada pelos ritmos do trabalho e do comércio, os ritmos na cidade revelavam modos diferenciados, embora implícitos, de estar, responder e sentir o tempo disciplinar: os primeiros, obedecendo ao modelo disciplinar do tempo abstrato e os segundos, obedecendo aos ritmos bio-fisiológicos dos atores sociais. A abordagem à cidade, ou à metrópole de Simmel (1987b) centra-se, aliás, na discussão das implicações sociais e psicológicas dos ritmos de trabalho que se tornam dominantes e obrigam a arranjos em todos os outros domínios.

A ênfase sobre a dimensão experiencial do tempo e do espaço como elementos apropriados e socialmente construídos de forma continuada desenvolveu-se por todo o século XX. Retomando a relevância da experiência sensorial, tal como proposta por Simmel (1987b), Urry (2005) sugere que espaço e tempo são objeto de apropriações que recorrem a sentidos diversos, incluindo a visão, a audição, o olfato, o tato e o paladar, também mencionados por Fortuna (2002) e Augé (2008; 2009). De certa forma, são objeto de análise as estruturas do quotidiano, como já o disséramos serem os ritmos casa-trabalho, mas perspetivadas sob um olhar desconstrutivo, que detalha a composição desses percursos, a partir da perspetiva dos sujeitos (De Stefani, (2006: 6-7). Segue-se a mesma linha de De Certeau (1980) que trata o quotidiano como um tempo-espaço do invisível, composto de várias “artes de fazer” que preenchem o tempo e o espaço do “homem comum” e que comporta, em simultâneo, rigidez e obrigação, e liberdade e autonomia.

Mas, já vimos a partir de Simmel (1987a) e De Certeau (1980) que a abordagem ao quotidiano dos percursos casa-trabalho sob esta perspetiva experiencial dá conta do modo como os sujeitos valorizam e imprimem sentido às deslocações, podendo desencadear práticas subversivas e (re)inventá-lo, por meio de astúcias e de táticas (De Certeau, 1980: 9-10). Astúcias e táticas que variam conforme condições materiais e simbólicas que caraterizam os modos de vida dos próprios grupos sociais. Com efeito, o espaço e o tempo são produtos e produtores de relações sociais Lefebvre (1986, 1992) e os trajetos casa-trabalho nas cidades são hoje influenciados pela aceleração que resulta do aumento da capacidade técnica para a realização de atividades cada vez mais diversas, na mesma duração (Rosa, 2015).

É nesta perspetiva que iremos analisar diversas narrativas, focando a atenção sobre o meio de deslocação predominante usado pelos sujeitos. Propomos, assim, que cada meio de transporte não é só fruto de decisões que se fundamentam em motivos de ordem material. Resulta também de perceções acerca do tempo e do espaço a percorrer, assim como das condições que cada meio oferece para os seus próprios interesses e modos de estar na vida. Isto é, procuraremos saber até que ponto e de que modo, o tipo de deslocação e o meio de deslocação casa-trabalho são interpretados pelos sujeitos e como esta interpretação veicula modos diferenciados de apropriação e de posicionamento, face às regras dominantes de uso do tempo e do espaço. Ao pretender-se identificar e caracterizar os elementos mais distintivos e identificativos dos trajetos a partir do tipo de transporte utilizado, debruçamo-nos sobre as experiências e as narrativas, descrevendo as principais coordenadas destes discursos. Atendemos às justificações dadas pelos sujeitos sobre o meio de transporte que usam, assim como às estórias e narrativas que os próprios constroem sobre a deslocação, enquanto tempo-espaço de emergência (Sales, 2915). Importa-nos, ainda, debater como os atores entrevistados revelam formas de negociação, face aos espaços e aos tempos da sua deslocação, particularmente os que se impõem pelo meio de transporte utilizado e como podem ser entendidas enquanto manifestações e/ou expressões de uma abordagem critica e reflexiva sobre esses mesmos espaços e tempos (Kaufmann,1999).

 

Metodologia

Neste estudo propusemos que o movimento se constitui no tempo e no espaço, correspondendo à “temporalização do espaço e à espacialização do tempo” (Cresswell, 2006, p.4). Seguimos as perspetivas acerca da mobilidade que têm implicado cada vez mais a utilização de técnicas de investigação compreensivas que passam pelo acompanhamento dos sujeitos durante os percursos de mobilidade (Anderson, 2004; Carpiano, 2009; Jones, et al., 2008, Kusenbach, 2003; Pink, 2007; Pink et al., 2010). Os investigadores participam, com os entrevistados, do caminho e da viagem que estes próprios percorrem, de modo a obterem a “mais rica compreensão do lugar” (Evan e Jones, 2011: 849). Deste ponto de vista, as mobilidades assumem-se como processos sociais e são dinâmicas na tradução que fazem das relações sociais e as redes pelas quais estas estão ligadas. Elas são processos físicos que marcam o espaço e narrativos, pois o espaço, a distância e a duração tornam-se objeto de contemplação e de construção discursiva (Boyer et al., 2017). Wunderlich (2008) afirmara inclusivamente que andar é uma prática incorporada que pode expressar-se como prática criativa e crítica.

Neste texto temos, assim, em conta informação decorrente da observação que compreendeu o acompanhamento de todos os entrevistados durante o percurso casa-trabalho, depois de terem sido contactados para o efeito e terem tido conhecimento dos objetivos do estudo. Foram, então, realizadas 10 entrevistas conduzidas “caminhando” com o interlocutor e respondendo a um guião pré-definido, do qual constavam as dimensões principais da investigação, transcritas primeiro em francês e sequenciadas com as fotos recolhidas durante o caminho e depois traduzidas para português. As entrevistas foram conjugadas com a informação recolhida através de observação e registada em diários de campo pelas autoras, enquanto usuárias dos transportes e participantes do espaço da Cidade do Luxemburgo, ao longo das suas estadias naquele país (15 dias num dos casos, e 4 anos noutro).

Importa mencionar que este é um estudo exploratório de tipo qualitativo que privilegia a vertente indutiva, dando relevo ao caráter emergente da informação, inclusivamente pelas razões que já evidenciamos, nomeadamente o interesse em analisar as interpretações e os sentidos atribuídos pelos sujeitos às suas ações quotidianas. Torna-se, por isso, como afirma Guerra, “difícil (se não mesmo impossível) definir uma amostra sem fazer referência ao processo de construção do objeto” (2006:43). O que procurámos foi obter a representatividade relativamente ao fenómeno das deslocações casa-trabalho, analisando a informação nos contextos em que é produzida e usada.

Deste modo, limitando o estudo a um conjunto de indivíduos que reúnem certas características similares (serem metade homens e metade mulheres, desempenharem atividades laborais fora da residência e terem habilitações literárias entre o ensino qualificado e profissional e o ensino superior), procurámos diversificar o leque de casos a estudar, aprofundando o potencial explicativo de outras variáveis, entre as quais a idade (e fase no ciclo de vida) os meios de transporte utilizados (tentando cobrir o máximo de opções e combinações); o local de residência (incluindo não só residentes no Luxemburgo, mas também nos países limítrofes, assim como emigrantes); o horário (de caráter mais rígido e flexível, com e sem experiência da hora de ponta) e as situações em termos de agregados familiares (a viverem sós e com outras pessoas, incluindo famílias com filhos e sem filhos com menos de dezoito anos). A condição étnica é relevante, pois a Cidade do Luxemburgo é espaço onde coexistem diversos processos de desigualdade social relacionados com os fluxos e padrões migratórios naquele país. Todavia, não trabalhámos de modo aprofundado esta variável, incluindo apenas pessoas com estatuto de emigrante, sem considerar as suas proveniências étnicas. Este facto pode constituir uma limitação do estudo, embora nos pareça justificável, dado o foco exploratório do mesmo.

Estabelecendo como fundamento a necessidade de manter a diversidade, os participantes foram abordados, seguindo a estratégia bola de neve. O grupo de entrevistados não é, portanto, quantitativamente avaliável, pois o que guiou a sua seleção foi a necessidade de expor fenomenologicamente a sua experiência de deslocação, elucidando como se pode articular, na narrativa, a decisão pela escolha dos meios de deslocação casa-trabalho, com uma certa perspetiva sobre o valor do tempo despendido no trajeto, por relação com a importância conferida a outras esferas da vida. Neste sentido, a informação recolhida é rica e volumosa, permitindo a destrinça de diversas perspetivas concetuais que explorámos nos pontos seguintes.

Depois de esclarecidos sobre os objetivos do estudo e modalidades de condução das entrevistas, procedeu-se à marcação do dia/hora para início da entrevista, de acordo com a disponibilidade dos entrevistados. As entrevistas foram gravadas durante o próprio movimento e realizadas em diferentes meios de transportes e sob diferentes condições meteorológicas. Com o objetivo de “captar momentos” importantes do trajeto de conferir autonomia e estatuto ao entrevistado, foi-lhe dada uma máquina fotográfica sugerindo-lhe que fotografasse os elementos que considerasse importantes para ilustrar o percurso. As pausas, os silêncios e outras informações importantes foram igualmente registadas em diário, após a realização das entrevistas.

A metodologia permitiu considerar as dinâmicas concretas, bem como as caraterísticas dos percursos efetuados, tal como experienciados pelos próprios entrevistados, assim como pelo investigador. Este método concede aos participantes um maior grau de controlo. É-lhes dada a possibilidade de “partilhar” em vez de descrever o trajeto, fornecendo uma oportunidade para o inesperado, o não antecipado, pois a narrativa dos participantes é contada no seu espaço e tempo vividos, o que pode acrescentar detalhe ao entendimento e as incursões investigador (Jones et al., 2008).

Dada a riqueza de material recolhido e o alinhamento epistemológico e metodológico sobre o qual esclarecemos, procedeu-se à análise de conteúdo temática que seguiu os ditames estabelecidos para a utilização desta técnica (Guerra,2006), tendo sido necessário dar conta da informação emergente, com a qual nos confrontámos no curso da recolha. No final, depois da pré-análise e da problematização da informação à luz das abordagens teóricas existentes, acabámos por definir três temas principais na análise de conteúdo, tal como se encontra documentado em anexo. Os temas foram definidos a partir dos interesses teóricos e da informação recolhida: i) a justificação para o uso de cada um dos meios de transporte e relação com as tendências que consideram dominantes relativamente aos usos do espaço e do tempo; ii) as experiências dos sujeitos em cada meio de transporte principal tal como identificadas, descritas e narradas e ii) o grau de participação, negociação e de reflexividade revelados pelos entrevistados ao longo do percurso, face à (re) produção social do espaço.

Os dois primeiros temas permitem-nos aferir sobre o estilo de uso do transporte/meio de deslocação, propondo a existência de dois estilos centrais: o “transporte - condição de vida” e o “transporte - estilo de vida”, tendo em conta a correspondência entre o tipo de transporte/meio utilizado e o modo como os entrevistados percebem e sinalizam o poder que têm de escolhê-los e decidir sobre como os podem usar durante os trajetos. O terceiro tema permitiu-nos classificar o grau de participação, critica e reflexividade de cada participante relativamente ao trajeto realizado, considerando a importância conferida ao trajeto, a frequência com que destacava detalhes nesse trajeto e formulava sobre eles algum discurso (relativo à sua vida atual ou passada ou ao modo de organização do espaço e do tempo). Ao delimitar este tema, tivemos ainda em conta o modo como os discursos sobre a mobilidade casa-trabalho são performativos e identitários, permitindo a revelação, não apenas dos constrangimentos exercidos pelas condições estruturais (como os preços da habitação, a produção social desigual do espaço e do tempo), mas também os modos pelos quais os sujeitos se adequam a esses constrangimentos e respondem de forma criativa e critica e de acordo com as suas visões do mundo.

 

Justificação para o uso de cada um dos meios de transporte e experiências

(Tema 1 e Tema 2)

O automóvel

Os automóveis constituem a paisagem visual e a audível na vida diária das pessoas que entrevistámos. Também acabam por se apresentar como barreiras à circulação, quando mal-estacionados, “em fila”, a buzinar ou a “circular a velocidade elevada”. Apenas Sónia tira de dentro do carro uma foto à estrada, revelando toda uma narrativa (ela trabalha nos arredores da cidade) em que o carro é o mestre de cerimónias do seu dia-a-dia, permitindo-lhe espelhar as suas história na paisagem que atravessa. Mais ninguém fotografou um carro e, apesar de alguns usarem principalmente o automóvel nas deslocações casa-trabalho, as suas narrativas são bastante críticas sobre este meio de transporte. Consideram-no um meio transporte que limita a experiência sensorial e representa impactos ambientais e psicológicos. Bernard, adepto da bicicleta e de andar a pé, por exemplo, diz que:

“No carro: estás numa bolha de metal, apesar de tudo. Não tens as sensações exteriores: nem quente, nem frio, nem cheiros”.

Por isso, Bernard explica a sua relutância em usar o automóvel:

“Primeiro, o carro… Isso chateia-me, custa-me caro e, depois, há o lado ambiental, para mim, é importante na minha abordagem [ à vida] também. Na verdade, eu sou um homem de campo, de mata e de floresta e tu viste que a casa que temos não é um símbolo de [grandeza social]... Mas vês? Eu gosto de uma bela vista, algo do género. Por outro lado, nesta forma de trabalhar eu estou sempre a andar, estou no comboio e, de seguida, vou de bicicleta para o escritório e isso é soberbo “!

Cathy agora utiliza o autocarro para ir para o trabalho, mas já esteve a viver mais longe de casa e, nessa altura, ela usava o carro. Durante o trajeto ela compara os dois meios de transporte. O facto de estar no autocarro agora permite-lhe um exercício de reflexividade sobre o uso que fez do carro e de como este meio não lhe permitia ter domínio sobre nenhum tempo para si e para o ritual de passagem: separar-se da casa, ao ir para o trabalho, ou separar-se do trabalho, no regresso a casa:

“É sobretudo à noite, no regresso, que me apercebo de que, por vezes, necessito desta meia hora de trajeto para descansar depois de um dia carregado de trabalho. […] E, no carro tens que estar concentrada o tempo todo, enquanto aqui no autocarro, descontraio completamente.”

Também detalha aspetos mais relacionados com o seu estado de espírito e com o facto de o carro não lhe solicitar outros modos de representação de si, favorecendo a continuidade entre tempos e a despreocupação excessiva em relação ao modo de se se apresentar e cuidar:

“Então, pegava no carro em minha casa e chegava aqui. Saia logo no parque de estacionamento subterrâneo. Então, nem tinha cuidado com o calçado, nem com os casacos que usava porque, de qualquer forma, fazia [o trajeto] de garagem a garagem!”.

Em todo o caso, o automóvel é tido como o meio que responde mais adequadamente (mesmo na modalidade partilhada) a regimes de tempo de trabalho flexível e variável, do que o sistema de transportes públicos que operam segundo lógicas mais padronizadas e de acordo com os tipos e orientações dos grandes fluxos de mobilidade. Presenciámos, muito particularmente, a sensação de rutura e de liberdade, tal como expressas pelos entrevistados, durante o tempo em que conduzem. O carro é perspetivado como um facilitador, no sentido em que permite uma melhor gestão individual e familiar dos horários (fazer compras durante a hora de almoço, ir buscar os filhos à escola no final do horário de trabalho, responder a alguma necessidade no trajeto para casa, por exemplo).

Além disso, é percecionado como o meio de transporte mais adequado, quando a duração dos trajetos é maior, ou o trabalho implica horas extraordinárias. Embora sonhem com outros automóveis, para a população que entrevistámos e que usa o carro, este é, sobretudo, um meio, um instrumento de deslocação, que ajuda a fazer face a outras exigências ou a outras limitações externas – como a ausência de transportes coletivos, o seu preço ou a ausência nas regiões em que vivem, mais afastadas dos centros. Portanto, o carro representa para estes entrevistados, a possibilidade de administrar o tempo com mais autonomia. Mas sempre uma autonomia relativa face, aos constrangimentos que lhe são impostos por residirem longe dos centros urbanos e onde têm menos possibilidades de usar de forma eficaz a rede de transportes, ou de andar a pé.

São pessoas responsáveis por diversas atribuições que não têm hipóteses de externalizar de modo a libertar tempo para ao trajeto casa-trabalho, em meios de transporte que estão sujeitos a uma regulação horária imposta do exterior. Ao longo da entrevista Sónia destacou a liberdade que sentia em poder sair de casa “atrasada” e, depois, acelerar. Falou do sol que espera por ela em cada curva, que bate no carro logo de manhã e do quanto as árvores no caminho embelezam a estrada que a faz recordar Portugal. Contou histórias que ela imagina quotidianamente:

“Eu viajo muito! A minha mente leva-me para montes de sítios. Há momentos em que penso que estou em filmes [Rimos]!”.

Tirando fotografias, fala também das limitações que sente, do trânsito e das regras de trânsito:

“Aqui, sempre que vou nesta reta, eu penso que adoraria acelerar a 120 à hora, mas é proibido, é mesmo proibido [Ri]!”.

Sónia esteve durante toda a viagem centrada em descrever as emoções e as reflexões que faz em simultâneo como condutora de um objeto perigoso e como visitante recorrente do mesmo espaço que lhe impõe interrogações e a faz sentir-se personagem de um filme. A estranheza face ao território, justificada pela sua condição de emigrante, contribui para que a viagem seja também um percurso de descoberta e de constante comparação e atualização de memórias, relativamente a Portugal.

Sylvie, uma fronteiriça, residente na Alemanha, percorre todos os dias mais de 140km em cerca de 3h de trajeto entre a casa e o trabalho. Enquanto conduzia naquele dia o carro, contou sobre o que sentia quando, antes, circulava de autocarro, demonstrando o quão privado e isolado pode ser este meio de transporte, por comparação com o autocarro, onde:

“Sobretudo, revês [as mesmas pessoas]! Assim, começas, também, a partilhar um pouco a vida dos transfronteiriços. Falas com os olhos também porque, a partir de um certo ponto, vês as pessoas várias vezes e dizes “bom dia” mesmo quando não as conheces porque tens uma solidariedade, sabes que toda a gente está na mesma situação. Temos que fazer o trajeto, mas escolhemos fazê-lo do mesmo modo!”.

 

O autocarro e o comboio

Com efeito, os entrevistados contam que usam vários transportes coletivos, incluindo o autocarro e o comboio e que estes variam entre si, dependendo da empresa que os opera e do circuito que se realiza. Concordam que o transporte coletivo se dispõe a uma duração partilhada e temporária, favorecendo a identificação, o conhecimento e o reconhecimento. Cathy falou das primeiras palavras do dia que dirigia a desconhecidos, partilhando o mesmo meio de transporte:

“Eu acho que o autocarro me permite contatos sociais diferentes, que não teria se fosse de carro. [...] começo o meu dia com este trajeto […]. Por vezes, as minhas primeiras palavras da manhã são a dizer “bom dia” a outras pessoas no autocarro!”.

Para os nossos entrevistados, a partilha de um transporte público representa a possibilidade de partilhar também parte da vida – a vida do trajeto e a vida, em geral, que se propicia a outras narrativas. Não necessariamente porque interagem continuamente com os outros, mas porque sentem que partilham do mesmo tempo-obrigação: a ida para o trabalho. Neste seguimento, a experiência do meio de transporte coletivo que se insinua pela inevitabilidade da partilha não condiz sempre com a individualização e a procura de reserva do espaço e do tempo privados, mesmo estando num meio de transporte coletivo. Os entrevistados que os usam dizem que estes espaços são, por vezes, demasiados públicos e abrem-se à partilha não desejada, tal como acontece com o ruído – do telemóvel que toca e se atende, dos ruídos corporais, como ressonar – ou dos odores. A Cathy deixa clara a dificuldade que tem em gerir as fronteiras entre público e privado no autocarro ou no comboio:

“Há bocado eu falava do espaço privado, mas é, sobretudo, um espaço privado relativo ao barulho e ao cheiro […]. Por vezes, tomo conscientemente a decisão de fechar o sentido da audição, mas não o posso fazer com o olfato. Então, relativamente ao cheiro, estou entregue ao cheiro dos outros e isso, por vezes, incomoda-me!”.

Também o Bernard, comparando o transporte público com a bicicleta, destacou a mesma dificuldade na partilha do mesmo tempo e do mesmo espaço:

“Na verdade, tal como com os engarrafamentos, enerva-me ter que apanhar o autocarro. Há imensa gente, toda a gente espera e estamos apertados, então penso: “prefiro estar sozinho na minha bicicleta!”

Mas, afirmam e vivenciam os entrevistados, os transportes públicos permitem atividades que outros meios não permitem, por exigirem atenção individual a quem os conduz. Os espaços e tempos dispõe-se a serem “habitados”, ocupados pelos passageiros de múltiplas formas e não sempre necessariamente as mesmas: para comer, ler, pôr a conversa em dia, preparar atividades para o dia que vai começar. O Rodrigo ouve música e lê o jornal, a Marie medita, a Lara reflete sobre o trabalho que a espera e o Bernard conta que:

“Todas as manhãs leio isto e tomo notas e isso exige concentração! Eu gosto mesmo muito deste tema, mas não é para o trabalho, é mais do domínio do privado.”

 

 

Cathy, sentada no autocarro, explica a sua aventura ao longo do pequeno trajeto que faz para o trabalho e como a corporiza como uma experiência positiva na sua vida:

“Eu poderia considerar este tempo como um tempo perdido, poderia enervar-me porque o autocarro está atrasado, mas não! Eu tento vivê-lo positivamente... E digo a mim própria que são momentos do dia tão raros que tento aproveitar... Enfim, tento vivê-los plenamente!”

Quando conversa sobre tudo o que faz no autocarro, Cathy abre a mala e retira de dentro um tupperware, explicitando:

“Eu aproveito o tempo do trajeto para fazer duas coisas. Por um lado, como te estava a contar, para ouvir as notícias. Por outro, para comer! Eu tomo o meu pequeno-almoço no autocarro. Preparo sempre os meus cereais à noite, em casa. [...] eu tomo-o no autocarro porque demoro meia hora, três quartos de hora porque eu como-o muito devagar e, se eu o quisesse comer em casa, teria que acordar ainda mais cedo e teria que me despachar. Isto, sabendo que eu não tenho tempo para me ocupar de mim em casa. Mas aqui, como eu te estava a dizer, é um momento meu! Normalmente, estou sozinha, mas, muitas vezes, cruzo-me com pessoas que conheço e que se sentam ao meu lado. Aí conversamos, mas eu vou comendo, ao mesmo tempo. Então, esta é uma refeição que eu faço calmamente, em plena consciência... porque as outras refeições do dia são sempre a fazer alguma coisa ao mesmo tempo!”

Outra característica positiva dos transportes em comum evidenciada pelos entrevistados é a possibilidade que oferecem aos seus utilizadores de “desligarem”, de se entregarem à despreocupação. Ainda Cathy que discorre sobre o descanso que lhe traz este meio de transporte:

“Este é outro ponto positivo para mim para usar o autocarro: é que eu estou completamente descontraída. Estou-me nas tintas em relação ao tráfego, estou-me nas tintas relativamente aos semáforos, estou-me nas tintas relativamente aos outros condutores, estou-me nas tintas relativamente às condições meteorológicas, tenho inteiramente confiança no condutor do autocarro.”

 

 

Caminhar a andar de bicicleta

Para a maior parte dos nossos entrevistados, o trajeto começa com passos: até ao carro, até à paragem de autocarro, até à estação de comboios... e, por vezes, até ao local de trabalho. Na linha do que disséramos antes, andar a pé corresponderia ao desejo da maioria dos nossos entrevistados que gostariam de viver mais perto do trabalho e despender menos tempo neste trajeto. Andar a pé, caminhando, corresponde a um meio de deslocação em que o sujeito se encontra liberto de objetos técnicos que o induzam a certo comportamento, ou que antecipem algum tipo de ação (Breton, 2012). Na narrativa que transcrevemos demonstra-se este despreendimento face aos elementos técnicos e a elevada densidade de sensações que as experiências do espaço propiciam, ao mesmo tempo que impelem o sujeito ao controlo do seu tempo-corpo, face aos obstáculos e barreiras que encontra enquanto “caminhante”:

Eram aproximadamente 7h35 quando saímos de casa de Cathy e iniciámos o trajeto até ao seu local de trabalho. Começámos a caminhar e ela conta as sensações propiciadas pela atenção à estrada e que se repetem:

“Há uma coisa que reparo sempre quando há neve aqui de manhã... é que muitas vezes eu sou a primeira a deixar passos marcados na neve e isso dá-me muito gozo!”

É o início do dia, é o começo de um trajeto que se repete todos os dias e que nem por isso deixa de ser sempre novo para Cathy. Assim, caminhámos, sobre a neve, até à paragem de autocarro, onde esperámos. Os primeiros 50 minutos do trajeto da Cathy foram percorridos de autocarro, até que chegámos ao centro da cidade do Luxemburgo. Descemos do autocarro e começámos a caminhar novamente, mas, desta vez, em passo apressado, mudando de registo, face ao tempo que passou no autocarro:

“Vou tentar acelerar! Pronto, agora estou num estado de espírito completamente diferente! É engraçado porque agora que te estou a contar é que estou a tomar consciência disso! [Rimos] Então, esta parte do trajeto é muito mais agitada! Há tráfego, é a cidade! E não está mal! Não estamos a falar de uma grande cidade: Bruxelas, Paris, Londres!”.

À pergunta sobre como lida com os semáforos num tempo-espaço do caminhar que se oferece à continuidade distraída, ela admite que: “Então! Nunca os respeito! Procuro sempre o atalho, por onde é que posso passar o mais rapidamente possível. Muitas vezes atravesso quando está vermelho ainda!”

De repente, o ritmo muda novamente. A Cathy começa a abrandar:

“Agora vamos atravessar o jardim da cidade e aqui é um momento particular! [...] Esta é uma outra parte do meu trajeto onde eu tento não acelerar, tento viver este pedaço com uma outra consciência. [...] Aqui eu observo as flores, os pássaros... vivo este espaço de uma forma diferente. Eu fico feliz por poder fazer este pedaço aqui, feliz que a última parte da minha viagem seja atravessar este jardim.”

A Cathy pega, então, na máquina fotográfica e para de frente para o seu totem, uma marca no espaço que toma como elemento integrante da interação que estabelece com o mundo natural: “Vou tirar [em foto] esta árvore. Porquê? Porque, para mim, esta árvore é a guardiã do jardim e, à noite, quando saio do jardim, saúdo-a e digo-lhe Adeus!”

 

 

O jardim central da cidade do Luxemburgo é atravessado, a pé e de bicicleta por inúmeras pessoas que quotidianamente se dirigem aos seus locais de trabalho, pela manhã. Este foi descrito como lugar propício a um tempo de introspeção, um espaço em que era necessário nós abrandarmos para apreender toda a sua serenidade e “magia”. Tal não significa, porém, que andar a pé não possa ser também uma mobilidade condicionada e constrangida no espaço e no tempo em que acontece. Isso acontece, não só quando o tempo é escasso (estar atrasado/a), como em relação a todos os compassos de espera que a própria estrutura espácio-temporal dita através de elementos técnicos, como os semáforos, os automóveis e outros relacionados com a morfologia, por exemplo.

 

Andar de bicicleta

O uso da bicicleta atravessou importantes momentos ao longo da história. De modo sucinto e no que se refere ao trajeto casa-trabalho, podemos observar e de uma forma assaz genérica, que o uso da bicicleta é “socialmente distintivo”. Configura, nos casos que estudámos, um estilo de vida marcado pela valorização de comportamentos que subentendem a partilha de uma visão do mundo mais centrada sobre o culto da liberdade de movimentos e resistência às tendências de aceleração. Com efeito, os entrevistados partilham de alguns traços, como o foco sobre a natureza e o contacto com a família e um estilo de vida criativo e simples. Bernard é um fronteiriço, vive na Bélgica e todas as manhãs vai de comboio para o Luxemburgo, onde trabalha. Na altura da entrevista que realizamos, e saindo rapidamente de casa, Bernard procura detalhar o que vai ocorrendo no seu tempo de saída para o trabalho:

“Como vês, a partida é sempre acelerada, uma corrida, porque prefiro passar mais tempo no pequeno-almoço com a família do que gastá-lo no trajeto. Ou seja, saio sempre a correr e olho sempre para o telemóvel para ver as horas.”

Bernard apressava-se naquele dia para o comboio, mas noutros dias, quando precisa de deixar a filha na escola, escolhe usar a bicicleta em parte do trajeto:

“Acontece-me ir de bicicleta até à escola quando estou sozinho com a minha filha. Ela adora isso, então, vou levá-la. Na verdade, se faço isso, ganho muito tempo de manhã. Em primeiro lugar, ela diverte-se! Em segundo lugar, dá-lhe uma outra visão dos transportes... Estamos de bicicleta, é cómico! E, em terceiro, ganho 20 minutos no meu tempo de trajeto!”

A narrativa sobre a viagem de bicicleta centra-se na valorização da interação criada na partilha de movimento comum. É no ato de andar de bicicleta e na evocação das recordações da sua aprendizagem que se plasma o grande paradoxo temporal do ato de andar de bicicleta: ser confrontado com o tempo (curto prazo) e, no mesmo ato, com tudo o que seria, eventualmente, a ausência de tempo – a eternidade (ou, pelo menos, o longo prazo).

Por outro lado, tal como o ato de caminhar, andar de bicicleta desperta os sentidos, principalmente a visão, o tato e a audição. A visão expande-se, está-se mais alto e vai-se mais rápido (do que a pé). A audição apura-se. A paisagem desfila perante os olhos do ciclista, ao mesmo tempo que a sente na pele. O tato, eventualmente adormecido, acorda: “sente-se”, nas palavras dos nossos entrevistados, o vento, a chuva, o frio, o calor, a neve no “entretempo” do “enquanto” se pedala. Diz Bernard que, ao pedalar:

“Tens a impressão de estar mesmo no espaço para o qual vieste! Sentes o quente. Na verdade, tens tudo, sentes a chuva, o vento, o sol. E isso, na minha opinião, atiça a viagem e a descoberta. Para mim, eu não posso viajar de carro, não é uma viagem!”

Ao longo das nossas entrevistas, verificámos que andar de bicicleta na cidade, mesmo sendo a caminho do tempo-espaço de trabalho induz ao passeio, a apreciar, a “tomar o seu tempo”. Ao sairmos do comboio, o Bernard explicou, tirando fotografias, que em dias de bom tempo, opta sempre pela bicicleta detalhando o quão fácil se tornava fazer isso graças ao cartão de utilizador. Ele acaba por contar, entusiasmado, o que costuma sentir e experienciar durante esta parte do trajeto quando o faz em bicicleta:

“O percurso na bicicleta... Gosto bastante, deve despertar em mim recordações de liberdade. O trajeto de bicicleta entre a estação e o meu trabalho é mesmo o meu maior prazer! (...) É mesmo muito, muito divertido porque estou bastante voltado para a observação. Se, por um lado, no comboio estou concentrado nas minhas leituras, uma vez que pego na bicicleta, passo ao modo: abrir os olhos e ver!”

 

 

Como acontece com o andar a pé, também fazer o percurso de bicicleta impõe atenção por parte do sujeito e necessidade de negociar continuamente a posse do espaço e a legitimidade para o atravessar. Bernard reporta-se a estas circunstâncias e às dificuldades de convivência entre peões, bicicletas, automóveis e autocarros:

“Sim, as pessoas não entendem! Isso acontece comigo de vez em quando e obrigam-me a buzinar: Sim, mexam-se! E isso irrita-me! Então, você está aí! Ouça, isto é para os autocarros, eu não me posso por debaixo deles!. Se entrares na via dos autocarros, os autocarros buzinam-te!. Bom, talvez porque [andar de bicileta] é muito recente e ainda não está entranhado. Sim, eles [os automobilistas e os peões] são menos respeitadores [com as bicicletas], embora, a priori, a mentalidade luxemburguesa seja bastante respeitadora das regras”.

Tema 3: Participação, negociação e reflexividade

Da análise que efetuámos e que se encontra descrita de forma sucinta em anexo, podemos concluir que as mobilidades típicas do trajeto casa-trabalho seguem neste grupo um padrão muito definido quanto à forma como são consideradas “obrigatórias” pelos entrevistados, tanto homens como mulheres e independentemente da existência de filhos. Todos os entrevistados consideram que se trata de um tempo perdido e sem valor. O quotidiano reflete o peso do dia-a-dia de trabalho e dos constrangimentos associados, inclusivamente a difícil realização da pontualidade. Deste modo, há diferenças entre os entrevistados no que concerne à possibilidade que têm de escolher os meios de transporte relacionadas com opções de vida, nomeadamente por pretenderem diminuir o tempo gasto em deslocações obrigatórias.

O automóvel surge nas narrativas sempre em oposição aos outros meios de transporte, por não permitir, no tempo que se considera obrigatório, descansar, comer, ler, ou contemplar e interrogar a paisagem e a vida. Dos 4 casos que estudámos, três revelam um estilo de uso a que chamamos “condicionado”, pois afirmam que só usam o carro devido a questões económicas e à necessidade de realizar outras atividades, no tempo da deslocação. Todos partilham de um estilo de “resistência”, face à obrigatoriedade do trajeto e face ao caos da cidade automobilizada e “acelerada”. Apenas uma entrevistada, a Sónia, revela adotar o carro como estilo de vida. Noutro caso, de Lara, prática um estilo “condicionado” porque usa o autocarro, mas gostaria de poder usar de forma mais frequente o automóvel, por ser mais “prático”, embora não o faça por causa da falta de estacionamento. No esquema a seguir resumem-se as informações relativas à classificação final dos perfis, tal como definidos.

 

 

A experiência durante a deslocação fica marcada, principalmente, pela necessidade que sentem os sujeitos em usá-la de forma o mais aprazível possível, transformando o tempo “perdido”, em tempo ganho, de alguma maneira: para realizar alguma atividade objetiva, ou para pensar sobre a vida e reviver memórias de percursos anteriores. Apresentam, na sua maioria, uma postura participativa e critica sobre o espaço, interrogando-se sobre a disposição dos objetos, a forma de estar e de conviver das pessoas e as dificuldades de negociação entre os usuários dos vários meios de transporte. A reflexividade também carateriza a maior parte das entrevistas, mas é mais intensa nos entrevistados que constroem narrativas e histórias especificamente ligadas ao trajeto, como Sónia, que se imagina com vestido vermelho e ser fotografada, o Victor que espera pelas pessoas que atravessam a rua à mesma hora que ele, ou Cathy que toma o pequeno almoço no autocarro e recorda tempos de infância. Estas narrativas encontram-se também mais frequentemente nos que usam o autocarro, a bicicleta ou andam a pé. Ela tende a ter menor expressão nos casos em que os entrevistados são mais velhos, não têm filhos e valorizam muito o tempo de trabalho (a exemplo de Lara).

Com efeito, os meios de transporte e, por consequência, as mobilidades são elementos que integram os estilos de vida, denunciando a relevância e o condicionamento não só de variáveis materiais (como os rendimentos), como também de variáveis que se relacionam com condições subjetivas de vida, incluindo as aspirações e o valor atribuído às várias esferas da vida – a família e a vida privada e de lazer, e o trabalho. Assim sendo, apesar de o meio de transporte ser ilustrativo de um modo diferenciado de viver o quotidiano, verificámos que conta nessa experiência a forma como o sujeito se posiciona face às tendências dominantes e das quais se distanciam, a seu modo, inclusive quando se trata de meios de transporte à partida menos flexíveis, como o automóvel. Observamos, nomeadamente, haver uma relação positiva entre a existência de escolha e a tomada de decisão sobre o transporte como uma questão de estilo de vida, e os graus mais elevados de reflexividade e de prazer na narração dos trajetos, apesar de todos os participantes considerarem o trajeto como “obrigatório”, apresentando as diversas “composições” do tempo passado na deslocação como formas de resistência e de fuga a essa obrigatoriedade.

 

Considerações Finais

Ao longo do tempo vulneráveis aos contextos culturais, as representações sociais que regulam os processos de classificação e de distinção social estão amplamente mediadas pelo tipo de transporte e meio de deslocação usado pelos atores sociais. De alguma forma, os poderes políticos também integraram e usaram estas representações na conceção das redes de transporte público e na própria edificação das infraestruturas e na sua diversidade. Estas relações entre estrutura social e a existência e a tipologia de transporte predominante não são hoje lineares, sobretudo em cidades em que se cruzam pessoas com condições de vida e familiares, assim como habitus diferenciados e de proveniências culturais e étnicas distintas, como é a cidade do Luxemburgo durante o dia (de trabalho). É certo que as mobilidades são definíveis e estudadas a partir da análise de uma série de indicadores que permitem definir conceitos importantes para diagnosticar e documentar a forma e a intensidade dos fluxos e a sua relação com a produção social do espaço, nesta incluindo as condições objetivas e materiais de vida das populações. Todavia, há um outro conjunto de variáveis e de processos que atuam de forma convergente e, por vezes, também, contraditória na definição do mesmo fenómeno, embora tal ocorra de forma mais implícita e, por vezes, até inconsciente. Os resultados a que chegámos, embora exploratórios, frisam a importância da conceptualização das mobilidades como realidades discursivas e narrativas e podem contribuir para o desenvolvimento de metodologias de intervenção ajustadas à complexidade da vida nas cidades, evidenciando o interesse em aprofundar o conhecimento sobre as subjetividades e valores que presidem às escolhas e às estratégias dos sujeitos, face aos transportes e aos meios de deslocação.

 

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Received: 29-05-2017; Accepted: 11-09-2017.

 

NOTAS

[3] Segundo os dados publicados em 2015 pela Eurostat, referentes a 2012, o Luxemburgo regista uma das mais elevadas taxas de uso de automóvel na EU: 672 carros por 1000 habitantes.

[4] Baseado numa pesquisa realizada em 2010 e 2011 pelo Instituto de Estatística do Luxemburgo junto de uma amostra representativa dos trabalhadores fronteiriços no Luxemburgo (Schmitz et al., 2012).

[5] Esta informação encontra-se em várias iniciativas desenvolvidas pelas entidades governamentais (departamento dos transportes e também associadas a Universidades, como é o caso do projeto Vehicular lab, com informação disponível no sitio eletrónico do projeto: http://vehicularlab.uni.lu/.

 

ANEXO

 

 

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