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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.35 Lisboa dez. 2017

https://doi.org/10.15847/citiescommunitiesterritories.dec2017.035.art07 

ARTIGO ORIGINAL

 

Uma leitura de género sobre mobilidades e acessibilidades em meio rural

A gender reading on rural mobility and accessibility

 

Cristiana CarvalhoI; Catarina Sales OliveiraII

[I]UBI, Portugal. e-mail: scarvalho.cristiana@gmail.com.

[II]UBI e CIES-IUL, Portugal. e-mail: csbo@ubi.pt.




RESUMO

Na contemporaneidade persistem fortes assimetrias na relação com o território (Carmo, 2014) sendo que em Portugal a zona interior é palco há várias décadas de um processo de despovoamento e perda de serviços (Fermisson, 2000). Ao mesmo tempo, a relação entre género e mobilidade apresenta especificidades dignas de nota visto que as mulheres têm necessidades e usos diferenciados de mobilidade e transporte e enfrentam obstáculos específicos (Hanson, 2013; Sales Oliveira, 2014). Neste sentido considerou-se relevante abordar a questão da mobilidade e acessibilidade rural de uma perspetiva de género no contexto português. De molde a efetuar uma primeira abordagem exploratória ao tema, a investigação decorreu sobre a forma de estudo de caso, com recurso às técnicas de inquérito por questionário e de mobility mapping de uma aldeia da Beira Interior. Encontrou-se uma composição social com maior diversidade do que o esperado, mas ainda assim com uma forte presença de pessoas idosas e de baixas habilitações. A posse de carta de condução e de veículo automóvel particular é um recurso díspar e central na construção de uma assimetria de padrões e perfis de mobilidade. Contudo, ao contrário do que seria de esperar, as mulheres não revelam menor mobilidade que os homens, pois apesar de serem mais elas quem não possui carta de condução ou veículo próprio/particular, são também quem mais frequentemente recorre a formas de mobilidades alternativas, nas quais as redes de contactos representam um importante fator.

Palavras-chave : género; mobilidade; acessibilidade; meio rural.


ABSTRACT

Nowadays there are still strong asymmetries in the relationship with territory (Carmo, 2014), and in Portugal the inner country has been for several decades the scene of depopulation and loss of services phenomena (Fermisson, 2000). At the same time, the relationship between gender and mobility has specific characteristics since women have different needs and uses of mobility and transportation and face specific obstacles (Hanson, 2013; Sales Oliveira, 2014). This article discusses both these questions and tries to address the issue of rural mobility and accessibility from a gender perspective in the Portuguese context. In order to develop an exploratory approach the methodological option was a case study, using the techniques of survey and mobility mapping, of a village in Beira Interior. We found a social composition with greater diversity than expected but still with a strong presence of elderly people and low qualifications. Ownership of a driving license and a private vehicle is an unequal resource and a central element for the asymmetry of mobility patterns and profiles. However, contrary to what could be expected, we cannot say that women experience less mobility than men, since although they are the ones who do not have a driving license or a private vehicle, they are also the ones who most often use other mobility resources in which their social networks represent an important factor.

Keywords: gender; mobility; acessibility; countryside.


 

Introdução

O aumento da mobilidade é uma tendência que se tem vindo a acentuar nas últimas décadas. É um tema complexo porque por um lado, se estrutura em volta das representações do ser humano enquanto ser em movimento, por outro lado, exige atenção detalhada a fatores macrossociais como os enquadramentos espaciais, temporais, institucionais e de infraestruturas. Uma definição abrangente de mobilidade relaciona-a com “movimentos de larga escala de pessoas, objetos, capital e informação ao nível mundial, bem como os processos mais locais de deslocação diária, movimentação no espaço público e o transporte de objetos materiais na vida quotidiana” (Hannam, Sheller e Urry, 2006). Logo, a mobilidade atual é diversa e multifacetada o que levou a alterações profundas na vida social criando oportunidades mas também condicionantes às práticas e vivências quotidianas (Sales, Oliveira, 2011).

Importa realçar que o fenómeno da mobilidade apesar de vulgarmente associado ao contexto urbano não é exclusivo deste meio. Nas comunidades rurais atuais a mobilidade tornou-se um recurso fundamental devido ao alargamento das distâncias e à tendência para a concentração dos serviços nas zonas urbanas, ou seja, a mobilidade tornou-se condição da acessibilidade. As comunidades rurais e o campo num sentido mais geral são, no discurso quotidiano, referenciados como o lugar da “qualidade de vida” sobretudo pela proximidade com a Natureza. No entanto, viver com boas condições em zonas rurais, implica que os seus e suas habitantes tenham os recursos e a capacidade para se moverem, pois, caso contrário, encontrar-se-ão em sério risco de exclusão social (Hedberg & Carmo, 2012).

No cenário de um interior envelhecido e despovoado como é o caso de Portugal afigurou-se-nos pertinente o estudo da mobilidade em meio rural, com especial destaque para grupos da população potencialmente mais vulneráveis, como é o caso da população idosa e das mulheres.

Portugal é um dos países da União Europeia (UE) que exibe maior desigualdade na distribuição do rendimento – a porção auferida pela faixa dos 20% da população com maiores rendimentos é seis vezes superior à faixa dos 20% da população com menores rendimentos – sendo que a média comunitária (UE28) se situava nos 5,2. em 2016 (PORDATA/Eurostat). É também um dos que apresentam maior risco de pobreza na EU – sendo os grupos mais vulneráveis a esta situação os indicados anteriormente para o despovoamento do interior (Presidência da República Portuguesa, 2014). Já no que concerne a desigualdade de género, Portugal é muitas vezes apresentado como um caso sui generis visto que temos uma elevada taxa de participação feminina a full-time no mercado de trabalho (Casaca, 2010; 2013). Não obstante, esta aparente maior equidade social encobre o facto de ao nível da vida privada das famílias, a divisão das tarefas domésticas ser ainda prevalentemente desequilibrada, com as mulheres a deterem a principal responsabilidade pelo cuidado da casa e das crianças (Perista et al, 2016; Sales Oliveira, 2014).

Com estas preocupações base, neste artigo procuramos problematizar as especificidades dos padrões de mobilidade e acesso de pessoas em meio rural focando os casos de grupos potencialmente mais vulneráveis, como sejam a população idosa e as mulheres. Pretendeu-se tipificar percursos e modos de transporte dos e das habitantes de uma comunidade rural efetuando o levantamento das necessidades e constrangimentos de mobilidade e acessibilidade das e dos habitantes de forma analisar a situação de mobilidade na comunidade selecionada como caso de estudo. O artigo estrutura-se em duas partes sendo a primeira de apresentação da revisão de literatura sobre as temáticas do espaço e do meio rural, e da mobilidade e acessibilidade com um subponto sobre a questão da relação entre género, mobilidade e transportes. Na segunda parte do artigo apresenta-se do estudo empírico incorporando as opções metodológicas, os resultados e a sua discussão. Encerramos com umas breves considerações finais em que se equaciona a pertinência do estudo e a necessidade de continuidade e aprofundamento.

 

1. O Espaço e o meio rural

O espaço é um fator incontornável nos fenómenos sociais ocorridos nas últimas décadas no mundo ocidentalizado. O espaço rural e o seu estudo tendeu sempre a ser analisado sobretudo enquanto elemento expressamente constitutivo das relações sociais uma vez que o espaço é percecionado sobretudo enquanto espaço vivido (Lefebvre, 1991) e “as estruturas espaciais – a organização do espaço – resultam de diferentes estratégias socioeconómicas que se inscrevem num território já organizado” (Butler in Sales Oliveira, 2011: 38). Na abordagem sociológica o conceito de espaço vem justificar ou confirmar as mudanças A produção das formas espaciais tem sido entendida como o produto da interação entre a humanidade e o ambiente, impedindo que o espaço tenha autonomia de ser constituído enquanto fator explicativo em si mesmo. Contudo, alguns autores e autoras defendem que “o espaço é um mediador indispensável na análise das relações sociais e tem efeitos autónomos porque é uma condição material de existência” (Oliveira, 2011, p. 41). Assim a representação do meio rural enquanto intrinsecamente agrícola é longa e tem sido difícil de quebrar mesmo porque o carácter maioritariamente agrícola da economia local, intensificado por uma ausência ou fraqueza do desenvolvimento económico, reforça a existência de uma sociedade predominantemente camponesa. O êxodo rural e o desinvestimento na atividade agrícola fez com que os e as habitantes rurais se vissem arrastados e arrastadas num movimento que os e as transferiu para um modo de vida completamente diferente daquele que conheciam. Neste sentido, um fenómeno começou a verificar-se em maior escala, o despovoamento das zonas rurais, provocado pela deslocação em massa dos e das habitantes para a cidade e também à crescente industrialização da agricultura, notória na Europa a partir do final da 2ª Guerra Mundial e em Portugal mais tarde. Assistiu-se assim ao fraturar do mundo rural em tradicional e moderno, sendo que no primeiro permanecem na essência os mesmos padrões de vida e o segundo se caracteriza por uma proximidade ao urbano-industrial (Ferrão, 2000; Wanderley, 2000). Assim, neste novo contexto, a relação rural-urbano sofre uma bifurcação, originando uma partição das áreas rurais consoante a sua proximidade aos principais centros urbanos. Termos como áreas rurais “centrais”, “periféricas”, “marginais” e “profundas” espelham claramente esta nova situação. Por um lado, entre as áreas urbanas e as áreas rurais “centrais” ou “periféricas”, a tendência é a de complementaridade de relações desenvolvidas num quadro fortemente assimétrico. Por outro lado, entre as áreas urbanas e as áreas rurais “marginais” ou “profundas”, as relações de complementaridade têm vindo a dissipar-se, com base numa sangria continuada de pessoas e recursos e com condições de acessibilidade particularmente desfavoráveis, que pouco interesse suscitam nos citadinos (Ferrão, 2000). Como resultado podem encontrar-se, em maior ou menor número os seguintes fenómenos: despovoamento e envelhecimento populacional; incremento considerável do desemprego, subemprego e exclusão social; deterioração dos recursos naturais e do ambiente; desequilíbrio e enfraquecimento do tecido produtivo e da base económica local; subaproveitamento das infraestruturas existentes; estagnação, e por vezes regressão, de alguns centros urbanos situados em áreas caracteristicamente rurais (Alves, 2002).

Especificamente em Portugal, o papel social e económico atribuído ao meio rural sofreu uma grande alteração, passando de espaço percebido como produtor de alimentos e de reserva de mão-de-obra, para um espaço cada vez mais percebido como multifuncional, articulando as produções agrícola e florestal com outras atividades como a proteção ambiental, a conservação da paisagem, a preservação das tradições culturais e o desenvolvimento de atividades associadas ao turismo e ao recreio (Azevedo et al 2013; Figueiredo, 2012). Tais alterações decorrem do resultado da aplicação de estratégias e políticas de desenvolvimento definidas em contexto nacional. No entanto, e apesar do caráter generalizado que as transformações no meio rural atingiram, emerge um rural entendido como pós-produtivo, mas que ainda não se desprendeu da identificação com a agricultura. Neste sentido, o rural enfrenta uma crise de identidade, cujos contornos e consequências ainda estão por analisar. Simultaneamente, apesar da existência de algumas iniciativas anteriores de desenvolvimento regional e orientadas para as zonas rurais, a verdade é que só com a integração europeia é que Portugal passou a ter um compromisso sério com o Desenvolvimento Rural (Azevedo, et al., 2013).

As zonas rurais, de acordo com a Comissão Europeia, representavam, na Europa a 27, 93% do território e 56% da população, gerando 45% do Valor Acrescentado Bruto e dando emprego a 53% de indivíduos. Há, porém, uma interessante diferença entre as zonas rurais mais remotas, que têm perdido constantemente população e as áreas rurais acessíveis que têm recebido alguma população devido a um processo de contra-urbanização (CE, 2006). Em Portugal, o meio rural domina 92,7% do território, subdividindo-se em 46,3% agrícola, 26,4% florestal e 20% áreas naturais e/ou naturalizadas. Também 69,8% das freguesias nacionais são predominantemente rurais e 22,1% significativamente rurais, com uma taxa de habitação de 21,5% e 26,5% respetivamente (Gabinete de Planeamento e Política Agroalimentar, s/d).

No entanto, tendo em conta os principais indicadores socioeconómicos, verifica-se uma disparidade acentuada entre os níveis de desenvolvimento das regiões rurais em relação às áreas urbanas. O Rendimento Bruto per capita representa, nas zonas rurais, perto de um terço do que se verifica nas zonas urbanas, apresentando-se a população envelhecida e com um índice cada vez menor de densidade populacional (INE, 2001). A agricultura, floresta, caça e pescas representavam, em 2001, 23,3% do emprego direto nas zonas predominantemente rurais e 14,5% nas significativamente rurais, sendo que apenas 2,8% nas zonas urbanas. Assim, as zonas rurais enfrentam ameaças específicas, tais como o abandono e a desertificação, apresentando problemáticas particulares como a que resulta da baixa densidade populacional.

A forma como as abordagens integradas de desenvolvimento territorial são encaradas para o período 2014-2020 é uma novidade em relação aos ciclos comunitários anteriores, uma vez que este tipo de ações tem sido desenvolvido no âmbito de Iniciativas Comunitárias e não nos contratos estabelecidos entre a Comissão e os Estados-Membros.

 

2. Mobilidades e Acessibilidades

A mobilidade geográfica, ou a capacidade para esta, é uma característica intrínseca das sociedades humanas desde os tempos em a humanidade era essencialmente nómada. No entanto, e após todo um processo histórico pautado por períodos de maior e menor mobilidade dos povos, esta ganha outros contornos na atualidade pois, moldando-se às transformações económicas e sociais que tiveram lugar na década de 90 do século passado, e é hoje problematizada como uma condição, um estilo de vida ou mesmo um valor, não só de determinados grupos, mas sim das sociedades em geral (Sales Oliveira, 2011).

Podemos entender a mobilidade de forma lata como sendo a “capacidade de deslocação e ultrapassagem de fronteiras de vários tipos, que distinguem domínios diferentes no espaço e no tempo” (Araújo, 2004, p. 2). Sendo um fenómeno restrito no passado, atualmente a mobilidade é um fenómeno de massas e se, por um lado, ao ser diversa e complexa, criou oportunidades, por outro criou também condicionantes às práticas e vivências quotidianas. As vantagens da mobilidade são muitas. Em primeiro lugar, o bem-estar social e a prosperidade económica das nossas sociedades advêm em grande parte da mobilidade. Os indivíduos necessitam de mobilidade para ter acesso a emprego, redes sociais, família, informação, bens e serviços básicos, tais como saúde e educação. Por outro lado, a mobilidade também permite às empresas acesso aos mercados, como por exemplo a funcionários e funcionárias, clientes, etc., e é, portanto, um indicador de produtividade das empresas e economias locais. No mesmo sentido, a mobilidade também promove a inclusão social e a igualdade, pois facilita o acesso a empregos, conhecimento e a redes sociais (Ferreira, et al., 2012). Em segundo lugar, a mobilidade permite uma melhor compreensão do mundo. Os indivíduos facilmente tomam como certas as práticas e entendimentos que moldaram as suas vidas desde muito cedo.

Associados à mobilidade podemos também encontrar alguns efeitos negativos. Entre os mais comuns estão os custos ambientais, sociais e financeiros, sendo estes efeitos negativos diretos. Em segundo lugar podem identificar-se as significativas mudanças ocorridas nos padrões de uso do solo decorrentes da mobilidade física. Particularmente desde o crescente uso do automóvel, os padrões de uso do solo tornaram-se mais extensos e verificou-se um aumento do consumo de recursos não renováveis. Este problema é agravado pelo crescente fenómeno da automobilidade.

Neste sentido podemos apontar o terceiro efeito negativo, relacionado com o aparecimento de uma forma de estar e viver baseada na mobilidade e no consumismo. A mobilidade é usada para atingir e manter um estilo de vida. Tal situação cria um fosso entre quem que podem sustentar o “luxo” da mobilidade e quem que não pode.

As oportunidades e condicionantes criadas pela mobilidade estão amplamente relacionadas com a questão da acessibilidade. A mobilidade enquanto trajeto tem como grande móbil a acessibilidade, ou seja, as pessoas deslocam-se para chegarem a lugares ou atividades (Ferreira, 2012) sendo que o mais usual é o trabalho ou a escola. A mobilidade torna-se essencial quando as distâncias se alongam ou quando as escolhas de vida envolvem a presença em diferentes contextos espaciais (Sales Oliveira, 2014). Neste cenário as infraestruturas e redes de transporte assumem um papel fundamental.

As redes de transporte têm experienciado um desenvolvimento contínuo ao longo dos anos, com especial destaque para a rodovia. Pretendia-se um reforço das relações de proximidade e a coerência do território regional, pela melhoria das condições de mobilidade da população e de circulação das mercadorias. O papel da estruturação dos sistemas urbanos territoriais na estratégia de desenvolvimento conduz ao privilégio das acessibilidades a este nível, nomeadamente entre as cidades e as sedes de concelho e aglomerados rurais do espaço envolvente. Como consequência direta, a mobilidade rodoviária tornou-se um aspeto incontornável das nossas sociedades e atualmente muitas pessoas não só são afetadas como também são fortemente dependentes da mobilidade (Ferreira, et al., 2012).

A acessibilidade tende a ser definida exclusivamente em termos quantitativos e referindo-se à rede de transportes, ou seja, a acessibilidade é vista como dependente dos meios de transporte disponíveis ou da proximidade geográfica. No entanto, alguns autores e autoras têm proposto formas alternativas de equacionar o conceito com por exemplo Ingram (in (Ferreira & Batey, 2007, p. 441), para quem a acessibilidade pode ser entendida como a “característica inerente (ou vantagem) de um lugar no que diz respeito à superação de alguma forma de fonte de exploração espacial de fricção (por exemplo, o tempo e/ou a distância)”.

O conceito de mobilidade sustentável encontra-se cada vez mais presente nas políticas e estratégias territoriais da União Europeia e preconiza que as cidadãs e os cidadãos, habitando em cidades, vilas ou aldeias, tenham a capacidade e escolhas de acessibilidade e mobilidade que lhes permita efetuar deslocações seguras, confortáveis, com tempos aceitáveis e custos acessíveis (Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres, I.P., 2011). Assim, a mobilidade das pessoas é o resultado das suas opções e comportamentos em relação às condições de acessibilidade que lhes são facultadas pelo sistema e infraestrutura de transportes em determinado território.

Para promover uma mobilidade sustentável, um sistema de transportes terá de oferecer às pessoas modalidades de transporte público que proporcionem tempos de viagem competitivos e níveis eficientes de ocupação dos veículos. Os Planos Municipais de Ordenamento do Território são fundamentais para uma gestão eficaz dos serviços urbanos, nomeadamente o espaço público, na medida em que devem abordar e desenvolver os aspetos característicos do seu âmbito e conteúdo no sentido de obterem a maior eficácia como instrumentos de gestão do território. Contudo o enfoque dos Planos Municipais de Ordenamento do Território é geralmente a zona urbana, não englobando as zunas rurais, mesmo porque as especificidades são diferentes. Consoante se refiram a áreas urbanas ou áreas rurais, os instrumentos de estudo e projeto devem focar aspetos específicos a cada espaço. No caso concreto das áreas rurais deve dar-se especial atenção, entre outros fatores: ao projeto de transportes flexíveis, ao transporte escolar integrado e também aos serviços domiciliários. No entanto, apesar dos esforços, o que se tem verificado é que em zonas rurais a rede de transportes públicas é escassa, o que obriga os e as habitantes a usar um automóvel particular ou a procurar outras alternativas. Nos últimos anos o uso do automóvel cresceu de forma exponencial em Portugal mas de forma ainda mais acentuada nas zonas não metropolitanas (INE, 2011; Vaz, 2013).

 

3. Género, mobilidade e transportes

A mobilidade e a imobilidade estão no centro das ideologias de género tradicionais, que estão relacionadas com as noções de espaço, lugar e mobilidade. Estas ideologias perpetuam o dualismo que entende que as mulheres e a feminilidade estão associadas à casa, ao espaço privado, aos espaços domésticos e de circulação restrita, e por outro lado, os homens e a masculinidade estão associados a lugares não-casa, ao público, aos espaços urbanos e ao movimento expansivo. Aqui a mobilidade configura o movimento que está intimamente associado com as representações de género. Frances Willard procurou demonstrar como a mobilidade pode ter a capacidade de transformar as mulheres, empoderando-as (in Hanson, 2013). Para muitas mulheres, a mobilidade recém-conseguida trouxe grandes mudanças nos seus pontos de vista, nas suas identidades e, como tal, alavancou o questionamento de ideologias e práticas tradicionais de género. Numa perspetiva oposta, a imobilidade ou a negação da mobilidade é usada por forma a manter as mulheres numa posição subordinada e assegurar relações de género tradicionais.

Por outro lado, é questionável se a mobilidade será sempre capacitante e inequivocamente algo de positivo em si. A imobilidade pode ser igualmente estimulante para alguns indivíduos, em certas circunstâncias, assim como a mobilidade pode ser vista como opressiva para outros em outras situações. Mas também é claro que diferentes significados de género e relações de poder variam consoante os contextos sociais e geográficos (Cresswell & Uteng, 2008). Relativamente à forma como o género influencia a mobilidade, as investigadoras e investigadores descobriram que, em média, o alcance espacial da mobilidade quotidiana das mulheres é menor que a dos homens: as mulheres tendem a trabalhar mais perto de casa, tendo portanto, em média, menores tempos de viagem; passam menos tempo que os homens em viagens de trabalho e usam menos o automóvel particular (Sales Oliveira, 2014). As mulheres são também menos propensas a ter um emprego móvel ou viajar durante a noite e a sua escala espacial de atividades também é mais restritiva que a dos homens. Os padrões de viagem das mulheres diferem ainda dos padrões característicos dos homens em muitos outros aspetos, por exemplo, as mulheres tendem a usar mais os transportes públicos e a fazer muitas deslocações relacionadas com tarefas domésticas e familiares de abastecimento ou transporte de crianças e dependentes (Hanson, 2013).

Embora o número de mulheres com automóvel particular tenha aumentado na U.E., as mulheres continuam a ser o grupo que mais usa e depende dos transportes públicos. Os padrões de mobilidade são diferentes consoante o sexo, como tem sido verificado, no entanto, existe ainda uma lacuna no que respeita à interpretação social destas diferenças. Os estudos sobre a relação entre género e mobilidade tendem a focar apenas um dos conceitos, não explorando, portanto, todo o potencial da relação (Oliveira, 2014).

Contudo, ao mesmo tempo que a mobilidade continua a ser diferenciada por género, há alguns sinais que indicam que o fim do século XX trouxe uma aproximação dos dois sexos. O ponto de partida para estas mudanças parece ser os padrões de automobilidade, em crescendo para homens e mulheres.

O transporte, ou de um modo geral, a mobilidade, pode contribuir para o fenómeno da exclusão social de duas formas. Primeiro, deficientes oportunidades de transporte podem impedir que os indivíduos e as comunidades tenham acesso a bens e serviços de caráter social e/ou saúde, por exemplo, que são disponibilizados à maioria da população. Segundo, os aspetos negativos do transporte tendem a concentrar-se em áreas com elevados níveis de exclusão social, o que engloba o trânsito, os acidentes, a poluição e altos níveis de ruído.

A ideia é que o transporte possa ser acessível a todos os indivíduos e comunidades, evitando assim que ocorra exclusão social por falta de recursos de mobilidade. O automóvel particular pode ser financeiramente acessível para algumas pessoas, mas não para outras. No entanto, as alternativas como pagar bilhetes de autocarro, comboio, metro, entre outros, podem não ser assim tão viáveis para os indivíduos de baixos rendimentos. Algumas pessoas podem também optar pelo uso do táxi, principalmente se os horários dos transportes públicos lhes forem incompatíveis.

O transporte deve também ser disponível, ou seja, enquanto um automóvel particular está sempre disponível para um elemento, se a família tiver vários elementos a usufruir do mesmo poderá constituir uma barreira para o seu uso. Os transportes públicos, neste caso, podem constituir uma alternativa viável, embora com alguns constrangimentos, como anteriormente referido. De salientar que os transportes públicos devem também ser acessíveis a indivíduos com necessidades especiais, como sejam, os indivíduos que se deslocam em cadeiras de rodas, ou até mesmo idosos e idosas cuja idade avançada já dificulta os movimentos.

De acordo com Mashiri e Mahapa (2002), as comunidades rurais entendem que o transporte não se trata de um problema por si só, faz sim parte de um problema maior, de caráter sociopolítico e económico. A decisão política tem negado a importância das necessidades das comunidades rurais como parte de uma geração inovadora de soluções para os transportes e para o desenvolvimento rural. A análise dos sistemas de transporte na sua maioria tem negligenciado o estudo das características de transporte das famílias rurais.

Os indivíduos de baixos rendimentos, em particular as mulheres, são os que mais sofrem com estas dificuldades de acesso. As políticas de transporte convencionais, contudo, tendem a tratar as comunidades como iguais, homogéneas, sem reconhecer que, por exemplo, homens e mulheres podem ter padrões de mobilidade diferentes. Outro erro frequente é não ter em conta as diferenças entre os padrões de mobilidade de indivíduos com baixos rendimentos e indivíduos com altos rendimentos.

 

4. Estudo empírico

4.1. Opções metodológicas

A presente investigação consiste num estudo de caso de uma comunidade. Foi escolhida esta abordagem porque se pretendia fazer uma primeira exploração sob o tema de mobilidade no meio rural pelo que se considerou útil a caracterização exaustiva de uma unidade de investigação tipo, ou seja, um estudo de caso ilustrativo.

O estudo de caso caracteriza-se por ser uma “investigação sistemática de um evento ou conjunto de eventos relacionados que tem como objetivo descrever e explicar o fenómeno de interesse” (Bromley in (Zucker, 2009, p. 2). De acordo com Eisenhart (in (Darke, et al., 1998)) “o estudo de caso é uma estratégia de pesquisa que se concentra em ganhar e compreender as dinâmicas presentes dentro de configurações individuais”, contemplando um exame detalhado de uma pequena amostra, através de uma perspetiva particular. Na mesma linha de pensamento, Yin (in (Schell, 1992, p. 2) defende que “o estudo de caso é uma investigação empírica que investiga um fenómeno contemporâneo dentro do seu contexto da vida real, especialmente quando os limites entre o fenómeno e o contexto não são claramente evidentes”.

As técnicas de recolha e tratamento de dados escolhidos para esta investigação foram o inquérito por questionário com aplicação direta, com posterior tratamento estatístico dos dados em SPSS e análise de mobility mapping com recurso a sistemas de informação geográfica (SIG). A técnica de mobility mapping é uma representação visual das deslocações dos indivíduos dentro e fora da sua comunidade. Esta é uma técnica versátil que pode ajudar a identificar questões e problemas relacionados com a mobilidade bem como o acesso a recursos como a água, serviços de saúde, etc. Esta técnica pode dar-nos informações acerca de alguns indicadores sociais, como os diferentes níveis de pobreza, saúde, emprego, etc., dentro de uma comunidade, assim como nos pode mostrar as causas económicas, sociais e políticas e os impactos sociais da mobilidade (Cope & Elwood, 2009).A opção por questionário de aplicação direta prendeu-se com as características esperadas da população, que se antecipava idosa e de baixa literacia em que o apoio do inquiridor ou inquiridora seria fundamental. Em relação ao mobility mapping com recurso a SIG, optou-se por esta técnica para dar cumprimento ao objetivo de pesquisa de tipificar percursos e trajetos da população em estudo mas sendo que a georreferenciação teria que ser baseada na recolha dos pontos de partida e destino descritos em texto e não via coordenadas GPS (Global Position System). Assim o recurso posterior aos SIG na fase de tratamento de dados revelou-se fundamental para o desenho dos trajetos, mas o que efetivamente se recolheu como fonte primária foram os indicadores nominais, tal como é típico na técnica de mobility mapping (Lay, 2003).

4.2. Resultados

O estudo incidiu sobre uma aldeia da Cova da Beira com cerca 125 habitantes com residência permanente [3]. Obteve-se dados caracterizadores de 90 pessoas.

Fazendo uma breve caracterização sociográfica do total de indivíduos caracterizados, 44 são indivíduos do sexo masculino e 46 do sexo feminino. Assim, podemos verificar um equilíbrio em relação a esta variável embora seja importante referir que na região a relação de masculinidade é de 95,6, bastante mais elevada que o valor médio de Portugal dos últimos censos, 91,5 (Instituto Nacional de Estatística, 2012). Esta situação não é, no entanto, inédita no meio rural em que existe uma tendência para a masculinização da população idosa (Gusmão & Alcântara, 2008).

Dos 90 indivíduos, 38% têm mais de 65 anos, enquanto 23% têm entre 31 e 50 anos e 16% são menores de 18 anos. De acordo com os dados dos Censos de 2011 do Instituto Nacional de Estatística (Instituto Nacional de Estatística, 2012), a percentagem de jovens recuou de 15% no ano de 2001 para 13,7% no ano de 2011, enquanto a percentagem de idosos aumentou de 19,5% para 22,4% no mesmo período. Se esta situação é, portanto, assinalável para o país em geral, a região em estudo afigura-se particularmente envelhecida. Se focarmos as localidades mais próximas da aldeia em estudo, à data dos Censos de 2011, a proporção de população residente com mais de 65 ano de idade em Caria era de 28,11%, em Peraboa de 28,96% e no Ferro de 23,71% (Instituto Nacional de Estatística, 2013).

Uma larga percentagem dos inquiridos e das inquiridas tem apenas o 4º ano de escolaridade (34,4%), no entanto há também uma percentagem considerável de indivíduos que não sabem ler nem escrever (14,4%) e uma percentagem de 10% que sabe ler e escrever sem diploma. Mesmo tendo em conta as crianças residentes de idade igual ou inferior a 10 anos (9 casos, 10% da amostra) estamos perante uma população com níveis de escolaridade muito baixos, díspar da evolução positiva deste indicador no último recenseamento da população (Instituto Nacional de Estatística, 2012). Apenas 15% da população tem mais do que o 9º ano de escolaridade.

Se atentarmos à situação perante o trabalho de cada indivíduo podemos constatar que a maioria dos indivíduos se encontra reformado, havendo mais reformadas que reformados. No entanto, se observarmos as reformas por invalidez, não há nenhuma mulher nessa situação. Em relação aos indivíduos que ainda estão em fase ativa, 22% estão empregados e empregadas, 14% desempregados e desempregadas, o que é uma percentagem próxima dos dados nacionais referentes ao desemprego (Instituto Nacional de Estatística, I.P., 2014). Quanto aos restantes habitantes, dividem-se em estudantes e inativos.

 

 

Em suma podemos dizer que estamos perante uma população equilibrada no que respeita à distribuição por sexo mas muito envelhecida no que se refere à distribuição etária. É também uma população pouco escolarizada, sendo que a maioria dos indivíduos possui o 4º ano de escolaridade ou menos. Na sua maioria os e as habitantes da aldeia já se encontram reformados e reformadas, dos que estão a trabalhar, a maioria trabalha no setor dos serviços tradicionais, no sentido de Freire (2008).

Em relação à dimensão do agregado familiar, predominam os agregados de 2 pessoas com 35% dos casos analisados, contudo a média de pessoas no agregado é 2,43 porque cerca de 40% dos agregados têm 3 ou mais pessoas e 24,3% têm apenas uma pessoa. Estes valores acompanham de perto as tendências nacionais do último recenseamento da população, a saber, media de 2,6 pessoas por agregado familiar e percentagem de 24% de pessoas a habitar sós. Em testes de associação verificou-se uma elevada e muito significativa correlação (R Pearson de -,618 com significância de ,000) entre os mono agregados e a idade do ou da respondente, o que era expetável dado o cenário de envelhecimento da população.

Focando agora as dimensões em estudo e contrariamente ao expectável verificou-se que a mobilidade da população residente varia bastante. Começando por analisar ao nível dos agregados familiares, que se revelou o núcleo decisivo e organizativo da mobilidade individual, encontrámos situações de quase imobilidade (7 casos) e uma situação de baixa (11 casos) e média mobilidade (7 casos) e 12 casos de elevado nível de deslocação. [4] Estas variações são constatáveis no gráfico seguinte que apresenta a distribuição da quilometragem.

 

 

Uma análise posterior desagregada por sexo permitiu perceber que são as mulheres quem menos conduz, menos usa o automóvel particular e mais se desloca a pé. Contudo e surpreendentemente constata-se que apesar disto não são as mulheres quem se desloca menos. Analisando as acessibilidades, constata-se que são sobretudo as mulheres quem acede aos serviços por meio de transporte de outrem (transportadas por familiar ou vizinho) recorrendo os homens menos a esta solução de acessibilidade e por aí justificando-se que percorram menos distâncias.

Procurou-se também saber qual(is) a(s) razão(ões) que levam os indivíduos a usar o automóvel particular, ao invés dos transportes públicos. Cerca de 35% afirma usar o automóvel particular por não haver oferta de transportes públicos que sirva as suas necessidades. No entanto, alguns indivíduos afirmam que o automóvel particular é também mais cómodo e que o agregado familiar precisa dele para fins profissionais.

Destaca-se que cerca de 38% dos e das respondentes considera a hipótese de mudar de meio de transporte caso existisse na aldeia um sistema coletivo organizado de transporte que permitisse maior flexibilidade ou se a oferta de transporte público se alargasse.

Do total de indivíduos inquiridos, 47 possui carta de condução enquanto os restantes 43 não possuem. O que, traduzindo em percentagem reflete um valor de 52% de indivíduos com carta de condução.

No transporte das crianças a atividades extracurriculares voltamos a identificar um desequilíbrio entre mulheres e homens, sendo que em apenas um caso é o homem a levar as crianças às atividades, enquanto em seis casos são as mulheres a fazê-lo

Quisemos saber também acerca da frequência com que o agregado familiar costuma frequentar espaços de lazer e verifica-se que uma percentagem muito elevada simplesmente nunca frequenta espaços de lazer (59,5%).

Ao nível dos padrões de acessibilidade destaca-se antes de tudo o mais que se baseiam essencialmente no uso de transporte particular e no percorrer de distâncias consideráveis. Esta constatação é coadjuvada pelo facto de a aldeia estudada não dispor de qualquer serviço de abastecimento que não seja um estabelecimento de café de horário irregular onde se pode comprar gás em botija. Para serviços base como alimentação, saúde, educação ou mesmo uma caixa de multibanco as pessoas da aldeia têm que se deslocar no mínimo três quilómetros à localidade mais próxima por estrada. Pelo que desde logo podemos afirmar que há uma relação direta entre as duas variáveis: a acessibilidade corresponde a um nível razoável de mobilidade.

Os padrões de acessibilidade foram recenseados mediante o questionamento de uma lista de serviços sobre os quais se perguntava o local e a periodicidade com que os agregados acediam aos mesmos. Uma análise das respostas permitiu agrupar os agregados de acordo com o seu padrão de mobilidade. Identificámos 3 tipos: um perfil de mobilidade em que o acesso ao transporte particular/próprio é escasso ou nulo, havendo por vezes o acesso ao transporte particular de outrem (a “boleia” com familiares e vizinhos e vizinhas), sendo o modo de transporte mais frequente na aldeia andar a pé. Algumas destas pessoas referem só se sentir bem em casa. Correspondem a um perfil envelhecido (com 65 ou mais anos) e sem carta de condução ou posse de carro, também sem escolaridade ou a saber ler e escrever sem diploma. Os locais de acesso a bens e serviços destas pessoas são, geralmente, os mesmos dos perfis com mais mobilidade – não se verifica associação positiva entre este perfil e o acesso privilegiado mais próximas – o que se altera é a frequência do acesso e a diversidade de locais frequentados, ambos meios restritos.

Ilustra-se este perfil com um caso de um reformado, cujas deslocações são pouco frequentes. Como se pode observar pela figura 1, o indivíduo efetua deslocações quinzenais (para Caria e Peraboa) e anuais (ao Hospital da Covilhã). As suas deslocações quinzenais a Peraboa acontecem por motivos de saúde, ou seja, para ir ao Centro de Saúde, enquanto as deslocações a Caria são para comprar bens alimentares. De mês a mês o indivíduo desloca-se a Caria para aviar as receitas na Farmácia. As deslocações anuais são até ao Hospital Pêro da Covilhã. Muitos agregados possuem horta/terreno e cultivam-no diariamente, neste caso, a horta/terreno é ao lado de casa. No total semanal, o indivíduo refere fazer apenas em média 1km de deslocações, visto que há semanas em que não sai da aldeia.

 

 

 

 

 

5. Discussão

Após a investigação efetuada, consideramos que a aldeia estudada tem traços de ruralidade profunda com ausência de serviços e isolamento social apesar de se situar a uns escassos 18Kms de uma cidade média. Os poucos casos de famílias residentes que fizeram o percurso de vida de contra urbanização apontam a dificuldade de atrair mais pessoas para a zona devido ao facto de estar desprovida de serviços.

A tipologia desenvolvida permitiu-nos compreender que apesar do acentuado envelhecimento da população e dos padrões sociodemográficos e socioeconómicos consistentes com uma comunidade de tipo rural, curiosamente emergiram bastantes casos de mobilidade média e intensa o que permite perceber que se por um lado a vida nesta comunidade efetivamente condiciona os e as habitantes à deslocação; simultaneamente a uma primeira aparência de imobilidade espácio-temporal, coexistem na aldeia movimentos e pessoas em padrões diversificados, geralmente associados aos agregados mais jovens e maiores. Tal indica-nos que viver nesta comunidade exige mobilidade aos indivíduos e agregados remetendo quem não a tem para um padrão de restrição e exigindo de quem a tem que invista recursos financeiros e de tempo em deslocações. A variação é tão grande como entre pessoas que mal saem de casa e famílias que fazem mais de 1000Km semanais. O que nos faz pensar e preocupar com o facto de as pessoas com baixa ou nula mobilidade possam não ver satisfeitas as suas necessidades básicas pois não têm como o fazer relembrando a quase ausência de serviços locais.

Do exposto podemos aventar que a relativa proximidade a uma cidade média, que pode estar a posicionar-se enquanto lugar central nesta área rural (Gaspar, 1972), catalisa o processo de dependência/desprovimento de serviços que a aldeia estudada – e eventualmente outras – estão a sofrer.

Se relembrarmos que a mobilidade em transporte próprio é o meio mais utilizado pela população para as deslocações, as mulheres são as que têm mais obstáculos de partida para a mobilidade e acessibilidade, uma vez que possuem em menor número carta de condução e veículo próprio. Contudo, percebeu-se que, mais do que o género, a idade é um fator muito mais condicionante. São os idosos e idosas quem tem maiores obstáculos à mobilidade e acessibilidade, seja porque não possuem habilitação legal para conduzir e/ou veículo próprio, ou porque a rede de transportes públicos não serve as necessidades deste grupo populacional, sendo muito escassa e apenas direcionada para as crianças em idade escolar, e não possuindo a aldeia infraestruturas que possam satisfazer os bens e necessidades da população. Mas a idade não é o único fator de exclusão e temos idosos e idosas com mais mobilidade uns que outros e outras. A somar ao fator idade, as baixas habilitações e rendimentos muito contribuem para uma maior imobilidade. Curiosamente o fator género revela-se menos marcante do que esperávamos porque neste grupo de idosos e idosas potencialmente imóveis são mais as mulheres quem recorre a soluções alternativas de mobilidade e acessibilidade, através, por exemplo, da “boleia” ou “recado” pedido aos filhos e filhas, o que vai ao encontro da tendência identificada por Miralles-Guash et al 2016) de uma maior diversidade e sustentabilidade nos padrões de mobilidade das mulheres. Contudo não podemos deixar de referir as crianças, apesar de serem em menor número, que a partir do 5º ano de escolaridade têm que fazer cerca de 40 Km diários com escassos horários de autocarro para chegar à escola.

Foi referido pelas pessoas a existência e importância para a gestão doméstica de serviços móveis de abastecimento que vão regularmente à aldeia, concretamente, duas carrinhas de padaria, um peixeiro, uma carrinha de congelados e um merceeiro. Relativamente aos serviços de saúde percebeu-se também que quinzenalmente há um transporte da junta de freguesia que leva os e as pacientes para a consulta do centro de saúde em Peraboa e que a farmácia desta localidade entrega medicamentos ao domicilio e fornece cuidados de enfermaria na aldeia. Não foi, porém, possível investigar o impacto destes serviços nos diferentes agregados.

Apesar de em muitos casos, o meio rural poder atrair novos e novas habitantes imigrantes, na aldeia estudada não foi o caso. Não há registo de nenhum imigrante que se tenha mudado para a aldeia nos últimos anos e apesar de a aldeia ainda registar um número razoável de habitantes, a verdade é que nos últimos anos alguns têm optado por se mudar para a cidade. Isto pode dever-se essencialmente à falta de emprego na aldeia e também ao facto de bens e necessidades essenciais para a população terem que ser satisfeitos, na sua maioria, na cidade, o que ilustra bem a dependência das zonas peri urbanas e urbanas. A pergunta é: porquê continuar a viver na aldeia se tudo tem que ser resolvido fora dela? Ou seja, o que faz a população escolher continuar a viver numa aldeia sem serviços como farmácia, centro de saúde, minimercado? O que se verificou é que a é precisamente a mobilidade que sustenta esta permanência na aldeia, concretamente é a mobilidade que permite a acessibilidade a serviços básicos e a manutenção da habitação nesta pequena comunidade com que a maioria das pessoas mantem laços de afetividade e valoriza a beleza. Para quem não tem automóvel há o recurso a estratégias alternativas de acessibilidade, sobretudo no caso das mulheres e há também uma redução dos padrões de consumo ao essencial.

Com os resultados obtidos pudemos também perceber que os empregos ligados à agricultura têm vindo a sofrer uma diminuição significativa. Contudo, também se verificou que muitos agregados familiares possuem hortas e/ou terrenos que cultivam diariamente, o que demonstra que a agricultura não perdeu ainda toda a importância. É curioso constatar que esta atividade extra, no caso dos empregados e empregadas, e primária no caso de reformados e reformadas, consome um volume de tempo considerável e nunca é considerada atividade de lazer, mesmo nos agregados que têm atividades remuneratórias a tempo inteiro. A horta ou terreno parece assim desempenhar um papel relevante como uma atividade semi-produtiva, num regime de agricultura de sobrevivência e dando ocupação e atividade aos indivíduos em situação de reforma e de escasso acesso a outras atividades.

 

6. Considerações finais

No nosso entender os resultados obtidos com esta investigação comprovam a pertinência do estudo sociológico sobre mobilidades e acessibilidades rurais sob perspetiva de género. Fomos surpreendidas pela existência de mais movimento na aldeia do que o que esperávamos tendo-se evidenciado que a opção pelo rural é, em pessoas e famílias mais jovens uma opção pela automobilidade com todas as suas implicações: custos temporais e económicos, dependência entre os elementos do agregado, dependência dos centros urbanos circundantes. A este nível muitas questões ficam por explorar nomeadamente as motivações do viver na aldeia, entre a continuidade de quem lá sempre residiu e o regresso ou mudança para este meio. Depois as coexistências entre os diferentes perfis encontrados e como agregados com estilos de vida diferenciados partilham ou cruzam experiências da aldeia e da vida em comunidade. Neste cruzamento ainda será relevante perceber o papel dos serviços móveis e o nível de utilização dos mesmos.

A ótica de género revelou-se profícua na medida em que se comprovou não só a existência de dicotomias relacionadas com os papeis sociais de género em que mulheres e homens tendem a ter diferentes quotidianos e acesso a bens e tal reflete-se na sua relação com a mobilidade e os transportes, como também se revelaram diferenciadas as formas de gerir essa relação e as dificuldades de mobilidade e de acesso com as mulheres a protagonizar estratégias de acessibilidade mediante o recurso a sua rede social.

Os mecanismos de entreajuda familiar e de vizinhança, as assimetrias em termos de rede de sociabilidade e convivialidade e o potencial dos diferentes serviços móveis existentes são a nosso ver aspetos que importa aprofundar para melhor compreender as estratégias e dinâmicas da comunidade que apontam para caminhos interessantes de explorar numa lógica de intervenção promotora do desenvolvimento rural.

 

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Received: 29-05-2017; Accepted: 27-12-2017.

 

NOTAS

[3] Este valor corresponde a uma contagem da população visto que o recenseamento da população é feito apenas ao nível da freguesia. A aldeia estudada pertence a uma freguesia com 900 pessoas.

[4] Tipologia construída a partir dos descrições das deslocações semanais, explorada nas entrevistas ao nível do agregado e do individuo.

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