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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.37 Lisboa dez. 2018

https://doi.org/10.15847/citiescommunitiesterritories.dec2018.037.art04 

ARTIGO ORIGINAL

 

Reivindicações artísticas contemporâneas na esfera pública da cidade: Liberate Tate

Contemporary artistic claims in the public sphere of the city: Liberate Tate

 

Ricardo Venâncio LopesI

[I]DINÂMIA'CET-IUL, Instituto Universitário de Lisboa. e-mail: ricardovenanciolopes@gmail.com.

 


RESUMO

Ao longo dos séculos os processos artísticos têm tido um papel relevante contra sistemas “repressivos” e “dominadores”. Os espaços da esfera pública têm-se assumindo como arenas para a acção desse tipo de intervenções. Partindo da experiência Liberate Tate, iniciada em 2010, num workshop promovido pelos museus Tate, em Londres, pretende-se olhar para o papel que determinados processos artísticos contemporâneos podem ter na construção crítica de públicos e da sociedade. Em paralelo, procura-se perceber como acções à micro-escala de actuação podem contribuir para uma sociedade civicamente mais participativa e consciente.

Palavras-chave: arte, cidade, activismo, esfera pública.


ABSTRACT

Throughout the centuries artistic processes have been played an important role against “repressive” and “dominating” systems. The spaces of the public sphere have been assumed as arenas for action of this kind of interventions. Starting from the analyses of the projects developed by Liberate Tate, started 2010, in a workshop promoted by the Tate, in London, pretends to look at the role that contemporary artistic processes can have in the critical construction of publics and the society. And, understand how actions to the micro-scale can contribute to a more conscious civic society.

Keywords: art, city, activism, public sphere.


 

1. Introdução

A prática artística é inerente à vida humana. Vestígios arqueológicos permitiram observar que a arte esteve sempre presente no quotidiano das sociedades. Contudo, aquilo que hoje é visto como arte corresponderia, em épocas passadas, a acções comuns da quotidianidade daquelas sociedades, vinculadas a práticas religiosas, mágicas, bélicas, etc. (Dorfles, 1986). Desta forma, a arte assume um papel de destaque na vida e na cultura dos povos, ajudando a registar memórias, cenas quotidianas, crenças ou mensagens.

A arte, pela sua transversalidade, foi-se reinventado e acompanhando o evoluir da civilização. Se, nos primórdios, os registos se resumiam a retratar as cenas do quotidiano e rituais que faziam parte do imaginário das civilizações à época, perante o mundo de imagens em que vivemos actualmente, o imaginário e as possibilidades tornam-se infinitas.

Ao longo dos séculos, e devido à sua importância na vida quotidiana, também o espaço público se foi confirmando como uma arena privilegiada de demonstração de poder, culto, comércio, convivialidade e representações sociais (Miles, 1997; Costa e Lopes, 2015). Intervenções artísticas foram encontrando nesse território o palco privilegiado para rituais populares, exibições de arte pública, happenings, instalações, performances, street art, etc. (Lopes, 2012).

Contudo, as noções de espaço público têm-se alterado muito ao longo dos últimos anos, vindo a assistir-se a uma crescente privatização do espaço público e ao aumento da importância dos espaços pertencentes à esfera pública. Nomeadamente espaços privados que permitem o acesso público, independentemente de condicionalismos diversos (horários, restrições, acesso, etc.) (Costa e Lopes, 2015). Nestes espaços, o acesso, apesar de limitado, permite a extrapolação de inúmeras regras e competições que regem o espaço público contemporâneo. As inúmeras concessões do espaço público a privados, marcas ou grupos formais, deixam uma margem cada vez menor para processos informais de ocupação.

Em cidades cada vez mais mercantilizadas, um apartamento em São Paulo, uma cave em Berlim, uma antiga mercearia em Lisboa, ou o hall de um museu em Londres revelam-se espaços de evasão devido à imprevisibilidade de regulação desses territórios. As praças e as ruas, apresentam na contemporaneidade, em inúmeras urbes, câmaras de vigilância ou gestões privadas que deixam menos margem para exercícios contra-cultura, e, onde a participação-acção se revela incomodativa. Com isto não se quer dizer que o ‘tradicional' espaço público tenha desaparecido como espaço de contestação. As praças mais simbólicas das cidades continuam a ser palco das maiores reivindicações e lutas sociais, mesmo num período em que as redes digitais têm assumido um papel cada vez mais revelante para a formação de redes de indignação, conforme nos descreve Manuel Castells (2013), ou David Harvey (2012), referindo-se à forma como certos contextos marcados por alterações socio-ecónomicas se têm revelando interessantes pontos de luta e resistência social nos últimos anos.

Na criação e definição da “marca” cidade, a cultura assume um papel cada vez mais relevante na composição das narrativas vinculadas a cada território (Costa e Lopes, 2017). Contudo, importará questionar qual o papel da economia da cultura perante a observação de uma crescente instrumentalização dos agentes criativos. Diversos autores que têm estudado a importância da economia da cultura para o desenvolvimento territorial como Allen Scott, Charles Landry ou Malcolm Miles, que se mostram apreensivos perante a instrumentalização da cultura. Na mesma linha, Thomas Hutton (2015) também questiona se será´ a economia da cultura um pilar da economia urbana contemporânea, ou apenas um instrumento ao serviço de interesses económicos maiores. Esta questão prende-se com o facto de se verificar que em várias cidades do Norte e do Sul global, os núcleos culturais são rapidamente substituídos por grupos económicos mais fortes. Esta realidade leva a que espaços urbanos outrora irreverentes, alternativos e culturais tendam para a massificação e turistificação dos processos de produção e exibição cultural, perdendo a informalidade e criatividade que os caracterizavam.

Desta forma, interessa interrogar de que modo a cultura pode ser uma actividade criativa, engajadora, sustentável, crítica e estética, sem se tornar apenas num mero elemento do espectáculo (Debord, 1972) num mundo mercantilizado.

Assim, não sendo o foco deste artigo analisar as noções e limites associados à “mercantilização da cultura e da cidade”, bem como as noções de “espaço público” ou da “arte pública” (tão difusos na actualidade), interessa sobretudo interrogar o papel que a arte desenvolvida no espaço público ou na esfera pública pode assumir no dia-a-dia da cidade contemporânea que é, por tradição, o território mais democrático para o seu acesso. Em paralelo, interessa também perceber de que forma a arte pode contribuir para o incremento de sentido crítico na sociedade civil e de luta contra os poderes estabelecidos. Neste ponto importará ter em consideração que o inverso também é verdade, assumindo que em muitos momentos da história a arte foi utilizada como forma de criar fábulas e ideais que protegiam os poderes vigentes.

O Tate Modern e o Tate Britain [2], em Londres, foram os palcos da esfera pública onde decorreram as intervenções artísticas que nos propomos a analisar no presente artigo, no âmbito da iniciativa Liberate Tate, que pretendia que a instituição não aceitasse donativos da empresa petrolífera BP (British Petroleum).

 

2. Liberate Tate [3]

1 - A que horas começa a revolução?

2 - Ha, meu caro, a revolução é um sentimento, é uma sensação e uma necessidade de mudança. Estas sensações profundas não têm horário marcado. São espontâneas.

1 - A que horas começa?

2 - Às três. Na praça central.

1 - E quantas pessoas estão previstas participar na revolução?

2 - Ha, meu caro, a revolução é um movimento que nasce de uma vontade individual, de uma insatisfação humana não partilhável, de um instinto solitário que nos leva a querermos, sozinho, destruir o velho e fazer algo de novo.

1 - Quantas pessoas?

2 - Dez mil pessoas. Dez mil e sete, mais precisamente.

1 - Dez mil?

2 - Mas se for necessário levamos mais um zero.

1 - Mais um zero?

2 - Sim, temos um cartaz branco com um zero muitíssimo bem desenhado. Se for necessário, pomos ao lado das dez mil pessoas, no lado direito, essa placa com o zero. Ficaremos assim cem mil.

1 - É assim que funciona?

2 - Sim, é assim que funciona. Desde a escola primária. Se tem o número 10 e põe um zero do lado direito, fica 100. Em que escola andou?

1 - Só uma última questão: é preciso levar alguma coisa para a revolução?

2 - Cada um leva o que sentir ser o necessário, e o que for exigido pelo mais profundo do seu ser.

1 - Como?

2 - Leve uma pedra.

1 - Uma pedra?

2 - Sim.

1 - De que tamanho?

2 - O tamanho suficiente para partir um vidro.

1 - Posso levar uma pedra com o tamanho suficiente para partir uma cabeça?

2 - Meu caro, que horror!!...

1 - ...?

2 - Ok. sim.

1 - Levo então duas pedras? uma para partir vidros, outra para partir cabeças?

2 - Se levar duas pedras, uma em cada mão, ficará com as mãos atadas, como se costuma dizer, Ou com as mãos demasiado cheias.

1 - Entendo.

2 - É necessário uma certa flexibilidade. Uma capacidade de adaptação.

1 - Compreendo.

2 - Deve pois ter uma mão livre e na outra deve levar uma pedra.

1 - Entendo.

2 - E essa pedra pode ser utilizada para dois objectivos: partir um vidro ou uma cabeça. E está nas suas mãos, literalmente nas suas mãos, a decisão.

1 - Entendo.

2 - Uma revolução que corra bem utiliza as pedras para partir vidros.

1 - Entendo.

2 - Se correr mal: cabeças.

1 - Cabeças! Entendo.

2 - Meu caro, gostei de falar consigo. Vemo-nos às três?

1 - Sim, às três. Na praça central.

Gonçalo M. Tavares

O poema de Gonçalo M. Tavares revela-se um texto muito “visual” do modo como a iniciativa Liberate Tate se construiu em torno de uma luta-acção que se estimulou “sem hora marcada” e de forma “espontânea”. O poema transcrito também nos abre a discussão em torno de como a arte pode contribuir para o sentido crítico da população, que no seu dia-a-dia e perante os inúmeros estímulos a que é exposta na sociedade do espectáculo (Debord, 1967; 2002), que não consegue ter a capacidade crítica em relação à maioria das dinâmicas que se estabelecem à sua volta.

A iniciativa Liberate Tate começou a desenhar-se num workshop comissariado pela Tate, sobre arte e activismo, em Janeiro de 2010, quando os curadores da Tate censuraram as propostas de intervenção que iam contra os ideais do museu ou dos seus patrocinadores. Sem atender à proibição, os participantes colaram a frase Art Not Oil na The light beam [4], junto à frase pré-existente “Free Entry – Tate Modern”.

 

 

Estava assim lançado o mote para a formação do colectivo Liberate Tate, que tem como principal objectivo lutar contra os financiamentos dados pela empresa BP a museus Britânicos. O argumento baseava-se no facto de que uma empresa responsável por enormes impactes ecológicos, sociais e económicos não poder “limpar”[5] a sua imagem através de mecenato artístico (conforme são disso exemplo os “eventos BP” onde a empresa se auto-promovia nos espaços dos museus).

“Every day Tate scrubs clean BP's public image with the detergent of cool progressive culture.”

Liberate Tate

A ambígua posição com que muitas vezes artistas e produtores se deparam para manter a independência do seu trabalho fica aqui exposta na dialéctica entre a Tate e os seus patrocinadores. A empresa BP aproveita a política de mecenato para se auto-promover (em muitos casos com mais-valias económicas e simbólicas) deixando a instituição dependente desse dinheiro para a sua manutenção. Simultaneamente, a BP aproveita-se da sua posição para coibir a linha curatorial do museu em apoiar trabalhos que possam atentar contra a própria empresa. Esta situação exemplifica como a arte mantem até ao presente essa dupla função de se aliar ou de lutar contra regimes, conforme os artistas e as épocas. Contudo, na contemporaneidade ela assume cada vez mais um papel preponderante em lutas e movimentos cívicos.

O século XX ficou marcado por um crescente posicionamento por parte das vanguardas artísticas em termos civícos e políticos. No final dos anos 1950, artistas como Allan Kaprow, ou grupos como Fluxus, trouxeram para a discussão e para a esfera pública novos modos de intervenção artística. As “vanguardas” artísticas começaram a testar novas formas de arte - como happenings, performances e instalações - saindo dos espaços tradicionais de exibição e de concepção (Traquino, 2010), convertendo partes da cidade e objectos do quotidiano em componentes da sua obra artística e criando arquitecturas efémeras. Alterou-se a relação da arte com as pessoas e com a cidade, que se tornou palco para uma arte mais informal, longe dos cânones e espaços estabelecidos (Lopes, 2012), conforme se constata na definição de happening por Kaprow em 1959.

An assemblage of events performed or perceived in more than one time and place. Its material environment may be constructed, taken over directly from what is available or altered slightly; just as its activities may be invented or commonplace. A happening unlike a stage play, may occur at supermarket, driving along highway, under a pile of rags, and in a friend's kitchen, either at once or sequentially. If sequentially, time may extend to more than a year. The happening is performed according to plan but without rehearsal, audience, or repetition. It's art but seems closer to life ”.[6] ( Kaprow, citado em Arnason, 1985, pp. 613)

Como se pode entender pelo excerto do texto de Kaprow, não só os espaços de performance foram alterados, como foi introduzida toda uma nova ideologia no mundo artístico que o crítico de arte Nicolas Bourriaud (2002) sintetiza da seguinte forma: após o predomínio da relação entre Humanidade e Divindade, a que sucede a da Humanidade e o objeto, a última década do século XX privilegia a esfera das relações inter-humanas na prática artística.

Com a saída do white cube para a “cena” da cidade, a arte assume cada vez mais um modo activo nos movimentos sociais, começando a interrogar-se não só o seu papel na construção ideológica e cívica da sociedade (Bishop, 2012), como também a questionar o papel da arte apenas como objectivo estético contemplativo (Bourriaud, 2002). O público torna-se assim objecto artístico, não só como espectador, mas como elemento preponderante para o desenvolvimento das propostas, sendo estimulado em termos críticos para intervir e posicionar-se em relação aos pressupostos da abordagem artística. Ao deixar de ser apenas observador, o público torna-se também criador no processo colectivo de pensamento e construção da obra, deixa de ser aquele que assiste, para se tornar aquele que cria dentro das várias camadas e métodos propostos pelos artistas ou colectivos.

A arte afirma-se então como movimento de contra-cultura e aliar-se-á a movimentos sociais na luta por uma sociedade civil mais engajada. O processo e a discussão conceptual tornam-se preponderantes para estes colectivos artísticos e, em certa medida, até mais importantes que o objecto artístico final, que se torna menos controlado, mais informal e efémero. Este facto também se deve a um resultado que já não traduz a ideia de um autor, mas antes de um conjunto de participantes, em alguns casos inesperados (por se encontrarem naquele espaço no momento da intervenção, por exemplo). Esta característica será muito similar ao que se passa com os colectivos dos movimentos sociais, levando a que, por natureza, os movimentos defendam que o processo é mais importante que o ‘produto'. Não significa isto que o produto final seja irrelevante, mas apenas que é mais uma peça no processo de transformação e engajamento dos diversos actores da sociedade civil. Como tal, a verdadeira transformação social resultará de todo um processo, mais do que de uma ideia preconcebida à partida ou de um objecto final.

O grupo Liberate Tate já levou a cabo 18 iniciativas artísticas, desde a sua fundação em 2010. Os museus Tate tornaram-se assim no palco de uma luta contra a BP e contra a exploração de energias não-renováveis. O facto de as iniciativas se terem realizado num espaço pertencente à esfera pública, com os diversos condicionalismos que isso implica, não impediu as propostas de decorrerem com maior ou menor criatividade por parte dos performers.

Herzog & Meuron escrevem na memória descritiva do Tate Modern que a Turbine Hall deveria ser uma grande praça, local de passagem e de encontros. É essa liberdade espacial idealizada por os arquitectos que pessoas e artistas se apropriam diariamente [7]. Projectos site-specific ou simplesmente transeuntes caminhando cruzam-se e dialogam entre si. A performance quotidiana entra assim para um espaço privado.

As características espaciais da Turbine Hall permitiram que mesmo sem o consentimento da curadoria do Tate Modern - mas aproveitando o cariz público do local - se desenvolvessem as várias iniciativas de cariz artístico. O facto de o espaço ser “aberto” a todas as galerias permitia a visibilidade que o grupo queria para as suas acções, que teriam que ser efémeras e actuar no local por períodos de tempo reduzido devido aos constrangimentos causados à Tate.

Perante a efemeridade das propostas, a vertente documental revela-se extremamente valiosa, permitindo que as iniciativas possam perdurar no tempo e continuar a sua acção, quer cívica quer como objecto artístico.

 

 

The Gift, performance realizada no dia 7 de Julho de 2012 na Turbine Hall, pretendia oferecer a pá de uma hélice eólica à exposição permanente do Tate. A iniciativa levada acabo por mais de 100 membros do colectivo doava este presente à nação, simbolicamente “dado para benefício público”, ao abrigo das “Disposições dos Museus e Galerias Act 1992”. A lei a partir da qual a performance foi idealizada acabou por não ser tida em conta pelos curadores da Tate que recusaram aceitar a pá da hélice, após deliberação em Setembro de 2012.

O vídeo produzido pelo colectivo mostra-nos o percurso iniciado na margem norte do rio Thames, perante o olhar expectante dos transeuntes, passando pela Millennium Bridge, que termina junto à entrada do Tate Modern. Torna-se especialmente interessante o momento em que a performance cruza a linha ténue que divide o espaço público da esfera pública.

Os seguranças do museu surpreendidos com o objecto e com a iniciativa tentam coibir os artistas de entrar. Contudo revelam-se incapazes e a “pá éolica”, com 16,5 metros e uma tonelada e meia, entra na Turbine Hall. Durante algumas horas o objecto interpelou os visitantes do museu e aqueles que se cruzaram com o objecto, até ao momento em que os funcionários do museu retiraram a “obra” da “praça”.

Ao longo dos últimos seis anos vários foram os momentos em que o colectivo se apropriou de forma efémera e informal da Turbine Hall. São disso exemplo as seguintes intervenções: Art Not Oil, 2010; Dead in the water, 2010; Sunflower, 2010; The exorcism of BP, 2011; Floe Piece, 2012; The Gift, 2012; All Rise, 2013; Hidden Figures, 2014; Time Piece , 2015; e, Tate is Liberate from BP, 2016. As restantes intervenções do colectivo foram realizadas em outros espaços da esfera pública dos museus Tate: Licence to Spill, 2010, Tate Britain; Collapse, 2010, British museum; Human Cost, 2011, Tate Britain;Tate a Tate, 2012; Parts per Million, 2013, Tate Britain; The reveal, 2015, Tate Britain; 5th Assessment, 2015, Tate Britain; e, Birthmark, 2015, Tate Britain.

Sem prejuízo das restantes iniciativas, interessa-nos aqui destacar a performance Licence To Spill, que decorreu no dia 28 de Junho de 2010, no Tate Britain.

Comemorava-se os 20 anos de apoio aos museus Tate por parte da BP, na festa anual de Verão da empresa, quando o colectivo se reuniu para “espalhar petróleo” no Tate Britain e com isso chamar mais uma vez a atenção dos participantes para os desastres ambientais causados pela empresa.

Depósitos com petróleo com o símbolo da BP representavam uma metáfora para o petróleo derramado no Golfo do México, após a explosão da plataforma Deepwater Horizon, em Abril de 2010 e, que à época da performance, continuava sem estar completamente estancada. Um desastre com inúmeras repercussões ambientais e que causou a morte de 12 funcionários da plataforma.

Às 19h15m, alguns elementos do colectivo aproximam-se da entrada do museu e, ainda no exterior, no espaço público, começam a derramar petróleo pelo chão, perante o olhar perplexo dos que fogem e dos que assistem. Enquanto isto, outros elementos espalham sacos com penas para cima do petróleo derramado. Os seguranças, perplexos, pouco fazem perante a surpresa.

Às 19h20m, no interior do museu, duas performers com largos vestidos de gala passeiam-se pela festa e preparam-se para “derramar ouro negro” sobre os pés dos ilustres convidados, enquanto gritam e chamam à atenção. Perante a performance, alguns convidados perguntam ao repórter: “ Is this art? ... If this is art, it's really good art.” [8]

 

 

 

Contudo nem todos os comentários foram de aplauso. Algumas pessoas não ficaram satisfeitas perante a exposição e a descredibilização causada à empresa petrolífera, outros entenderam que não são modos de protesto ou de “fazer arte”.

Os minutos seguintes do vídeo mostram os funcionários da Tate a isolarem a parte do museu intervencionada e a tentarem limpar o petróleo com grande dificuldade. As imagens, apesar das óbvias diferenças, lembram as dificuldades sentidas para limpar ambientes afectados por desastres petrolíferos.

Outras acções do colectivo Liberate Tate ou de outros artistas teriam enquadramento neste artigo, o que comprova a ideia que se foi introduzindo no início do capítulo: que a arte, a cidade, o activismo e a população têm surgido ao longo dos últimos anos cada vez mais articulados.

A efemeridade e a informalidade com que estas iniciativas se instalam nos espaços da esfera pública levam a uma constante (re)descoberta dos lugares por onde circulamos diariamente, contribuindo assim para uma forte dinâmica na cidade, nas suas diferentes camadas de codificação, da mesma forma que vêm contribuindo de forma activa para a criação de sentido crítico junto de públicos e população.

Concluímos referindo que no dia 11 de Março de 2016 a Tate anunciou que os apoios da BP aos museus Tate tinham chegado ao fim. Contudo a acção cívica do colectivo Liberate Tate não terminou. A iniciativa continua agora em outros museus que são patrocinados por empresas petrolíferas.

We did this with our determination, commitment, stamina, tenacity, audacity, outrage, creativity, artistic craft, deep ecology and soulful collaboration. We did this with approximately 75 litres of molasses, 25 litres of sunflower oil, 20 helium balloons, 15 whispered hours of court transcripts, 1 tonne of arctic ice, 50 tubes of black paint, one 16.5 metre wind turbine blade, 1 portable toilet, 20 black sleeping sacks, 600 sticks of willow charcoal, 60 carefully selected texts, 60 millilitres of black tattooing ink, 600 black latex gloves, and 100 or so black veils – including one at 64 square metres. ” [9]

We did this together. We did this with Art. We did this as Art. ( Liberate Tate , 11 de Março 2016)

 

 

3. Conclusão

Em 1968, Lefebvre define, no seu livro O Direito à Cidade, os cidadãos como “principais protagonistas” da cidade construída – o ponto da vida colectiva; e assume que somos nós quem tem o direito de fazer as nossas cidades através de acções à micro-escala. Espaços públicos e espaços privados pertencentes à esfera pública são, por natureza, os palcos do quotidiano e, conforme diversos autores têm salientado (Jacobs, 1961; Miles, 1997; Costa e Lopes, 2015), um dos elementos mais preponderantes para a vitalidade urbana, onde é importante a existência de uma diversidade de acontecimentos que transformem a cidade num organismo vivo e vibrante. Nos últimos anos, as transformações sócio-económias, colocaram novamente em discussão o conceito de ‘direito à cidade', centrando-se em torno do modo como o acesso aos seus territórios está a ser restringindo, alterado ou proibido, através mecanismos de competição económica (Saskia Sassen, 2014; Raquel Rolnik, 2015).

Movimentos sociais espontâneos e orgânicos surgem neste contexto, reivindicando uma maior participação na construção da sociedade (Harvey, 2012; Emanuel Castells, 2013). Ocupando espaços da esfera pública (públicos e privados), físicos e virtuais, estes grupos têm contribuído para uma sociedade mais crítica.

Uma visão produtivista da acção social tenta em inúmeros momentos descredibilizar os movimentos sociais, por não atingirem todas as reformas a que se propõem. Contudo interessa sublinhar, não os resultados finais como um objecto, mas todo um processo de discussão que se desenvolve nestes momentos de participação-acção. A luta contra a BP por parte do colectivo Liberate Tate é apenas uma das inúmeras disputas que movimentos sociais, neste caso “artísticos”, levam a cabo nas diversas partes do globo.

Não sendo a solução para os problemas da sociedade, iniciativas artísticas que apelam à participação cívica da população podem tornar-se importantes armas democráticas contra opressões, controlos, sistemas hegemónicos ou repressivos vigentes por todo o mundo. Na segunda metade do século XX, Guy Debord e o grupo Internacional Situacionista defendiam que pequenas iniciativas artísticas poderiam contribuir para a construção da sociedade, abolindo mesmo o papel da arte, tornando-se esta a vida quotidiana.

Os anos seguintes (do término da Internacional Situacionista até à contemporaneidade) não provaram a total união entre a arte e as acções quotidianas. Contudo, acções “revolucionárias” (Debord, 1972) e “artísticas” que se misturam com a vida real (Kaprow, 1959) têm contribuindo para lutas activas e para a melhoria da sociedade civil.

Não obstante, deve ter-se em consideração as distâncias entre a arte activista/ participativa e o “espectáculo”, se é que existe separação entre estes conceitos numa sociedade cada vez mais performativa em cada acção humana. Aqui, o conceito de participação deverá ser destacado e analisado, visto que o modo e o envolvimento dos intervenientes contribuem para que o processo de construção dos ideais seja participado e democrático, e não apenas uma forma artística contemporânea. Com isto não se pretende dizer que a arte não deverá (ou poderá) ter apenas um fim estético per si, mas antes que não deverá instrumentalizar conceitos como ‘participação' ou ‘participado' se essa não for a charneira do desenvolvimento do projecto.

Assim, questionamos se serão as iniciativas promovidas pela Liberate Tate activistas/ participadas, ou apenas parte de um espectáculo. Estarão este tipo intervenções artisticas também a ser absorvidas pela sociedade do espectáculo?

Talvez aqui a resposta esteja na efemeridade, na informalidade, nas discussões que se proporcionaram e no pretexto que as estimula, quer em termos éticos, quer políticos. Será isso que as diferencia de intervenções artísticas que apresentam apenas um objecto com fim estético, desvirtuando uma real participação e discussão (isto apesar de interessantes objectos estéticos terem sido idealizados e produzidos pelo colectivo). Contudo, os limites são cada vez mais ténues, se é que existem. No limite, diríamos que tudo é espectáculo, independentemente do seu fim.

O colectivo Liberate Tate conseguiu o seu objectivo ao afastar a empresa British Petroleum do apoio aos museus Tate. As diversas iniciativas levadas a cabo pelo colectivo contribuíram para um maior conhecimento e engajamento da sociedade civil relativamente aos propósitos de uma empresa petrolífera ‘limpar' a sua imagem através de mecenato artístico.

Concluímos referindo que a arte e a cultura podem ser instrumentos de contemplação (estética) e participação (acção), sem que uma invalide a outra, e importantes armas na construção de uma sociedade civil participada. O modo como o colectivo anunciou, em 2016, o fim da ligação da BP aos museus Tate - referindo que o trabalho do colectivo não terminou e será continuado em outros museus apoiados por petrolíferas - é um bom exemplo de como micro-acções artísticas podem ser importantes ‘armas' para a uma construção cívica mais consciente.

 

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Received: 23-10-2018; Accepted: 28-12-2018.

 

NOTES

[2] Tate é o museu nacional de arte moderna do Reino Unido, sendo composto por quatro galerias: Tate Britain, Tate Liverpool, Tate ST Ives e Tate modern.

[3] Informação sobre o colectivo Liberate Tate disponível em http://www.liberatetate.org.uk/.

[4] Estrutura de vidro adoçada sobre o edifício pré-existente.

[5] A British Petroleum é ainda inúmeras vezes acusada de utilizar a estratégia de greenwashing para fomentar nos consumidores uma ideia de empresa ecológica desviando a atenção dos impactos negativos derivados da sua acção. Entre várias acções de marketing destaca-se a mancha verde e o girassol estilizado no seu logotipo.

[6] Um conjunto de eventos realizados ou percebidos em mais de um tempo e lugar. O seu ambiente material pode ser construído, tomado diretamente do que está disponível ou ligeiramente alterado; assim como suas atividades podem ser inventadas ou comuns. Um happening, ao contrário de uma peça de teatro, pode ocorrer no supermercado, ao longo da estrada, sob uma pilha de trapos e na cozinha de um amigo, de uma só vez ou sequencialmente. Se sequencialmente, o tempo pode se estender por mais de um ano. O happening é realizado de acordo com o planeado, mas sem ensaio, audiência ou repetição. É arte mas parece mais perto da vida.” N.E.

[7] A entrada para este local do museu é pública. É possível entrar no espaço sem qualquer constrangimento de índole económica.

[8] Isto é arte?... Se isto é arte, é arte muito boa.” N.E.

[9] “Fizemos isto com a nossa determinação, compromisso, resistência, tenacidade, audácia, indignação, criatividade, artesanato artístico, ecologia profunda e colaboração com alma. Fizemos isto com aproximadamente 75 litros de melaço, 25 litros de óleo de girassol, 20 balões de hélio, 15 horas de transcrições, 1 tonelada de gelo ártico, 50 tubos de tinta preta, uma lâmina de turbina eólica de 16,5 metros, 1 casa-de-banho portátil, 20 sacos-cama pretos, 600 paus de carvão de salgueiro, 60 textos cuidadosamente selecionados, 60 mililitros de tinta preta de tatuagem, 600 luvas de látex preto e 100 ou mais véus negros - incluindo um com 64 metros quadrados.” N.E.

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