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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.38 Lisboa jun. 2019

https://doi.org/10.15847/citiescommunitiesterritories.jun2019.038.edit-doss 

EDITORIAL

 

O estado da habitação: introdução ao dossier

 

Marco AllegraI; Simone TulumelloII

[I]Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Portugal. e-mail: mallegra@ics.ulisboa.pt.

[II]Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Portugal. e-mail: simone.tulumello@ics.ulisboa.pt.

 

 

 

O estado da habitação

Os últimos anos foram marcados por transformações rápidas e profundas no país. Saído de uma grave crise económica, a qual resultou em sérias consequências sociais, Portugal tornou-se subitamente num caso de estudo de recuperação económica (nomeadamente quanto à capacidade de pôr em prática políticas alternativas à austeridade) e de inovação política (com a convergência inédita, na democracia portuguesa, dos partidos à esquerda).

Convertendo-se num “objeto” de debate, Portugal suscita hoje o confronto entre diferentes perspetivas: as que consideram que o país conseguiu conciliar, nos últimos anos, o crescimento da economia com a recuperação das políticas públicas e a recomposição do bem-estar social (Jones, 2017; Alderman, 2018); e as que sugerem que, apesar do crescimento económico, as desigualdades estruturais e as desigualdades produzidas pela crise tendem a persistir (ver, por exemplo, Teles, 2018).

É neste quadro que se deve analisar a questão da habitação, a qual reflete muitas das tensões e contradições que emergem das transformações recentes que atravessaram Portugal. De facto, se já há muito que movimentos sociais como a associação Habita (ver Di Giovanni, 2017) sugeriam que algo falhava na provisão de habitação, em 2017 tornou-se claro que o rápido crescimento económico se fazia acompanhar por novas crises de habitação. A crise habitacional alcançou finalmente o estatuto de senso comum com a publicação do relatório da visita a Portugal da Relatora Especial da ONU pelo Direito à Habitação Adequada (Fahra, 2017). [3]Em linha com grande parte da literatura nacional crítica, o relatório traça um quadro bastante duro do estado da habitação em Portugal, realçando as falhas históricas das políticas habitacionais públicas, as profundas desigualdades sociais no acesso à habitação (com atenção especial dedicada à racialização das comunidades afrodescendentes e ciganas) e as diferenças na estabilidade habitacional garantida por diferentes modelos de acesso (nomeadamente quanto à propriedade versus arrendamento).

Em suma, poderá considerar-se que o estado presente da habitação em Portugal se caracteriza por um acumular de novas crises sobre problemas históricos e estruturais.

Por um lado, é possível reconhecer na genealogia da crise habitacional o lugar histórico peculiar que a habitação ocupa no estado social português – o seu “pilar fraco” em comparação com a saúde, a educação e a segurança social a partir de 1974, com uma reduzida expressão em termos de financiamento e de provisão direta; mas, ao mesmo tempo, a sua “expressão forte” quando o Estado estimula a aquisição de casa própria através da bonificação de juros, num quadro de financeirização e de mercadorização do alojamento (ver Serra, 2002; Santos, 2019).

Por outro lado, o recente ciclo de crise económica, austeridade e retoma refletiu-se em muitas das contradições estruturais que marcam a questão da habitação em Portugal: a habitação esteve no centro da crise económica pelo seu peso preponderante na dívida privada; e transformou-se em objeto de profundas reformas nos anos da austeridade (com a liberalização do arrendamento, a desregulação do ordenamento do território e a criação de regimes fiscais favoráveis à especulação imobiliária). Mais recentemente, a centralidade que o imobiliário e o turismo têm assumido no crescimento económico refletem-se na explosão dos preços da habitação e na súbita queda de disponibilidade de fogos em arrendamento de longa duração.

Conceitos como “gentrificação”, “turistificação” e “financeirização da habitação” [4] descrevem fenómenos recentes que se articulam com a persistência, e em alguns casos com o agravamento, de diversos problemas antigos: situações de precariedade e de informalidade habitacional; degradação da qualidade do parque habitacional público e sua segregação socioespacial (ver Carreiras, 2018); e falta de qualidade do edificado habitacional nos grandes centros urbanos – sobretudo nas áreas que mais carecem de reabilitação.

Face a um complexo panorama, este dossier temático de Cidades: Comunidades e Territórios pretende contribuir para a caracterização do estado da habitação em Portugal e ao mesmo tempo colocar perguntas e oferecer algumas respostas, especialmente em relação à necessidade e potencialidade de ação pública e coletiva – isto é, do Estado e da política em sentido lato. O dossier é composto por três partes. A primeira parte é composta por quatro ensaios, três entrevistas e dois comentários, e resulta da experiência do projeto de investigação “exPERts – Making sense of planning expertise: housing policy and the role of experts in the Programa Especial de Realojamento (PER)” e, especialmente, dos debates surgidos no primeiro Fórum da Habitação organizado pelo mesmo [5]. A segunda parte recolhe dois artigos resultantes de uma chamada aberta para este dossier temático e cujas perspetivas desenvolvidas complementam a reflexão anterior. Finalmente, o dossier encerra com a tradução de um texto de autoria de Manuel Aalbers e Brett Christophers, que oferece uma perspetiva teórica, a nosso ver crucial, para um enquadramento do problema da habitação no presente global. Esta introdução é complementada por duas secções: uma introdução à onda de reformas e políticas lançadas desde 2017, que serve de pano de fundo ao dossier temático, e uma apresentação dos textos que o compõem.

 

Uma nova geração de políticas de habitação?

O ano de 2017, o qual viu a publicação do relatório da Relatora Especial da ONU pelo Direito à Habitação Adequada, foi um ponto de viragem também na perspetiva das políticas de habitação. Nesse ano o governo socialista reconheceu a necessidade de uma nova ação pública neste domínio. A nomeação de uma Secretária de Estado para a Habitação, Ana Pinho, no verão de 2017, foi simbolicamente importante e permitiu abrir uma ampla discussão e renovadas perspetivas de intervenção pública. Nos dois anos seguintes, a ação do governo – e, secundariamente, da Assembleia da República – foi muito significativa de um ponto de vista “quantitativo”, proporcionando uma panóplia de reformas e de novos programas.

O elemento crucial da estratégia do governo é a chamada Nova Geração de Políticas de Habitação (NGPH) [6], sendo a sua componente de promoção direta o programa 1º Direito, o qual prevê a criação de instrumentos financeiros de promoção do acesso à habitação a indivíduos que vivem em situação habitacional indigna. No fundo, o 1º Direito pretende substituir o PER (Programa Especial de Realojamento), lançado nos anos 90 e que constituiu o último programa relevante de promoção direta concretizado pelo Estado central, em articulação com os municípios nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. A aprovação do 1º Direito foi precedida pelo lançamento de um inquérito nacional às necessidades de habitação (IHRU, 2018), através do qual se chegou à conclusão de que existem pelo menos 26 mil famílias a precisar de realojamento no território nacional [7]. Quando comparado com o seu antecessor, o PER, o 1º Direito incorpora uma série de inovações. É o caso, por exemplo, da disponibilização de condições mais favoráveis quando se opta pela regeneração em vez de construção nova; ou da possibilidade de famílias individuais e comissões de moradores se candidatarem diretamente ao programa. Os municípios que queiram aceder aos respetivos fundos terão, por sua vez, de elaborar uma Estratégia Local de Habitação (ELH), que se constitui como o principal instrumento de governança do programa (ver Allegra, Colombo, este dossier).

A NGPH integra um conjunto de outras medidas: o Programa de Arrendamento Acessível e outros mecanismos de estímulo fiscal aos contratos de arrendamento de longo prazo; um conjunto de subsídios ao arrendamento; apoio financeiro à mobilidade para territórios de baixa densidade habitacional; um programa-piloto integrado e participado pela integração socioterritorial dos bairros de habitação pública; pacotes de estímulo à reabilitação urbana (incluindo a criação do Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado); alterações legislativas ao regime de arrendamento urbano, no sentido de proteger populações especialmente vulneráveis; e ainda a disponibilização de dados atualizados sobre os valores de compra e venda. Finalmente, algumas medidas pontuais foram já aprovadas: um novo regime híbrido de acesso à habitação estável (Direito Real de Habitação Duradoura); um instrumento legal que permite às câmaras municipais regulamentar o Alojamento Local em áreas de forte pressão turística (Lei 62/2018); e alterações aos regimes regulamentares e fiscais para fundos de investimento no imobiliário. [8]

Cada um destes programas mereceria, por si só, uma análise atenta. Contudo, considerando as ambições declaradas pelo Governo, uma questão permanece em aberto: conseguirão estas várias medidas consubstanciar uma verdadeira estratégia e política nacional que garanta o direito à habitação? As respostas que hoje se exigem para o sector terão de ser efetivamente robustas. Os ensaios do dossier abordam temas fundamentais neste sentido, sendo o objetivo desta introdução destacar alguns pontos críticos que irão marcar a implementação da NGPH e de outras políticas direta ou indiretamente relacionadas com o tema da habitação.

O primeiro ponto crucial relaciona-se com os recursos que apoiarão os programas identificados na NGPH (ver Tulumello, este dossier). A NGPH aponta o objetivo ambicioso de garantir «o acesso universal a uma habitação adequada» e de introduzir uma transformação radical na governança do sector da habitação. Esta ambição concretiza-se na referência a indicadores quantitativos de médio prazo (definido como oito anos), nomeadamente «aumentar o peso da habitação com apoio público na globalidade do parque habitacional de 2% para 5%» (+ 170.000 fogos) [9]; e «baixar a percentagem de população que vive em agregados familiares com sobrecarga das despesas com habitação no regime de arrendamento de 35% para 27%» (Resolução do Conselho de Ministros n.º 50-A/2018, anexo).

Durante o ano de 2018, o grupo parlamentar do Partido Socialista, comentando positivamente o lançamento da NGPH, pediu expressamente que houvesse «uma tradução orçamental adequada ao cumprimento [das metas quantitativas da NGPH] nos próximos orçamentos do Estado, uma vez que o OE 2018 não as incorpora[va], apresentando para a área da habitação valores incompatíveis com esta ambição» (Soares e Dinis, 2018). Por isso, será necessário considerar atentamente as vozes que apontam que os fundos atribuídos às políticas de habitação no Orçamento de Estado de 2019 são insuficientes para alcançar os objetivos declarados da NGPH (ver Silva, 2019) ou sequer para sinalizar o início de uma mudança radical nas políticas de habitação.

A história das políticas de habitação oferece-nos aqui uma lição: apesar da importância dos debates sobre as abordagens, a qualidade e a eficácia dos programas de habitação implementados ao longo dos anos, esquecemos muitas vezes que durante décadas a grande parte do financiamento à habitação não se destinou a intervenção direta, mas sim a subsidiar a compra de habitação própria (IHRU, 2015).

O segundo ponto crucial assenta na análise dos diferentes horizontes temporais, especialmente no contexto presente, no âmbito da habitação. Uma primeira constatação, de curto prazo, diz respeito à perceção difusa da urgência do problema da habitação. Se o alastrar da crise habitacional comporta atualmente uma pressão inédita sobre as populações urbanas, com riscos muito concretos – alguns já fenómenos em curso – de transformação das composições sociais das cidades no sentido de uma maior segregação e expulsão de muitos grupos das áreas centrais; é também verdade que esta urgência pode representar um estímulo e uma janela de oportunidade para intervir num problema que nem sempre grande parte da opinião pública considerou estratégico.

Um segundo horizonte, de médio prazo, diz respeito às flutuações do mercado da habitação e do sistema político-eleitoral. Por um lado, a dinâmica do mercado (e as incógnitas que se relacionam com a flutuação dos investimentos no sector do imobiliário) representa uma das condicionantes fundamentais no efeito que vários instrumentos de políticas poderão ter no futuro, inclusive na promoção do arrendamento acessível e na mobilização de investimentos privados de apoio à ação pública no sector. Por outro, o desenvolvimento da NGPH e demais políticas estará obviamente sujeito aos ciclos políticos e eleitorais nacionais e locais – fatores que podem pôr em causa a iniciativa do governo e provavelmente motivaram a escolha, por parte da Secretaria de Estado da Habitação, de ativar imediatamente programas exequíveis, com o objetivo de apresentar resultados tangíveis.

O último horizonte, de longo prazo, diz respeito à ambição declarada da NGPH de desenvolver “políticas” e não simplesmente financiar “programas”. O sucesso das primeiras pressupõe não só fundos e programas bem desenhados, mas também: percursos de aprendizagem institucional, formação de capital humano qualificado, mecanismos alargados de debate e participação (ver Allegra e Colombo, este dossier; Allegretti e Dias, este dossier); melhor compreensão do papel da academia e do ativismo no pensamento sobre políticas públicas (ver Alves e Falanga, este dossier); e, inevitavelmente, mecanismos de monitorização e avaliação para as necessárias correções de rota.

Na nossa opinião, as ambições do governo só poderão ser realizadas através da consideração e conciliação positiva destas dinâmicas temporais. Importa sublinhar que o passado das políticas de habitação mostra como a urgência percecionada da questão da habitação pode estimular ações neste campo, mas ao mesmo tempo incentivar intervenções casuísticas e pontuais – foi este, por exemplo, o caso do PER nos anos 90 (ver Tulumello et al., 2018).

Todavia, para construir uma verdadeira “nova geração” de políticas de habitação será necessário aproveitar esta janela de oportunidade para fornecer uma resposta de longo prazo aos desafios do sector. A aprovação de uma Lei de Bases de Habitação poderia ajudar a fortalecer uma resposta positiva a estas questões, a reforçar e a operacionalizar o Direito à Habitação, consagrado na Constituição da República Portuguesa (art. 65). Porém, após mais de um ano de discussão e de um período de consulta pública, existem agora três propostas de lei diferentes apresentadas pelos partidos da maioria (PS, BE e PCP) – o que deixa em aberto muitas dúvidas.

Finalmente, o terceiro ponto crítico relaciona-se com a correspondência entre ação pública e mercado. Um dos fatores inovadores da NGPH aponta precisamente para uma maior integração entre estas duas dimensões (a qual se manteve praticamente ausente nas políticas do passado, essencialmente focalizadas sobre a promoção pública ou o suporte indiscriminado ao mercado), bem como na reflexão sobre a governança do sector. Numa perspetiva neoliberal, a NGPH visa, por um lado, criar condições favoráveis à mobilização de capitais privados (famílias e investidores), particularmente no âmbito da reabilitação, com o objetivo de aumentar a oferta de habitações; e, por outro lado, aposta na introdução de mecanismos capazes de melhorar a qualidade dos mercados, por exemplo reduzindo as assimetrias de informação – é este o caso da disponibilização de dados sobre os preços do imobiliário.

Esta inovação representa, em termos conceptuais, um passo na direção de uma governança mais integrada do sector, assente no pressuposto de que a diversificação das fontes de financiamento das políticas de habitação permitirá aumentar a oferta de habitações e melhorar o funcionamento do mercado imobiliário, o que, indiretamente, facilitará o acesso à habitação. De facto, segundo a Secretária de Estado Ana Pinho, a ideia de que o Orçamento de Estado 2019 não destina fundos suficientes deriva precisamente da ausência de consideração do papel que instrumentos financeiros podem ter na multiplicação da dotação orçamental do estado: «quando se faz a conta, quando se soma o OE da habitação está-se a deixar de fora um número muito significativo de instrumentos de política com potencial de investimento enormíssimo» (Lusa, 2018).

Contudo, os resultados desta aposta são dificilmente previsíveis. Se o objetivo da NGPH é, no fundo, a mobilização de capitais privados para alcançar os objetivos de uma política pública (ou seja, garantir o acesso universal à habitação), a atual situação de enorme pressão sobre o mercado imobiliário coloca-nos perguntas difíceis. Não será inútil relembrar que, no mesmo discurso em que declarava a necessidade de recolocar a habitação na agenda política, o Primeiro Ministro António Costa frisava que «não estava em causa a liberalização do mercado» (Lusa, 2017). Como refere um provérbio muito apreciado pelos economistas, «podes levar um cavalo até à água, mas não o podes obrigar a beber». Assim, num contexto de lucros expressivos resultantes de investimentos especulativos no imobiliário, será possível atrair investimentos privados para projetos onde os lucros são relativamente reduzidos? Por outro lado, se e quando esses capitais chegarem, serão os atores privados a apoiar indiretamente a ação pública no sector, como a NGPH pressupõe – ou será o orçamento de estado a financiar ulteriormente as dinâmicas de gentrificação e turistificação que ocorrem em contextos urbanos, como as cidades de Lisboa e Porto? Por outras palavras: como impedir que os fundos públicos sejam utilizados para reabilitar prédios onde surgirão novos hotéis e alojamentos locais?

Finalmente, por não tencionar apostar numa regulação do mercado, o governo parece ter a intenção de mobilizar o capital privado como instrumento para acalmar o mercado [10]. Parece-nos, porém, que esta é uma visão fortemente economicista de acordo com a qual o aumento da oferta determina, por si, uma redução dos preços; visão, diga-se, que não parece ter funcionado num mercado muito específico como o da habitação – por exemplo, não explica porque é que os preços mais altos de sempre na habitação, em Portugal e em muitos outros países, se verificaram exatamente nos anos de maior produção, antes da crise de 2007/2008. E voltamos, assim, à questão da regulação do mercado, sem a qual dificilmente o investimento privado poderá levar a um mercado de habitação mais acessível.

 

Estrutura do volume

Este dossier tem como principal objetivo avançar algumas respostas às questões que fomos levantando ao longo desta introdução – e, justamente, abrir outras que aqui não foram abordadas. A primeira parte, como referido anteriormente, resulta do trabalho do projeto exPERts. Este é inaugurado por um artigo da autoria de Simone Tulumello, que questiona o papel do Estado no presente da habitação, focando três temas essenciais: (i) a necessidade de uma robusta regulação do mercado; (ii) as perspetivas para o financiamento da intervenção pública; e (iii) o papel do planeamento urbano e do ordenamento territorial. Ao adotar uma perspetiva crítica, Tulumello visa problematizar alguns temas do debate público e político sobre habitação, como a ideia da falta de recursos públicos – especialmente face aos enormes benefícios fiscais que, histórica e presentemente, foram atribuídos a investidores privados – e a progressiva financeirização do sistema de habitação.

De seguida, Marco Allegra e Alessandro Colombo debruçam-se sobre o tema da governança das políticas da habitação, dando particular atenção ao caso da Nova Geração de Políticas de Habitação e aos fatores críticos da sua implementação, com destaque para as parcerias locais visadas por múltiplos programas. Allegra e Colombo questionam as potencialidades e os pontos críticos da NGPH, focando-se no papel dos atores em jogo, nas suas responsabilidades e competências, bem como nos modelos de produção de conhecimento.

A natureza política da produção do conhecimento é precisamente o tema central do ensaio seguinte, da autoria de Ana Rita Alves e Roberto Falanga, que apresentam uma reflexão sobre os encontros (e desencontros) entre academia e política no campo da habitação. Alves e Falanga refletem sobre duas formas diferentes de engajamento – uma que definem como “institucional” (práticas de consultoria, monitorização e avaliação das políticas públicas) e uma outra que caracterizam como “periférica” (práticas de investigação ação e ativismo académico) – e os diferentes valores dados às duas formas no contexto universitário.

No último ensaio do dossier, Giovanni Allegretti e Nelson Dias refletem sobre o potencial da integração de práticas de participação cívica na construção das políticas de habitação. Depois de apresentarem uma tipificação de práticas baseada em experiências internacionais, Allegretti e Dias focam-se no sistema “incompleto” de participação desenvolvido recentemente em Portugal, e nas suas interseções com as estratégias da NGPH.

A seguir, Rita Ávila Cachado, Eduardo Ascensão e Ana Estevens apresentam três entrevistas: a primeira a Ana Pinho, Secretária de Estado da Habitação, que tem trabalhado em muitas das políticas debatidas neste volume; a segunda a Rita Silva, investigadora e membro da direção da associação Habita, a qual tem tido um papel fulcral no desenvolvimento recente das redes de mobilizações ativistas sobre o tema do direito à habitação; e a terceira à Paula Marques, vereadora da Habitação da Câmara Municipal de Lisboa, cidade no centro das presentes crises habitacionais nacionais. As perspetivas profundamente diferentes das três entrevistadas representam claramente, a nosso ver, o recentrar da habitação no coração do debate e do conflito político nacional.

A primeira parte encerra com dois comentários, por João Ferrão e Nuno Serra, que sumarizam muitas das questões e inquietações recorrentes ao longo dos vários ensaios. Os dois comentários reconhecem os passos feitos recentemente na tentativa de construir uma política de habitação estruturada e completa; e ao mesmo tempo a existência e persistência de dúvidas e problemáticas, especialmente pela profundidade da crise habitacional presente. Ferrão sublinha que podemos observar uma interessante trajetória, porém ainda excessivamente em aberto; Serra considera que o Estado se encontra num momento de encruzilhada face aos desafios da habitação – duas descrições que nos parecem muito aptas a sumarizar a ambiguidade da conjuntura presente.

A segunda parte deste dossier resulta de uma chamada para artigos sob a temática do estado presente da habitação em Portugal e oferece perspetivas de investigação complementares. O trabalho de Elena Taviani reconstrói, através de uma revisão sistemática da literatura, a trajetória residencial das comunidades afrodescendentes na Área Metropolitana de Lisboa desde os anos 1960. Ao demonstrar a exclusão dessas comunidades dos processos de decisão política, Taviani reflete sobre a interseção entre políticas públicas e marginalização sociogeográfica. Em seguida, Joana Mourão analisa vinte anos de políticas públicas de apoio à regeneração urbana, dando particular atenção ao seu impacto no património construído, para enfatizar como a questão da qualidade do edificado tem constituído um importante obstáculo à universalização do direito à habitação nas áreas urbanas centrais.

Finalmente, a terceira parte apresenta a tradução para Português de um relevante artigo de Manuel Aalbers e Brett Christophers, no qual os autores adotam uma perspetiva política económica e articulam várias tradições da literatura à interseção entre capitalismo e habitação – nomeadamente focando-se nos temas do capital como processo de circulação, do capital como relação social e no capital como ideologia. Argumentando contra a separação das análises sobre habitação enquanto política pública (típica dos housing studies internacionais) e habitação como mercado (dominada pelos economistas neoclássicos), Aalbers e Cristophers demonstram a necessidade de compreender a habitação como sendo uma componente fulcral das dinâmicas do capitalismo contemporâneo.

 

Agradecimentos

Este ensaio e o presente dossier temático resultam das atividades do projeto “exPERts – Making sense of planning expertise: housing policy and the role of experts in the Programa Especial de Realojamento (PER)”, coordenado por Marco Allegra e financiado pela FCT (PTDC/ATP-EUR/4309/2014). Estamos gratos à equipa editorial da revista Cidades, Comunidades e Territórios pelo suporte ao longo do processo; e a Joana Catela e João Ferrão pelos comentários ao texto do presente ensaio.

 

Referências bibliográficas

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Carreira, M. (2018), “Integração socioespacial dos bairros de habitação social na Àrea Metropolitana de Lisboa: Evidências de micro segregação”, Finisterra, 107, pp. 67-85.

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NOTES

[3] O relatório não está disponível em Português, mas sim um comentário crítico bastante completo (Morais et al., 2018).

[4] Financeirização é um termo utilizado para referir a progressiva transformação da habitação em ativo a ser utilizado para extrair lucro via especulação financeira.

[5] O “Fórum da Habitação: Ausências Passadas, Presenças Futuras” teve lugar no ICS-ULisboa em 8 de janeiro 2018. Ver https://expertsproject.org/.

[6] Ver http://www.portaldahabitacao.pt/web/guest/nova-geracao-de-politicas-de-habitacao.

[7] É necessária alguma cautela sobre este dado, fruto de um inquérito conduzido em poucos meses e substancialmente baseado nos dados que as câmaras municipais já possuíam. Assim, não é possível excluir a real necessidade de realojamento ser ainda maior.

[8] Ver, respetivamente, https://www.portugal.gov.pt/pt/gc21/comunicacao/comunicado?i=conselho-de-ministros-aprova-diplomas-sobre-habitacao ; Lei 62/2018; e art. 19 da Lei 71/2018 (OE2019), 19/2019.

[9] A associação Habita (Silva, 2019) tem sublinhado como esta formulação não esclarece se o aumento será assente em investimentos diretos na habitação pública ou se esses 5% irão incluir todos os casos de apoio direto ou indireto de acesso ao mercado.

[10] Como, por exemplo, sugerido pela própria Secretária do Estado Ana Pinho durante uma entrevista de 28 de março no programa radiofónico Antena Aberta (Antena 1). Disponível em http://www.rtp.pt/play/p469/e397591/antena-aberta.

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