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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.38 Lisboa jun. 2019

https://doi.org/10.15847/citiescommunitiesterritories.jun2019.038.int03 

ENTREVISTA

 

O património público dever ser usado para responder às solicitações de cada tempo: Entrevista com Paula Marques, Vereadora da Câmara Municipal de Lisboa

‘O património público dever ser usado para responder às solicitações de cada tempo’: Interview with Paula Marques, City Councilor of Lisbon Ana Estevens

 

Ana Estevens I; Eduardo AscensãoII; Rita CachadoIII;

[I]Centro de Estudos Geográficos, Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, Universidade de Lisboa. e-mail: anaestevens@campus.ul.pt.

[II]Centro de Estudos Geográficos, Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, Universidade de Lisboa. e-mail: eduardoascensao@campus.ul.pt.

[III]CIES-IUL, Instituto Universitário de Lisboa, Portugal. e-mail: rita.cachado@iscte-iul.pt.

 

 


 

Paula Marques é vereadora da Câmara Municipal de Lisboa, com os pelouros da Habitação e do Desenvolvimento Local. Licenciada em Teatro com pós-graduação em Ciência Política (ISCTE-IUL, 2013), ajudou a fundar o Movimento Cidadãos por Lisboa em 2007. Entre 2009 e 2013 foi assessora e deputada municipal, tendo em 2013 sido eleita vereadora como independente do Movimento Cidadãos Por Lisboa nas listas do Partido Socialista, mandato que mantém actualmente.

 

Nesta entrevista aborda questões relacionadas com o balanço do PER em Lisboa, o Programa de Renda Acessível de Lisboa, o papel dos seus pelouros no mitigar dos problemas resultantes da atual atratividade imobiliária de Lisboa e dos correspondentes processos de gentrificação, bem como quais as cidades com cujas políticas habitacionais se revê.

Começando pelo balanço do Programa Especial de Realojamento (PER), há uma narrativa de que em Lisboa já está há muito resolvido, mas no levantamento de necessidades de realojamento habitacional de 2018 do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) existem ainda cerca de 2000 famílias que a câmara indicou para realojamento...

O PER no município de Lisboa foi fechado, se não estou em erro, em 2015, com o Relatório do PER. Quando o IHRU elaborou o questionário de levantamento das necessidades habitacionais, fizemos chegar à Secretária de Estado que considerávamos que a forma como o questionário tinha sido feito era muito fechada, não permitia responder à situação atual no município de Lisboa. Isto é, aquilo que o questionário perguntava era sobre o remanescente PER. Entendo que fosse uma das preocupações do IHRU no levantamento porque havia municípios, ou ainda há municípios, que não têm o PER fechado. Por exemplo, a Amadora, Almada ou Loures precisavam de um levantamento das carências habitacionais, coisa que já não era feita desde os anos 1990. Portanto, o preenchimento do inquérito obedecia a regras rígidas. O que Lisboa fez foi: preencheu a matriz, depois fez um relatório e enviou à Secretária de Estado dizendo que matérias como a gentrificação ou a falta de habitação para a classe média tinham de entrar em linha de conta quando se faz um novo levantamento das necessidades de habitação na cidade de Lisboa. Também dissemos que fazia sentido que, passados 30 anos do primeiro levantamento, se fizesse uma análise das carências habitacionais e das condições de habitabilidade, das questões da acessibilidade, conforto térmico, conforto energético, etc. Portanto, Lisboa fechou o PER mas houve coisas que, na altura não foram consideradas PER porque eram situações de habitações tituladas, não eram assentamentos informais (ditos barracas). Identificámos todos os bairros de autoconstrução que estavam em processo de regularização ou que, tendo sido já regularizados, tinham deficientes condições de habitabilidade ao abrigo das necessidades do conforto energético e da acessibilidade. E se estou a construir habitação municipal no Bairro da Boavista, no Bairro Padre Cruz e no Bairro da Cruz Vermelha, que obedece a uma série de diretrizes da União Europeia, tinha também de identificar tudo aquilo que teria de ter melhoramentos.

Por exemplo, o Bairro São João de Brito é de autoconstrução do período pós-25 de Abril, construído em propriedade pública mas o processo não está regularizado. Nós entendemos que não são carências habitacionais de situação de pessoas que não têm casa, mas sim situações que, se queremos fazer um levantamento sério sobre a situação da habitação no país e em Lisboa, têm de ser consideradas. Outro exemplo: Lisboa tem cinco bairros do Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL) que não estavam finalizados. Num deles, o Bairro Quinta das Fonsecas e Quinta da Calçada, conseguimos há 2 anos chegar ao momento de entrega das licenças de utilização. Os outros são a Cooperativa Unidade do Povo e a Cooperativa 25 de Abril em Alvalade, que esteve 40 anos à espera de regularização; o Bairro Horizonte; a Lisboa Cooperativa Nova, na zona do Beato e Penha de França; e o Bairro da PRODAC, Norte e Sul. Na candidatura que fizemos ao 1º Direito, identificámos estes bairros como tendo condições de habitabilidade, mas estando em condições de concorrerem como proprietários residentes a financiamento do programa para melhorar as condições de habitabilidade. Portanto, identificámos o remanescente de núcleos com falta de condições de habitabilidade que não tinham sido integrados no PER, e fizemos esta ressalva de não incluir nesta análise a situação de gentrificação, seja ela decorrente da especulação imobiliária, dos vistos gold, do regime do residente não habitual e, naturalmente da questão do alojamento local. Entendemos que estas questões não estavam no levantamento do IHRU e deviam estar. O que fizemos foi submeter o formulário conforme nos solicitaram e depois enviámos o relatório com os dados que entendemos que deveríamos acrescentar.

Estes 2000 agregados são remanescentes ou é o total?

É o total destas situações que identificámos como remanescente PER que não tinha sido incorporado à data. Tem em consideração os núcleos que identificámos com necessidade de intervenção.

Guie-nos um bocadinho pelo Programa de Renda Acessível de Lisboa (PRAL). Qual é o número de candidatos? A lógica do programa passará pela ideia de mix que tem surgido nas notícias, por exemplo instalando candidatos ao programa em bairros de habitação pública? Como se gere a tensão decorrente de alguns destes não verem com agrado mudar-se para locais considerados estigmatizantes ou poverty traps e de, por outro lado, a população lá residente afirmar ter outras prioridades, tais como jardins e serviços?

Comecemos pela medida do arrendamento acessível. Em final de 2013, fizemos um pacote de emergência social com o António Costa e a Helena Roseta. Esse pacote tinha várias componentes, sendo uma delas o Fundo de Emergência Social, gerido pelas Juntas de Freguesia e duas outras medidas, oPrograma de Renda Convencionada, que é a “mãe” doPrograma de Renda Acessível, e o Subsídio Municipal de Arrendamento. Porquê? Começávamos a perceber o efeito conjugado da Lei do Arrendamento Urbano de 2012 e da liberalização do conceito do alojamento local no decréscimo de unidades. Começámos a verificar um aumento muito grande dos valores de renda e a diminuição do rendimento das famílias, por um lado. Por outro, o número de unidades para arrendamento estava a decrescer. Até 2013, se perguntassem à classe média se tinha alguma ideia de utilizar um instrumento público de apoio à habitação, não tinha, até porque historicamente a atuação do setor público em relação à habitação era para os mais carenciados. O PER é prova disso, e isto cria um estigma porque, de facto a política pública de habitação neste país foi sempre direcionada ou para os mais carenciados ou, em particular antes do 25 de Abril, para os bairros dos setores profissionais. Portanto, a classe média, até há pouco tempo, não concorria a nenhum instrumento público de apoio à habitação, até porque nós somos um país ligado à questão da propriedade, seja por uma razão ancestral, seja por o mercado de arrendamento ser uma desgraça.

Quando nos apercebemos das subidas do valor de arrendamento, baixas de rendimentos, poucas unidades a serem disponibilizadas no mercado de arrendamento, decidimos avançar com um subsídio municipal de arrendamento, que continua em vigor, e começar a utilizar o património municipal, começando pelos dispersos. Lisboa tem a organização de gestão dos bairros municipais gerido pela GEBALIS e tem património disperso. Começámos na reabilitação desse património. Em determinado momento, já com o Fernando Medina, a crise começou a agudizar-se e começámos a montar um programa de maior escala para o arrendamento convencionado, que ainda está em vigor, e o de renda acessível que entretanto começámos a montar.

O Programa de Renda Acessível vai beber à experiência da renda convencionada que estava a decorrer e começámos a fazer reabilitação direccionada. Sei que se convencionou chamar habitação apoiada, habitação social ou, anteriormente, renda precária, e se convencionou chamar habitação social, bairros sociais, mas para mim a questão da linguagem é muito importante, a questão do estigma e do preconceito em relação a determinados territórios. Portanto, chamei-lhe sempre habitação pública municipal, bairros municipais. Também tivemos essa preocupação quando criámos o programa Bairros de Intervenção Prioritária/Zonas de Intervenção Prioritária (BIP/ZIP) e não bairros críticos, apesar da consideração que tenho pela Iniciativa Bairros Críticos.

Mudar o vocabulário…

Sim, porque o vocabulário e a linguagem têm conceitos associados. Os conceitos são influenciadores de políticas e de planeamento. Daí o património público dever ser usado para responder às solicitações que se apresentam em cada tempo e que vão evoluindo com rapidez. Nós temos experiências extraordinárias do PER, 20 e tal anos depois, com sucesso absoluto na gestão e no bem-estar da população e da integração na malha urbana, na criação de comunidade e de identidade territorial. São 67 bairros municipais, grande parte deles PER. Vocês nas notícias ouvem falar eventualmente na Ameixoeira, na Alta de Lisboa, na Boavista, mas não se ouve falar de outros, muitos que são bairros de sucesso, o que tem a ver com escala, localização e diversidade de população. Os bairros de maior dimensão foram construídos onde havia terreno para construir. Podemos discutir se deveria ter sido com esta escala ou se deviam ter sido mais partidos. Na minha opinião deviam ter sido construídos núcleos de menor escala porque é mais fácil de gerir, porque não promove tanto a auto-guetização ou a guetização externa.

Vou dar-vos exemplos. Começando pelos bons exemplos que até contrariam aquilo que acabei de dizer: o Bairro Padre Cruz, até há pouco tempo o maior bairro de habitação pública da Península Ibérica, é um caso de sucesso. Tem a fase de alvenaria, já foi substituição da lusalite dos anos 1940, depois habitação dos anos 1950, 1960 e 1970, depois Programa de Intervenção a Médio Prazo (PIMP) dos anos 1980 e depois PER até 2000. É enorme, no limite da cidade, com poucos transportes. É um caso de sucesso porquê? Três razões fundamentais: primeira, tem muita mistura, não é mono-funcional do ponto de vista de estrutura social. As pessoas que vivem nas casas de alvenaria eram funcionários do Estado, ou operários, ou classe média muito baixa, classe trabalhadora. Depois a fase seguinte do PER, das mais difíceis que tivemos, a comunidade cigana de Vale do Forno e a comunidade do Bairro da Serafina, da parte das barracas, foram para lá. Mas a anterior manteve-se e, portanto, o facto de não ser mono-funcional faz a diferença. A escala é grande mas [a heterogeneidade] faz a diferença. E há o investimento da Câmara e Junta de Freguesia: o bairro Padre Cruz tem um centro cultural, um mercado que funciona, o bairro tem espaços verdes, praças, farmácias, mercearias, pequenos supermercados e isto faz a diferença.

Onde temos um caso de insucesso, na minha opinião? Na Ameixoeira, que não tem comércio, é isolado, há uma série de zonas em que as ruas não têm saída, não tem transportes, não tem espaços verdes, não tem equipamentos. São dormitórios e o comércio não se consegue sediar lá. A escala é grande e tem mono-funcionalidade. Das coisas mais difíceis de gerir é, do ponto de vista da política pública, como se faz um processo de organização do território respeitando a auto-identificação e a relação territorial e, ao mesmo tempo, tendo uma política pública que tenha como base a Constituição e que seja difusa do ponto de vista da mistura sociocultural dos territórios. [Pelo contrário,] a Ameixoeira é “a zona da comunidade cigana”, “a zona da comunidade cabo-verdiana”, “a zona da comunidade angolana”, e não há mistura. Isto é resultado do processo de realojamento e da auto-organização das comunidades. Não é fácil.

Outro bairro de sucesso - que tem a ver com a localização e não com a escala ou o desenho, embora não seja PER - é o Bairro 2 de Maio na Ajuda. Antes do 25 de Abril, metade era bairro municipal e metade estava a ser construída pela Fundação Salazar para os funcionários da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE). Foi ocupado no dia 2 de Maio de 1974. As casas foram acabadas pela população e depois foi integrado compulsivamente no património da Câmara Municipal de Lisboa (CML) aquando da extinção da Fundação Salazar. É um caso de sucesso e tem uma enorme concentração de população cigana. Aliás, há um mural de homenagem ao Maia, grande líder cigano que deu o corpo às balas para permitir que a comunidade cigana do Rio Seco fosse acabar as casas. Agora, o Bairro 2 de Maio é no Pólo Universitário da Ajuda e tem transportes. A comunidade escolar ali ao lado conseguiu, num projeto de desenvolvimento local dum processo BIP/ZIP, começar a fazer os miúdos atravessarem as ruas e irem à Faculdade de Arquitectura (FA). Temos uma praça que foi construída a partir do projeto BIP/ZIP com os alunos. Mas ao princípio era: “Isto é nosso e para aqui não vem mais ninguém”, “Isto é nosso, é para os nossos filhos, os filhos do bairro”. Uma vez perguntei a um líder de uma assembleia de moradores, “e se de hoje para amanhã você precisasse sair do Bairro 2 de Maio e fazer reagrupamento familiar noutro bairro? Ia-me pedir transferência e eu, seguindo o seu princípio, dir-lhe-ia que não!”. Não posso gerir uma cidade assim. Portanto, um dos maiores desafios é o respeito pela auto-identificação e territorialização da comunidade, mas não o seu fechamento. Eu vejo a cidade tendo em consideração as idiossincrasias de cada bairro, mas não posso dizer “não entra aqui mais ninguém”.

Nós vemos isso em muitos bairros PER, a tensão entre os desejos da comunidade e o princípio da dispersão [feita por decisão] política…

O PER, na minha opinião, foi parco em procurar com a comunidade a melhor forma de gestão, mas aprendemos com os erros. Agora, os processos de transição são mais participados do que no PER. São vinte e tal anos de diferença. Tenho o privilégio de ter a possibilidade de fazer isto. Se calhar os meus colegas de vereação e os técnicos na altura do PER não tiveram essa possibilidade. Tínhamos muitos concidadãos a viver em situações indignas. Foi uma epopeia o que foi feito com o PER. Portanto, prefiro tratar da reabilitação e encontrar a melhor forma de não repetir os modelos do que não ter tido o processo do PER.

Voltando ao vocabulário, há aqui um pouco do princípio do social mix entre as classes mais vulneráveis que têm tido acesso à habitação pública e, agora a classe média?

Sim! Com a renda convencionada, o património municipal público deve ser utilizado para responder às necessidades ou aos vários desafios que se nos apresentam e, também, por orientação política minha, do pelouro e muito em particular dos Cidadãos por Lisboa. Nem vou dizer mix social, vou dizer “diferentes modelos de vida no mesmo território”. O vocabulário é importante. Começámos a introduzir nos concursos de renda convencionada os fogos de bairro municipal. Há bairros municipais onde não posso fazer isto, nomeadamente em bairros PER, onde o ónus dos empréstimos ainda não tenha acabado e a lei não permite praticar outra modalidade que não a renda apoiada, mas a minha vontade era fazer em todos. Comecei pelos mais antigos onde isto se podia fazer e, à medida que os ónus foram acabando, fomos começando a introduzir. Um dos primeiros sítios em que estivemos foi no Bairro 2 de Maio. A primeira reação de dentro do bairro foi muito negativa.

De candidatos?

De candidatos não. Havia uma razão para ser o 2 de Maio. Estamos a falar de uma localização central. Na renda convencionada a pessoa candidata-se à casa e sabe onde é, vai ver a casa. A reação do Bairro 2 de Maio foi a tal: “Isto é para os nossos filhos, quero desdobramento para o meu filho e vem para cá um estranho…”. Nós insistimos. O que é que a população começou a perceber? Que os seus filhos também se podiam candidatar. E isto começou a mudar. Por outro lado, e eu envolvo sempre as associações de moradores nestas decisões, tivemos algum receito de como isto ia correr quando os primeiros moradores fossem para lá. Fui duas ou três vezes ao bairro, (vou lá daqui a bocadinho porque faz 45 anos)… para as primeiras famílias foi difícil, mas passados estes anos está estabilizado. Tivemos uma experiência extraordinária. Portanto, comecei a fazer isto em vários bairros. Comecei também a desafiar as pessoas na renda convencionada: “vocês vão passar a fazer parte de uma comunidade e, portanto, há associações de moradores, há associações cívicas, peço que vocês também se envolvam nestas organizações”. Não tenho nenhuma reação negativa até agora, nem nenhuma entrega de casa em processos destes.

Mais: na Quinta do Lavrado [antiga Curraleira] houve um exemplo de cidadania absolutamente extraordinário. Naquela comunidade há situações de sobreocupação, filhos que vivem com os pais e se querem autonomizar. Durante muitos anos a CML fazia os desdobramentos. Eu acho que seria injusto continuar mas isso ainda está no espírito das pessoas. Foi a prática durante muitos anos. Falei então com a associação de moradores da Quinta do Lavrado e disse-lhes: “Vou abrir aqui renda convencionada”. Pensei que ia ter uma reacção negativa porque as pessoas querem o desdobramento para os filhos. Fizeram uma coisa extraordinária: montaram um gabinete de acolhimento aos visitantes das casas. Portanto, as pessoas que estão naquela associação sabiam que poderiam concorrer e que poderiam não ser sorteadas. Tinham consciência que as pessoas que iam visitar aquelas casas podiam ser as que ficavam com as casas no sorteio. Mas quiseram mostrar e combater o estigma. Montaram uma equipa de suporte e acompanhamento às pessoas que iam visitar as casas. Eu acho que isto é extraordinário. Rematando: o nosso objetivo político é ter renda acessível, convencionada nos bairros municipais e no centro histórico, que já teve o primeiro concurso Habitar o Centro Histórico. É o combate aos despejos por não renovação do contrato devido à situação de especulação imobiliária. As famílias que ficaram a viver nas casas municipais pagam renda apoiada. Não é renda acessível. Assim, temos renda acessível em bairros municipais e temos renda apoiada no centro histórico. Pronto! Isso sim é consciente e é a orientação.

E os desdobramentos mantêm-se?

Não. Os desdobramentos deixaram de ser feitos em 2009. É das coisas mais difíceis para a população, foram muitos anos habituados a eles…

Alguns desses desdobramentos que não foi possível realizar a partir de 2009 resultaram em ocupação de casas públicas que estavam vagas. Como têm resolvido esse problema?

O nosso objetivo é que as pessoas concorram à habitação. Naturalmente, há situações em que as pessoas concorrem e há situações de ocupação em que as pessoas nunca tinham concorrido à habitação. A nossa perspetiva é que as pessoas não fiquem numa situação de fragilidade e, por isso, a abordagem é com a rede social. A resposta em situações de emergência na cidade de Lisboa, normalmente, é a Santa Casa que tem a competência delegada da Segurança Social para a dar. E procuramos encontrar alternativas para que a pessoa não fique numa situação de ilegalidade/fragilidade. Percebo as situações normais que decorrem de uma situação de fragilidade de uma família, mas há aqui uma situação de equidade para quem tem uma situação de fragilidade e que não ocupa uma casa. Das coisas que mais me preocupa é quando uma casa é ocupada e essa casa já está afeta a outra família.

É diferente quando não está afeta?

No decorrer do processo de atribuição de habitação, elas às vezes já estão em obra, outras vezes não. O que procuramos é que a família não chegue ao processo de desocupação e que saia para não ficar numa situação de ilegalidade porque a ocupação, seja ela privada ou pública, ainda é crime público em Portugal. O nosso esforço é não ter casas devolutas. Durante 2019 fizemos o anúncio da afetação de 800 habitações que estamos a construir no Bairro Padre Cruz, no Bairro da Boavista e no da Cruz Vermelha, que são substituição das antigas. São habitações atribuídas através de concurso de acesso à habitação de renda apoiada para a classe mais vulnerável. Temos o programa específico do centro histórico que é arrendamento apoiado e continuamos com a renda convencionada dispersa na cidade, aberta a qualquer cidadão ou cidadã. Quanto às respostas das casas de transição para as pessoas vítimas de violência doméstica, das casas de acolhimento das pessoas refugiadas, dos processos de realojamento quando fazemos a demolição, essas respostas vamos fazê-las em casas públicas. Portanto, há 800 famílias que vão passar a ter habitação condigna durante o ano de 2019. Isto é, tenho de concentrar esforços nisto, que é não ter as casas vazias. No dia em que precisar de fazer um processo de realojamento e não tiver casas, o que faço? Tenho de construir ou reabilitar mais. Quero chegar ao final deste ano com o passivo de casas devolutas ultrapassado e dizer: “Agora temos de perceber como é que produzimos mais unidades”. Esse é o objetivo do vereador, ter as suas casas ocupadas.

Em Arroios, a este concurso do centro histórico que abrirá agora, afetei todas as casas de património disperso que estavam passíveis de ser reabilitadas no período de um ano, porque o concurso é dirigido a pessoas que estão em situação de perda de habitação no ano transato ou no ano subsequente. A única área não afeta foi a zona da Rua das Barracas e do Cabeço da Bola, que está afeta ao Programa de Renda Acessível. O meu objetivo é utilizar todo o património, mas é óbvio que tenho de ter sempre alguns vagos. Porque, vou dar um exemplo recente: a escarpa da Quinta da Noiva e da Quinta da Montanha, por baixo do Rock in Rio, tem ali uma encosta que estava em situação de ruir. Fizemos a contenção e tivemos de tirar as pessoas, portanto, de repente tinha 10 ou 12 famílias para realojar no momento.

E foram para onde?

Foram para os bairros em volta. E isso é outra questão. Sempre que faço processos de realojamento e de transferências procuro que as pessoas fiquem o mais próximo possível. Este é o princípio.

Quantas pessoas estão na lista de pedido para o Programa de Renda Acessível? Qual o objectivo em termos numéricos, e a cinco anos, do programa? E por outro lado, se pudesse fazer uma lista de pedidos ao presidente da CML e vê-la totalmente satisfeita (de recursos financeiros, políticos e de pessoal), o que pediria?

Não posso responder à primeira pergunta porque o programa que está a decorrer é o da Renda Convencionada. Abre, as pessoas concorrem àquelas casas e podem não concorrer no próximo.

O que estamos a fazer com o Programa de Renda Acessível (PRA) é: começamos com o PRA de concepção de obra pública ou de convocação do investimento privado para a construção ou reabilitação de habitação; depois a promoção para a renda acessível a 100%, sempre pública – a execução em si é que pode ser pública ou com entidades privadas. O PRA de promoção e conceção pública - a grande intervenção - é em Entrecampos e são 700 fogos. Estamos também a estudar outras localizações na cidade, de média e grande dimensão. Quando falamos de grande dimensão falamos de 500 a 600 fogos, quando falamos de média dimensão falamos de 100, 200 ou às vezes em colmatação de vazios urbanos, que nos permite fazer 20/30 fogos e que tem uma possibilidade de dispersão territorial, coisa que na grande dimensão não tenho porque a malha urbana está consolidada. E lancei agora o desafio ao Presidente da Câmara, uma coisa pela qual luto há muitos anos, que é trabalhar com o terceiro setor, o setor privado não especulativo. Para mim, o setor privado não especulativo são, por excelência, as cooperativas de habitação ou de inquilinos. Adiei a proposta até final de Maio, tenho pressa mas quero que a coisa corra bem… O movimento cooperativo foi um braço armado fundamental na promoção e no direito à habitação em Portugal, desde antes do 25 de Abril e depois consolidado no SAAL. Mas depois, nos anos 1990 transformou-se num instrumento financeiro. É isso que não quero que aconteça outra vez.

O nosso objetivo para o PRA é disponibilizar 6 mil fogos de habitação acessível num período de 5 anos. Como vos digo, 700 fogos em Entrecampos e não estão apurados ainda quantos serão os conjuntos de pequena dimensão. Estamos a ver se em Marvila conseguimos outro tanto, cerca de 1000 fogos, entre as zonas mais periféricas que permitem investimento direto e recursos humanos para conseguir executar este pilar que não está quantificado, mas que terá a ideia das três escalas. Pequena escala: uma cooperativa de moradores, uma cooperativa quase familiar e será sempre habitação própria, permanente, com vários modelos - direito de uso, de superfície. O objetivo é ter preponderância de propriedade coletiva e não propriedade individual, para acautelar coisas que aconteceram no passado. E depois as escalas média e grande. São os três “braços armados” que tenho para produção de habitação. Demora tempo. Dentro da promoção pública o que queremos é a convergência com a administração central: estamos em processo de aquisição de 11 edifícios da Segurança Social para o Programa de Reconversão dos Edifícios da Segurança Social (PRESS), que são: Campo Grande, Avenida da República, Estados Unidos da América, Visconde Valmor. Eram prédios da Segurança Social que já foram habitação, que depois foram convertidos em serviços e estamos agora a reconverter em habitação. Há duas obras já adjudicadas.

Algumas são residências universitárias?

Sim, uma na Alameda. A par de Entrecampos e das operações de reabilitação de propriedade já existente, alguns PRESS estão mais adiantados e prevemos ter tudo em obra até final deste ano. Aquele que está mais atrasado porque é de maior complexidade é o da residência de estudantes. No PRESS estão previstas 254 habitações e 206 quartos no total. Alguns destes quartos são duplos, portanto há aqui mais 50% de camas. Estamos a falar de localizações como Visconde Valmor, República, Campo Grande, Estados Unidos da América e Alameda. Temos duas que já foram adjudicadas. Prevemos até ao Verão ter os concursos todos arrumados e, até ao final do ano tê-los em obra.

Como é que a CML vê as associações de defesa dos direitos à habitação e dos direitos à cidade? É útil ao trabalho da Câmara ou a pressão daí advinda põe em cheque o trabalho do município?

Só se sente ameaçado quem não está seguro. Obviamente que é positivo. Seja qual for a organização, podemos ter mais confronto, menos confronto, mas o processo democrático é isso mesmo. São processos de confronto e de tensão (não conheço nenhum que não seja) e são salutares. A única coisa que não é interessante é quando as organizações são instrumento de manipulação partidária (não é política, porque a ação política está em todas, felizmente) e isso acho negativo, seja de que força política for. Haverá forças políticas que utilizam mais essa metodologia e, no decorrer da ação, parecendo que a maior preocupação são as pessoas e as famílias, utiliza-se como agitprop, e isso preocupa-me. Agora, e isto digo-o em nome próprio – se fizer esta pergunta a outros colegas de vereação poderão ter outra opinião – acho que são importantes em relação a qualquer questão da cidade. Ainda que seja um processo muitas vezes duro, é sempre positivo. Porque o meu background também é de associativismo e ativismo…

Os Cidadãos por Lisboa vêm daí…

Há 12 anos nós estávamos na Plataforma Artigo 65 – Direito à Habitação. Portanto, temos um background de associativismo e ativismo. Se me perguntasse: “Há conflito interior permanente?” Há. Permanente! Sei que as atitudes como cidadã não podem ser divorciadas da minha função pública. Mas a minha função pública não pode tolher a minha capacidade de cidadã. É difícil? É! Mas para mim é positivo isto acontecer. Salvaguardo isto: quando as intervenções ou os movimentos são utilizados como instrumento partidário, acho condenável.

Tem algum exemplo em que [as reivindicações] tenham facilitado o pedido de recursos?

Acho que todas foram importantes. A mobilização das pessoas, das organizações, também a presença das pessoas nas reuniões públicas… Um exemplo: em relação aos despejos no centro histórico, eu andava a alertar: “Atenção, estamos a fazer reabilitação do património municipal no centro histórico” mas direccionado [apenas] à renda convencionada, sabendo nós que a classe média está aflita! Há um ano atrás ninguém entendia [esta minha preocupação]. E haver numa situação de reunião pública pessoas a dizerem: “Vivo no centro histórico há 50 anos, estou a sair porque não me renovaram o contrato”, que isto era decorrente da lei do arrendamento, da especulação imobiliária, ajudou. Ninguém entendia que se estivesse a reabilitar património e que não se tomasse a atitude de afetar aquele património àquelas situações concretas. A vinda do senhor António Caldeirão às reuniões de câmara, o estudo que as três Juntas de Freguesia do centro histórico fizeram na divulgação e denúncia da situação, a acção do Morar em Lisboa e de outras organizações de cidadãos claro que fez pressão. Para mim, esse apoio foi muito bem-vindo porque me deu corpo para dizer: “É isto que vou fazer”.

Há dois anos, era exposta a situação do prédio da Rua dos Lagares nº 25 em reunião de câmara e havia a posição de “Isto é uma questão de urbanismo, de propriedade, é um litígio entre privados”. Mas pensei: “Sou vereadora da habitação, não posso não me pronunciar!”. Do ponto de vista racional sei que é uma relação entre privados. Aquele senhorio não estava a atuar à margem da lei mas o resultado era desastroso. Era a primeira vez que tínhamos no centro histórico, famílias a serem despejadas por um processo de especulação com esta dimensão. Houve mobilização dos moradores e a determinada altura, na noite de Santo António, a Lusa ligou-me, havia uma Sardinhada Solidária, e fiz uma declaração: “Não posso virar as costas a estas pessoas. Sou vereadora da habitação”. Sei que não estava só nas minhas mãos resolver esta situação e que a pretensão das pessoas era serem realojadas pela câmara. Mas o que acontece a todas as pessoas que tenham oposição à renovação de contrato? Portanto, fiz uma declaração à Lusa e a seguir fui reunir com elas. Nós vivemos num Estado de direito e se acharmos que as regras que temos não estão corretas, devemos lutar para que mudem.

Qual é a cidade europeia ou outra com cujas políticas de habitação se identifica mais?

A situação de Lisboa é parecida com a de Barcelona. No estado espanhol há vários exemplos de boas práticas na questão da política pública e do investimento público. Tem política pública, investimento público, formas diversas de construção de cidade. Barcelona inspira-me e tenho trabalhado com a cidade, em particular com David Bravo, que era assessor da Ada Colau para as questões do urbanismo. É um investigador, urbanista e arquiteto que se pergunta: “Como construímos a cidade?”. Com investimento público, com atores diversos, com a convocação do setor privado (e aqui tenho uma divergência política com alguns dos meus parceiros de vereação) que é necessária. Barcelona também achou e fê-lo. Aliás, fez um programa de arrendamento acessível com uma parceria público-privada com medidas de proteção do interesse público. Adotou a estratégia de Viena, que é ter 1/3 privado (mercado livre), 1/3 promoção pública a 100% e 1/3 mix - uma coisa que a Ada Colau defendia e que acho necessária. E Viena não é a cidade de maior orientação de esquerda do mundo! Mas como se constrói cidade? Constrói-se com os vários parceiros, em cada momento percebendo os que são úteis, tendo em consideração a defesa do interesse público. Daí também a minha relação com as cooperativas de Barcelona. Uma das cooperativas que fui visitar é o LaBorda, uma cooperativa projeto-piloto com a Câmara de Barcelona, demorou 7 anos a montar e 7 anos a construir. É na reconversão de uma zona industrial, é propriedade coletiva e foi uma das inspirações. Em Nápoles há um núcleo de cooperativismo muito interessante com quem eu também tenho tido alguma proximidade. Em Paris, nos últimos anos, o aumento de investimento público da câmara de Paris, quer na promoção direta quer no controlo, faz com que seja outra cidade com que me identifico.

Barcelona promoveu, aqui há uns anos, uma iniciativa chamada Fearless Cities e lançou uma rede de municipalismo. As redes de municipalismo são um processo interessante porque se fala muito dos estados e dos países mas, quando se fala numa relação mais próxima, fala-se em municípios, em cidades, em áreas metropolitanas. No Fearless Cities Barcelona fez uma carta pelo direito à cidade (não era só a questão da habitação, era o direito à cidade mais lato), que começou por ser um grupo de trabalho que tinha no início Barcelona, Lisboa, Vancouver, Amesterdão e Nova Iorque. Esta primeira carta sobre o direito à cidade foi subscrita por mim [vereadora], Barcelona e Nova Iorque. Depois juntaram-se outras cidades, o que deu origem à carta que foi levada pela Ada Colau às Nações Unidas, assinada pelos presidentes de câmara. Portanto, cidades com orientações políticas diferentes - mas com as mesmas questões - terem este processo de partilha de boas práticas é positivo. Por exemplo, cheguei a mandar para Barcelona o PRA, quando eles estavam a montar o deles. Isto não é uma coisa muito formal, é mais fluida, mas estas redes em que vamos participando permitem-nos testar hipóteses de atuação e ter posicionamentos comuns.

Mencionou Vancouver, que tem uma experiência em que retirou os vistos gold que tinham e o investimento mudou-se para Toronto. Já pensaram nesse tipo de intervenção?

Aqui volto a dizer que estou a falar em nome próprio. Tenho reservas sobre o mecanismo vistos gold em si. Isto é, a utilização de um produto financeiro diretamente relacionado com a cidadania. Tenho reservas. Acho que a aplicação dos vistos gold nos centros urbanos, em particular Lisboa e Porto, neste momento é pernicioso. E o resultado é o que estamos a ver. Contribui para a especulação dos valores de transacção. Contribui para as casas vazias. Acho que se deveria rever a utilização do mecanismo. Ultrapassada a reserva, acho que pode ser utilizado na promoção do desenvolvimento noutras zonas, onde a sua ação não seja perversa como está a ser nos centros urbanos, e se tiver associado regras de controlo e fiscalização, mecanismos de empregabilidade estável e não precária. Pode ser um mecanismo interessante – e também não tenho dúvidas da importância que teve para pessoas de baixa escolaridade que habitavam no centro histórico, que estavam no desemprego e passaram a ter melhores condições de vida porque o aumento do turismo, das plataformas de alojamento local e do setor da restauração permitiu que elas tivessem trabalho… Nunca me esquecerei de um debate que tive há uns anos em que um indivíduo da Guarda que lá estava disse: “Olhe, o que a si lhe sobra [turismo, alojamento local] faz-me muita falta na Guarda”. Eu fiquei com aquilo: o que sobra a uns falta a outros.

 

Financiamento

Entrevista realizada a 2 de Maio de 2019. Transcrição de Leandro Gabriel (CEG-IGOT, ULisboa). Este trabalho resulta das atividades do projeto “exPERts Making sense of planning expertise: housing policy and the role of experts in the Programa Especial de Realojamento (PER)” (financiado pela FCT; PTDC/ATP-EUR/4309/2014).

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