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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.41 Lisboa dez. 2020

https://doi.org/10.15847/cct.19581 

ENTREVISTA

 

O futuro das cidades balneárias: Entrevista com Bernard Toulier

The future of seaside towns: Interview with Bernard Toulier

 

Joana Carolina SchosslerI; Letticia LeiteII

[I]Universidade Estadual de Campinas, Brasil. e-mail: mergulhandonolitoral@gmail.com

[II]Universidade de Paris 1, Brasil. e-mail: letticiabrl@gmail.com

 

 


RESUMO

Em fevereiro de 2019, em um dia frio e com as ruas de Paris branquinhas de neve, realizei a entrevista com Bernard Toulier. Especialista em cultura balneária há mais de 30 anos, com longa trajetória junto ao Departamento de Patrimônio e Espaços protegidos do Ministério da Cultura da França, Toulier também é autor dos livros Architecture de villes d’eau (2002) e Villégiature des bords de mer: architecture et urbanisme (2010), além de ter organizado, em 2016, a exposição “Tous à la Plage”, na Cité de l’architecture et du patrimoine, de Paris. Desde o surgimento das estações balneárias na Inglaterra do século XVIII até o estabelecimento de tipologias à beira-mar no século XIX e a popularização dos banhos de mar no século XX, os balneários marítimos passaram por transformações urbanas decorrentes do processo de globalização. Entre as principais consequências dessas mudanças ocorridas ao longo desses séculos cabe destacar o aquecimento global e seus impactos nos oceanos. Nesta entrevista buscamos compartilhar os aspectos singulares da história dos balneários marítimos e a importância de seu patrimônio para a humanidade. Além disso, convidamos e desafiamos banhistas, turistas, pesquisadores, autoridades políticas, gestores e todos que apreciam os mares a pensarem sobre o planejamento urbano e o futuro das cidades balneárias.

Palavras-chave: cidades balneárias, urbanização, aquecimento global, cultura balneária.


ABSTRACT

In February 2019, on a cold day and with white snowy streets, I conducted an interview with Bernard Toulier in Paris. A specialist in bathing culture for over 30 years, with a career at the French Ministry of Culture with the Department of Heritage and Protected Spaces, Toulier is also the author of books on seaside towns and organizer of the exhibition “Tous à la Plage” (Citè, 2016 -2017). In this interview, he talks about aspects of global warming, the challenges for research and how to think about the future of seaside towns..

Keywords: seaside resorts, urbanization, global warming, bathing culture.


 

Bernard Toulier é historiador de arte francês. Atuou como conservador geral do patrimônio no Ministère de la culture et de la communication da França. É pesquisador associado no Centre André-Chastel (CNRS/Paris) e especialista na arquitetura dos balneários marítimos do século XIX e XX. É responsável pelo programa Arquitetura da Vilegiatura Marítima e autor dos livros Architecture de villes d’eau (2002) e Villégiature des bords de mer: architecture et urbanisme (2010). Em 2016 organizou a exposição “Tous à la Plage”, na Cité de l’architecture et du patrimoine, de Paris.

Joana Carolina Schossler é doutora em História pela UNICAMP e especialista em Conservação do Patrimônio pelo Institut National do Patrimoine, Paris/França. É professora e pesquisadora sobre a história do veraneio, urbanização dos balneários marítimos no Brasil e Uruguai, sociabilidades e lazeres, e patrimônio balneário. É autora do livro História do Veraneio no Rio Grande do Sul (2013). Essa pesquisa foi financiada pela FAPESP.

 

Estamos vivendo uma grande mudança climática. O nível do mar está aumentando e certamente as cidades balneárias serão afetadas. Como pensar o futuro das cidades balneárias neste contexto?

Será que vamos recuar e abandonar os elementos que cincundam uma grande cidade ou vamos nos mudar para o interior do país? É impossível pensar isso em uma gestão política de 5 anos, mas dentro de 50 anos, é possível. Os dirigentes políticos desses países nos dirão: “nós ainda podemos esperar”, porque é negativo para as pessoas precisar se mudar. Portanto há todo um aspecto social e sociológico a ser estudado, para saber como fazer as projeções e como fazer para que elas sejam admitidas pelas futuras gerações. Como fazer para que essas projeções sejam admitidas pelos eleitos, mas também para que sejam aceitas pelas pessoas? Porque todo mundo vai querer ficar até o último momento, no derradeiro ponto mais alto da cidade balneária, mas um dia haverá uma grande tempestade e não existirá mais nada, é isso! Por isso deve existir uma responsabilidade política e da parte dos pesquisadores. Atualmente, não se trata mais de uma pesquisa estética, de urbanismo, mas antes, de uma pesquisa sobre a sobrevivência à beira-mar. Há poucas pessoas que têm essa consciência hoje, por isso é preciso estudar outros mecanismos, não é mais possível nos contentarmos apenas em considerar os pequenos estudos que poderíamos fazer antes. Temos que deixar tudo isso de lado e perguntar: quais são as medidas que devem ser tomadas sobre os 60, 80 centímetros, 1 metro e 20 centímetros que o mar terá a mais nos próximos 20, 30 anos? O que vamos fazer com 1 metro e 20 centímetros a mais? Os diques que estão lá suportarão o choque? A estrutura dos diques de passeio que está no fundo do mar vai resistir? Teremos que fazer uma outra mais alta? Ou, então, precisaremos nos mudar e fazer simulações? Os poucos pesquisadores que se ocupam desse tema precisam tomar isso como dever de pesquisa, tentar aconselhar as pessoas eleitas e as instâncias de gestão do território a esse respeito. Isso para mim é a grande pesquisa a ser feita.

Como você acha que a pesquisa, a responsabilidade dos pesquisadores, a qual você fez referência, pode ir ao encontro da responsabilidade política?

Ela deve ir! Isso quer dizer que é preciso convencer os políticos, dizer que, de todo modo, eles não têm escolha. Tal como foi feito até agora com relação ao aumento do nível da água. Mas, hoje em dia, com a continuidade do aumento das águas, torna-se impossível ter a mesma gestão e o mesmo perfil do território. Então, como fazer um recuo estratégico e como, quem sabe, tentar salvar alguns elementos?

E hoje, quais são os elementos mais interessantes em relação à identidade da vilegiatura marítima ou do litoral, levando-se em conta as questões urbanas e os desafios sociais que devem ser colocados em evidência ou até mesmo salvos?

Digamos que todo mundo deve se responsabilizar; todas as camadas da população, tanto os que vivem próximo ao mar, como aqueles que já vivem no interior e que eventualmente visitam as praias. Isso dá ensejo a uma nova solidariedade da beira-mar. Isso cria uma solidariedade longitudinal, paralela ao mar, mas também uma solidariedade com o interior do país, trata-se de uma outra forma de ver. Não podemos mais encarar como uma expansão, tal como olhávamos antes. Podemos ainda fazer pesquisas sobre isso, mas não por muito tempo, pois são pesquisas que não têm mais muita utilidade. A pesquisa útil, e para a qual dinheiro, deverá estar voltada para a orientação do urbanismo futuro sobre a beira-mar.

E para as pequenas cidades balneárias, que não possuem uma consciência ou mesmo diretrizes políticas voltadas ao patrimônio e à urbanização. Como você vê as possibilidades de gestão política das prefeituras em relação às diretrizes econômicas e sociais que podem ser mais interessantes para gerenciar a relação de turismo de verão?

Sempre existirão cidades balneárias, mas o modo de vida nelas vai mudar, pois será necessário gerenciar os riscos. Por isso, é preciso que os estudos levem em conta os riscos e indiquem como é possível contorná-los. Porque os riscos podem também resultar da erosão mais acentuada, caso se trate de uma área de falésias. E como há elementos que são muito próximos às falésias e que não poderão mais ser utilizados, isso quer dizer que é preciso passar por cima e, em seguida, por baixo.

Além disso, também haverá muito mais mudanças nas praias, isso quer dizer que alguns elementos vão estar descobertos e outros que, ao contrário, serão recobertos. Então é preciso trabalhar com os geógrafos, que permitirão diferentes hipóteses sobre o lugar em questão, para saber quais são as mudanças.

E em relação ao sentido histórico, dificilmente conhecemos ou nos perguntamos sobre como começamos a ir à praia e sobre a existência de um determinado litoral, antes da sua transformação em um destino de férias. É importante que a população conheça a história desses lugares?

Uma solução seria dizer: eu quero fazer turismo balneário sem risco. Para isso eu posso recuar 5, 10 quilômetros de distância do mar e criar uma falsa praia, colocar várias casas ao redor, e assim dizer que estou à beira-mar, porque eu posso sentir a brisa no meu rosto, mas a água é menos salgada e não haverá mais tempestade. Além disso, eu posso passear com minhas crianças, posso passear de barco, etc. Construir grandes lagos balneários na parte posterior. E isso já foi feito, por exemplo, em Landes [3], onde fizemos lagos. Há uma parcela da população, já a partir dos anos 1960, na costa basca, para a qual foi feita a ligação com o interior, onde já eram realizadas atividades. Havia muito mais laços e, naquela época, queria-se evitar a deterioração das dunas que estavam à beira-mar e nós já nos instalávamos atrás, a uma distância de 2, 3, 5 quilômetros do mar, pois, por um lado, o mar pode ficar turbulento e as dunas podem se movimentar. Enfim, já se instalavam cidades que não ficavam mais exatamente à beira-mar. Isso quer dizer que se trata de uma tendência que já existe em certos lugares. Mas devemos ponderar se essa tendência ainda é viável ou se devemos pensar em outras soluções, pois existem também portos nos quais instalamos estações balneárias por toda parte. O que faremos, então, com as cidades à beira-mar onde há um aumento do nível das águas? Porque nem todos poderão viver no alto da colina. Então, o que faremos com as partes baixas, que em muitos lugares já se encontram urbanizadas? Isso de fato demanda soluções criativas. Mas o que eu amo é que, enfim, os historiadores podem ter utilidade, pois a história pode nos ajudar a construir o futuro.

Você pesquisou durante 30 anos o litoral e seus patrimônios. O que de mais interessante sobre a história da vilegiatura marítima existe para se mostrar para a humanidade?

O imaginário, a ilusão, o pitoresco, o exotismo, tudo o que permite ter uma vida melhor em uma cidade capitalista industrial, para a qual a praia é um antídoto. Pois a cidade industrial nos aliena, deixa todos um pouco disciplinados, tensos; enquanto a praia proporciona a liberdade, o estilo de vida, etc. Nós podemos viver em topless, nus à beira-mar, porque temos menos risco de estar nus à beira-mar do que na praça da Concórdia, em Paris. Então é em lugares como esses que liberamos o melhor da imaginação, onde a humanidade pode tentar sonhar e sobreviver, seja por tempo determinado ou indeterminado, mas para mim é um antídoto.

Mas você acha que todas essas preocupações que temos atualmente, como os efeitos climáticos ou a especulação imobiliária, tornaram a praia um lugar muito estressante?

Sim, com certeza, mas sobretudo menos seguro do que antes. Então veremos se, ao invés de virar as costas para praia, podemos construir uma praia atrás da praia.

E como seria essa praia?

Usando toda a imaginação que temos, isso quer dizer que recriaremos as condições da beira-mar. Será feito como os chineses já fizeram, uma espécie de Disneylândia na beira da praia, com uma água de lago, mas que é imenso, imenso, imenso. Já existem novas cidades assim, que eles chamam de balneárias, mas que não são balneários e nem estão à beira da água ou verdadeiramente à beira-mar, ou tampouco distantes.

E as antigas cidades de beira-mar, o que elas se tornarão? Cidades fantasmas, imaginárias, patrimoniais?

Se elas desaparecerem, entrarão no domínio do imaginário. Isso se começarmos a ter desaparecimentos, como cidades engolidas pela água, etc. É um imaginário que já existe, um pouco como o imaginário da muralha do Atlântico, isto é, as construções que existiam nas dunas ou aquelas mais avançadas para resistir a uma ocupação que vinha do exterior, estendendo-se da Noruega até a Espanha, elas começam agora a ficar submersas, porque o mar está avançando e, consequentemente, nós já temos esse imaginário de blocausses [4] que estão afundando na água. Paul Virilio, um arquiteto francês, já fez construções que são como blocausses, mas no interior das quais temos a possibilidade de meditar, encontrarmos uma religiosidade, etc., ou seja, ele já se antecipou. E para mim a igreja que ele fez em Nevers [5] com Claude Parent já é uma maneira de encarar os blocausses da beira-mar como um lugar de meditação. Vamos então transcender o lugar por intermédio do imaginário, da inteligência, mas nós sempre precisaremos viver em uma cidade sobre a água, ou em uma cidade onde seja possível recriar esse imaginário de vida à beira-mar, porque isso é o que há de mais forte e, caso isso não exista mais, teremos sempre uma nostalgia.

Essa é uma questão interessante. Por que você acha que as pessoas se atraem por esse imaginário de uma vida melhor na praia?

Porque na cidade existem muitas normas e acreditamos que à beira-mar isso não existe. Porque ali há um outro elemento que é mais importante que a terra, que é a água. Então encontramos os elementos que constituíram a Terra, que se encontram de modo linear e infinito, porque também há o Sol, logo, o fogo, a terra e a água. Há, portanto, os principais elementos que permitem que nos reencontremos nas origens da Terra. Isso permite que os indivíduos se recoloquem em si mesmos e reencontrem suas origens, permite recriar a si mesmo, e isso só é possível à beira-mar, mais do que em qualquer outro lugar, porque no alto da montanha isso não acontece, pois ali não encontramos a água, não há esse aspecto linear da água, que acalma e que é um elemento da vida. Temos os quatro elementos – o vento, a água, a terra e o fogo do Sol –, então nos encontramos tal como o homem primitivo, os primeiros seres, um pouco como Adão e Eva, onde é possível criar seu pequeno paraíso. E isso é fácil para todo mundo.

É isso que fez os grandes arquitetos criarem casas para os homens sonharem em habitar à beira-mar?

A beira-mar é diferente de uma cidade industrial. A única indústria que existe ali é a do imaginário, para poder ter prazer e brincar no local, é o desejo e o prazer constante. Isso existirá sempre, mesmo que a água aumente um pouco ou se os elementos não estejam exatamente no mesmo lugar, será sempre assim, porque ali estão os quatro elementos que constituíram a Terra, o que faz do mar o lugar mais forte do mundo, o lugar mais intenso ao nível das emoções.

Normalmente vemos nas pinturas impressionistas e realistas muitas emoções que são representadas diante do oceano. Quais são as emoções que você acha que reencontramos diante do mar?

Todos os sentidos humanos são convocados diante do mar. Pois você tem o cheiro, a vista, a sensação sobre a pele, seja do calor ou do vento, você tem todos os sentidos que estão em ebulição nesse momento. Então a emoção vem de toda parte, ao mesmo tempo. Temos o cheiro do mar, ventos muito fortes que fazem a pele arrepiar, podemos ter as tempestades e também elementos calmos como o calor suave, é possível ter todas as sensações existentes. Então é claro que o mar [6] é, desde a mitologia, muito mais feminino, e depois poderíamos analisar toda a psicanálise elaborada em torno disso mas, inicialmente, são os quatro elementos que permitem que nos recoloquemos nos primórdios das origens da Terra.

Sobre as férias em família, você pensa que, diante do mar, criamos um imaginário novo sobre nossa vida e nossa relação familiar porque partilhamos um lugar em comum?

Sim, porque você nunca retorna sendo exatamente a mesma pessoa, primeiro você vem quando se casa, depois retorna com seu filho, e depois esse filho cresce, etc. E a cada vez as pessoas têm sensações em comum, mas diferentes, para compartilhar, porque é muito forte. Claro que você pode viver como um eremita perto do mar, mas a vontade de compartilhar é tão forte que sentimos vontade de dançar, de gritar, de cantar, de se exprimir e dividir isso com outras pessoas que estão ao seu redor, em primeiro lugar com as pessoas da família, mas também com um círculo de relações, amigos, vizinhos, etc. É essa força que você comunica ao círculo íntimo que está ao seu redor e, eventualmente, com outras pessoas.

A intimidade familiar pode determinar o lugar escolhido para passar as férias?

Sim, e sobretudo hoje. Os estudos de sociologia poderiam responder melhor a essa questão, mas certamente é um lugar muito importante também para as famílias reconstituídas, que são hoje a maioria na Europa. Da a mesma forma que é importante estar a dois diante do fogo, no inverno, porque você tem o triângulo que une, é igualmente importante estar com a família em um círculo com esses elementos, pois você participa e faz sua família participar desses elementos primitivos, retomando um pouco uma espécie de primitivismo de Robinson Crusoé [7]. Você se encontra em uma ilha, sobre um pequeno banco de areia, sua praia, onde você se reconstitui com o que existe de mais íntimo para você e para a sua família em relação a esses quatro elementos.

Isso é um pouco irônico, porque as pessoas voltam às emoções primitivas de sua origem familiar, mas não conseguem olhar para os aspectos históricos da praia…

Isso é interessante, pois as pessoas recusam isso, elas necessitam ser muitas e muitas na praia, estarem apertadas, porque elas ignoram psicologicamente [esse retorno], pois é fácil dizer como se deve viver esse lugar, mais é difícil fazê-lo. Então você tem o máximo de barulho possível, todos os elementos perturbadores, que estão ali, sobretudo para não pensar, porque se você pensa, você precisa ir ao interior de você mesmo e mudar. As pessoas estão à beira-mar, é um pouco como a beira de um precipício, mas elas ficam distraídas, pois a praia também é um lugar de distração. Eu já estive na praia, ao entardecer, e percebi a inquietude das pessoas, que quase se esbarram para se fazerem notar, andam de um lado para outro, elas estão desamparadas. Porque as pessoas não sabem mais contemplar ou não querem ir ao interior de si mesmas.

Na nossa sociedade, conquistamos o prazer de estar na praia, de ter nossos corpos livres, aproveitando o tempo e o espaço. Essa conquista, que se deu ao longo do século XX, nos tornou menos conscientes e propensos para pensar sobre o território marítimo, sobre o uso que fazemos das praias e sobre o lixo que produzimos nesse espaço?

Existem muitos modos de viver à beira-mar. O modo naturalista, primitivista e o modo hedonista. Os anglo-saxões fizeram grandes parques com enormes toboáguas e outras estruturas, criaram uma espécie de Disneylândia à beira-mar, justamente para poder se distrair melhor, para que todos os sentidos estejam absortos nesses jogos artificiais, e essa é uma tendência muito forte que não podemos dimensionar. Por outro lado, há tendência ao naturalismo, caracterizada pela vontade de estar nu, quase que com relação a todos os elementos, com poucas pessoas ao seu redor. Temos também a tendência a uma distração absoluta, pois o mar é excitante, então você também precisa estar ainda mais excitado, o que normalmente não se faz na cidade. Porque no litoral existem condições particulares e, ainda que seja perigoso, as pessoas sempre virão à beira-mar, mesmo com o aumento dos oceanos, pois elas se sentem atraídas por esses perigos e também por diversos elementos e, com o aumento dos atrativos de lazer, elas irão ainda mais.

Parece loucura, mas iremos cada vez mais ao litoral e será cada vez mais perigoso, por isso é preciso encontrar soluções. É preciso que, juntos, pesquisadoras e pesquisadores como nós encontrem essas soluções, que trabalhem em conjunto com as pessoas que precisam dessas soluções, com pessoas de outras disciplinas e também com os políticos.

Você pesquisou por mais de 30 anos o tema da vilegiatura marítima. Como iniciou sua aproximação com esse tema de pesquisa?

É muito simples. Antes eu era arqueólogo, eu estava muito longe desse assunto, depois eu trabalhei em uma região onde a arte renascentista era importante, eu me interessava pelos estudos das cidades e do Renascimento. Então eu parei meu trabalho e, como pesquisador da Academia da França em Roma, fui à Villa Médicis e lá eu não estudei a cidade exatamente como eu gostaria, mas trabalhei com uma equipe internacional, que fez a história dessa cidade com outras pessoas. Ao retornar para a França, fui convidado para ser o diretor do Centro de Documentação do Patrimônio. Essa atividade, porém, não tinha nada a ver com a pesquisa, eu me sentia instrumentalizado para exercê-la, mas não era minha vocação promover ações políticas e sociais. Então, após alguns anos, eu me demiti e retomei um trabalho que me interessava muito, que era justamente a relação entre a arte renascentista e o século XX, a vilegiatura nos castelos. Trata-se de um estudo sobre esse modo de vida diferente, nesse lugar de encontro para a prática da caça, a vida fora das cidades, com o propósito de refazer os círculos de sociabilidade, a partir do lazer. Então eu estudei isso a partir de vestígios de rotas, mudanças da paisagem e da arquitetura, trabalho sobre o qual eu escrevi um livro.

A partir do momento que passei a me ocupar do século XIX e da vilegiatura, de todas essas novas questões, fui convidado a voltar a Paris, como responsável pelo estudo dos séculos XIX e XX, mas havia uma distância entre pesquisar a vilegiatura nos castelos e pesquisar os séculos XIX e XX, eu nunca tinha feito um curso na universidade sobre o século XX. Mas disseram que não havia problema, que eu integraria uma equipe do CNRS ( Centre National de la Recherche Scientifique) e orientaria trabalhos sobre a história da vilegiatura, com outros professores. A princípio nos ocupávamos das águas termais e do balneário, depois passamos a nos ocupar um pouco das cidades à beira-mar. Então eu cheguei à conclusão de que eu não tinha muitas alternativas e, se eu quisesse fazer uma pesquisa bem-sucedida seria necessário me dedicar a um assunto que desse algum resultado, dentro de um prazo razoável.

Tendo em vista que os estudos sobre as termas eram muitos disseminados e que havia várias cidades na França que ficavam à beira-mar – o que significava que eu tinha à minha disposição equipes de pesquisadores que poderiam fazer esse trabalho, que se interessavam por esse assunto, enfim eu tinha a minha disposição um potencial de pesquisa sobre essas cidades –, percebi que seria interessante pesquisá-las, por se tratar de uma temática transversal, que necessariamente compreenderia os séculos XIX e XX. Eu não teria como trabalhar sobre a integralidade dos séculos XIX e XX e, por meio desses estudos acerca do balneário, eu pude entrever o que se passou nesses séculos, tratava-se de uma espécie de fronteira entre diversas disciplinas. Isso me permitiu efetivar, de modo transversal e mais rapidamente, uma pesquisa teórica. Então o balneário foi quase um pretexto que me possibilitou encontrar novas temáticas sobre os séculos XIX e XX, e renovar os assuntos no domínio da história da arquitetura.

No Brasil, o livro O território do vazio: a praia e o imaginário ocidental, de Alain Corbain [8] é uma das únicas obras traduzidas e que se tornou referência para quem estuda o tema das praias. Quais foram as obras mais interessantes que inspiraram suas pesquisas?

Existe uma primeira síntese feita sobre a cidade balneária, por uma arquiteta [9], que trata da vilegiatura, ela estuda um total de dez cidades balneárias às margens do Canal da Mancha, na Normandia. Eu me debrucei sobre esse trabalho e considero um estudo bem interessante mas, como a autora não era historiadora, ela não apresenta de fato uma pesquisa histórica, então eu pensei que era preciso realizar algo nessa perspectiva, porém mais amplo. Mas como há cerca de 300 cidades balneárias na França, isso demandaria muito trabalho. Sendo assim, pensei que poderíamos trabalhar por amostragem, busquei trabalhar ao menos uma estação balneária ou costa por região. Então dividimos as regiões da França e passamos a estudar as características específicas de cada balneário, para que fosse possível, a partir daí, propor uma espécie de síntese. A primeira síntese que eu propus foi Villes d’eaux: stations thermales et balnéaires, e fui criticado por não ter feito um trabalho coletivo. De fato, fiz um trabalho com um tom pessoal, porque eu queria exprimir o caráter particular das vilegiaturas.

Então, cerca de dez anos depois, antes de me aposentar, eu fiz uma síntese mais geral, com mais exemplos, Villégiature de bord de mer: architecture et urbanisme e, depois da minha aposentadoria, pensei que eu deveria fazer uma comparação entre as sínteses francesas e as demais, fazê-lo de forma didática, então preparei este livro e este catálogo da exposição: Tous à la plage. Assim, cheguei mais ou menos no ponto onde eu queria, mas sempre encontramos pequenas pérolas, digamos, que, no entanto, não mudarão de forma efetiva as conclusões apresentadas nas sínteses que já foram feitas. Portanto, se há um trabalho a ser feito, ele consiste em fazer prospectivas que possam ajudar os gestores, as pessoas eleitas e os cidadãos com soluções acerca das formas de lazer do futuro e com relação aos estudos balneários, eu acho que as pesquisas devem seguir nessa direção.

Qual a importância da interdisciplinaridade para os estudos sobre o litoral e para o futuro dos balneários?

É importante que existam programas de pesquisa pluridisciplinares e transdisciplinares, com pesquisadores de diferentes perfis, no intuito de realizar estudos aprofundados sobre as questões. Assim como é necessário que haja pesquisas individuais, também é importante desenvolver pesquisas com diferentes grupos, biólogos, sociólogos, geógrafos, historiadores; cientistas que integrem diferentes saberes, pois não é possível dominar várias áreas de conhecimento sozinho. Além disso, é necessário colocar as perspectivas científicas realizadas na universidade ao alcance dos representantes políticos.

Como você acha que a ciência pode auxiliar as instituições políticas a realizar o planejamento territorial e a preservação do patrimônio balneário?

Com certeza alguns estudos permitem dizer que é preciso demolir tal coisa, que é preciso reconstruir de diferentes formas, fazer um planejamento do território, um plano de salvaguarda, um planejamento patrimonial, valorizar aquilo que já existe e fazer com que as pessoas convivam com esses elementos, assim como com os espaços contemporâneos. É isso que deve ser feito para o futuro da gestão costeira, deve-se levar em conta as mudanças, conservar aquilo que consideramos até o momento como um elemento patrimonial, para viver melhor com ele e, ao mesmo tempo, preparar a cidade para seu futuro. Mas para isso é preciso integrar os projetos, não se deve pensar separadamente o planejamento do futuro da cidade e o seu patrimônio.

Sua grande especialidade é relativa ao patrimônio, sobretudo o patrimônio da vilegiatura marítima. Qual é para você o elemento balneário mais importante para a identidade francesa?

[Risos] Eu acho que os grandes anos desse patrimônio inscrevem-se entre o período do Segundo Império (1852-1870) e a crise de 1929, pois nesse período tivemos uma grande quantidade de elementos e, no âmbito europeu, ocorreu muita inovação de estilo, de escrita, de um novo modo de viver diferente. Mas, a segunda metade do século XX e os 30 gloriosos também são extremamente interessantes. Então, eu considero que, de 1850 a 2000, 2010, temos uma continuidade, ainda que esse período tenha sido marcado pelas duas grandes guerras mundiais, ele também é marcado por constantes renovações, o que é interessante. Ainda que consideremos os picos da Belle époque e dos 30 gloriosos, com La Grande-Motte (Sul da França), eu gosto muito de estudar as estações balneárias na perspectiva de uma longa duração, sobre grandes territórios e amplas perspectivas de análise.

O que é o patrimônio balneário?

Ele se define, antes de tudo, pelas condições de vida diferentes, pelas práticas em relação ao banho, tudo é regulado pelas práticas sociais. Como por exemplo o topless, ele não é unicamente o topless, mas sim tudo que está ao redor dele, como as aldeias naturistas, talvez, mas também o modo de construir uma arquitetura moderna e elegante, que retoma as origens, o contexto por inteiro. A moda é apenas um dos elementos culturais dentre os quais se incluem, entre outros, o urbanismo, a arquitetura. Mas a dificuldade está em fazer uma conexão entre tudo isso e encontrar um sentido histórico.

No Brasil, os balneários marítimos cresceram muito nas últimas décadas, mas o planejamento urbano nem sempre acompanhou essa expansão. Além disso, temos um significativo aumento de condomínios fechados. Como você percebe essas mudanças e seus impactos no modo de viver à beira-mar?

Hoje as conurbações lineares se constituem a partir da justaposição de eventos urbanos ou arquiteturais, não são mais elementos que são previamente pressupostos. Então, esses balneários são interessantes, porque se nós os estudamos bem, entendemos ao mesmo tempo a sociedade que o desejou e na qual uma parte das pessoas vive. Os balneários são uma espécie de espelho da sociedade neoliberal, que não precisa mais de um elemento restrito, mas que necessita de liberdade para fazer o que quer e como quiser, inclusive sua especulação imobiliária. Assim, podemos fazer um estudo da especulação, dos níveis sociais que lá estão, trata-se, de fato, de uma espécie de microcosmo magnífico para estudar a história. As pessoas não se escondem mais, então é preciso decodificar. A partir de um novo olhar, o historiador deve decodificar as linguagens arquitetônicas, as linguagens urbanísticas, as linguagens das práticas das pessoas, para fazer uma pesquisa histórica. Trata-se efetivamente de uma área de pesquisa magnífica para escrever a história de todos os países e de diversos lugares. Os balneários são lugares de inovação e de experimentação absoluta, temos todos os recursos possíveis e podemos nos expressar livremente, exprimindo todo o contexto que nos deu origem e que nos permite viver. Temos então um meio de fazer com que nossos contemporâneos percebam como eles vivem. Para mim, fazer isso significa perpetuar uma cultura humanista.

O que você acha que podemos esperar para o futuro das praias? Você acredita que passaremos a ter responsabilidade sobre nossas ações em relação à exploração da natureza?

No amanhã, o balneário deve acompanhar a evolução climática e as suas consequências: o aquecimento global, os efeitos sobre o mar, etc. Então, levando ou não em conta o desenvolvimento sustentável, teremos práticas balneárias totalmente diferentes, mudanças inimagináveis. Com certeza não podemos mais ignorar os problemas, porque nós já não podemos mais viver como nossos ancestrais à beira-mar. Se frequentamos o litoral, ou somos completamente idiotas ou, se pensamos, seremos obrigados a levar cada vez mais em conta os aspectos ecológicos. Pois, como ali nos encontramos próximos aos elementos que destruímos completamente e, portanto, sofremos as consequências, espero que isso faça com que as pessoas evoluam rapidamente. Talvez as pessoas despertem, que estando ali elas possam se dar conta de que nesses lugares, mais do que em qualquer outro, podemos perceber as mudanças: vemos o mar poluído, sujeira por toda a parte, etc. Não podemos mais vivenciar esses lugares se a areia estiver suja, com manchas de óleo que nos impedem de frequentar a praia, pois o contato com a água tornará imperativo que nos limpemos. Enfim, frequentar a praia perderá todo o charme. É horrível! Ficaremos impedidos de frequentar as praias especialmente na companhia de nossas crianças, pois, caso contrário, estaríamos as expondo a doenças. Antes o mar era curativo, profilático, e agora, pouco a pouco, é o contrário, o mar se tornou um lugar de doença, no qual uma vez que nos banhamos, nos vemos obrigados a nos limpar depois. Isso é inacreditável. É o mundo de ponta-cabeça. Eu espero ao menos que tudo isso nos permita abrir os olhos.

Super! Merci beaucoup! Vamos parar aqui aos 49 minutos!

 

NOTAS

[3] Departamento da França localizado na região da Nova Aquitânia, sudoeste da França.

[4] Blocausses são espécies de fortes.

[5] Trata-se da Église Sainte-Bernadette du Banlay, 1964-1966.

[6] Na língua francesa, a palavra mar é do gênero feminino: « la mer ».

[7] Trata-se do romance de Daniel Defoe, Robinson Crusoé, publicado em 1719, no Reino Unido.

[8] O livro foi publicado no Brasil em 1988 pela Companhia das Letras.

[9] Roulliard, D. (1984) Le site balnéaire, Liège, Bruxelles: Pierre Mardaga éditeur.

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