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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.41 Lisboa dez. 2020

https://doi.org/10.15847/cct.20453 

ARTIGO ORIGINAL

 

A política urbana no Brasil e em Portugal: contexto e evolução histórica

Two urban intervention projects in comparison: The trajectory in the SAAL and IBC processes

 

Mariana Cicuto BarrosI

[I]Universidade Nove de Julho e Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, Brasil. e-mail: marianacicuto@gmail.com

 

 


RESUMO

Esse artigo busca contribuir com a análise da trajetória dos projetos de intervenção urbana em Portugal implementados a partir da década de 1970 a partir de três campos de análise. O primeiro eixo apresenta os principais aspectos do Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL) e as possíveis influências das experiências participativas brasileiras na sua concepção. O segundo eixo identifica as experiências no campo habitacional posteriores ao SAAL e observa as alterações dos processos participativos entre o SAAL e a Iniciativa Bairros Críticos (IBC). O terceiro eixo aprofunda a análise na IBC, com destaque aos principais objetivos, estrutura organizacional, identificação dos distintos territórios de intervenção e processos participativos, sobretudo na experiência do Bairro do Lagarteiro. Por se tratar de um processo que incorpora diferentes contextos históricos, dimensões sociais, econômicas e políticas, a pesquisa seleciona as características mais relevantes do SAAL e da IBC que contribuem para uma tentativa de compreensão entre as principais semelhanças e diferenças entre as respectivas experiências.

Palavras-chave: intervenção urbana, participação, IBC, SAAL, Política social de habitação.


ABSTRACT

This article seeks to contribute to the analysis of the trajectory of urban intervention projects in Portugal implemented from the 1970s onwards from three fields of analysis. The first axis presents the main aspects of SAAL and the possible influences of Brazilian participatory experiences in its design. The second axis identifies the experiences in the housing field after SAAL and observes the changes in the participatory processes between SAAL and the IBC Critical Neighborhoods Initiative. The third axis deepens the analysis at IBC, with emphasis on the main objectives, organizational structure, identification of the different territories of intervention and participatory processes, especially in the experience of Bairro do Lagarteiro. As it is a historical process that incorporates different historical contexts, social, economic and political dimensions, the research selects the most relevant characteristics of SAAL and IBC that contribute to an attempt to understand the main similarities and differences between the respective experiences..

Keywords: urban intervention, participation, IBC, SAAL, social housing policy.


 

1. Introdução

O ponto de partida deste artigo baseia-se no interesse do percurso histórico das políticas habitacionais em Portugal e seus desmembramentos nos processos participativos. A motivação inicial para reunir e divulgar parte desse processo está relacionada com o desenvolvimento de um segmento da tese de Doutoramento da autora que foi realizada em Lisboa no ano de 2017 no Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC). A aproximação da tese de doutoramento com a realidade portuguesa no campo habitacional trouxe elementos que impulsionaram o início dessa pesquisa sobre as principais diferenças e semelhanças das experiências portuguesas de intervenções urbanas e seus processos participativos entre os agentes envolvidos.

No entanto, esse artigo não inclui em suas metas relacionar todos os contornos que envolvem os processos participativos, estruturas organizacionais e desenhos operacionais das intervenções urbanas e programas habitacionais apresentados. Para desenvolver os objetivos da presente pesquisa, foram consideradas as análises de entrevistas semi-estruturadas realizadas em 2017 com técnicos que atuaram na Iniciativa Bairros Críticos (IBC) no período que a autora esteve em Lisboa elaborando parte da sua tese de Doutorado. Além das fontes das entrevistas, foi realizada uma revisão bibliográfica de produções teóricas que abordam sobre as experiências relatadas em teses de doutoramento e em revistas científicas.

O primeiro campo de análise apresenta as principais características do desenho operacional do Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL) e as possíveis contribuições da experiência participativa brasileira na sua concepção. O segundo campo de análise dedica-se à observação das alterações das políticas habitacionais entre o SAAL e a IBC e destaca dois programas de realojamento (PIMP e PER) e as alterações nos processos participativos ao longo do tempo. Em seguida, o terceiro campo aborda as distintas dimensões dos processos participativos da IBC, sobretudo na experiência do Bairro do Lagarteiro.

 

1. SAAL: Principais aspectos

Em Portugal, a partir da década de 1970, são inaugurados projetos habitacionais construídos no âmbito do Programa Habitacional Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL). Criado a partir da Revolução dos Cravos[2], o SAAL era destinado à população residente[3] que se encontrava alojada em situações precárias. Para além do objetivo da habitação, havia, em simultâneo, salvaguardar o direito ao lugar e o direito à cidade.

De acordo com Antunes (2018: 260), na década de 1950, a população de Lisboa aumentou em razão do êxodo rural. A ausência de infraestruturas e de transportes resultou na proliferação dos bairros de barracas nas periferias. O arquiteto Paulo Tormenta Pinto, em entrevista concedida à autora[4], também destaca que os problemas habitacionais em Portugal surgem na década de 1950 decorrentes do mesmo fator.

Os problemas habitacionais em Portugal iniciam nos anos 50. Quando chegamos ao período da Revolução nos anos 70 houve um desinvestimento muito grande na agricultura e começou a haver um investimento nas áreas das indústrias e das cidades. E as pessoas, a partir da década de 50, começaram a vir às cidades. Quando chegamos à década de 70, aí sim havia aglomerados de favelas muito grandes em volta das cidades (…). Depois quando se deu a Revolução se deu também a disponibilização de muitas pessoas que viviam em África, duplicou a população e os problemas de carência habitacional. (Pinto, 2017).

De acordo com Bandeirinha (2014: 250), o SAAL, que surgiu como uma resposta aos graves e acumulados problemas da crise de alojamento que explodiram súbita e espontaneamente, foi uma instituição paralela menos burocrática e, sobretudo preenchida com funcionários identificados com a revolução. Sobre a atuação dos técnicos, o autor destaca que era considerada a cumplicidade com a resolução dos problemas da população, embora tenham atraído também profissionais mais dispostos a um papel de neutralidade técnica.

Dessa forma, foi criada uma estrutura de elevada autonomia que pretendia contornar a burocracia (Antunes, 2018: 357) por meio de equipes técnicas – em sua maioria compostas por arquitetos, engenheiros e estudantes, denominadas brigadas técnicas –, que prestavam apoio local e faziam a identificação das áreas de intervenção, a definição das ações, o projeto e a construção.

Os residentes dos bairros de habitações precárias deveriam se organizar, discutir os problemas e deliberar as possíveis soluções. As brigadas eram chamadas ao local e, caso as propostas fossem exequíveis, iniciava-se a intervenção. Esse método possibilitava a participação da população na construção, com mão de obra, recursos monetários ou combinações de ambos. O Estado, tanto central como local, era responsável pela organização e gestão do SAAL pela aquisição de terrenos e materiais de construção e realização de obras de infraestrutura.

Bandeirinha (2014: 238) identifica 93 projetos, dos quais 73 foram parcialmente construídos distribuídos em diferentes regiões de Portugal: SAAL Algarve (Barlavento, Centro, Sotavento), SAAL Lisboa e Centro-Sul (Distritos de Beja, Setúbal, Lisboa, Santarém, Coimbra) e SAAL Norte (Distrito de Aveiro e Distrito do Porto).

Em relação às equipes técnicas, vários arquitetos e engenheiros participaram na elaboração dos projetos e nas brigadas e cada operação SAAL manifestava-se com métodos participativos e projetos diversos entre si. Segundo o autor, essa diversidade se, por um lado, revelava certa dificuldade de expressão de uma intenção coletiva, por outro, comprovava que a participação dos moradores, o grau de convicção no processo e a pluralidade dos seus desejos foram determinantes para uma parte significativa dos resultados obtidos.

Além dos atributos sobre os processos participativos com uma “perspectiva transformadora” (Bandeirinha, 2014:251), o SAAL também é caracterizado pela presença de uma geração de arquitetos que, posteriormente, tornaram-se referências para a arquitetura portuguesa e mundial, com destaque para Álvaro Siza Vieira e Fernando Távora.

Este plano se constitui como uma espécie de caso de referência relativamente a vários fatores, não só aos fatores participativos, com uma rapidez na construção da habitação como também a integração neste programa de arquitetos que eram novos na altura e que vieram mais tarde a revelar-se e que a partir deste plano a consagrar e reforçar ainda mais a sua relevância no panorama da arquitetura (Pinto, 2017).

De certa forma, a experiência do SAAL revela o protagonismo das equipes técnicas com a população, por meio da aproximação na resolução dos projetos, com uma “negociação dialéctica” (Bandeirinha, 2014: 252) potencializada pela virtude de “se trabalhar com o povo” na concepção das casas “para o povo” (Bandeirinha, 2014: 253).

 

2. Uma aproximação aos processos participativos no SAAL: Brasil e Portugal

As discussões dos processos participativos no campo habitacional em Portugal podem ser apresentadas a partir do período pós-guerra na década de 1960. Esse período revela um grupo de arquitetos que “acreditava que a arquitetura tinha a capacidade de transformar o comportamento das pessoas e de melhorar as condições de habitação para a população de menor renda” (Sanches, 2015: 80). Segundo Sanches (2015), é nesse contexto que se iniciam debates e experiências de participação dos futuros moradores em projetos habitacionais no atelier de arquitetura de Nuno Teotónio Pereira[5]. Nuno Portas, outro arquiteto fundamental na história da habitação em Portugal, relata que seu interesse por habitação social se iniciou no contato com o atelier de Teotónio Pereira e “que aquele era o local da discussão da política da habitação daquele momento no país” (Sanches, 2015: 86).

Ainda na década de 1960 é realizado o colóquio sobre o problema da habitação “Aspectos sociais na construção do Habitat” pelo Sindicato Nacional dos Arquitetos, em Lisboa. Segundo Bandeirinha (2014), nesse colóquio o arquiteto Nuno Portas apresentou o texto “Problemas da célula familiar”, que destacou o campo da sociologia e a crítica espacial dos projetos. A principal recomendação do colóquio foi a de que os novos projetos de habitação fossem programados em função das exigências particularizadas de cada um dos grupos humanos a que se destinam (Bandeirinha, 2014: 66).

Entre as décadas de 1960 e 1970, ao observar e denunciar realojamentos e demolição de “barracas”[6] que impediam o acesso à construção de uma nova ponte sobre o Rio Tejo, Teotónio Pereira questiona a forma como as remoções foram realizadas: “a violenta mudança de um local mais central, onde os moradores tinham já a sua vida e as suas raízes, para uma zona mais periférica, mais complicada do ponto de vista das acessibilidades” (Bandeirinha, 2014: 67). Também denuncia a falta de coordenação, assistência às famílias e descriminação relativa ao tipo de realojamento.

Na sequência desse acontecimento, Teotónio Pereira participa de mais dois colóquios e apresenta o texto intitulado “Habitações para o maior número” que trata “sobre as inaproveitadas possibilidades de resolução do problema da habitação”. Esclarece quem é o “maior número”, para quem é necessário construir: “a crescente mole dos mal alojados, mantidos à margem do meio urbano que os atraiu; sem recursos para obter uma habitação adequada dentro dos esquemas convencionais” (Bandeirinha, 2014:67).

No que se refere à participação dos moradores na construção das habitações, o texto destaca o não aproveitamento do potencial da autoconstrução. Para o autor, há “recursos não aproveitados” nessa modalidade que, erguida como processo marginal aos sistemas convencionais de mercado, não é aproveitada como alternativa de resolução do problema habitacional. Aponta ainda que há a preferência por parte do Estado de resoluções do tipo “paternalista ou autoritário” em detrimento do incentivo ao empenho da população.

Além disso, embora de um modo genérico, apresenta as experiências realizadas no Norte de África, no Médio Oriente e na América Latina, citando a experiência do Brasil na urbanização da favela Brás de Pina, no Rio de Janeiro. É nesse contexto que se iniciam, ou se fortalecem, os contatos entre as realidades brasileiras e portuguesas, visto que, de acordo com Sanches (2015: 95), a experiência do Brás de Pina já era conhecida pelo Arquiteto Nuno Portas desde a década de 1960.

Mas é na década de 1970 que a experiência do Grupo Quadra é apresentada de maneira mais significativa em Portugal. Nesse período Teotónio Pereira recebeu em Lisboa, em conferência no Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC)[7], o arquiteto brasileiro Carlos Nelson Ferreira dos Santos, representante do Grupo Quadra de Arquitetos Associados, que apresentou as experiências participativas realizadas na favela Brás de Pina na década de 1960 no Rio de Janeiro.

Esteve por diversas vezes em Portugal e, em Janeiro de 1972, veio ao Laboratório Nacional de Engenharia Civil apresentar algumas das suas experiências enquanto arquitecto consultor da Federação das Associações de Favelados do Estado de Guanabara, FAFEG, e enquanto “executor” de planos de infraestruturação de favelas para a Companhia de Desenvolvimento de Comunidades, Codesco (Bandeirinha, 2014: 48).

No que diz respeito às referências internacionais relacionadas às teorias e práticas dos processos participativos do SAAL, Bandeirinha (2014) menciona, entre outras referências, o trabalho desenvolvido na favela Brás de Quina pelo Grupo Quadra: “Pela importância da sua obra e pela sua proximidade pontual com a situação portuguesa destaca-se a de Carlos Nelson Ferreira dos Santos” (Bandeirinha, 2014: 48).

Diante desse tema, Bandeirinha refere-se à aproximação do trabalho desenvolvido por Carlos Nelson Ferreira dos Santos e John Turner (1976). O que se coloca como proximidade é a vertente social como forma de compreensão e resposta à situação, uma vez que divergiam na interpretação e respectiva proposta. Turner defendia total liberdade na construção das moradias, já Carlos Nelson reconhecia que a atuação do arquiteto poderia servir como acompanhamento e distribuição de conhecimento aos moradores, mas sem a finalidade de estabelecer soluções rígidas. Durante a construção das habitações na favela Brás de Pina, sempre que moradores solicitavam os arquitetos, havia a postura de deixá-los livres para construir – dentro dos limites da compatibilidade do plano urbanístico desenvolvido – e não de inibir ou criar proibições.

Turner advogava a inteira liberdade de opções na construção da moradia própria, principio ao qual correspondia também uma certa demissão da função do arquitecto, incapaz de introduzir mais-valias técnicas ou arquitectónicas no desenrolar do processo construtivo (…) Carlos Nelson, por seu lado, e talvez pelas especificidades sociológicas que identificava nos “seus” moradores, reconhecia ao seu trabalho e ao dos seus colegas a possibilidade de se assumir como um processo de acompanhamento e de introdução de benefícios racionais que não pressupunha, de forma alguma, a imposição de soluções ou a rigidez normativa, nem por razões de ordem funcional, sobretudo, jamais por razões de ordem estética. A infraestruturação urbana foi, em Brás de Pina, a razão primeira e última do intervencionismo técnico, mas a possibilidade de intervir ao nível das opções de conformação e de construção dos fogos nunca foi imposta nem renegada. Era uma assistência a que os moradores tinham direito e à qual recorreriam de livre arbítrio (Bandeirinha, 2014: 51).

Ao desenvolver o plano da favela Brás de Pina, o Grupo Quadra privilegiou a relação arquiteto-morador, e a gestão do processo revelou-se “transgressora” (Pulhez, 2008: 111). No decorrer desse projeto, Carlos Nelson desviou a sua atenção das questões práticas, projetuais e construtivas e empenhou-se na compreensão das vontades dos futuros moradores.

(…) ficou decidido que os próprios moradores trabalhariam em campo sob nossa orientação e nos forneceriam o material bruto que interpretaríamos no escritório (…). Ainda que parecesse lógico o contrário, é muito raro que urbanistas tenham contatos face a face com as pessoas para quem fazem planos. Vivíamos com o escritório cheio de favelados que o invadiam para ver o que fazíamos e ficavam para discussões que varavam a noite. Era emocionante ir recebendo aqueles pedaços dos mais diversos papéis e ir vendo um trabalho que surgia aos poucos (Santos apud Pulhez, 2008: 112).

Segundo Carvalho (2012: 197), esse processo foi defendido pelo arquiteto Nuno Portas, um dos responsáveis pela implementação do SAAL. Enquanto esteve no LNEC, viajou por países como Brasil, Colômbia, Peru, entre outros e, nesse período, conheceu Carlos Nelson e John Turner. O arquiteto mencionou essa metodologia no seu relatório “Habitação Evolutiva” desenvolvido em 1970 em conjunto com o arquiteto Francisco Silva Dias e posteriormente chegou a testá-la no SAAL. Além disso, Sanches (2015: 102) salienta que Portas refere-se à favela Brás de Pina como modelo para a organização, descentralização de poderes, comunicação das pessoas e autogestão dos moradores nas etapas de diagnóstico, projeto e obra SAAL[8].

Porque comecei a perceber depois de uma viagem que o LNEC me fez ir ao Brasil, eu comecei a perceber que no Brasil havia as soluções, que se iam tornar problemas, que eram as do dinheiro americano para fazer bairros sociais, portanto Cidade de Deus, um caso típico. E que havia problemas que podiam vir a ser a solução, porque no Brasil conheci o Carlos Nelson dos Santos, que era uma espécie John Turner do Brasil. Depois conheci o John Turner, andei pela América Latina tudo isso devo ao LNEC. Essa é a terceira fase que atirava para o problema dos bairros de lata/clandestinos e que vai formar o SAAL (Portas apud Carvalho, 2012: 314).

A participação incorporada pelo SAAL pareceu, assim, uma alternativa teórica e prática para um novo processo de política de habitação em Portugal. Antunes (2018: 494) destaca que o SAAL “pressupunha alterar o modo como a habitação social era conceptualizada no nosso país” e que a metodologia “rejeitava os processos top-down e privilegiava a abordagem bottom-up[9]e pretendia fomentar o empowerment da população residente em bairros com habitações precárias.

 

3. Do SAAL à Iniciativa Bairros Críticos: Alterações nas dinâmicas da política habitacional

As experiências que sucederam o SAAL não obtiveram a mesma influência dos processos participativos brasileiros e foram constituídas em diferentes contextos históricos, dimensões sociais, econômicas e políticas. A abordagem bottom-up implementada no SAAL, assim como as discussões dos processos participativos, não obteve continuidade significativa nos programas habitacionais posteriores. Segundo Antunes (2018: 503), após o SAAL, “Portugal percorreu um longo período em que o Estado demonstrou dificuldades em compreender o problema da habitação para a população mais pobre”. O autor ainda destaca que entre 1974 e 1985 as intervenções centraram-se “quase exclusivamente no apoio à pessoa” (Antunes, 2018:503) e que as políticas habitacionais passaram por momentos de indefinição, especialmente na imprecisão da descentralização de poderes e que não contribuiu para fomentar o desenvolvimento das políticas habitacionais.

Já na transição das décadas de 1980 e 1990 são lançados os programas de realojamento. O Plano de Intervenção a Médio Prazo (PIMP) foi realizado entre 1987 e 1993, com o objetivo de erradicar os “bairros de barracas” nos municípios do país. Em 1993, o PIMP foi ampliado com a “necessidade de o poder central criar uma política alargada, de escala metropolitana ou regional, que permitisse realojar toda a população residente nos bairros de barracas” (Antunes, 2018: 438). Foi nesse contexto que se deu a criação do Programa Especial de Realojamento (PER) que previa apoio financeiro para os municípios para a construção ou aquisição de habitação, destinadas ao realojamento na Área Metropolitana de Lisboa e Porto.

As 3 experiências apresentam diferenças significativas em vários aspectos. Em relação ao SAAL e o PER[10], enquanto o primeiro buscou reconstruir e requalificar bairros e realojar a população preferencialmente nas proximidades dos locais que residiam, o PER investiu em realojamentos das populações muitas vezes distantes do local onde residiam anteriormente (Cachado, 2013; Antunes, 2018). Em relação aos processos participativos entre as equipes técnicas e os moradores, Cachado (2013) destaca que, enquanto o SAAL investiu em saber técnico através do contato entre arquitetos, engenheiros e os moradores procurando compreender as melhores condições habitacionais, o PER, por outro lado, “construiu para realojar, em massa e baixos custos, com a pretensão de acabar com as barracas” (Cachado, 2013:138).

Ainda em relação à participação da equipe técnica no PER, o Arquiteto Paulo Tormenta Pinto, que colaborou no programa na época, relata, em entrevista concedida à autora, a baixa interação social entre moradores e arquitetos e engenheiros:

Houve ao longo do PER uma interação social relativamente curta. Ou seja, os projetos na maior parte dos casos foram desenvolvidos pelos próprios municípios, portanto não houve tanta participação de uma classe de arquitetos com relevância. Os projetos foram desenvolvidos nos próprios municípios, eu próprio trabalhei nestes projetos ainda como arquiteto muito jovem e que tive a oportunidade de trabalhar neste período. (Tormenta Pinto, 2017).

O arquiteto ainda destaca que no PER houve uma “lacuna” do processo participativo e que poderia ter sido uma oportunidade para criar mecanismos de maior integração social para a população:

Mas de facto houve essa lacuna naquilo que foi uma oportunidade de lançar uma política também de desenvolvimento social, ou seja, há todo um desenvolvimento baseado nas questões físicas, dar uma boa qualidade de casa, um melhorar o ambiente para as pessoas morarem, mas todo o projeto de realojamento das pessoas foi feito de certa maneira, ou por ordem de chegada ou simplesmente realojando as pessoas sem um acompanhamento de proximidade que pudesse ser visto como uma espécie de oportunidade para que estas intervenções fossem também não só melhorias de condições do território ou acabar com a habitação de barracas e aproveitar também para lançar alguns mecanismos para que estas pessoas pudessem se integrar socialmente, ter mais acesso ao emprego por exemplo, que são fatores relevantes (Tormenta Pinto, 2017).

Vale destacar que as diferenças apresentadas entre as duas experiências decorrem das distintas conjunturas sociais e políticas de cada época. Cachado (2013:139) recorda que o ambiente político do SAAL “era propício ao desenvolvimento de projetos participativos.” Já no caso do PER, as condições territoriais revelavam uma pressão urbanística sobre os terrenos dos bairros informais e assim “limitavam as escolhas políticas para a implementação de medidas de melhoria das condições habitacionais a larga escala”.

Após as políticas de erradicação de barracas inseridas nas operações de realojamento PIMP e PER, observa-se um novo cenário das políticas de habitação, marcado pelo propósito de realizar intervenções de “regeneração urbana” (Antunes, 2018:521) em distintos territórios[11]. Nesse contexto há a implementação do programa nacional experimental e interministerial[12] “Iniciativa Operações de Qualificação e Reinserção Urbana de Bairros Críticos” (IBC). A IBC foi criada em 2005 (RCM nº 143/2005, de 2 de Agosto), no quadro da Política de Cidades, com o objetivo de “estimular e testar práticas institucionais, procedimentais e tecnológicas inovadoras em termos de concepção, implementação e avaliação da acção pública em áreas urbanas críticas”.

 

4. Iniciativa Bairros Críticos (IBC): Novas abordagens nas operações de realojamento

Respeitando a sua natureza experimental, duração e âmbito territorial limitado, a IBC foi circunscrita a dois bairros na Área Metropolitana de Lisboa (Vale da Amoreira, na Moita, e Cova da Moura, na Amadora) e um bairro na Área Metropolitana do Porto (Lagarteiro, no Porto). Embora o fato de terem em comum a vulnerabilidade crítica e alguma estrutura organizacional preexistente, constituem realidades com diferentes especificidades. O Vale da Amoreira e o Lagarteiro são bairros de habitação social de promoção pública e a Cova da Moura é um bairro de construções autoproduzidas em terrenos privados e do Estado.

De acordo com Sousa (2008:69) a IBC procurou capitalizar experiências anteriores de programas nacionais e comunitários (como o Programa de Iniciativa Comunitária Urban (I e II), o Polis ou Programa de Reabilitação Urbana, entre outros)[13], e ser um passo à frente no desenvolvimento da “governança multiníveis”, com modelos de intervenção inovadores, que passam “pelo reforço das dinâmicas locais para o desenvolvimento e pelo encorajamento de fortes parcerias entre a administração central, regional e local, mas também entre organizações governamentais e não governamentais.”

Segundo a socióloga Maria João Freitas, que acompanhou o processo de implementação da IBC, em entrevista concedida à autora[14], “o nível local estava em conflito nos três bairros” e a IBC funcionaria como uma “administração central” para mediar os atores envolvidos. A IBC distingue-se, assim, pelo seu caráter interministerial, pela estrutura de agentes que envolve – desde o nível ministerial a um nível mais informal –, pelo seu modelo de gestão, modelo de financiamento e ativação de recursos e pela metodologia de desenvolvimento e participação.

Dessa forma, a intervenção de cada bairro obedeceu a um modelo organizacional (Barros; Campos, 2017: 14):

· Constituição de grupo de trabalho integrando a administração central (representantes dos ministros de tutela das áreas de política setorial pertinentes para a intervenção), a administração local (câmara municipal e junta de freguesia) e outras entidades com experiência de trabalho relevante no bairro;

· Identificação das ações e projetos a desenvolver e preparação de um protocolo de parceria entre as entidades relevantes para a operação, estabelecendo: os objetivos e metas a atingir e o programa de ação a desenvolver; os compromissos assumidos por cada parceiro; os meios financeiros; e o modelo e composição de uma unidade de ação estratégica local, estrutura de animação e acompanhamento das ações a desenvolver e órgão técnico local da operação;

· Assinados os protocolos de parceria, constituição de uma “comissão de acompanhamento”, com os representantes dos ministros e da câmara municipal, incumbida de acompanhar e emitir parecer na execução do programa de ação e avaliar a operação;

· Coordenação geral e apoio metodológico das operações pelo Instituto Nacional de Habitação/ Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana – INH/IHRU), responsável por apoiar a elaboração dos protocolos de parceria e as unidades de ação estratégica local; assegurar os procedimentos administrativos para obtenção de financiamentos, o relacionamento com as entidades financiadoras[15] e a articulação com os serviços da Administração central; avaliar as experiências e incorporar os resultados nas políticas de qualificação e reinserção urbana.

O Instituto Nacional de Habitação (atualmente Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana) coordenou a montagem do plano de ação para cada território. Freitas (2017), que esteve no Instituto entre 2005 e 2010, relata sua experiência inicial no processo de implementação da IBC:

Estive no INH e IHRU entre 2005 e 2010 (…) O processo teve basicamente duas fases, a primeira foi a de preparação que culminou com uma carta de compromissos entre os parceiros para cada um dos territórios. E a carta de compromisso era o que se iria privilegiar, o que se iria fazer, como buscar o dinheiro, quem é que fazia o quê, era no fundo o plano de ação. E depois, a partir da assinatura da carta de compromisso, foi por isto a andar. E há claramente, e é importante perceber que a IBC teve claramente essas duas fases, teve uma fase que foi de preparação, até porque o modelo de gestão antes da carta de compromisso é um e depois da carta de compromisso é outro. Há este marco. O meu papel foi ajudar a montar a carta de compromisso e ajudar a concretizar. (Freitas, 2017).

Em relação à obtenção de financiamento, vale destacar que a Iniciativa tinha a especificidade de não contar com uma fonte de recurso já estabelecida. De acordo com Sousa (2008: 72), essa abordagem traduz a intencionalidade da metodologia adotada, “de fazer depender os planos de intervenção locais da focalização no diagnóstico do território, em lugar de os fazer depender de planos e montantes de financiamento previamente delimitados”. Nesse sentido, o plano experimental tinha várias fontes de financiamento e a articulação para a captação de recursos exigia também a participação e responsabilidade do conjunto de agentes envolvidos.

No que se refere ao caráter das intervenções, deveria ser dada prioridade: “a novas formas de organização para a prestação de serviços essenciais (incluindo a gestão e manutenção do espaço público e do edificado); à criação de oportunidades de emprego para os residentes e integração social de crianças e jovens; ao desenvolvimento de ações de formação e acompanhamento no acesso ao emprego; à disponibilização de espaços para atividades dos residentes (incluindo as econômicas); a iniciativas arquitetônicas, urbanísticas e ambientais inovadoras; e à reinserção funcional e urbanística do bairro na cidade envolvente” (Barros; Campos, 2017: 17).

Já a ação dos técnicos na IBC foi incumbida às unidades de ação estratégica local com apoio dos serviços técnicos do IHRU. Estas unidades eram, todavia, estruturas reduzidas, cuja função primordial foi a dinamização, facilitação e coordenação dos processos locais. A elaboração de estudos e projetos de maior envergadura foi normalmente contratada a técnicos particulares na modalidade de prestação de serviços de consultoria.

A estrutura das intervenções, composta principalmente pela Comissão de Acompanhamento, que integra representantes dos oito Ministérios, entidades governamentais e não governamentais, foi responsável: pelo monitoramento na implementação do projeto; pela Comissão Executiva com representantes do IHRU, Câmara Municipal, Ministérios e entidades; e pelas Equipes Locais de Projeto, que incluem um chefe de projeto, equipe técnica local e parcerias executivas, que trabalham conjuntamente com a equipe técnica.

Em 2012, cessaram as operações ao abrigo da IBC por iniciativa unilateral do IHRU, tendo as ações no terreno prosseguido de forma limitada, nos bairros do Vale da Amoreira e do Lagarteiro, por vontade e iniciativa dos moradores e das autoridades locais.

 

5. Iniciativa Bairros Críticos: Dimensões dos processos participativos – O Bairro do Lagarteiro (Porto)

Conforme já apresentado, no período da implementação dos programas de reabilitação PIMP e PER observa-se uma certa “lacuna” (Tormenta Pinto, 2017) na continuidade dos processos participativos realizados entre as equipes técnicas e os moradores no SAAL.

Segundo Paulo Tormenta Pinto, arquiteto que atuou em uma das intervenções da IBC[16], os programas habitacionais promovidos a partir da década de 1980 foram alvo de críticas pela ausência de processos participativos.

Com a entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia (posteriormente, União Europeia) em 1986, os programas habitacionais realizados e promovidos pelos governos são criticados por técnicos mais relacionados com as áreas da economia, sociais, sociologia, etc., por uma falta, certa lacuna no fator participativo (Tormenta Pinto, 2017).

A tentativa de compreender as dinâmicas e estruturas participativas entre equipes técnicas e moradores no SAAL e também na IBC – em especial o Bairro do Lagarteiro – tem por objetivo destacar as relações estabelecidas em diferentes contextos e contornos da política habitacional em Portugal e buscar possíveis semelhanças dos dois processos.

Considerando os diferentes contextos econômicos, políticos e sociais, a tentativa de retomada desses processos participativos através da proximidade da população e dos agentes locais pode ser apresentada na IBC nas ações no Vale da Amoreira (Moita), na Cova da Moura (Amadora) e no Lagarteiro (Porto). Cada projeto da IBC realizou dinâmicas próprias de acordo com as características do território, equipe técnica e moradores.

A intervenção no Vale da Amoreira foi dividida em cinco eixos principais, com enfoque em inserção de hortas urbanas, intervenções artísticas, formação profissional, empreendedorismo juvenil e requalificação do bairro. A atuação de arquitetos e engenheiros no Vale da Amoreira é realizada principalmente nos Eixos 1 e 2, com intervenções cromáticas para as edificações, desenvolvida pelo Laboratório da Cor da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, assim como a introdução de rede viária no interior do Bairro e inserção de estacionamento. Além disso, foi realizado o projeto para instalação de um Centro de Experimentações Artísticas (Sousa, 2012).

Já a intervenção na Cova da Moura foi dividida em oito eixos principais, a maioria com enfoque em medidas de integração social, questões ambientais, experiências artísticas e apoio ao emprego. A participação de arquitetos e engenheiros na Cova da Moura é realizada principalmente na operacionalização do Eixo “Levantamento e caracterização do edificado e da ocupação: residencial, associativa e comercial/empresarial” do Plano de Ação do Bairro iniciado pelo LNEC em 2007. Foram constituídas equipas mistas compostas por técnicos do IHRU, mas também por alguns técnicos juniores (estudantes universitários de Arquitetura e/ou Engenharia), coordenadas e supervisionadas por técnicos do LNEC (Arqt.º António Batista Coelho, Arqt.º João Branco Pedro e Eng.º António Vilhena) e coordenadas por um técnico do IHRU e pela Chefe de Projeto. A intervenção na Cova da Moura também tinha como objetivo a elaboração do Plano de Pormenor e a resolução da questão fundiária (Sousa, 2012).

Sobre os processos participativos na Cova da Moura, Freitas (2017) destaca que havia um “nível de maturidade participativo presente, com associações de moradores”. Apesar disso, constatou-se dificuldades de diálogo entre os moradores e a câmara municipal e a IBC “atua na intermediação desse diálogo para implementar o projeto de intervenção.”

De acordo com o relatório “Registo do Processo” (Sousa, 2012), a intervenção no bairro correspondia às ações de realização de diagnóstico pelo LNEC, desenho do Plano de Pormenor, melhorias nos equipamentos sociais existentes e viário, projeto artístico, experimentação de um modelo de empregabilidade, entre outras.

Ao contrário das ações no Vale da Amoreira e na Cova da Moura, o Bairro do Lagarteiro contou com dois eixos principais de intervenção. O primeiro concentrou a intervenção de caráter urbanístico e o segundo focou no desenvolvimento de um conjunto de dinâmicas imateriais. De acordo com Tomenta Pinto (2017), as intervenções sociais realizadas com a população concentraram-se mais nos grupos jovens, tentando aproximá-los por meio de uma variedade de workshops, como jornalismo, fotografia, música e outros relacionados a esportes e treinamentos para inclusão social.

O arquiteto ressalta a importância de as intervenções sociais realizadas pelo Gabinete do IHRU[17] terem ocorrido antes das intervenções físicas, o que foi “fundamental para montar esse grupo”, pois resultou no conhecimento dos moradores sobre as alterações futuras no bairro e “teve como função agregar a população”:

O IHRU nesta altura, antes do projeto de reabilitação física se iniciar, montou um gabinete de bairro com uma técnica do próprio IHRU que esteve no interior do bairro e que esteve a fazer trabalho com a população, portanto um trabalho de proximidade, essencialmente um trabalho feito com as crianças. Houve um trabalho de reconhecimento daquela população e eu considero que a existência deste gabinete foi essencial para a preparação da população com o quadro de mudança que iria ocorrer (Tormenta Pinto, 2017).

A intervenção física no Bairro do Lagarteiro foi composta por alterações nas áreas públicas, com um novo sistema viário para articular o bairro com seu entorno, por meio de novas conexões viárias para automóveis e pedestres; o redimensionamento das áreas verdes com novo desenho para permitir maior área disponível entre os arruamentos e os edifícios; a construção de muros de contenção devido à topografia irregular do terreno e também como recurso para ordenar os espaços e equipamentos existentes e a reabilitação e conservação dos edifícios.

Após a intervenção social realizada pelo gabinete local do IHRU, são lançados concursos para a escolha de arquitetos e projetos no Bairro do Lagarteiro. Nesse caso, o agente contratante foi a Câmara Municipal do Porto[18], que atuou como mediadora dos arquitetos e das ações do bairro.

Conforme já apresentado, o Arquiteto Paulo Tormenta Pinto participou da maioria das intervenções físicas realizadas no Bairro do Lagarteiro. Após vencer o concurso, as ações concentraram-se na requalificação do espaço público e, em momento posterior, após o cancelamento da IBC, na reabilitação e conservação dos edifícios. O concurso para a reabilitação dos edifícios foi dividido em duas fases: a primeira, prevista para iniciar entre 2010 e 2011, e a segunda, que deveria ocorrer em 2012, foi cancelada devido à finalização da Iniciativa. A intervenção nas edificações só foi possível após o financiamento do projeto pela Câmara Municipal.

Os edifícios, nós não ganhámos, a primeira parte. Eu fiz o espaço público todo e depois ganhámos a segunda parte dos edifícios. A parte edificada foi dividida em 2 concursos. E depois há um dado que é muito interessante: quando nós fizemos o segundo concurso para o Edificado, já era a última fase de reabilitação do bairro e aí houve a crise financeira de Portugal, o IHRU cancelou todo o financiamento. O espaço público foi construído, a primeira fase do edificado foi construída e, na segunda fase da reabilitação dos edifícios, houve o concurso, entregámos os projetos e neste momento cancelou a IBC, foi radical, acabou. O Gabinete de bairro fechou e os projetos ficaram na gaveta. Depois houve eleições para a Câmara do Porto e o executivo municipal decidiu com fundos da própria câmara financiar o projeto (Tormenta Pinto, 2017).

Tormenta Pinto (2017) destaca que nesse segundo momento da intervenção houve maior possibilidade de participação da população no projeto desenvolvido, fato que não ocorreu no momento da intervenção dos espaços públicos.

(…) O que é muito interessante, que depois, não existindo mais o gabinete de bairro, houve um contato promovido pela Câmara, agora do arquiteto com a população. E aí nós discutimos com a população as questões arquitetônicas, e aí já foi um debate mais participativo. Antes não tínhamos nenhum contato com a população, somente no dia a dia da execução da obra, etc., mas não houve discussão do projeto (Tormenta Pinto, 2017).

A intervenção no Bairro do Lagarteiro revela algumas diferenças de atuação dos técnicos, em especial do arquiteto, relacionadas às experiências anteriores em Portugal, como o SAAL. De acordo com Tormenta Pinto (2017), ao contrário da proximidade entre arquitetos e a população no SAAL, no Bairro do Lagarteiro os arquitetos foram convocados em uma fase posterior, no “segundo momento” do processo, após o desenvolvimento do trabalho social. Já no caso dos programas PIMP e PER, a diferença é ainda maior, a interação entre arquitetos e a população foi praticamente inexistente.

Aqui nós percebemos uma grande diferença da ação, por exemplo, no caso do SAAL, o que se verifica nos relatos que existem são os arquitetos junto à população a debater as questões arquitetônicas, a fazer maquetes para a população perceber como vão a ser as casas, etc., isto é significante. No caso dos outros programas, o PIMP e o PER, o arquiteto está completamente afastado, mas ele de certa maneira é um protagonista, é uma figura “iluminada”, que com seu conhecimento disciplinar sobre a arquitetura, sobre a história da arquitetura, sobre as experiências arquitetónicas, sua cultura arquitetónica, é-lhe dada a confiança para desenhar o quadro da mudança. E, portanto, passamos para um “terceiro estágio” onde o arquiteto está fora e há todo um debate sobre a implementação deste modelo que está na esfera da economia social, da sociologia e da geografia (Tormenta Pinto, 2017).

A participação dos arquitetos na fase posterior no Bairro do Lagarteiro é analisada por Tormenta Pinto (2017) como o “efeito de uma ressaca” do protagonismo dos arquitetos estabelecido principalmente na década de 1990 na Europa, com grandes nomes da arquitetura mundial. Assim, em eventos como o Congresso da UIA em Barcelona, em 1996, por exemplo, “as pessoas na altura queriam tocar na Zaha Hadid, era uma coisa, arquiteto um pouco estrela de rock”. Dessa forma, “a IBC seria certo efeito desta ressaca em Portugal, um processo onde é altamente criticado este certo protagonismo dos arquitetos”.

Eu acho que na IBC a ação dos arquitetos num momento secundário não é uma ação deliberada, é toda uma discussão que se vai iniciando dentro de outro setor que não reconhece a necessidade e a relevância. E também porquê? Porque deixou de haver da parte dos arquitetos uma afirmação social e ideológica sobre o problema que eles próprios tratam. Por exemplo, no caso do SAAL, há arquitetos que estão muito na linha da frente do debate político, são figuras intransponíveis que, para além da sua atividade como arquiteto, são pessoas que estão na linha da frente de toda a ideologia que envolve a Revolução de 25 de abril. De certo modo, o sucesso de “disciplinariedade” que a profissão foi adquirindo nos anos que seguiram acabou por potenciar um discurso muito mais “para dentro”, da própria profissão do que para fora. Não quer dizer que os arquitetos não tivessem uma opinião, não tivessem estas preocupações, não fossem sensíveis. Mas o que é certo é que tem a ver com o próprio posicionamento, digamos, cívico em torno destas matérias (Tormenta Pinto, 2017).

Nesse contexto, o arquiteto afirma que essa “lacuna” estabelecida na IBC revelou a necessidade de aproximação com a população. O contrato do trabalho com a Câmara do Porto não previa a intervenção de trabalho social, e a ação limitada nas intervenções físicas foi considerada insuficiente como prática participativa.

No meu contrato estava para eu desenvolver o estudo da intervenção física, precisamos de você “assim e assim” e pronto. “Você é arquiteto e faz o projeto e responda às nossas necessidades”. Para mim era pouco. Foi importante um envolvimento ainda que não tenha resultado, num primeiro momento, num envolvimento direto com a população, que eu acho que aqui pode ser considerada certa lacuna da IBC, que foi esta integração dos arquitetos numa fase posterior (Tormenta Pinto, 2017).

 

6. Reflexões finais

Esse artigo buscou contribuir para a compreensão da trajetória dos projetos de intervenção urbana em Portugal implementados a partir da década de 1970 a partir de campos de análise relacionados com as principais diferenças e semelhanças entre as experiências de intervenções urbanas SAAL e IBC. As duas experiências têm estruturas complexas e cada intervenção do SAAL e da IBC possuem características particulares que envolveram a atuação de diferentes equipes técnicas, interlocutores e territórios. As dinâmicas nos territórios de intervenção no SAAL (SAAL Algarve, SAAL Lisboa e Centro-Sul, SAAL Norte) foram distintas entre si e as ações realizadas nos três territórios da IBC (Vale da Amoreira, Cova da Moura e Bairro do Lagarteiro), também assumiram características particulares.

No caso do SAAL, observa-se as possíveis interlocuções com as experiências participativas realizadas entre equipes técnicas e moradores no Brasil através da atuação do Grupo Quadra no Rio de Janeiro. Nesse contexto inauguram-se espaços de debates a partir das proposições apontadas pela luta dos movimentos sociais pelo direito à cidade e pelas novas formas de intervenção do Estado. A metodologia do trabalho desenvolvida pelo SAAL integrava um modelo pioneiro de processo participativo entre técnicos e moradores.

Já na IBC não constatamos a continuidade ou desmembramentos das influições das experiências brasileiras. De certa forma, os programas de realojamento implementados após o SAAL até meados da década de 1980, no contexto de “indefinições da política habitacional” (Antunes, 2018: 503) revelam que os processos participativos e o protagonismo dos técnicos com a população se alteraram ao longo do tempo.

Outra característica relaciona-se com a escala de intervenção e os momentos distintos da participação. No SAAL, foram 169 operações em diferentes regiões do país enquanto na IBC as intervenções foram realizadas em 3 regiões localizadas na Área Metropolitana de Lisboa e no Porto. De acordo com os registros e pesquisas já realizadas, no SAAL os moradores acompanharam os processos junto às equipes técnicas desde o início, fato que não ocorreu em todas as experiências da IBC.

Como apresentado, nas 3 intervenções da IBC há diferentes eixos de ações com medidas que percorreram aspectos sociais, urbanísticos, ambientais, econômicos e de moradia. Além disso, foram constituídas equipes mistas e diferenciadas em cada intervenção, compostas por técnicos do IHRU, estudantes de arquitetura e engenharia, agentes das Câmaras Municipais, e cientistas sociais.

Na intervenção do Bairro do Lagarteiro destaca-se a integração dos arquitetos numa fase posterior – no “segundo momento” – do processo, após o desenvolvimento do trabalho social pelo Gabinete do IHRU. No SAAL, a participação dos arquitetos ocorre desde o início e contou com a atuação de equipes multidisciplinares integrando também engenheiros civis, matemáticos, sociólogos, assistentes sociais e profissionais de outras áreas.

As experiências das intervenções urbanas SAAL e IBC e dos programas de realojamento PIMP e PER apresentadas nesse artigo evidenciam a necessidade da continuidade de novos estudos e avaliações que considerem a análise dos demais agentes das políticas habitacionais – moradores, demais técnicos do IHRU, Câmaras Municipais – como forma de promover maiores reflexões sobre seus processos participativos, estruturas organizacionais e desenhos operacionais.

 

Bibliografia

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Recebido: 25-06-2020; Aceite: 09-10-2020

 

NOTAS

[2]A Revolução dos Cravos pôs fim ao período ditatorial do Estado Novo, dando origem ao “Programa dos três D: Democratizar, Descolonizar e Desenvolver”. Em 25 de abril de 1975, ocorreram eleições livres para a Assembleia Constituinte, que elaborou uma nova Constituição, com fortes características socialistas, que instituiu o regime de democracia parlamentar, no qual a habitação digna foi apresentada como um direito da população e inscreveu o direito à habitação e ao urbanismo entre os direitos e deveres sociais.

[3]Nuno Portas (1986: 636) salienta que as ideias do SAAL já estavam delineadas alguns anos antes da Revolução desde o final da década de 1960, aguardando condições políticas para espoletar a vontade dos próprios interessados – as populações – de aceitarem um acordo com o aparelho do Estado detentor de parte de meios imprescindíveis.

[4] Entrevista realizada em 24/04/2017.

[5]Ao longo da década de 1960, Nuno Teotónio Pereira será o impulsionador da constituição de uma política habitacional de Portugal.

[6]Segundo Rita Ávila Cachado (2013: 137), a partir da década de 1970, a construção clandestina aumentou em toda a área metropolitana de Lisboa. Um dos fatores que contribuiu para este crescimento foi um vazio da promoção legal da habitação. Em face das ausências de alternativas e programas habitacionais, a construção dos bairros clandestinos permitiu satisfazer as necessidades familiares. Uma parte dos bairros clandestinos é conhecida pela designação “bairros de barracas”, que cresceram muito nesse momento, não só em virtude da crise financeira, como também devido ao afluxo de imigrantes na sequência da independência das ex-colónias africanas.

[7]O LNEC teve papel importante na pesquisa sobre cidade e habitação e, entre 1963 e 1980, contava com a presença de Nuno Portas como funcionário e investigador do laboratório, que estudava a questão do habitat.

[8]Entrevista de Nuno Portas concedida a Sanches (2015).

[9]As relações top-down monopolizaram as operações de realojamento habitacional entre 1933 e 1974, durante o Estado Novo português (Antunes, 2018).

[10]Vale destacar o projeto de investigação “Experts” realizado desde 2016 por meio da parceria entre o ICS-ULisboa , o IGOT-ULisboa , e o CIES-ISCTE e financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). A pesquisa pretende compreender o papel dos técnicos nas políticas públicas por intermédio do Programa Especial de Realojamento (PER). Para detalhes sobre a pesquisa, ver: https://expertsproject.org/about/.

[11]Destacamos o Programa de Requalificação Urbana e Valorização Ambiental das Cidades (POLIS) e o Programa Integrado de Qualificação das Áreas Suburbanas da Área Metropolitana de Lisboa (PROQUAL).

[12]Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional, Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social, Ministério da Educação, Ministério da Cultura, Ministério da Administração Interna, Ministério da Saúde, Presidência de Conselho de Ministros e Ministério da Justiça.

[13]A Iniciativa Comunitária Urban foi realizada em dois períodos, entre 1994 e 1999 e entre 2000 e 2006 em diversas cidades europeias. O Polis XXI é a designação que a Política de Cidades assumiu em Portugal entre 2007 e 2013.

[14]Entrevista realizada em 06/04/2017.

[15]Incluindo o envolvimento de financiadores privados.

[16]A IBC contou com três intervenções: Bairro do Lagarteiro (Porto), Vale da Amoreira (Lisboa, Amadora) e Cova da Moura (Lisboa, Moita). O arquiteto atuou na intervenção no Bairro do Lagarteiro.

[17]Segundo Freitas (2017), os funcionários dos gabinetes locais eram formalmente contratados pelo IHRU, mas respondiam à Comissão Executiva. Pinto (2017) também afirma que eram funcionários públicos: “Embora a ação mais visível na preparação do bairro para a intervenção corresponde essencialmente a presença deste gabinete. O nome é Gabinete do IHRU com técnicos sociais e que tiveram durante um período a fazer este trabalho.” (Entrevistas concedidas à autora em 06/04/2017 e 24/04/2017, respectivamente).

[18]Vale destacar as diferenças do Brasil. Em Portugal, é eleito um presidente da Câmara Municipal e uma equipe executiva. O presidente é eleito com uma equipe de vereadores, portanto, os vereadores não são votados separadamente como no Brasil. Além disso, há a Assembleia Municipal, local, para debates para as ações da Câmara.

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