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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.41 Lisboa dez. 2020

https://doi.org/10.15847/cct.21869 

ENSAIO

 

Das pedras mortas às práticas vivas: Do património material à relevância do património imaterial

From dead stones to living practices: from material heritage to the relevance of intangible heritage

 

Manuela ReisI

[I]CIES-Iscte, Portugal. e-mail: manuela.reis@iscte-iul.pt

 

 


RESUMO

Acompanhando perspectivas culturais europeias, em reformulação desde os anos 1960, que se aprofundaram sobretudo nos anos 1970/80, importantes transformações associadas ao conceito de património ocorreram na sociedade portuguesa do pós-25 de Abril. Herdeira de concepções monumentalistas do património e de políticas centralistas que concentraram no Estado a exclusividade da sua preservação, cabendo-lhe enunciar o património a proteger e consagrar para o usar como símbolo do poder e da identidade nacional, a sociedade portuguesa foi nas duas últimas décadas desafiada por aquelas concepções e práticas patrimoniais. Enquanto instituição cultural, não só o património deixou de confinar-se aos edifícios de carácter histórico-monumental, como também a sua definição passou a integrar perspectivas de outros protagonistas além do Estado. Expressão inventada para dramatizar o fenómeno social da explosão de sítios patrimoniais, considerado como a “obsessão moderna” pelo passado idealizado perante a acelerada perda de referências sólidas de um mundo globalizado em constante mutação (Hewison, 1987; Lowenthal, 2002- [1985]), o heritage boom trouxe também à sociedade portuguesa a discussão sobre novas categorias de bens culturais patrimonializáveis, símbolos e representações do passado longínquo ou mais recente que o avanço da modernidade coloca em risco de destruição ou esquecimento. Formas de arquitectura erudita ou vernacular, urbana e rural, edifícios públicos e privados, monumentais e não monumentais, velhos edifícios industriais, cidades ou conjuntos urbanos, paisagens e contextos ecológicos em risco, saberes, técnicas, actividades e culturas em regressão ou subalternizadas convertem-se tendencialmente em património. O crescimento e a certificação da categoria “património imaterial” constitui-se como um poderoso meio de pressão política para a extensão dos bens patrimonializáveis. Pressão política, contudo, ambivalente, que tanto pode dotar as comunidades, nomeadamente rurais, de instrumentos para minimizar o processo de marginalização a que foram sendo sujeitas, quanto, pelo contrário, mascarar essa marginalização, ou, até, exponenciá-la, através da imposição de processos artificiais de salvaguarda de patrimónios que perderam os actores principais da sua sustentação.

Palavras-chave: Política do património, património material e imaterial, comunidades.


ABSTRACT

Important changes associated with the concept of heritage occurred in Portuguese society after the 25th of April. To its extent, Portugal followed and integrated in its practices of safeguarding and enhancing heritage the main European cultural perspectives in reformulation since the 1960s, and which deepened especially in the 1970s and 1980s. In the last two decades, monumentalist conceptions of heritage and centralist state policies that monopolize the safeguarding and definition of heritage, as a symbol of national power and identity, have been challenged. As a cultural institution, not only does heritage no longer concern only monumental buildings, but also the perspectives of other social actors are now part of the definition of heritage. Heritage boom - an expression that dramatizes the social phenomenon of the explosion of heritage sites, considered as the “modern obsession” for the past idealized due to the accelerated loss of solid references in a globalized world in constant change (Hewison, 1987; Lowenthal, 2002- 1985]) -, also arrived in Portugal. In the past 20 years, Portugal has also been involved in the discussion about the new categories of heritage, symbols and representations of the distant or recent past that the advance of modernity put at risk of destruction or oblivion. Thus, forms of erudite or vernacular architecture, urban and rural, public and private or monumental and non-monumental buildings, old industrial buildings, cities or urban complexes, landscapes and ecological environments at risk, skills, techniques, marginalized and regressing activities and cultures tend to become heritage. The growth and certification of the “intangible heritage” category is a powerful weapon of political pressure for the extension of heritage assets. It is, however, a form of ambivalent political pressure. It can either provide communities, particularly rural communities, with instruments to minimize the marginalization they have suffered, or mask it through artificial processes to safeguard heritage assets that have already lost the social actors that supported them.

Keywords: heritage policy, material and immaterial heritage, communities.


 

Internacionalização, descentralização, diversidade: os últimos 40 anos

Internacionalização, descentralização, diversidade são as três expressões que melhor caracterizam os processos de patrimonialização ocorridos na sociedade portuguesa nas últimas quatro décadas.

Em primeiro lugar, abrindo o país ao espaço europeu, a progressiva consolidação do regime democrático permitiu beneficiar de ajuda financeira primordial que foi aplicada em grandes intervenções no património edificado e na modernização dos museus existentes. Através dos fundos canalizados pelos II e III Quadros Comunitários de Apoio, respectivamente, entre 1994-99 e 2000-2006, a sociedade portuguesa conheceu decisivo movimento de renovação e valorização do seu património cultural, que se acentuou a partir dos primeiros anos do século XXI, graças ao POC-Programa Operacional da Cultura, primeiro e único programa europeu inteiramente dedicado ao desenvolvimento do sector cultural. Profunda reorganização das instituições estatais que tinham a seu cargo a gestão do património, eis outra consequência da aplicação desses programas (Quadro Comunitário de Apoio II/POC, 1994-99; Quadro Comunitário de Apoio III/POC, 2000-06).

Porém, é na partilha de políticas e orientações relativas ao património que se destacam as consequências da exposição do país à influência das instituições europeias e internacionais sobre esse domínio, influência que se consolida com a plena integração na União Europeia.

Por entre o conjunto das transformações que internacionalmente foram moldando a filosofia sobre a conservação dos bens culturais, salienta-se o interesse pelo património não monumental ou por manifestações, memórias e tradições culturais que expressam mais o “espírito do lugar” e menos a monumentalidade dos edifícios, demasiado associada à cultura ocidental. Organismos internacionais, como a Unesco e os seus departamentos, procurando através da cultura e da educação disseminar a doutrina dos direitos humanos, voltam as suas políticas, timidamente desde os anos 70, de modo mais assertivo no final da década de 90, para os países e as culturas cujo património, feito de poucos monumentos e ruínas, é mais “um passado de palavras e não de pedras” (Lowenthal, 2003: 20).

“A reconstrução do discurso histórico na Europa consiste em desnacionalizar a patrimonialização para em simultâneo a generalizar (descobrir o maior número de denominadores comuns) e a regionalizar (marcar o maior número de diferenças) segundo critérios sempre fluidos porque se a generalização pode conduzir à abstracção mais desencarnada, a fragmentação pode criar diferença onde ela não existia” (Karnoouh 2003: 37, realces nossos).

Certeiras do entendimento sobre as finalidades do património cultural no espaço europeu, estas observações captadas em documento do Conselho da Europa denunciam bem os objectivos políticos do património no momento de aprofundamento da construção europeia. Contribuir para a formação de uma identidade comum à custa da despolitização dos patrimónios nacionais – aqueles que dividem porque identificam nações –, protegendo e incorporando ao mesmo tempo minorias culturais sem ressuscitar dissentimentos que as mesmas nações (ou estados-nação) apagaram. Evocados pelo talento literário de Cláudio Magris, nos anos 80, no preciso período de alargamento da União Europeia, o mosaico étnico-cultural da Mitteleuropa e o complexo xadrez político em que historicamente se equilibra recordam bem quantas fragilidades de natureza cultural espreitam a unificação europeia (Magris, 2010- [1986]).

Embora o problema das minorias culturais ou subculturas em Portugal não se revista da mesma natureza, nem das mesmas proporções, as filosofias daquelas recomendações europeias não deixaram de ser seguidas entre nós.

Depois de cuidados e renovados os principais conjuntos monumentais e devidamente enquadrados por uma nova retórica identitária, os mesmos símbolos usados pelo Estado Novo, subsumidos na época dos Descobrimentos, projectavam agora a imagem de uma sociedade cosmopolita e precursora no contacto e na difusão multiculturais (Santos, 1998; Sobral, 2006). Porém, a menor monumentalidade do seu património, em comparação com o de algumas capitais europeias, reforçava a valorização de outros bens desaparecidos de outras metrópoles – “a singularidade do seu pitoresco, do intimismo dos seus bairros antigos, dos seus quadros panorâmicos” (Gonçalves, 2008: 143) –, e, do mesmo passo, em sintonia com várias regiões periféricas ou rurais da Europa, a capacidade de revelar e exibir manifestações culturais de territórios e actividades em perda, mas ainda recuperáveis para a patrimonialização.

A sociedade portuguesa chegará, contudo, mais tarde a este processo.

Dotando-se de novas estruturas orgânicas e administrativas para a gestão do património, sustentadas nos fundos comunitários, a Administração concentrou os esforços, nas primeiras décadas a seguir ao 25 de Abril, no património edificado dos monumentos, centros históricos ou conjuntos urbanos. Outros protagonistas, nomeadamente associações de defesa do património ou interesses locais através dos seus municípios, cultural e socialmente disponíveis para a valorização de patrimónios menos reconhecidos, pouco ou raramente foram mobilizados durante o “período de obras” que marcou essas décadas. A leitura dos relatórios e balanços que a Administração foi publicando sobre as políticas do património nesse ínterim atesta bem quanto a insistentemente apregoada “mudança de paradigma” não foi além dos assuntos técnicos associados à dimensão física e monumental do património reconhecido (IPPAR, 1993, 1995, 2000; IGESPAR, 2010; Pereira, 2010).

Com efeito, a percepção do património que não se confina aos especialistas em arte e engenharia ou economia do turismo, que envolve outros territórios para além dos tecidos urbanos, incorporando a vertente ambiental e imaterial, e que inclui outros actores sociais para além da Administração, só mais tarde se instalou na sociedade portuguesa. Tradições populares, rituais e festas, gastronomia, feiras, pequeno comércio e certificação de produtos artesanais, museus rurais, sítios industriais tomaram também corpo e expressão no processo de patrimonialização, embora apenas nas primeiras décadas do séc. XXI encontrassem apoio e reconhecimento dos poderes públicos centrais.

No que respeita aos seus impactos público-mediáticos, esta outra face do património desenvolveu-se de forma mais surda, embora com maior entrelaçamento social e graças sobretudo à descentralização política que a veio beneficiar. Como vários estudos confirmam, a expansão das actividades culturais, incluindo a criação de novos equipamentos e espaços, mas também a promoção de patrimónios locais, não se conta entre as menores do conjunto das realizações do poder autárquico (Mozzicaffredo et al, 1989; Fortuna e Silva, 2002, Silva e Santos, 2010).

A diversificação das dinâmicas culturais, entre as quais sobressaem as relativas ao património, e a sua extensão aos espaços locais, nomeadamente às cidades de média dimensão, articulam-se, pois, com três períodos fundamentais de desenvolvimento da sociedade portuguesa: “a institucionalização da democracia, a integração europeia e as políticas culturais dos municípios, sobretudo a partir dos anos 80” (Silva e Santos, 2010: 13). Mas, o ciclo do heritage boom em Portugal não ficaria concluído sem referência à mobilização das comunidades em torno do seu património. Difícil de avaliar, porquanto também neste domínio há diversidade quanto à capacidade para manter projectos auto-sustentáveis. No entanto, é, pelo menos, justa a menção a algumas estruturas associativas que, no terreno, foram sobrevivendo à custa de metamorfoses, ora dos objectivos iniciais – velhas associações recreativas que se transformam em associações de defesa do património, como aconteceu, por exemplo, a propósito da descoberta das gravuras rupestres no Vale do Côa –, ora dos seus activistas e colaboradores, desde os que tendo emigrado para os grandes centros urbanos, mantém “ligações à terra”, até às novas classes médias que o dinamismo de algumas autarquias foi conseguindo atrair (Lima e Reis, 2001; Reis, 2016).

Assim, a descentralização que envolve este tipo de património é importante não tanto no sentido da sua ligação aos órgãos do poder local, mas sobretudo na acepção, não menos despicienda, do regionalizar acima conceptualizado pelo técnico do Conselho da Europa. Envolvendo práticas sociais ainda em uso ou que a memória actualiza sem esforço, contextualizando-se nos mais variados tipos de espaços, urbanos, rurais, ou de obsolescência industrial, tecnológica ou agrícola, a preservação e valorização de objectos, actividades, saberes, memórias tem a particularidade de permitir inscrever fora dos grandes centros urbanos paisagens culturais que complementam, pela sua diferença, os patrimónios nacionais.

 

A relevância do património material em Portugal

Bastará comparar o Art.º 1 da Carta de Veneza, de 1964, com os Art.º 1 e 2º da Convenção para a Protecção do Património Mundial, Cultural e Natural, de 1972, para se entender o que mudou na década de 70 nas concepções e orientações internacionais. Em 1972, aparece, pela primeira vez, a designação de Património em substituição da denominação preferencial de Monumento que se encontrava inscrita nos dois documentos anteriores, Carta de Atenas, de 1931, e Carta de Veneza de 1964[2].

Inicia-se, neste período, uma nova fase na concepção dos bens culturais a proteger, enquanto se esboça o preâmbulo de uma nova cultura política de intervenção no património. A ênfase recai agora nos lugares ou sítios que se expressam materialmente em espaços urbanos e não urbanos, contendo ou não monumentos, ou paisagens naturais. Do mesmo passo, ao prever a atribuição de valor universal para qualquer dos tipos de património, independentemente da sua origem, esta Convenção promove, ainda que timidamente, a aproximação e a integração de tradições ou universos culturais, nomeadamente não europeus, de que a noção ocidental de monumento se achava mais afastada. Finalmente, conforme o Art.º 5 a) da mesma Convenção, ao “adoptar uma política geral que vise determinar uma função ao património cultural e natural na vida colectiva e integrar a protecção do referido património nos programas de planificação geral” (realce nosso), deixa-se sinalizada a porta por onde mais tarde haverá de entrar o envolvimento cívico e político das populações e comunidades na definição do seu próprio património.

Embora no Portugal democrático se fosse impondo progressivamente uma noção alargada e englobante de património, consagrada nos textos oficiais dos organismos da Administração Pública com essa atribuição e responsabilidade, a verdade é que, em termos financeiros, técnico-científicos e jurídicos, as prioridades da recuperação e salvaguarda patrimoniais continuaram – como nos períodos áureos dessa opção durante o Estado Novo – concentradas nos grandes monumentos nacionais ou em infra-estruturas de bens culturais associados às grandes obras-primas da pintura e das artes decorativas. É assim que, decorridos quase 20 anos depois do 25 de Abril, em 1993, na Exposição «Dar futuro ao passado», organizada pela Secretaria de Estado da Cultura, se apresenta como balanço da actividade de protecção do património a «recuperação e revitalização dos grandes Palácios Nacionais, [do] Mosteiro dos Jerónimos e [da] Torre de Belém [além de] outras intervenções em curso em mais de 70 monumentos nacionais» (IPPAR, 1993: 10). Publicações posteriores da Administração não fazem mais do que sublinhar esse percurso, ainda que alargado a um conjunto mais vasto de imóveis classificados (IPPAR, 1995; IPPAR, 2000).

É certamente no quadro das opções patrimonialistas identificadas que se encontrará explicação para a eficácia da capacidade técnico-científica e político-administrativa daqueles mesmos Institutos do Património, conseguindo, logo em 1983, colocar simultaneamente cinco sítios patrimoniais nas listas do Património Mundial da Unesco[3], apesar de a Convenção da Unesco de 1972 ter sido ratificada somente em 1979 (Decreto nº 49/79, de 6 de Junho) e ter entrado em vigor um ano depois.

Também não deixa de ser significativo o facto de, em Dezembro de 2013, em fórum de discussão radiofónica[4] destinado a debater «Os 30 Anos de Património Mundial em Portugal», os especialistas convidados, com funções de direcção em organismos governamentais do património cultural, terem concentrado a discussão nos cinco monumentos assinalados. Entretanto, entre 1995 e 2013, o país qualificara mais nove sítios nas listas do Património Mundial[5], aos quais se acrescentou o Fado, classificado em 2011 nas listas do Património Cultural Imaterial, e a Dieta Mediterrânica, na mesma categoria de bens culturais, certificação que viria a ser obtida no mês de Dezembro de 2013. Porém, nenhum destes bens patrimoniais suscitou qualquer referência ou comentário aos intervenientes no debate.

A retórica sobre a evolução do conceito de património, que o descentraria do Estado e das elites político-culturais para o partilhar com o público e as comunidades, dessacralizando o poder pericial da História e da Arquitectura, não chegou afinal tão cedo às práticas patrimoniais do Portugal democrático. Plasmada nos textos com poder normativo e definitório, essa retórica que percorre os discursos emitidos a partir dos vários níveis institucionais – das convenções internacionais ao quadro normativo nacional, das filosofias e recomendações implícitas nas acções dos protagonistas da intervenção patrimonial às teorias dos especialistas – não parece, de facto, ter-se incorporado nas disposições e representações de boa parte dos profissionais do património, apesar das suas proclamações sobre “a dissipação da visão monumentalista do património … [que pressuporia a competência] de o enunciar cada vez mais como um problema das comunidades e do bem-estar e cada vez menos como um problema de arquitectos ou historiadores” (Pereira, 1997: 23).

A história dos Institutos que em Portugal foram tendo a incumbência de regular e gerir o património, e das sucessivas remodelações na sua orgânica, é outro testemunho da trajectória das reconceptualizações a que o património foi estando associado. Nessa trajectória estão também inscritas importantes recomposições sócio-profissionais que deram lugar a alterações do estatuto e do poder das classes profissionais associadas a esta esfera cultural. Do que não há dúvida, porém, é do poder instalado na Administração Pública, nos diferentes serviços e institutos que foram tutelando o património, de uma classe de profissionais, engenheiros primeiro, arquitectos e historiadores da arte mais tarde, cuja visão monumentalista, na perspectiva, e, positivista, na metodologia, “contaminou” e condicionou duradouramente, em diferentes sectores da sociedade portuguesa, a constituição do campo do património, tanto nos seus usos e significados quanto nas suas formas de abordagem.

O Instituto Português do Património Cultural (IPPC) foi o primeiro a ser criado, entre 1980-1992 (Dec. Lei 34/80, 2 Agosto). Como a própria designação sugere, albergava desde a sua constituição a visão integrada do património, estendendo-a a “todos os bens materiais e imateriais que pelo seu reconhecido valor próprio, devam ser considerados como de interesse relevante para a permanência e identidade da cultura portuguesa através do tempo” (Lei 13/85, 6 de Julho, Art.º1), centralizando num único órgão as competências relativas a todos os tipos de património: arquivos, museus, palácios, monumentos, restauro, arqueologia, etnologia, etc.. Naquele documento fundador, encontramos o que a linguagem jurídica designa por princípio da unidade do regime de protecção aplicado aos bens culturais, destinado a assegurar uma base jurídica comum para todos os tipos de bens culturais patrimonializáveis, sem diferenciar regimes de protecção e valorização, ainda que a especificidade de alguns desses bens pudesse vir a justificar excepções.

Porém, cedo se perde esta visão integrada do património. Por dificuldades de gestão, a que certamente não será alheia a incomensurabilidade de paradigmas[6] em presença, inicia-se, ainda dentro deste Instituto, até 1992, o processo de separação de vários sectores, sobretudo bibliotecas, arquivos e museus. Sucede-lhe o Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico (IPPAR), que, entre 1992-97, fazendo jus à própria designação, passa apenas a integrar os monumentos e sítios classificados, incluindo sítios arqueológicos. Em 1997, sofre a primeira grande reestruturação, na sequência da descoberta das gravuras rupestres do Vale do Côa e da forte contestação que a aliança entre arqueólogos “activistas” e os media, inédita na sociedade portuguesa, moveu contra o IPPAR e a EDP (Gonçalves et al, 2001). Deste processo resultou a cisão do IPPAR, dando lugar, entre 1997-2006, a dois Institutos que passaram a gerir o património arqueológico (IPA) e o património arquitectónico (IPPAR), em estruturas diferenciadas, embora a este último – que aparentemente não perdera a função de paradigma dominante – continuassem a caber as competências de classificação, desclassificação, protecção e conservação dos imóveis ou sítios arqueológicos (Decreto-Lei 120/97, 16 de Maio).

A comprovar a força e autoridade do património construído está a fusão que, em 2007, junta de novo os dois institutos numa mesma estrutura, Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico (IGESPAR), a que se associam, desta vez, alguns serviços da extinta Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN) (Decreto-Lei 96/2007, 29 de Março)[7]. Esta nova estrutura mantém-se até 2012, ano em que é transformada em Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), agregando outros sectores do património [8].

A última estrutura criada parece indiciar na sua recomposição o retorno à perspectiva do património integrado que norteara, embora sem sucesso, o primeiro instituto (IPPC) nesta área constituído no pós-25 de Abril. O recém-criado Departamento do Património Imaterial aparenta configurar uma nova política do património, desta vez apontando para a integração das suas dimensões materiais e imateriais.

O quadro institucional que há mais de meio século tutela a defesa e valorização do património cultural na sociedade portuguesa, composto e recomposto por estruturas herdadas do regime anterior, parece indiciar disposições longamente adquiridas e incorporadas no habitus técnico-científico e administrativo dos recursos humanos dessas instituições. Especialmente orientadas para a intervenção em edifícios monumentais, as práticas patrimoniais só mais tardiamente, e talvez apenas na retórica, se dirigiram a outras categorias e dimensões do património[9].

Com efeito, que outro significado se pode retirar do balanço sobre as estratégias da política patrimonial do IPPAR, quando, em 2000 e após 26 anos de gestão em democracia nesse sector, os seus dirigentes se propõem desenvolver “uma nova política patrimonial” assente, nas palavras dos seus autores, “em três pilares: 1) uma nova atitude perante o património; 2) um novo relacionamento com os demais agentes e entidades ligadas directa ou indirectamente com o património; 3) a reconciliação da Sociedade com o património” (IPPAR, 2000: 18/ss)?

Três pilares, sem dúvida, que resumem de forma exemplar a dissonância de que temos procurado dar conta entre as reconceptualizações operadas no campo do património, de pronto assumidas na retórica, e as práticas políticas dos agentes a quem tem cabido a função de as executar. Com efeito, de que se trata quando se refere a necessidade de “reconciliação” da sociedade com o património? Da parte de quem é suposto havê-la?

Estudos sobre as atitudes dos portugueses relativamente ao património revelam com clareza que a reconciliação da sociedade com o património se tem gradualmente consolidado – se é que alguma vez se deslaçou –, para além de identificarem a adesão social generalizada aos valores de protecção do património cultural e ambiental e a existência de organização associativa neste sector, evidenciando crescimento continuado e progressivo desde os anos 80 ((Reis, 2004; Reis, 2016)[10]. O âmbito local e regional de actuação da maior parte dessas associações testemunha bem da eficácia no terreno do alargamento da noção de património. Se, em Portugal, essa eficácia se pode relacionar com o aumento, verificado nos últimos 40 anos, do desenvolvimento da arqueologia e respectiva valorização dos seus achados, também não pode deixar de resultar da explosão dos patrimónios locais, em boa parte dos casos tipificando memórias, saberes, práticas da sociedade rural em acelerada decomposição, mas onde ainda é possível encontrar e mobilizar os detentores desse património.

Com base no balanço sobre os processos de patrimonialização que até agora identificámos, torna-se evidente a necessidade de convocar para a discussão outros entendimentos e práticas sobre o património. Herdeira de uma concepção de património fortemente associada, por um lado, à ideia de monumentos de grande valor arquitectónico ou de objectos artísticos singulares de elevado simbolismo histórico, por outro, à ideia de que a sua preservação está reservada à administração exclusiva do Estado e ao parecer das elites em cuja competência técnico-científica se baseia, a sociedade portuguesa desafiou, nos últimos anos, esse entendimento. À semelhança, aliás, do resto da Europa, de onde afinal esta ideia é originária e no seio da qual também surgiram os factores da sua superação.

 

Controvérsias sobre o património imaterial

No início do século XXI, haveria de chegar mais uma categoria de património. Consagrada internacionalmente na Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial e adoptada pela Conferência Geral da Unesco em 2003, essa categoria institucionalizou definitivamente a abrangência do conceito. Depois do património arquitectónico e monumental, depois dos conjuntos históricos, urbanos e rurais ou arqueológicos, depois dos jardins históricos e das paisagens naturais, depois do património rural e das paisagens culturais, chegava finalmente o património imaterial ou intangível, aquele que é afinal o constituinte comum de todos os bens culturais, incluindo o património edificado, mas que o racionalismo da cultura ocidental, ao transformá-lo em categorias, foi diferenciando e expurgando das suas manifestações simbólicas (imateriais).

Todo o património, independentemente da sua expressão física, material, tem uma dimensão imaterial. É a dimensão do sentido, a dimensão do significado que os actores sociais historicamente lhe vão atribuindo e com a qual, através de reinterpretações sucessivas, seleccionam e criam património. Por conseguinte, o acto de objectivar um bem como património – definir, classificar, preservar, valorizar, usufruir – é um processo de construção social que se joga sempre num quadro de relações de poder em que diferentes sectores lutam para impor a sua visão, a visão legítima, para usar as palavras de Bourdieu, sobre o património (Reis, 2009). A atenção a esse processo de construção social permite compreender os processos, os actores sociais, as estratégias e os contextos implicados nos processos de patrimonialização até agora dominantes na sociedade portuguesa. Com a consagração internacional do património cultural imaterial, outros protagonistas, outros profissionais e outros saberes, outros patrimónios e outras estratégias de mediação entram agora no terreno.

Em Portugal, a ratificação da Convenção foi validada pelo Decreto-Lei n.º 139/2009, sendo no ano seguinte complementada pela Portaria n.º 196/2010, embora o processo de preparação dos instrumentos normativos de regulação do património imaterial, com vista à institucionalização de políticas públicas para a sua salvaguarda, se tenha iniciado desde 2007. O primeiro diploma, colocando em estreita articulação as normas da Convenção com a Lei de Bases do Património Cultural (Lei 107/2001), que já continha directrizes sobre o património imaterial, embora não tivessem sido postas em prática, concedeu ao Instituto dos Museus e da Conservação a função de tutela deste património, dotando-o dos recursos e instrumentos necessários, nomeadamente o Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial (INPCI). Através do segundo diploma (Portaria n.º 196/2010), definiam-se as condições técnicas de identificação, estudo e documentação que deveriam orientar a inscrição no inventário (Costa, 2013a: 45/ss; Costa, 2013b).

Antes de encetarmos uma leitura crítica destes documentos e discutir os efeitos da constituição legal e administrativa de mais um campo no património, três comentários se impõem.

Em primeiro lugar, o facto de caber aos museus e às suas estruturas administrativas o acolhimento deste tipo de património. Há quem argumente estarem as práticas museológicas, habituadas à gestão de inventários das suas colecções, mais próximas da especificidade, de natureza técnico-metodológica, que o património imaterial coloca quanto ao seu registo e protecção. Posição defendida, nomeadamente, no seio do Instituto dos Museus e da Conservação (Costa, 2013a). No entanto, esta é uma questão controversa não tanto, todavia, por causa da intangibilidade deste património. Na verdade, como se deixou explícito, todo o património tem um valor imaterial, independentemente das suas manifestações serem materiais ou imateriais. O problema é que, tendo sido duradoura e consistentemente ignorado ou menorizado pelas concepções dominantes, mesmo as museológicas, esse valor reaparece agora em todas as vertentes do património, pressionando os profissionais encarregados da sua mediação à reformulação das suas práticas. Atendendo aos critérios de definição destes bens[11], agora orientados para inventariar e catalogar práticas sociais, simbólico-culturais, e não objectos, estarão os museus preparados para o seu acolhimento? Há vários níveis de resposta, que guardaremos para mais tarde.

Em segundo lugar, os dois grandes protagonistas sociais que as recomendações desta Convenção fazem emergir, quer pela matéria sobre a qual incidem, quer pelos agentes a quem se destinam, repartem-se entre os antropólogos – reconhecidos pela experiência metodológica de lidar com as culturas populares –, e as próprias comunidades ou grupos detentores do património imaterial susceptível de ser classificado. Com efeito, cumprindo as recomendações da Convenção, a Lei Portuguesa (Decreto-Lei n.º 139/2009, Art.º 22) desde logo instituiu uma Comissão, dotada de autonomia administrativa, técnica e científica, com funções consultivas e deliberativas, que deveria ser composta, para além dos elementos da Direcção do Instituto dos Museus e da Conservação, por cinco “individualidades de reconhecido mérito no âmbito da salvaguarda do património cultural imaterial…e…duas individualidades …designadas pela Associação Nacional de Municípios Portugueses”[12].

Em terceiro lugar, vale a pena salientar que “o espírito” desta Convenção fez retomar na sociedade portuguesa, ao menos no plano das intenções, a visão integrada do património que, entretanto, se perdera logo nos anos 80 com o desmembramento do IPPC e a separação em institutos autónomos que sectorizaram o património cultural. Ademais, na ausência de um quadro legislativo que definisse princípios e orientações comuns para todos os tipos de património. Essa lei – Lei de Bases do Património Cultural – haveria de aparecer em 2001, conforme acima referido, embora sem efeitos prático-legais por não ter sido regulamentada. Só em 2009 foi reapropriada, conjugada com o articulado da Convenção da Unesco de 2003 e originou o decreto que hoje regula a salvaguarda do património cultural imaterial. No seu preâmbulo, finalmente reconhece-se:

“(…) a importância do património cultural imaterial na articulação com outras políticas sectoriais, e na própria internacionalização da cultura portuguesa, e estabelece-se, de forma pioneira, um sistema de inventariação através de uma base de dados de acesso público que permite a participação das comunidades, dos grupos ou dos indivíduos na defesa e valorização do património cultural imaterial, designadamente do património que criam, mantêm e transmitem.”

À luz deste enquadramento e dada a sua recente existência na sociedade portuguesa, não há experiências de património imaterial classificado suficiente para dele extrair visão global e sistemática.[13]

O Fado, desde 2011 e a Dieta Mediterrânica, desde 2013, esta em conjunto com mais seis países da bacia mediterrânica (Croácia, Chipre, Espanha, Itália, Grécia e Marrocos), e o Cante Alentejano, em 2014, e mais recentemente, desde 2019, os Caretos de Podence fazem parte da lista de Património Cultural Imaterial da Unesco. Um pedido de inscrição para a Capeia Arraiana nas mesmas listas aguarda resposta das instâncias internacionais. As candidaturas das Festas do Espírito Santo, nos Açores, As Tradições Galaico-Portuguesas, respectivamente em 2002 e 2004 foram rejeitadas. À excepção da tradição tauromáquica do Sabugal, e da Festa de Carnaval dos Caretos de Podence, nenhuma das outras manifestações culturais passou pelo processo de inscrição no Inventário Nacional, considerado pela DGPC como o instrumento primordial para a identificação e recolha de informação do património imaterial, tendo sido organizadas todas as candidaturas no quadro de sinergias e protocolos entre os municípios, as universidades, as associações culturais e os próprios grupos sociais directamente envolvidos nessas práticas culturais.

É cedo para concluir sobre o desinteresse ou a indiferença da sociedade por tais processos burocráticos de registo e catalogação, cuja complexidade técnica, dizem alguns, os pode tornar inacessíveis quer ao público em geral, quer às entidades no terreno interlocutoras dos grupos ou comunidades de quem se pretende inventariar as dimensões culturais (Bortolotto, 2013). Do que não há dúvida, porém, e bastante importará a esta discussão, é que se estendermos a análise para lá do património classificado ou com pretensões à classificação internacional não faltarão exemplos em todo o país de iniciativas de valorização do património imaterial, de âmbito regional ou local, que traçaram o seu caminho, antes da recente institucionalização, ou fora dela. Quem investiga temas como os da sociedade rural, do ordenamento do território, do ambiente, do desenvolvimento local, há muito se familiarizou com a mobilização desses factores culturais para revitalizar espaços sociais marginalizados, em alguns casos, até, com a inevitabilidade de a sua mobilização poder vir a tornar-se em uma das poucas condições sociais de existência desses espaços (CER, 2010; Lima, 2006; Reis e Lima, 1998; Reis, 2004). Quem, por outro lado, investiga espaços urbanos de média ou grande dimensão, apesar da relevância do património físico nesses lugares, não deixou também de se confrontar com a dimensão imaterial tecida nas sociabilidades de bairro, colectividades, feiras, mercados, artesanato, festas populares (Costa, 1999; Fortuna e Silva, 2002; Lopes, 1998; Peralta e Anico, 2006; Silva e Santos, 2010; Santos, 2005).

À antropologia, actualmente investida do poder de enunciação do “património imaterial”, tem cabido a missão de estudar a tradição, o folclore ou a cultura popular[14], conceitos fundadores do seu campo disciplinar. Não falta quem saliente ser a reconceptualização do património, agora incluindo a dimensão imaterial, decalcada do conceito antropológico de cultura, que nunca se confundiu com a noção elitista de “alta cultura”. Pese embora as descontinuidades na investigação etnográfica portuguesa, sobretudo a partir de um dos períodos mais profícuos da etnografia portuguesa – a equipa de investigação liderada por Jorge Dias que fundou o Museu Nacional de Etnologia em 1965 –, reconhece-se, todavia, no seio da Antropologia Portuguesa, que não terá havido espaço institucional para patrimonializar o que era há muito património da disciplina:

“(…) o conceito de Património Cultural Imaterial [recobre] de forma significativa aquele que foi ao longo de mais de cem anos o objecto privilegiado da antropologia portuguesa: o estudo das culturas populares. Nesse sentido, os antropólogos portugueses deveriam reclamar para si o Património Cultural Imaterial e ter uma intervenção activa nos processos sociais e institucionais a ele ligados” (Leal, 2013:137).

De facto, se as estruturas internacionais de certificação do património, desde a Convenção de 1972, abriam caminho para a valorização de outros patrimónios, nomeadamente na consideração da sua intangibilidade, reflectindo as mudanças da relação que a modernidade foi construindo com a sua própria memória[15], a sociedade portuguesa só tardiamente, desde 2009, conferiu dignidade institucional às culturas, saberes e tecnologias populares, dotando-as de estruturas jurídicas e administrativas equiparáveis às que criou para o património construído desde o século passado.

Porém, no seguimento da aprovação da Convenção em Portugal e dos trâmites que conduziram à consagração legal desta categoria de património, a controvérsia acerca dos seus modos de preservação desde logo se instalou. Não foram, nem são, consensuais os conceitos e critérios a mobilizar para identificar, registar, classificar, preservar, valorizar a especificidade dos bens culturais de natureza intangível, associados ao “subtexto” político que os acompanha na formulação da Convenção. Trata-se, por um lado, de princípios políticos, consoante são expressos no Preâmbulo, e que derivam da articulação directa com os princípios existentes em matéria de direitos humanos, enquadrados pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, e posteriores Pactos Internacionais, de 1966, sobre direitos civis e políticos, económicos, sociais e culturais. Por outro lado, da conjugação desses princípios com os da Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, de 2002.[16] A universalidade dos direitos humanos e a diversidade cultural nem sempre são fáceis de conciliar. Há, por isso, quem pergunte como se podem respeitar, e patrimonializar, tradições culturais que não respeitam os direitos humanos? (Schapira, 2013).

A dificuldade acentua-se quando se apreciam outros obstáculos conceptuais que parecem colidir com as próprias intenções da Convenção. Referimo-nos à fixação de práticas culturais, através da sua recriação, que podem colidir com dinâmicas sociais que já não se revêem nesse quadro cultural (Schapira, 2013) e, de igual forma, à contradição entre a promoção da diversidade cultural à escala global e a normalização dessa diversidade através de um quadro legislativo comum. De facto, “tentar padronizar o património ‘imaterial’, tornando tangível o que é intangível…pode ter como impacto mais duradouro a destruição dos patrimónios de ideias que se pretende salvaguardar” (Ramos, 2003: 56).

Outros sectores culturais vêem na abrangência dos princípios políticos e culturais que esta Convenção pôs a circular uma ameaça aos valores fundadores da identidade cultural europeia. Assentes não só na diversidade mas também na des-hierarquização do património, tais princípios levam alguns autores a temer que “o capital de tolerância e de saber … [que a Europa]… conseguiu acumular [possa] tolerar que o politicamente correcto… equipare um totém da Papuásia e um quarteto de Beethoven ou a uma obra de Piero della Francesca” (Moura, 2013: 33). E, surpreendentemente, esta visão não andará longe das objecções à des-hierarquização por parte de quem estuda culturas africanas e daí é originário. Com efeito, tal objecção faz igualmente sentido para quem critica fortemente os sectores europeus que se têm oposto à categoria de obra-prima do património imaterial, com base no argumento de que tal introduziria a perspectiva elitista num conjunto de bens que merece ser preservado por igual:

“Negar a hierarquização é negar às comunidades a capacidade de discernimento estético e o direito de fazer julgamentos de valor sobre o seu património. Assim, supremo paradoxo, facilmente se entende que os mais elitistas são exactamente os que se proclamam contra o elitismo” (Yai, 2003: 6).

As sociedades hierarquizam as suas produções culturais, incluindo o seu património, mediante a escala de valores que orienta as suas práticas. Será, de facto, elitismo infundado pretender tratar de forma horizontal todas as manifestações ou os símbolos culturais que não se expressam fisicamente, nivelando-as pelo mesmo valor.

Os processos de preservação das tradições parecem também expressar sentimentos iconoclastas, no sentido em que, para alguns autores, a salvaguarda é o último acto sobre culturas que perderam sentido e autenticidade (Medeiros e Ramos, 2009). No sentido inverso, pontos de vista menos radicais vêm sublinhar a necessidade de distinguir entre duas lógicas presentes nos processos de preservação do património etnológico: a do património elaborado pela Antropologia/ Etnologia na base do discurso etic, distanciado e exterior ao objecto de estudo, e a do património imaterial reactivado através do discurso emic, suportado pelos próprios detentores desse património (Caldéron, 2013; Costa, 2013a). Salvaguardadas pela lógica emic, as comunidades ou os grupos seriam quem define os conteúdos do que querem ver preservado, ainda que coadjuvados por especialistas e poderes públicos. Desta forma se acautelaria “a tendência para a expropriação dos bens culturais por porta-vozes que falam em nome de colectivos” e se colocaria a esses mesmos porta-vozes o desafio de fazer do património imaterial “não um lugar de imobilização da cultura (…), mas de mobilização das pessoas” (Leal, 2013: 140/s).

Em que medida, pois, é possível deixar a decisão de patrimonialização aos principais detentores de práticas culturais que se pretendem preservar, para além dos especialistas ou das instâncias que a certificam?

 

Operacionalidade do conceito de património imaterial e implicações sociais

As controvérsias que se vêm recenseando a propósito da patrimonialização dos bens imateriais anunciam também uma nova relação entre património e cidadania. À medida que damos conta da evolução dos conteúdos do património verifica-se a deslocação do seu centro de legitimação, pericialmente sustentada, que vai do carácter histórico, ou da relevância artística, para a intangibilidade dos processos culturais que dão ou deram sentido a práticas sociais em dificuldade de reprodução, consequência quer dos trânsitos que atravessaram na modernidade, quer da falta de protecção institucional por não lograrem o reconhecimento da sua pertinência cultural. Tal processo cria condições para a intervenção cívica e política de novos protagonistas ou mediadores habitualmente afastados das decisões sobre processos de patrimonialização. Vários testemunhos confirmam, não por acaso, as pressões dos países do Sul (África, Ásia e Pacífico) na ampliação do conceito de património e da inclusão da imaterialidade nas suas dimensões, por terem mais património intangível a preservar do que os países europeus (Costa apud Ramos, 2003:82; Cabral, 2011).

Ora, se o novo enquadramento jurídico-político internacional parece querer afastar-se da noção eurocêntrica de património, dando protagonismo a outros contextos sócio-culturais alheios à sua mundivisão, a verdade é que a Europa também tem os seus “países do Sul”. Sociedades que conservaram por mais tempo formas de sociabilidade, tecnologias e saberes, actividades como a agricultura familiar, modos de vida, em suma, patrimónios que quase nunca precisaram da mediação material de objectos imponentes para constituírem os seus imaginários. É sobretudo a sociedade rural do Sul da Europa, longa e profundamente estudada pela Sociologia e Antropologia, que agora se candidata às listas do Património Imaterial da Humanidade, discutindo, reformulando, reciclando terminologias com que aquelas ciências construíram o aparato de leitura e interpretação dessas culturas e sociabilidades locais.

O heritage boom que as sociedades europeias vinham conhecendo em extensividade e des-monumentalização, desde os anos 70 (Choay, 1996; Guillaume, 2003; Lowenthal, 2003), também acontece em Portugal, em menor escala, mais tardiamente, sobretudo centrado na herança rural, dependente dos voluntarismos locais e sem articulação com políticas territoriais consistentes de recuperação de espaços sociais desvitalizados pela sua população envelhecida e pelo abandono de actividades estruturantes desses espaços. Confirmado pelo primeiro estudo sobre o tecido museológico nacional no pós-25 de Abril, 59% dos museus existentes nasceram nos últimos 25 anos. O seu crescimento acentuado deve-se principalmente ao impulso dos Municípios (Silva e Santos, 2000). A explosão museológica até ao princípio do século XXI tem forte expressão local e regional, sobretudo em museus de carácter etnográfico, e associa-se claramente à estratégia política dos municípios de valorização cultural e ambiental dos seus contextos de acção.

A explosão do património, fruto de alterações substanciais respeitantes à urbanização dos modos de vida, é também a assunção das inúmeras associações que põem na agenda política a discussão dos pequenos patrimónios, que até à data da Convenção de 2003, e muito antes da lei portuguesa que a ratifica (Decreto-Lei n.º 139/2009), não tinham colhido dignidade suficiente para merecer protecção, regulação e valorização. O enraizamento local de muitas associações de defesa do património - sobrevivendo quantas vezes do voluntariado e da articulação com “especialistas” originários do território, ou a eles ainda ligados por laços familiares, a par do envolvimento das comunidades que participaram no seu próprio inventário cultural -, testemunha bem do dinamismo patrimonialista pré-existente ao enquadramento legislativo dos bens imateriais (Reis, 2016). Se a importância do património imaterial e o trajecto para a sua classificação não resultaram exclusivamente de iniciativas políticas de cidadãos ou de associativismos de base local, poderá ser este um dos campos onde as sociedades contemporâneas jogam uma das principais condições de afirmação do crescimento da cidadania cultural.

Retomando as críticas mais comuns apontadas ao conceito de património imaterial, a principal é justamente dirigida ao instrumento de protecção, simultaneamente concebido como instrumento de política cultural – o inventário de registo e classificação das manifestações culturais imateriais[17].

Embora prevendo no articulado jurídico que o determina a participação dos detentores de património em todos os processos e todas as fases do registo, vale a pena insistir em dúvidas anteriormente colocadas. Expostas às contingências do seu carácter imaterial, que sentido fará preservar, através de um inventário, práticas vivas, mutáveis, sujeitas às transformações de sentido dos seus próprios protagonistas, ancoradas na vontade destes e nos condicionalismos sociais que moldam essa vontade?

Do radicalismo às posições mais moderadas, é possível reconhecer a desconfiança em boa parte do discurso antropológico, quer quanto à epistemologia da cultura e das tradições populares que o inventário proporciona, quer quanto à deontologia dos profissionais que nela são chamados a participar. Preocupados com o etnocentrismo da divisão material/imaterial, com o “congelamento” de práticas e saberes fluidos e reinventáveis, com o aproveitamento turístico de culturas patrimonializáveis, com o artificialismo com que se tomam por reais práticas que são apenas representações de práticas extintas, os mais radicais rejeitam a responsabilidade de consentir e participar no que avaliam como a intencionalidade política de dominação/domesticação de culturas marginalizadas (Medeiros e Ramos, 2009; Ramos, 2009). Outros antropólogos, comungando daquelas preocupações, consideram como um desafio a possibilidade de inventariação sistemática de quadros culturais integrantes da sociedade portuguesa e também da antropologia nacional, desde que reflectindo, reformulando e adaptando à realidade nacional (e europeia) o quadro normativo derivado da Convenção cuja abrangência é de nível internacional (Brito, 2006; Cabral, 2011; Leal, 2013).

De todo o modo, cremos que parte das controvérsias e do debate que em Portugal tem suscitado a categorização do património imaterial, ao contrário do que se pôde apurar para o património construído, deriva fundamentalmente de três factores.

Em primeiro lugar, do facto de não haver prática regulada de inventário no país, além da que continuou a renovar a tradição dos fundadores do Museu Nacional de Etnologia, estritamente subordinada aos paradigmas antropológicos.

Em segundo lugar, o duplo esforço teórico-metodológico e político-administrativo para verter juridicamente para a realidade nacional um normativo pensado internacionalmente para culturas, comunidades ou minorias mais distantes da matriz cultural ocidental. Só assim se compreende, na terminologia da Convenção, a referência ao respeito pelos direitos humanos como condição necessária para o esforço de salvaguarda de qualquer cultura ou tradição, ainda que, num passado não muito longínquo de algumas tradições rurais europeias, sobretudo mediterrânicas, se pudessem ter encontrado contextos sociais propícios à aplicação daquela matéria jurídica. Recordam-se, por exemplo, as forças marginais ou não transferíveis. Conceito desenvolvido por Tepicht (1976), a partir dos contributos de Tchaynov (Shanin, 1976), para a compreensão da racionalidade económica da agricultura familiar europeia, incidindo sobre crianças, mulheres e velhos como fonte de trabalho penoso, gratuito e sem alternativas, quer no quadro familiar, quer no quadro da sociabilidade aldeã. Outro exemplo reside nos códigos culturais de conduta das sociedades rurais mediterrânicas abrangidos pelo conceito de honra e vergonha, desenvolvido por Peristiany (1988) e Pitt-Rivers (1988), segundo os quais, para recuperar a dignidade, são toleradas formas violentas de retaliação masculina sobre os transgressores da moral sexual vigente nessas sociedades. Não tardarão, por outro lado, a emergir conflitos no Portugal contemporâneo quanto à possibilidade de conciliação, no quadro de certas práticas culturais, entre os princípios dos direitos humanos e os princípios contidos na Declaração Universal dos Direitos dos Animais, de 1978, declaração na qual existe a transposição da obrigatoriedade de defesa dos animais para a própria lei dos direitos humanos. É o que acontece, por exemplo, com a diversidade de tradições tauromáquicas e respectivos graus de violência associados, também expressão da cultura mediterrânica, que se manifestam em diferentes contextos culturais na sociedade portuguesa[18]. Recolhem bastante adesão popular, em confronto com a contestação em crescendo de movimentos sociais de matriz urbana que se colocam na órbita dos valores de defesa do ambiente, da natureza e dos animais.

Em terceiro lugar, porque a patrimonialização não se dirige ao objecto físico, mas ao gesto que a torna possível, aos modos de vida e aos agentes que lhes dão existência. Não é mais um debate apenas entre especialistas de arte, de história, de arqueologia, de antropologia. É um debate de peritos, mas também entre estes, os detentores e representantes do património cultural e natural de um território, os poderes institucionais que os enquadram, para além de outros actores sociais, “exteriores” ao território, mas cujo habitus cultural conserva a familiaridade com estes modos de vida ou revela interesse em conhecê-los. Por outras palavras, chegamos ao chamado triângulo da nova museologia: território-património-comunidade (Desvallées et al, 2010) e à multiplicação dos actores implicados na sua definição e preservação. Do ecomuseu ao museu comunitário, do museu integral ao museu inclusivo são designações que ao museu tradicional, percepcionado como um lugar de colecção de objectos, acrescentaram a ideia de instituição associada ao desenvolvimento local, representativa de um modo de vida ancorado num território. O “museu de território como instrumento central para o desenvolvimento… não tem edifício, não tem colecção, não tem um público, tem um território, uma comunidade como actor e o património global como acervo” (Varine, 2012).

Este contexto teórico e sociográfico é bastante permeável à leitura sociológica sobre as metamorfoses da sociedade rural, olhando quer para o seu declínio, quer para a sua persistência e adaptação à modernidade. A Dieta Mediterrânica, inscrita nas listas do Património Cultural Imaterial da Humanidade, aprovada, desde 2013, em Portugal, Croácia, Chipre, Espanha, Itália e Grécia, Marrocos, e A Rede das Aldeias do Xisto, um projecto de desenvolvimento de âmbito regional, iniciado em 2003, são dois exemplos que ajudam a completar o quadro plural em que se têm desenrolado e discutido os processos de patrimonialização na sociedade portuguesa com base nos bens culturais intangíveis. Nem o primeiro, apesar de ser um projecto classificado pelos critérios da Unesco, nem o segundo, liderado pela Agência para o Desenvolvimento Turístico das Aldeias do Xisto (ADXTUR)[19], têm as suas actividades inscritas no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial, sendo ambos coordenados por sociólogos em equipas pluridisciplinares.

A fundamentação que os responsáveis dos dois projectos apresentam é bastante consentânea com a perspectiva do espaço rural enquanto reserva ambiental (Lima et al, 2000; Lima e Guerra, 2004; Lima, 2006), perspectiva herdeira de filosofias do desenvolvimento que começaram a desenhar-se nos anos 80 e que, desde então, pugnam pela sustentabilidade ecológica dos sistemas económicos (Reis e Lima, 1998). A preservação do ambiente e da natureza, dimensões intrínsecas ao espaço rural, articula-se com os actuais padrões e estilos de vida urbanos que associam a esses espaços a qualidade de alguns desses padrões. “Os conceitos de natureza e de paisagem identificam-se, nas sociedades modernas contemporâneas, com o ‘mundo rural’” (Lima, 2006: 152).

"A Dieta Mediterrânica não é só alimentação, tem a ver com convivialidade, estilos de vida, sociabilidades, baixo stress, cooperação, entreajuda entre os agricultores, … está na moda porque está muito sintonizada com as questões actuais do planeta: a agricultura familiar, agricultura de proximidade, o apoio à produção local, … as questões da saúde, da nutrição, … o mito mundial da obesidade… a Unesco apreciou não um modelo alimentar mas um modelo cultural"[20].

À percepção dos novos riscos globais para os cidadãos, e da impotência de estruturas globais para deles os proteger (Beck, 1992), bem como das pequenas mudanças que individualmente podem contribuir para a sua minimização (alimentação, “estilo de vida saudável”), associa-se também a estes projectos o desígnio cultural de compensar os ritmos urbanos, numa espécie de retorno a uma nova solidariedade mecânica, espaço de recuperação da perda de laços de proximidade, sólidos e solidários, que equilibre as relações sociais efémeras, a individualização crescente, a insegurança e a incerteza induzidas pela fluidez e imaterialidade das instituições da modernidade líquida (Bauman, 2006). Depois de longa ruptura, a reconciliação da modernidade com a tradição, depois de domesticado o passado, apagando dele as memórias mais obscuras e dolorosas (Lowenthal, 2002), a sociedade rural pode agora conviver com outras actividades, nomeadamente com os projectos de recuperação do seu património, sem se fechar na experiência da sua própria cultura, nem remetê-la à mera folclorização.

Mentores e agentes “endógenos” desta dinamização cultural recordam-nos que o património imaterial destes lugares sempre esteve lá, não foi inventado pelo turismo, nem pelas instâncias internacionais, embora possa ter sido apropriado por outras designações como tradição, cultura popular ou folclore que lhe emprestaram outros sentidos. Esta nova forma de enunciação, tal como as anteriores, faz parte do discurso que as sociedades contemporâneas têm elaborado para falar de si próprias e da sua relação com os processos mais relevantes que as atravessam.

Na sociedade portuguesa, as alterações do espaço urbano e dos respectivos modos de vida, aliadas à democratização do ensino e à democratização cultural, também à afirmação crescente da cultura de massas, têm-se constituído como poderosos trituradores das culturas populares rurais e urbanas. Porém, não tanto quanto o foram em sociedades europeias onde essa ruptura se iniciou mais cedo e foi mais longe. A sobrevivência do mundo rural na sociedade portuguesa – na agricultura familiar e nas economias familiares, na arquitectura vernacular, nas paisagens, até nas varandas e nos quintais das cidades e dos seus bairros, em múltiplas festividades urbanas[21] – transforma-se hoje no lugar privilegiado onde se projectam valores e aspirações “pós-modernos”, associados à natureza e ao ambiente e à revitalização dos processos sociais e culturais com que se inscreveram nessa paisagem. Alguns lugares conservaram, até pelo abandono a que foram sujeitos, muito do seu “espírito”, ou da sua “aura”, – no sentido em que Walter Benjamim falava da mensagem que os objectos ou os sítios transmitem para lá da sua materialidade – e convertem-se agora em lugares de memória, não contemplativos nem simplesmente comemorativos de um passado simbólico, ao qual não se retornará, nem é desejável regressar, mas que se constituem como o ponto de partida para a sua renovação.

O facto de algumas destas iniciativas não partirem em primeira instância das comunidades, ganhando o seu envolvimento depois, não retira a importância às dinâmicas políticas dos processos de participação locais associados à salvaguarda deste património. A identificação com o património imaterial de base local escora-se em elos socialmente mais fortes e tecnicamente menos distanciados do que com o património nacional, materialmente representado por artefactos que se situam fora do tempo e do espaço vividos, a exigir conhecimento dos processos imateriais que lhes deram origem e os constituem. Em virtude do passado simbolizado nestes patrimónios, a intervenção de técnicos que, numa espécie de anamnese, ajudam a trazer à memória experiências sociais com as quais se vão reconstituir os elementos estruturantes da herança cultural, poderá, a nosso ver, ser considerada não como intromissão do Estado nos processos de salvaguarda do património imaterial, à revelia das populações, mas antes como um dos parceiros do envolvimento político para o qual se convocam os seus detentores.

Por outro lado, afigura-se infundado o repúdio que provoca a alguns especialistas a sua colaboração em processos de patrimonialização de culturas marginalizadas (Ramos, 2009), uma vez que a intervenção de peritos e o papel da investigação para reconstruir esses processos, inventariando origens, evolução, factos, conteúdos, significados, etc., parece antes poder traduzir-se como procedimento de objectivação da autenticidade e não como acto de domesticação dessas culturas (Macdonald, 2013). A existência de reabilitação de disposições culturais destinadas à mercadorização é inegável, mas convém distinguir experiências patrimoniais que não partilham desses objectivos, ou não se desvirtuam pela sua exposição ao turismo.

 

Notas Finais

À semelhança da patrimonialização dos monumentos e sítios, nem todo o património imaterial traz por si só qualificação para os contextos sociais da sua proximidade. Não faltam exemplos de requalificação de espaços monumentais, sítios arqueológicos, museus etnológicos, centros históricos, aldeias históricas, a demonstrar que às acções de reabilitação que procuraram preservar valores históricos, paisagísticos, ambientais ou da tradição popular se seguiram estratégias sócio-económicas que os desvirtuaram, quer por excesso de acções exclusivamente destinadas à atracção de actividades turísticas, à instrumentalização de símbolos patrimoniais para actividades de lazer, à estetização permanente para captação de visitantes (Peixoto, 2002), quer por défice de actividades, de investimento e envolvimento local e nacional na manutenção da sua preservação.

Os Itinerários Arqueológicos do Alentejo e Algarve, programa lançado entre 1997-2002 pelo IPPAR e Instituto de Apoio e Financiamento ao Turismo, que visava preservar e valorizar 12 sítios arqueológicos naquelas duas regiões, são um esses exemplos. De todos os sítios, dotados de condições de acolhimento aos visitantes, num itinerário em rede com intuito de atrair visitantes e mobilizar agentes locais, apenas se mantêm os circuitos do Algarve, estando o mais monumental de todos – as ruínas romanas de S. Cucufate que se localizam no concelho de Vidigueira -, fechado por falta de manutenção e visitantes. O programa das Aldeias Históricas de Portugal, lançado entre 1995-2002, numa acção conjunta do IPPAR, Comissão de Coordenação da Região Centro, (CCRC), autarquias ligadas às 12 aldeias envolvidas na reabilitação e requalificação dos seus monumentos, centros históricos e sítios paisagísticos[22], também não revelou o dinamismo que era suposto desencadear na região. Desde logo e indelevelmente marcado por objectivos turísticos, com vista à extensividade do mercado a partir da reabilitação patrimonial dos edifícios mais emblemáticos, mas não pelo envolvimento político e a adesão cultural das populações locais, mostra bem a sua discrepância com o projecto das Aldeias de Xisto.

Se é em parte verdade que os grandes museus históricos e de arte, assim como os edifícios monumentais a que se associam símbolos da identidade nacional, apesar dos esforços para a sua valorização e relevância no turismo, não parecem afirmar-se como geradores inequívocos das principais dinâmicas culturais na sociedade portuguesa[23], também é certo que nem todas as iniciativas museológicas locais ou estratégias de valorização patrimonial baseadas na salvaguarda e mobilização dos recursos culturais endógenos e territorializados é garantia de igual ou superior dinamismo.

As gravuras rupestres do Vale do Côa que tanto inspiraram a opinião pública nacional e internacional, organismos de salvaguarda do património, associações de defesa do património, profissionais do património, associações de desenvolvimento local, mobilizando as opções e alianças políticas necessárias ao sucesso do paradigma “endógeno” de desenvolvimento, alicerçado naquele tesouro paleolítico que faria desencadear outras heranças culturais (Gonçalves, 2001; Lima e Reis, 2001; Reis, 2009), revelaram-se, ao fim de 20 anos, igualmente pouco significativas na inversão das dinâmicas económico-sociais e culturais da região, pese embora o seu Museu estar nomeado, em 2012, como um dos museus do ano pelo European Museum Forum.

Assim, impõe-se pensar criticamente o património imaterial, sem euforias, nem radicalismos, sobretudo quando nele se vislumbram oportunidades de reabilitação de vivências urbanas ou rurais. É preciso mais do que uma paisagem ou um museu, mais do que um conjunto de práticas culturais certificadas para sustentar o desenvolvimento de um espaço rural, de uma cidade de média dimensão ou mesmo de uma região.

Sobretudo, é preciso também não atribuir ao sector cultural, património à cabeça, a função primordial de resolver problemas demográficos e económicos, dele fazendo depender a restruturação de espaços rurais ou urbanos, do emprego, do turismo ou de outras actividades de sustentação desses espaços. Ainda que contribua para essas dinâmicas, a sustentabilidade das acções sobre o património está em primeiro lugar no reconhecimento que os actores sociais fazem dele para o bem-estar colectivo e individual e na capacidade de envolvimento que disponibilizem e mobilizem para a sua protecção, valorização e fruição.

 

 

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NOTAS

[2]Os instrumentos de política internacional para a gestão do património cultural, concebidos sobretudo pela Unesco mas também por outras organizações de âmbito europeu e mundial, bem como o reflexo das suas orientações e recomendações nos quadros legislativos e nas políticas públicas do património adoptadas por Portugal, podem consultar-se no site da Direcção-Geral do Património http://www.patrimoniocultural.pt/pt/patrimonio/cartas-e-convencoes-internacionais-sobre-patrimonio/.

[3]Mosteiro dos Jerónimos e Torre de Belém, Convento de Cristo, em Tomar e Mosteiro de Sta. Maria Vitória, na Batalha e Angra do Heroísmo, a que se seguiriam, ainda na década de 80, o Centro Histórico de Évora, em 1986, e o Mosteiro de Alcobaça, em 1989.

[4]Encontros com o Património, 13-12-2013, programa radiofónico emitido pela TSF em parceria com a Direcção-Geral do Património. https://www.tsf.pt/programa/encontros-com-o-patrimonio.html

[5]Paisagem Cultural de Sintra, Centro Histórico do Porto, Sítios Pré-históricos de Arte Rupestre do Vale do Coa e Floresta Laurissilva da Madeira, entre 1995-99; Centro Histórico de Guimarães, Alto-Douro Vinhateiro, Paisagem da Cultura da Vinha na Ilha do Pico e Cidade Fronteiriça e de Guarnição de Elvas e Suas Fortificações e Universidade de Coimbra – Alta e Sofia, entre 2001-2013.

[6]Retoma-se aqui a expressão de Thomas Kuhn que, na sua referencial obra dos anos 60, A Estrutura das Revoluções Científicas, recorrendo ao conceito marxista de revolução, explicou o progresso do conhecimento científico a partir de rupturas entre paradigmas conflituantes que se tornam incompatíveis entre si até que um deles se se converte, provisoriamente, no paradigma dominante.

[7]Criada em 1929 (Decreto-Lei 16 791, 30 Abril) durante o período do Estado Novo, no seio do Ministério das Obras Públicas, a Direcção-Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN) foi a única instituição até 25 Abril de 1974 com competência para intervir em imóveis classificados, tendo como objectivo desde o primeiro momento servir o nacionalismo do regime, que via na conservação e no restauro de certos monumentos nacionais condição sine qua non para reforçar a identidade nacional. Sobrevivendo ao Estado Novo, relacionando-se nem sempre da forma mais pacífica com as novas instituições do património surgidas com a democracia, a escassos anos da sua extinção e integração de alguns dos seus serviços no IGESPAR, ao comemorar 70 anos de participação na política do património e sublinhar o contributo técnico e cultural que trouxe a essa política, a DGEMN afirma, peremptória, pelas palavras do seu Director-Geral, “falar do património arquitectónico é, em Portugal, falar da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais” (DGEMN, 1999: 12). Sobre o papel desta Direcção-Geral na intervenção do património em Portugal, bem como sobre a influência que legou a diferentes fases da sua abordagem, cf. Custódio, 1993;DGEMN, 1999; Neto, 1999; Rodrigues, 1999.

[8]Além do IGESPAR, também a Direcção Regional de Cultura de Lisboa e Vale do Tejo (DRCLVT) e o Instituto dos Museus e da Conservação (IMC) fazem agora parte da orgânica de um dos mais recentes instrumentos de política patrimonial (Lei 115/2012 de 25 de Maio).

[9]A DGEMN, para apenas referir aquela que sobreviveu mais tempo, pelos conceitos com que nomeou as intervenções no património e protocolos que estabeleceu com instituições científicas, mas sobretudo pelo recurso organizado e sistemático de divulgação do seu trabalho, regularmente publicado, ter-se-á tornado uma escola no sentido académico do termo. Escola que teoriza, debate, observa e intervém sobre o património construído, no quadro da circulação de conhecimento inter pares e da sua transformação em políticas pouco ou quase nunca articuladas com outras esferas de acção que cada vez mais se cruzam no campo do património.

[10]É notória a percepção de alguns profissionais do património a este respeito: “… a 1ª década de 70 e 80 fez nascer muitas associações, que tiveram um papel motor das questões do património, na medida em que no período anterior fazia-se a discussão do monumento histórico e artístico…as associações trouxeram à baila a discussão de novos aspectos ligando o património cultural com o natural ”, Jorge Custódio, historiador, TSF, Encontros com o património, 26-04-/2014.

[11]De acordo com o parágrafo 2, do Art.º 2º da Convenção de 2003, o « património imaterial … manifesta-se nos seguintes domínios:“(a) tradições e expressões orais, incluindo a língua como vector do património cultural imaterial; (b) artes do espectáculo;(c) práticas sociais, rituais e actos festivos;(d) conhecimentos e usos relacionados com a natureza e o universo; (e) técnicas artesanais tradicionais” .

[12]O IMC reconhece ainda como interlocutores privilegiados, com autoridade científica na investigação do património imaterial, as seguintes entidades institucionais: Museu Nacional de Etnologia, FCSH da Universidade Nova de Lisboa, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, FCT da Universidade de Coimbra, Universidade do Minho e Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA), centro que agrega todas as entidades anteriores, menos o Museu Nacional de Etnologia (Costa, 2013a: 54).

[13]No âmbito do IMC, o Inventário está a decorrer, aguardam-se os resultados do anunciado Inquérito ao Património Imaterial em Portugal para detectar projectos de salvaguarda. O Inquérito que, de acordo com a informação na sua página electrónica, o IMC teve em curso em 2010 e de que foi alvo um total de 494 entidades, assim repartido entre as seguintes tipologias: Museus (139), Municípios (308), Direcções Regionais de Cultura (7) e Unidades de Investigação consideradas de potencial relevância para a actuação no sector (40 ). Em 2009, o IMC reuniu em extenso volume as Actas do Ciclo de Colóquios Museus e Património Imaterial: agentes, fronteiras, identidades , 6 colóquios em que se reflecte sobre o papel dos museus e os procedimentos de inventário na preservação do património imaterial, bem como dos (novos) mediadores e protagonistas desse processo (IMC, 2009). Disponível em: http://www.matrizpci.dgpc.pt/MatrizPCI.Web/File/DownLoadFile?idFicheiro=3079

[14] Os conceitos não têm, como se sabe, o mesmo significado nas tradições antropológicas europeias. Enquanto o termo anglo-saxónico folclore se refere a práticas sobreviventes, nas sociedades avançadas, de estados de evolução cultural anteriores, na Alemanha, volkskunde, e traditions populaires, em França, referem-se à “ pureza da cultura nacional preservada nas áreas rurais, fora do cosmopolitismo das metrópoles ” (Kirshenblatt-Gimblett, 1998: 304).

[15] Cf. A Recomendação para a Salvaguarda da Cultura Tradicional e do Folclore , de 1989, a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, de 2001 e a Declaração de Istambul de 2002, conforme declara o próprio Preâmbulo da Convenção de 2003.

[16] “Ninguém pode invocar a diversidade cultural para violar os direitos humanos garantidos pelo direito internacional, nem para limitar seu alcance” (Art.º4); “toda pessoa deve poder participar na vida cultural que escolha e exercer suas próprias práticas culturais, dentro dos limites que impõe o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais” (Art.º5).

[17]Cf. Ficha de Inventário Nacional do PatrimónioCultural Imaterial (PCI) em http://www.matrizpci.dgpc.pt

[18]Para além da corrida de touros à portuguesa, registam-se as seguintes tradições tauromáquicas: a capeia arraiana, da raia Beirã – já classificada no Inventário de PCI –, a tourada à corda nos Açores, a chega de bois em Montalegre, a vaca das cordas em Ponte de Lima, as esperas de toiros no Ribatejo e Vale do Tejo e os touros de morte em Barrancos e Reguengos de Monsaraz.

[19]Resultado da cooperação de 21 Municípios da Região Centro, abrangendo 14 concelhos: Arganil, Castelo Branco, Figueiró dos Vinhos, Fundão, Góis e Lousã, Miranda do Corvo, Oleiros, Pampilhosa da Serra, Penela, Sertã e Proença-a-Nova, Vila de Rei e Vila Velha de Ródão.

[20]Jorge Queirós, sociólogo, coordenador da candidatura da Dieta Mediterrânica, TSF, Encontros com o Património, 7-06-2014.

[21]Para além da abundante bibliografia sobre os mecanismos de sobrevivência da agricultura e do espaço rural através da pluriactividade (Almeida, 1999), (Lima, 1986; 1990), (Pinto, 1985), (Silva, 1998), cf. Sociedade de Bairro, (Costa (1999), onde se desvenda a origem rural e a presença do habitus adquirido nesse espaço social na cultura popular urbana do emblemático bairro lisboeta de Alfama.

[22]Almeida, Castelo Mendo, Castelo Novo, Castelo Rodrigo, Idanha-a-Velha, Linhares da Beira, Marialva, Monsanto, Piódão e Sortelha, a que se juntaram em 2003, Trancoso e Belmonte.

[23]74% dos visitantes dos principais monumentos e museus nacionais são estrangeiros (INE, 2009).

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