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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.41 Lisboa dez. 2020

https://doi.org/10.15847/cct.20992 

RESENHA

 

Recensão do livro “A Future History of Water”

Review of “A Future History of Water”

 

 

Márcia R. LopesI

[I]Iscte e Universidade Nova de Lisboa, Portugal. e-mail: mrlsa@iscte-iul.pt.

 

 

A Future History of Water

Andrea Ballestero

Durham: Duke University Press, 2019

 

A etnografia A Future History of Water, de Andrea Ballestero, foi conduzida na Costa Rica e no estado brasileiro do Ceará. Os dois países não reconhecem oficialmente a água como um direito humano e no caso do Brasil alguns sistemas de abastecimentos foram recentemente privatizados. Por isso, segundo a antropóloga, garantir sua provisão envolve negociar constantemente teores de reformas administrativas e constitucionais, protocolos de ajustes de preços e a gestão dos sistemas de abastecimento. Há quase duas décadas Ballestero interage com funcionários públicos de todos os escalões, gestores e trabalhadores de ONGs, pesquisadores de universidades e consultores em repartições públicas, viagens de trabalho, oficinas e noutros encontros comunitários. São também, a autora incluída, ativos participantes de eventos internacionais que discutem a questão do acesso adequado à água em escala global.

Com boa parte desses interlocutores uma diferenciação se sobressaía nas interações: a água direito humano e a água mercadoria. Estes destacavam dispositivos tecno-legais e calculativos de grande importância na garantia do direito humano (2019: 10). Ao manterem a conversa através de uma justificativa técnica, produziam um enquadramento para onde se canalizavam disputas políticas e onde se dificultavam as investidas mais mercantilizantes (2019: 58). O principal argumento de Ballestero é que a fronteira definindo água direito humano e água mercadoria não é fixa. Essas margens são negociáveis e envolvem sensibilidades contraintuitivas mais do que se imaginaria. A história é resultado de conjunturas dependentes das múltiplas forças negociantes. Ballestero deixa entrever essa negociação nos detalhes dos aparatos técnicos-calculativos por ela isolados. Segundo a autora, esse trabalho técnico é, principalmente na Costa Rica, potencializado pelos resquícios de políticas de bem-estar social preservados na Constituição.

O primeiro capítulo, Formula, apresenta parte da estrutura gerenciadora do abastecimento de água costarriquenho. Enquanto as companhias de abastecimento são responsáveis por mensurar o consumo, cabe à Autoridad Reguladora de los Servicios Públicos (ARESEP) regulamentar as tarifas. Apesar das reformas neoliberais dos anos 1990 (2019: 47), esses serviços permaneceram sob controle público. Ballestero questiona se um serviço pago, cujo preço cada vez mais se baseia nas tecnologias de financeirização, pode continuar preenchendo os requisitos de um direito humano. A autora entende que a Costa Rica tem estado na vanguarda dentre os países latino-americanos na garantia do direito à água.

As tarifas da água direito humano devem incorporar qualidades como equilíbrio e harmonia – aludindo a um relacionamento justo com a sociedade herdado das políticas de bem-estar social que remontam aos anos de 1980 (2019: 46). Porém, o sistema evoluiu da tarifa fixa para outra que assegura superávit entre 3% e 7%. Uma taxa acima disso ocasionaria lucro, a água passaria a ser mercadoria e as relações sociais deixariam de ser harmoniosas. Nessas regras, portanto, as tensões se concentrariam nas revisões de preço. Entretanto, em 2007 a direção do Water and Environment Department (WED) da ARESEP, encarregado dos reajustes, é trocada e o novo diretor sinaliza mudanças metodológicas – da perspectiva contabilística para a financeirização.

Parte dessa metodologia previa agregar todos os serviços de abastecimento, criando um mercado. As tarifas seriam então unificadas numa fórmula de superávit fixado em 5%. Essa mudança não ocorreu, mas ocasionou intenso debate entre os técnicos da ARESEP dispostos a encontrar na nova fórmula brechas que garantiriam o direito humano à água. Se fosse aprovada, essa alteração implicaria enfatizar o valor da eficiência ao invés da prudência. Para defensores da mudança, simpáticos à economia clássica, a nova metodologia – um claro exemplo da crescente adaptação dos cálculos e regras às leis de mercado – abraçava os mesmos princípios de harmonia e justiça do período anterior ao avanço do capitalismo financeiro.

O segundo capítulo, Index, introduz algumas das mudanças na prestação do serviço na Costa Rica em curso desde 2012. Ballestero chama-as de disciplinamento para uma nova relação com as companhias abastecedoras. Essas mudanças afetaram a tolerância a atrasos no pagamento, os prazos de corte e reestabelecimento do serviço e procedimentos de pagamento. Apesar disso, desde 2000, a ARESEP tenta manter preços acessíveis, como recomenda o Committee on Economic, Social, and Cultural Rights (CESCR) do Office of the United Nations High Commissioner for Human Rights (ACNUDH) (2019: 80). Para o United Nations Development Programme (UNPD), um serviço acessível não deve comprometer mais que 3% da renda domiciliar (2019: 80-81). Em 2015, na Costa Rica a conta de água representou 1,41% enquanto pizza significou 0,35% dos custos da cesta básica e a água engarrafada passou a integrá-la pela primeira vez (2019: 92, 95). Ou seja, o preço praticado estava com folga dentro dos critérios de um direito humano.

Ballestero não negligencia a relação entre direito humano e objetos mercadorias típicas. De fato, o seu trabalho procura revelar essa relação pouco visível mas fundamental, explanando acerca da moralidade da precificação e da propriedade privada da água. Neste capítulo destaca que índices historicizáveis como a taxa de inflação e o Índice de Preço ao Consumidor (IPC) são utilizados no cálculo mais recente dos reajustes de tarifa para reduzir margens de incertezas e controlar eventos futuros. O cálculo do IPC era baseado no poder de compra de um domicílio mononuclear (de classe média ou da classe trabalhadora) com o tempo passou a basear-se num conjunto de produtos e serviços consumidos por pessoas abstratas, cujas características são irrelevantes para o cálculo do índice. Também não passou despercebido para a autora que os dados públicos invoquem cada vez mais potentes recursos estatísticos. Isso significa adesão a análises agregadas e, portanto, privilegiar a demografia em detrimento das singularidades individuais que surgem noutros tipos de recursos analíticos como a etnografia ou a memória social. Desse modo, fica latente que as fronteiras do direito humano são constantemente atualizadas por novos cálculos o que pode contribuir para perder de vista os limites que preconizam a supremacia do que é inerentemente prerrogativa dos seres humanos.

O capítulo List explica como textos constitucionais são produzidos na Costa Rica e interroga que novas substâncias devem ser acrescentadas à existente lista de bens de propriedade pública. Segundo Ballestero, ainda que políticas neoliberais tenham modificado muitas facetas da vida urbana no país, os costarriquenhos orgulham-se de administrar um legado democrático remanescente da efervescência política de anos prévios. Entretanto, nem tudo são flores, visto que recursos que visam salvaguardar o texto constitucional de abusos – por dificultarem mudanças que caracterizariam a perda de direitos adquiridos – podem também impedir a conquista de mais direitos. Diversas propostas de emenda à Constituição foram frustradas pelos conservadores do Libertarian Party, impedindo o acréscimo da água à lista de bens inalienáveis, ontologicamente de usufruto universal. A obstrução, que é um recurso técnico de natureza legislativa, foi distorcida e tem sido manejada para adiar o que setores progressistas identificam como uma mudança contemporânea crucial e inevitável no debate sobre o acesso à água e que garantiria a vanguarda do país latino-americano em questões-chaves do desenvolvimento sustentável.

O último capítulo, Pact, aborda a história do acesso à água no estado brasileiro do Ceará e as nuances sociais e materiais do Pacto das Águas (Water Pact). No relato de Ballestero, a história do Ceará é marcada pelo coronelismo e clientelismo. Todavia, desde 1990 reformas administrativas e infraestruturas inteligentes para lidar com a sazonalidade da seca associadas a políticas sociais e ao gerenciamento democrático dos recursos, transformaram-no num estado-modelo na condução das políticas hídricas (2019: 148-149). O pacto surge em 2007, quando o Legislativo cria o Council for Advanced Studies and Strategic Issues e nomeia um novo diretor-executivo que organiza uma equipe de consultores para a elaboração conjunta do pacto, cujo objetivo era romper com o legado político e com a lógica da comodificação da água assegurando-a como direito humano. Ballestero, entretanto, vê nos princípios filosóficos, nas coligações e no andamento do trabalho a manutenção da velha política oligárquica. Findados quatro anos (2007-2010) os resultados do projeto foram pífios (2019: 166).

Boa parte do capítulo é sobre inculcar nos moradores do semiárido cearense a obrigação moral intransferível de cuidar da água. Para Ballestero, é questionável o personalismo que rondava os atores envolvidos no pacto e o fato de ele ter ficando restrito a grupos da estrutura da burocracia estatal, numa clara postura top-down sem verdadeira vivência democrática (2019: 155, 165). As últimas seções discorrem sobre a metodologia do pacto destacando dela efeitos sociais positivos como a liberdade política. Além da forte carga fenomenológica, a narrativa de Ballestero também se aventura a analisar a vida material da metodologia empregada pelos consultores, destacando a gestão do conhecimento. Para a autora, aparatos como tiras de papel colorido transformadas em folha de relatórios impressos agregadas e apresentadas em sessão na Câmara dos Deputados dão a ideia de conclusão do trabalho que, na verdade, foi apenas iniciado.

Não se pode prever o que desse imenso trabalho integrará o futuro, porque técnicos, ativistas e outras lideranças produzem eventos, mas também quase-eventos e, ao contrário do que supõe, acolhem a contradição e a multiplicidade de possíveis soluções mantidas através de forças duradouras, vindouras ou que se esvanecem em curtos períodos de tempo (2019: 155). Ou seja, produzem a história e também “ lists put together without ever becoming law, percentages of surplus never increased, promises aggregated without having their fulfillment verified ” (2019: 29). O que terá valor no porvir é um exame reservado ao futuro, daí a adoção do artigo indefinido para compor o título de seu livro.

A Future History of Water é uma narrativa agradável repleta de bons e bem-intencionados argumentos e de vibrantes análises multifacetadas. Alcança tal feito por desentranhar a etnografia dos temas e perspectivas antropológicos mais conhecidos e propor no seu lugar sondar a história dos aparatos tecno-legais e calculativos manejados por seus interlocutores. Além disso, contribui para seu sucesso valer-se de referenciais da sociologia do valor e da história da ciência econômica ao invés do, ainda que consagrado, costumeiro cânone antropológico.

Membro do corpo docente da Rice University em Houston, no estado do Texas, Andrea Ballestero destaca-se como acadêmica em diálogo inovador com vários campos do conhecimento – das artes à engenharia e mais recentemente passando também pela geologia –, o que lhe permite uma abordagem multifacetada e transdisciplinar para analisar assuntos bastante centrais para o futuro da vida no planeta, como o direito a provisões de água potável. O caminho escolhido pela autora foi o de interrogar sutilezas que previnem a perda de direitos adquiridos. Ainda que sob suposições de harmonia social e boa governança, censurando tentativas mais abertas de mercantilização, o fato é que reestruturações mais recentes desses sistemas públicos de abastecimento para uso doméstico têm seguido acordos neoliberais, tanto na Costa Rica quanto no Ceará. Essa é matéria para mais debates públicos, tendo em conta as já conhecidas violações de direitos humanos nos subcontinentes da América Central e América do Sul, atenuadas por desafios contemporâneos como mudanças climáticas e pandemias. A obra inaugural de Ballestero, disponível para download gratuito, será apreciada por funcionários públicos, ativistas e pesquisadores em estudos urbanos e áreas afins.

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