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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES vol.42  Lisboa jun. 2021  Epub 23-Jun-2021

https://doi.org/10.15847/cct.20613 

ARTIGO ORIGINAL

O centro histórico de Poços de Caldas/MG: O caso do quadrilátero do complexo hidrotermal e hoteleiro

The historic centre of Poços de Caldas/MG: The case of the "complexo hidrotermal e hoteleiro"

Anamaria Canuto Sales de Oliveira1 
http://orcid.org/0000-0001-9423-9300

Ana Paula Farah2 

1Prefeitura Municipal de Poços de Caldas, Brasil. Email: anamaria_canuto@yahoo.com.br

2Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Brasil. Email: ana.farah@puc-campinas.edu.br


Resumo

O presente artigo busca compreender os resultados dos diferentes momentos de atuação do poder público sobre o Complexo Hidrotermal e Hoteleiro, na área central de Poços de Caldas, estado de Minas Gerais, Brasil, o qual está registrado, desde 1989, pela Constituição do Estado de Minas Gerais, e foi o primeiro núcleo formador da cidade, pautado pelos princípios do termalismo como ambiente de cura. Busca-se apreender os efeitos dessa atuação para a preservação do patrimônio cultural, não só em sua materialidade, mas, principalmente, em sua significância cultural para a memória coletiva dos cidadãos e na apropriação deste território. O objetivo do artigo é fornecer, através dos instrumentos teórico-críticos do campo disciplinar do restauro, a análise da historiografia do complexo em questão, as diferentes intervenções, formas de apropriação ao longo dos anos e as resultantes para a significância dessa área, hoje, para a memória coletiva da cidade.

Palavras-chave: patrimônio; centro histórico; significância cultural

Abstract

This paper aims to understand the results of the public power’s action over the “Complexo Hidrotermal e Hoteleiro”, Poços de Caldas city central area, in the state of Minas Gerais, Brazil. The “Complexo” is registered , since 1989, by the Constitution of the State of Minas Gerais, and was the former nucleus of the city, guided by the principles of thermalism as a healing environment. The research seeks to apprehend the effects of this action for the preservation of cultural heritage, in its materialness, such as in its cultural significance for the citizens’ collective memory and in the ways of using that place. The paper’s goal is to provide, through the theoretical-critical instrument of the restoration disciplinary field, an historic analysis of the “Complexo Hidrotermal e Hoteleiro”, of the many interventions, ways of use through the years and its results to this area of significance, today, on the collective memory of the city.

Keywords: heritage; historical centre; cultural significance

Restauro, significância cultural e memória

A ampliação do entendimento do que é o patrimônio alcança seu estatuto epistemológico com as considerações de Alois Riegl, no início do século XX, dando passos fundamentais para a consolidação do campo do restauro, enquanto disciplina autônoma, que dispõe de instrumentos teórico-críticos e técnico-operacionais próprios (Choay, 2001, p.22; Kühl, 2018a, p.62). Tal percurso é levado adiante com autores como Cesare Brandi que, articulando a teoria e a prática quanto às intervenções na preexistência, levou à compreensão do restauro , como esse campo disciplinar autônomo filiado ao pensamento crítico e às ciências (Kühl, 2018b, p.225; 2018a, p.67), que reconhece como obra de arte todo fazer humano que, portanto, deve ser preservado em sua dúplice polaridade: “estética, que corresponde à qualidade do artístico pelo qual a obra é obra de arte; e histórica, que lhe confere, como um produto humano realizado, a especificidade de um dado tempo e lugar.” (Rufinoni, 2018, p.119.).

O restauro, enquanto campo disciplinar, atua sobre o patrimônio (obra de arte) respeitando sua materialidade, os diversos estratos do tempo e sua imagem - nesta incluída a relação com a paisagem. Compreendendo a obra em sua totalidade como chegou aos dias de hoje, adota a visão do conceito da cultura no mundo ocidental, sendo o tempo linear, não reversível, inserindo-se sempre no presente, com vistas à transmissão do bem para as gerações futuras (Brandi, 2004, p.30).

Em se tratando de uma ação do presente, sobre um bem do passado, tendo em vista a sua transmissão para o futuro, apreende-se o restauro como ato de cultura de um presente histórico e a preservação deve ser entendida, a partir dos instrumentos e realidade de cada época (Kühl, 2018a, p.91). Assim, também, não dissemina a estagnação do bem no tempo, mas sua integração na vida cotidiana, compreendida como essencial para a criação de vínculo de memória e pertencimento para com a obra e, consequentemente, o reconhecimento de seu valor patrimonial. Integrado na vida cotidiana, o bem está sujeito a renovações de seus usos, valores e significados que, como consequência, formam novas significações culturais (Lira, 2017, p.10).

A Significância Cultural, é um conceito relativamente recente, definido na Carta de Burra (ICOMOS, 1980) e em suas diversas revisões ao longo dos anos - 1988, 1999, 2000, 2013 - como “valores estéticos, históricos, científicos, sociais ou espirituais para as gerações passadas, presentes ou futuras. (...) Está incorporado no lugar em si, seu tecido, definição, uso, associações, significados, registros, lugares e objetos relacionados” (ICOMOS, 2013; tradução da autora). Os conceitos ditos na carta deixam claro que, um mesmo lugar pode ter percepções diferentes para diferentes grupos, que com ele se relacionam, assim a significância diz respeito ao conjunto de valores atribuídos ao bem pela coletividade. Para Meneses (1998, p.91) os objetos não possuem valor cultural em si, como uma aura, mas o possuem à medida que lhes for conferido tal valor pelos grupos que com eles se relacionam, assim, a Significância Cultural de um bem será tão mais forte quanto o for a relação entre o bem e os grupos que lhe atribuem valor.

Sendo uma manifestação de valores atribuídos pela coletividade, a Significância Cultural, assim como o campo disciplinar do restauro, é relativa ao tempo presente e valores da sociedade que reconhece o bem como obra a ser preservada - para Brandi, obra de arte -, essa transitoriedade de valores não significa, no entanto, que os valores passados devam ser esquecidos. Halbwachs (1968, pp.131-133) demonstra que a materialidade dos objetos oferece à memória um registro de permanência e estabilidade; assim, o espaço habitado por um grupo é também um importante registro de sua memória e, dessa forma, a relação entre estes - espaço e memória coletiva - é de mútua alteração: a modificação do espaço levará à alteração da memória coletiva; também a mudança da memória de um grupo em relação a um espaço, levará à consequente transformação do espaço, por parte desse grupo.

O campo disciplinar do restauro atua sobre o patrimônio, respeitando sua dúplice polaridade estética e histórica, respeitando todos os estratos do tempo, entendendo que a obra se apresenta como materialização de memórias passadas, não tendo as gerações presentes, direito de negar tais memórias às gerações futuras (Kühl, 2007, p.203). Nesse sentido, ainda que os significados de um bem mudem ao longo dos anos, juntamente com os grupos que com ele se relacionam, a preservação desse bem deve levar em conta sua posição de documento e registro de memórias e significados passados, garantindo a sua transmissão em ambas as instâncias, estética e histórica, para compreensão da sua totalidade.

Estudo de Caso: Complexo Hidrotermal e Hoteleiro de Poços de Caldas

A construção de uma cidade de cura

A cidade de Poços de Caldas, localizada no sul do Estado de Minas Gerais (Figura 1), Brasil, se desenvolveu a partir de meados do século XIX, da busca pelas propriedades medicinais de suas águas termais sulfurosas e teve a construção de seu ambiente urbano pautada pela ideia de se tornar um ambiente de cura (Marrichi, 2009, pp.113-118), a partir de investimentos governamentais que visavam a construção de uma cidade balneária de referência no país.

Google Earth; alterado pela autora, 2017

Fonte: Figura 1: Localização da área de estudo (pintada a amarelo) 

Na cidade de Poços de Caldas o núcleo do desenvolvimento urbano (Figura 1) se localiza na primeira captação das águas termais, sendo ainda hoje o centro da cidade, era para onde acorriam os curistas - pessoas que chegavam à cidade para tratamentos termais - seus acompanhantes, e grande aporte de turistas; local onde se concentraram os investimentos iniciais para desenvolvimento urbano (Pozzer, 2001, p.5).

As cidades balneárias que possuíam águas medicinais eram, para muitos, a única esperança de cura. Os curistas enfrentavam grandes deslocações e longos períodos de tempo para tratamento que, no Brasil, durava entre 21 dias a 4 meses sob rotinas rígidas e dolorosas. Assim, além do peso da doença, a carga emocional do tratamento, distante dos entes e de casa, precisava ser compensada; dessa forma, a medicina termal, do início do século XIX, especificava um conjunto de fatores necessários para a cura, dentre eles, a busca por essa distração dos aspectos sombrios do tratamento. Fazia parte das prescrições básicas que os curistas deveriam,

“Passear ao redor de quiosques de música após beber o primeiro copo de água (termal), tomar um banho relaxante após a aplicação da injeção endovenosa, e distrair-se em bailes e cassinos” as quais eram “nada mais do que requisitos essenciais para a prática da cura, segundo a hidrologia médica francesa” (Marrichi, 2009, p.9).

Deste modo, a configuração inicial do centro de Poços de Caldas se baseia neste pensamento “termalista francês”, onde os espaços urbanos têm também função de curar, como uma extensão do balneário. Sobre isso, Marrichi comenta:

“A construção de espaços físicos apropriados a estas indicações obedeceu prioritariamente ao tratamento terapêutico antes de qualquer pensamento que pudesse priorizar o próprio divertimento ou lazer daquelas pessoas. Desde há muito, os médicos reclamavam para essas cidades divertimentos para os doentes, pois esquecer ‘a vida, a paixão, os amores, os negócios e os cuidados tristes’ (Castro, 1841, p.40) também fazia parte da rotina medicinal imposta pelas águas nesse período” (Marrichi, 2009, p.9).

Debruçando o olhar sobre o largo “poçoscaldense”, podemos reconhecer esses espaços criados para cura. Finalizadas em 1930, as chamadas “Grandes Obras” entregaram a Poços de Caldas um complexo hidrotermal (Figura 2) que concretizava os anseios dos médicos termalistas (Pozzer, 2001, pp.24-40). O Parque José Affonso Junqueira (3), densamente arborizado, com fontes e pergolados, faz a ligação entre as Thermas Antônio Carlos (5) - estabelecimento de cura termal - e o Palace Hotel (2), com os amplos e luxuosos salões do Palace Casino (4), que ofereciam os divertimentos dos jogos e bailes noturnos.

Prefeitura Municipal de Poços de Caldas; mapa produzido pela autora, 2019.

Notas: Fonte: Figura 2: Imagem aérea do Complexo Hidrotermal 

Diferentes fases de intervenção sobre o bem

O “Complexo Hidrotermal e Hoteleiro”, tombado no âmbito estadual pela Constituição do Estado de Minas Gerais, em 1989, composto pelos monumentos supracitados, foi construído com base nos conceitos do termalismo europeu e dos conceitos de Cidade Jardim Inglesa, para esta cidade termal que recebia, por ano, centenas de curistas, em busca de tratamento e, também, para os turistas que almejavam a exuberância dos salões de jogos e bailes. No entanto, os avanços científicos, com a descoberta da Penicilina, em 1928, abriram novas possibilidades de cura para aqueles que, outrora, tinham como única alternativa os tratamentos termais. Somada a isso, a crise econômica de 1930, levou à redução drástica do número de visitantes e curistas. Desta maneira, as “Grandes Obras” estavam prontas, para uma cidade que já não recebia tantos visitantes como no início do século (Pozzer, 2001, pp.48-49).

Com o Decreto-lei nº 9.215, de 30 de abril de 1946, assinado pelo presidente Eurico Gaspar Dutra, colocando o fim aos “jogos de azar” no país e ordenando o fechamento de todos os cassinos, Poços de Caldas se vê sem a última de suas principais atividades econômicas dos tempos áureos (Pozzer, 2001, pp.62-63).

A economia da cidade seria reaquecida, apenas, com a chegada das mineradoras em busca da bauxita existente no solo do município. Sobre isso, Pozzer (2001) comenta:

“O processo de industrialização (a partir de 1950-60) e os consequentes processo migratórios revelaram as novas faces da cidade que havia sido construída. (...) O complexo das grandes obras continuava precariamente preservado, entretanto seu entorno se verticalizara; o contexto bucólico da antiga cidade termal foi substituído por um intenso trafego de veículos pesados” (Pozzer, 2001, 88).

Com o turismo enfraquecido, a partir do fechamento dos cassinos, passou-se a busca de novas alternativas para atrair visitantes à cidade, e não apenas as classes mais altas, que antes “abarrotavam” os hotéis e cassinos, mas, também, as classes mais populares que acorriam à cidade em grande volume, lotando ônibus aos feriados e fins de semana e nela permaneciam pelo período de no máximo dois dias. Nota-se, a partir de então, uma alteração na forma de apropriação desse centro histórico/turístico, uma apreciação que outrora fora desfrutada, em longos períodos necessários aos tratamentos termais - entre vinte e um dias e quatro meses -, fora então reduzida ao período breve de um fim de semana. Esse turismo de massa teve efeitos diretos sobre a gestão e manutenção dessa área central.

As ações da Prefeitura Municipal passam refletir a preocupação em atender às novas demandas dessa nova atividade turística. Na década de 1970, a construção do Teleférico (Figura 3), com sua Estação de Embarque ao lado do Palace Casino - apesar do impacto visual sobre este - demonstra a busca por atrair novos visitantes, em detrimento do próprio patrimônio construído. No final de 1974, foi implantada, na Praça Pedro Sanches, a Feira de Artes de Poços de Caldas (FEARPO) e aberto ao público o Teleférico. Nesse período começaram a surgir os “ambulantes”, que se instalaram em frente ao Palace Cassino para venda de alimentos, nos fins de semana, de forma a aproveitar o fluxo de turistas na FEARPO e na Estação do Teleférico.

acervo da autora, 2017.

Foto: Figura 3: Estação de embarque do Teleférico (à direita) em contraste com o Palace Casino (à esquerda) 

Essas intervenções se inserem no contexto nacional de incentivo à indústria turística, mais especificamente ao turismo de massa, que tem como prioridade a grande atração de público, através de pontos turísticos que possam ser usados como marketing da cidade - como é o caso do teleférico, elemento relacionado com uma imagem de “modernidade”- meros objetos de consumo, “uma estetização para ‘consumo visual’, na qual a aparência é mais importante que o significado” (Sant’anna, 2017, p.61). Em âmbito internacional, as Normas de Quito (ICOMOS, 1967) colocavam o turismo como alternativa para a recuperação do patrimônio, incentivando os usos turísticos do patrimônio e pautando intervenções desse tipo em diversos países.

Ao refletir sobre os efeitos desses processos de produção em massa de atrações turísticas para o consumo, na forma de percepção dos bens patrimoniais, Sotratti (2010), comenta que a há a criação de uma nova imagem da cidade, adequada à promoção turística, que tem como consequência uma redução narrativa do patrimônio, resumindo sua complexidade a uma imagem estereotipada de cidade moderna, viva e reciclada (Sotratti, 2010, p. 69), de fácil absorção e apropriada ao consumo rápido. Sua complexidade e diversidade histórica, social e cultural, que constituíram sua identidade ao longo do tempo, fica assim reduzida a um “produto standard”, que apenas reforça o apelo consumista e espetacularizante dos espaços produzidos nessas operações.

O autor comenta ainda que tais práticas podem ser comparadas aos modelos espetacularizantes de parques temáticos, uma espécie de “disneylandização” do espaço urbano, “que recepciona seus visitantes com um espaço sadio, seguro, antigo e bem conservado, remetendo a uma cidade quase que imaginária e idealizada” (Sotratti, 2010, p. 70). Paralelamente, a inserção de novos usos e significados nessas áreas, progressivamente substituem a memória e identidade desses espaços, criando assim, novas identidades urbanas. De fato, Montaner (2017) fala de um apagamento sistemático da memória como um dos processos contemporâneos de urbanização, onde a imposição de novas identidades coletivas, mais simples e manipuladas, seria um mecanismo político de dissolução da memória. Segundo o autor:

“Podemos falar de um apagamento sistemático da memória coletiva que ocorre (...) de uma maneira lenta e oculta, como consequência do desenvolvimento tardo-capitalista e neoliberal das grandes urbes, que querem estabelecer identidades simples para o controle interno e comunicação externa, voltadas aos investimentos e ao turismo, e que se transmitem convenientemente adoçadas por meio de campanhas publicitárias.” (Montaner, 2017, p. 159)

Ainda segundo Montaner (2017), nesses processos de eliminação das “memórias reais”, há a invenção de memórias temáticas que se estabelecem, ao longo do tempo, como as novas “memórias reais” desses espaços, sem que a população esteja muito consciente disso. Um dos mecanismos utilizados nessa alteração da memória, seria a produção da apropriação de um lugar “mediante o esvaziamento de seu conteúdo simbólico e a mudança de seu significado” (Montaner, 2017, p.159), o que vai de encontro ao comentado por Sotratti (2010).

Em Poços de Caldas, somente a partir de 1984, com a redemocratização do país, surgem movimentos que demonstravam preocupação quanto à preservação e manutenção do Patrimônio Termal Poçoscaldense. A Prefeitura Municipal implanta a Diretoria do Patrimônio Histórico, Turístico e Artístico de Poços de Caldas (DPHTAM), e emite o decreto de tombamento do conjunto arquitetônico e paisagístico composto pela Praça Pedro Sanches, as Thermas Antônio Carlos, o Palace Hotel e Palace Cassino, sendo que, em 1986, a Câmara Municipal aprova a lei que regulamenta o Conselho Deliberativo do DPHTAM. O conjunto recebe proteção em âmbito estadual, através de seu tombamento pela Constituição do Estado de Minas Gerais, de 1989, sob a denominação “Complexo Hidrotermal e Hoteleiro de Poços de Caldas” (Constituição do Estado de Minas Gerais, Art.84, §2º).

Posteriormente, em 1993, incentivada por um contexto nacional e sob influência de projetos internacionais de reformulação de áreas centrais históricas, que tinham como objetivo a refuncionalização para fins turísticos, sob o pretexto de recuperação do patrimônio, frente da desvalorização desses bens e da tomada dos espaços públicos por novas dinâmicas de usos como eventos e manifestações populares e culturais - consideradas, então, prejudiciais ao patrimônio -, foi lançado o Concurso Nacional para a Revitalização da Área Central de Poços de Caldas, conhecido como “Projeto Centro Vivo”. O edital do concurso estipulava que o projeto ganhador deveria ser capaz de requalificar a área central, colocando o fim aos “usos degradantes” e melhorando as condições de ambiência e segurança da área central.

Apesar de não ter sido executado na sua totalidade, o projeto ganhador alcançou êxito, principalmente, nas requalificações do Parque José Affonso Junqueira e da Praça Pedro Sanches, bem como de ruas do entorno imediato. Com algumas outras “reformas” levadas a cabo e, posteriormente, a restauração dos imóveis e concessão pública para manutenção, por parte de empresas particulares, os bens componentes do Complexo Hidrotermal e Hoteleiro perduraram e, ainda hoje, se apresentam como principal patrimônio da cidade.

Data desse período, portanto, a imagem que se tem hoje da cidade de Poços de Caldas. Foram difundidos novos imaginários, não mais ligados ao turismo termal, que deu origem à cidade, mas sim imagens mais “simples” que têm potencial para atrair públicos mais variados. Assim surgem os imaginários como “Poços de Caldas, cidade das rosas”, “cidade da lua de mel” ou “Poços de Caldas a cidade cultural”, que alimentam o grande fluxo de eventos que passaram a ser executados na cidade desde então. A cidade balneária termal, tão importante para a construção da paisagem poçoscaldense, com o tempo ficou limitada às atividades das Thermas Antônio Carlos (Figura 4), como último resquício de seu passado termalista, sendo que a própria população, em grande parte, desconhece essa história, permanecendo na memória coletiva apenas os imaginários produzidos para o turismo de massa.

Nilton Junqueira, 2014. https://niltonjunqueira.files.wordpress.com/2014/03/thermas-ii.jpg

Foto: Figura 4: Thermas Antônio Carlos 

Considerações Finais

Embora o Concurso Centro Vivo tenha obtido resultados positivos para a imagem da cidade, requalificando espaços e servindo de estratégia de marketing para a maior atração de público turístico, este não alcançou o êxito pretendido na extinção dos eventos que, desde aquela época, se estabeleceram como tradicionais na área do Parque José Affonso Junqueira e Praça Pedro Sanches: exposições de automóveis antigos, feiras gastronômicas e de bebidas, apresentações teatrais e musicais; todos com grande atração de público e que podem ser considerados resultado dos incentivos governamentais ao turismo de massa e à criação de uma imagem de “cidade cultural”.

Tais eventos, juntamente com a presença de comerciantes ambulantes, despertam conflitos na gestão patrimonial da área: sendo executados com grande frequência, atraindo grandes volumes de público (Figura 5), são considerados uma excelente atividade turística que movimenta a economia e ajuda na divulgação do município, expandindo o público visitante a cada ano; no entanto, a frequência dos eventos prejudica a manutenção do patrimônio, ao passo que as Secretarias Municipais responsáveis pela manutenção desses bens estão em constante embate junto ao Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Cultural e Turístico (CONDEPHACT), solicitando o fim ou a redução no número de eventos na área. O CONDEPHACT, no entanto, por se tratar de um conselho apenas consultivo, não possui força política para intervir, além de que, por ser composto por membro civis da sociedade organizada (sindicatos hoteleiros, membros do comércio, etc.), muitos dos quais possuem interesses pessoais na execução desses eventos, acaba por não agir de maneira totalmente imparcial.

Autor desconhecido. bit.ly/2whiSkG

Foto: Figura 5: Evento “Sinfonia das Águas”, exemplo de evento realizado anualmente na área de estudo 

Paralelamente, a população local desfruta desses espaços, não como bens patrimoniais, mas como espaços públicos tradicionais, uma vez que, ao longo dos anos, através das transformações na gestão da área, transacionada de espaço termal de cura, para espaço de turismo de massas, a história do lugar, sua memória, não foram transmitidas à população local. Como comentado por Sotratti (2010), a refuncionalização turística, sem preocupação com a preservação dos bens patrimoniais (seus significados e memória), levou a uma redução de seus significados e, como apontado por Montaner (2017), uma alteração das memórias coletivas. Embora nós, defensores do patrimônio, vejamos nesses espaços uma rica história termal e valores ligados a essa origem, tais valores não foram transmitidos à população.

Sendo a significância cultural um conjunto de valores reconhecidos nos bens, pela população que deles se apropria, ou seja, sendo assim uma construção social com base nos valores passados e presentes, a gestão patrimonial desses bens não pode levar em conta apenas os valores históricos reconhecidos pelos especialistas da preservação; valores esses que, em grande medida, são desconhecidos pela população. A preservação deve levar em conta também, os valores “não oficiais”, aqueles ignorados pelos especialistas, mas que dizem respeito à forma como a população valora tais bens. A significância cultural deve ser o conjunto de todos os significados e valores atribuídos, por todos que tem relação com o bem, de forma que possibilite a sua compreensão total, material e imaterial, seus usos, formas de apropriação, contextos socioeconômicos e culturais, de forma que, a partir dessa compreensão, a gestão patrimonial tenha condições de estabelecer parâmetros de preservação realmente relevantes e condizentes com a importância desses bens para a contemporaneidade e, assim, traçar formas de transmiti-los no futuro.

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Recebido: 21 de Julho de 2020; Aceito: 02 de Junho de 2021

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