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CIDADES, Comunidades e Territórios

On-line version ISSN 2182-3030

CIDADES vol.42  Lisboa June 2021  Epub June 23, 2021

https://doi.org/10.15847/cct.21635 

ARTIGO ORIGINAL

Cultivando relações no Arranjo Local da Penha: A mobilização de mulheres a partir das práticas de agricultura urbana na favela

Building communal ties in the Arranjo Local da Penha: Women’s mobilization through agricultural practices in the favela

Mariana Portilho1 
http://orcid.org/0000-0001-5119-2688

Camila Gonçalves de Oliveira Rodrigues1 
http://orcid.org/0000-0001-7076-790X

Annelise Caetano Fraga Fernandez1 
http://orcid.org/0000-0002-2659-9547

1Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Práticas do Desenvolvimento Sustentável, Instituto de Florestas, Brasil. Email: mariana.portilho@gmail.com


Resumo

Este estudo apresenta a formação do Arranjo Local da Penha, uma rede territorial comunitária criada em 2016, no complexo de favelas da Penha, Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. Protagonizada essencialmente por mulheres e voltada à promoção da agricultura urbana (ancorada nas bases da agroecologia), a rede se constrói a partir de articulações locais. Por meio da inserção em campo e observação participante, foi possível compreender as práticas dessa articulação em rede, analisando temas geradores, tais como: 1. mulheres e agroecologia, 2. saúde e 3. alimentação saudável. A partir deste território, será apresentada uma descrição da trajetória do Arranjo e os limites e as possibilidades de mobilização e desenvolvimento da agricultura urbana. Como resultados do Arranjo, observa-se a promoção do protagonismo das mulheres e a construção dos laços afetivos entre elas e o lugar, principalmente ao possibilitar o acesso à “comida de verdade” na favela. Destacamos, portanto, a importância desta experiência de mobilização territorial que parte do cuidado feminino com o entorno da casa, sendo a produção local de alimentos o caminho para se alcançar resgates de memória, a promoção da saúde e uma nova relação de percepção e potencialização do senso de pertencimento das moradoras.

Palavras-chave: agricultura urbana; Arranjo Local da Penha; mulheres e agroecologia

Abstract

This paper studies the development of Arranjo Local da Penha, a territorial community network created in 2016 in the favelas of Penha, rooted in the north zone of Rio de Janeiro. This network is led mostly by women practicing urban agriculture based on agroecology, who build and expand their project through local organization. Through field research and participant observation, the paper sheds new light on the practices and dynamics of this network. The paper describes the Arranjo’s trajectory, pointing out the limits and possibilities to the development of urban agriculture in the favelas of Penha. Overall, this research indicates an increase in women’s protagonistic role, in parallel to the building of strong emotional ties between Penha´s territory and them. These are outcomes of their effort to create access to “comida de verdade” (“real food”) in the favelas. The paper reinforces the importance of local food production as a path to promote not only health and well-being, but also the debates about memory and culture - leading to the strengthening of people´s social ties and their sense of belonging to the community.

Keywords: urban agriculture; Arranjo Local da Penha; women and agroecology

Introdução

Da colheita de temperos frescos nas hortas dos quintais produtivos às trocas de receitas com a avó para fazer o almoço do dia, estão algumas das práticas de um conjunto diversificado de experiências de agricultura nas cidades. Os modos de vida nos grandes centros urbanos apresentam cada vez mais a reprodução de hábitos que, no imaginário dos brasileiros, ainda são vistos como restritos à vida no campo. Observamos nas sociedades urbanas a adoção de novos estilos de vida que, na busca por lazer, descanso e refúgio, modificam seus modos de viver, comer e se relacionar. Nesse sentido, as iniciativas mencionadas refutam as visões dicotômicas entre o rural e o urbano, frequentemente percebidos como antagônicos e dissociados entre si (Carneiro, 2008).

Em abordagens dicotômicas sobre as dimensões rural e urbano, o campo se opõe a cidade por expressar elementos que enfatizam suas distinções. Marques (2002), a partir do estudo da obra de Sorokin e Zimmermann (1986), ressalta traços fundamentais destacado pelos autores como por exemplo: (1) diferenças ocupacionais ou principais atividades em que se concentra a população economicamente ativa; (2) diferenças ambientais, estando a área rural mais dependente da natureza; (3) diferenças no tamanho das populações; (4) diferenças na densidade populacional; (5) diferenças na homogeneidade e na heterogeneidade das populações; (6) diferenças na diferenciação, estratificação e complexidade social; (7) diferenças na mobilidade social e (8) diferenças na direção da migração. (Marques, 2002, pp.100).

Precisar os limites objetivos entre o rural e o urbano em determinados contextos se torna cada vez mais complexo, pois ao observarmos a reprodução de aspectos da ruralidade no meio urbano (Carneiro, 2008), assim como as urbanidades penetrando cada vez mais no campo, configura-se o meio rural com outras atividades que não aquelas estritamente agrárias (Veiga, 2006; Favareto, 2007).

Sem negar a pertinência dos estudos com foco nas novas funcionalidades, atores e identidades sociais no campo (Veiga, 2006; Favareto, 2007; Hespanhol & Hespanhol, 2006, Hespanhol, 2013), De Paula (2005, p.243) anuncia: “é igualmente relevante interrogar sobre o que vem acontecendo na cidade, em razão do esmaecimento de suas fronteiras com os espaços naturais e rurais”. Para esta autora, mais do que apenas um processo de ruralização, o ato de plantar nas cidades tem buscado equacionar os dilemas da própria vida urbana.

Consideramos que a agricultura urbana, ao atribuir à cidade novas dimensões sociais, ambientais e culturais, contribui para romper com a dicotomia rural-agrícola/urbano-industrial e projeta novas utopias; novas formas de resistir e existir na cidade.

Com base em Santadreu e Lovo (2007), definimos agricultura urbana como um conceito multidimensional que inclui a produção, a transformação e a prestação de serviços ligados às atividades agrícolas e/ou seus produtos (hortaliças, frutas, plantas medicinais, ornamentais, cultivados ou advindos do agroextrativismo), pecuários (animais de pequeno, médio e grande porte) e beneficiados voltados ao autoconsumo, trocas, doações ou comercialização, (re)aproveitando-se, de forma eficiente e sustentável os recursos e insumos locais (solo, água, resíduos, mão de obra, saberes).

Além de focar na amplitude de práticas abarcadas pela AU, é de fundamental importância considerar as observações de Mougeot (2000, p.5) ao ressaltar que: “a característica principal da agricultura urbana, que a distingue decisivamente da agricultura rural, é sua integração no sistema econômico e ecológico urbano”. Nesta discussão, o autor enfatiza a importância da diversidade de experiências empíricas como uma contribuição para refinar as definições do conceito de AU.

Realizada nos espaços urbanos e a partir deles, a prática da AU agroecológica favoreceu a consolidação de movimentos de agriculturas nas cidades, como no caso do Rio de Janeiro, constituindo a Rede Carioca de Agricultura Urbana (REDE CAU), que reúne uma diversidade de atores sociais sendo estas associações, coletivos, estudantes, pesquisadores, organizações da sociedade civil, de diferentes localidades do município.

A Agricultura urbana com enfoque agroecológico vai além do direito a plantar, pois se pauta pelo respeito aos saberes e aos conhecimentos locais, pela promoção da equidade de gênero através do uso de tecnologias apropriadas e por processos participativos (Altieri, 2004). Em suas variadas formas de expressão, a agricultura urbana agroecológica perpetua diferentes dimensões, atingindo aspectos tecnológicos, sociais, econômicos, ambientais e de saúde. Como exemplo a adoção de princípios da utilização dos recursos naturais em consonância com o tempo de resiliência da natureza, promovem a manutenção da biodiversidade e a conservação ambiental, além de auxiliar na reciclagem de resíduos sólidos. Plantados e colhidos a partir dos seus próprios ciclos naturais, os alimentos agroecológicos não fazem o uso de agrotóxico.

Envolvidos com a AU e a agroecologia, seja na pesquisa, na extensão, na militância, em serviços de assessoria ou na vivência, juntos esses sujeitos afirmam que a cidade é um espaço legítimo para a agricultura que, por sua vez, deve ser protegida por um conjunto de políticas públicas ainda pouco sensíveis a essas práticas (Fernandez & Baptista Filho, 2019), sendo a mobilização e luta social que faz existir e resistir a agricultura da e na cidade.

Constituída em 2009, a REDE CAU representa uma ampla articulação na defesa para que a AU adquira o estatuto de política pública, com repercussão no planejamento urbano, e também como possibilidade de garantia da existência e da promoção das diferentes práticas que a compõem (Silva, 2016). Tal política contribuiria para a promoção de direitos voltados para uma diversidade de sujeitos que se encontram na condição de agricultores e agricultoras urbanas.

Vale salientar que a construção de uma política municipal de AU para o Rio de Janeiro é uma reivindicação antiga dos movimentos sociais, das organizações não governamentais e das redes e articulações voltadas à promoção da agroecologia. Nos últimos dez anos (de 2009 a 2019), foram diversas as mobilizações no âmbito do movimento da agricultura urbana no município, seguidas por algumas conquistas relacionadas tanto à implementação de políticas públicas como resultados econômicos e sociais. Fortalecida, a Rede atuou na capacitação de seus (suas) integrantes de forma a ser levantadas as demandas dos territórios e incentivar que os próprios atores começassem a se organizar pelos bairros cariocas. Isso quer dizer que, inspirados pelas experiências que dividiam uns (umas) com os(as) outros(as), muitos(as) dos(as) participantes da Rede CAU puderam se dedicar mais atentamente às suas próprias moradas, animando os pequenos grupos locais e comunidades para que passassem também a se organizar como rede.

Ao mesmo tempo, sendo uma rede aberta e dinâmica, a Rede CAU foi assumindo agendas de luta trazidas pelos seus participantes, englobando as trajetórias e experiências de quem estava chegando. A participação da organização comunitária Centro de Integração na Serra da Misericórdia (CEM), ao trazer a realidade da vida das comunidades do Complexo da Penha proporcionou maior visibilidade para o debate sobre as possibilidades da agricultura e do acesso à “comida de verdade” nas favelas.

Esses dois conceitos são portadores de um amplo universo semântico e, mais do que isso, postos juntos pelo CEM, produziram efeitos políticos importantes no movimento de agricultura urbana carioca, conforme trataremos neste artigo.

O conceito de "comida de verdade" foi introduzido pelo (atualmente extinto) Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) , e diz respeito à comida:

Produzida pela agricultura familiar com base agroecológica e uso de sementes crioulas e nativas por meio do manejo adequado dos recursos naturais e que garante a alimentação de qualidade e em quantidade adequada em todo o curso da vida. Sua produção protege e promove as culturas alimentares, a sociobiodiversidade, as práticas ancestrais, a dimensão sagrada dos alimentos. (CONSEA, 2015).

O CEM, ao juntar a reivindicação de “comida de verdade” em um espaço social específico - a favela - procurou chamar atenção para o aumento das desigualdades sociais, quando comparadas com outros locais da cidade, sobretudo em suas dimensões de classe, raça e gênero.

Segundo a definição do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), favela é um aglomerado Subnormal: forma de ocupação irregular de terrenos de propriedade alheia - públicos ou privados - para fins de habitação em áreas urbanas e, em geral, caracterizados por um padrão urbanístico irregular, carência de serviços públicos essenciais e localização em áreas com restrição à ocupação. No Brasil, esses assentamentos irregulares são conhecidos por diversos nomes como favelas, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas, loteamentos irregulares, mocambos e palafitas, entre outros. De acordo com Valladares (2005), esta definição está relacionada mais às especificidades do trabalho de coleta de dados em campo, do que a critérios sociológicos. E de fato nas Ciências Sociais brasileiras o conceito de favela é objeto de intenso debate (Valladares, 2005). Sem desconsiderá-lo, e para fins deste artigo, optou-se por privilegiar as representações a respeito “da favela” acionadas pelos seus próprios moradores.

Nesse processo, a construção de pequenas redes locais e comunitárias consistia em um dos primeiros passos para a formação do Arranjo Local da Penha , uma articulação em rede mobilizada pelo CEM, que consiste na iniciativa a partir da qual esse artigo propõe refletir, com ênfase nos temas mulheres e agroecologia, promoção da saúde e moradia. Ao utilizarmos o termo mobilização territorial, tomamos como inspiração abordagens que analisam o território como unidade de ação coletiva (Teisserenc e Teisserenc, 2014) que, por sua própria dinâmica, redefine seus limites e pode estabelecer conexões em múltiplas escalas, permitindo aos saberes locais mostrar a pertinência e possibilidade de modos de produção alternativos.

Nesse sentido, o termo “mobilização territorial” é compreendido neste artigo pela capacidade que os atores envolvidos têm em: compreender o cotidiano dos moradores; articular figuras-chaves / lideranças comunitárias / organizações locais; ampliar parcerias, entre outros processos de coesão a partir de pautas sociais, ambientais, econômicas. De forma que, a partir desse conjunto de ações, se torne estruturante para impactar diretamente o território por meio do desenvolvimento da AU no local.

Com base nestes processos, o objetivo deste artigo é descrever esta experiência de mobilização territorial e, a partir dela, analisar as possibilidades do desenvolvimento da agricultura urbana em favelas a partir de temas geradores, tais como: 1. mulheres e agroecologia, 2. saúde e 3. alimentação saudável no território.

Para alcance desse objetivo, a observação participante permitiu compreender alguns aspectos das relações sociais, culturais e econômicas do lugar. Em especial, a pesquisa se direcionou ao acompanhamento do grupo de mulheres composto por moradoras locais e usuárias da Clínica da Família , que promovia encontros quinzenais para tratar sobre assuntos ligados à alimentação saudável. A opção pelo acompanhamento deste grupo não foi resultado de uma escolha pré-definida, mas partiu da identificação de relações significativas encontradas no campo. Chamava a atenção o protagonismo que estas mulheres tiveram na construção do Arranjo Local da Penha. O registro de seus diferentes olhares e percepções foi crucial para compreender o arranjo e o processo de mobilização territorial. A escolha pelo método - pesquisa participante (com foco na pesquisa-ação), conforme proposto por Magalhães e Lima (2009) - objetivou registrar não somente as respostas dos sujeitos, mas também a interação entre eles, a convivência dos atores com o lugar e o aprendizado coletivo entre os membros que resultou desses momentos.

1. As (não) Políticas de Agricultura Urbana no Município do Rio de Janeiro

No que diz respeito ao campo de estudo, ainda que a cidade do Rio de Janeiro seja considerada como integralmente urbana pelo Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Sustentável do Município (Rio de Janeiro, 2017), persistem no território alguns traços rurais e uma grande diversidade de áreas de produção alimentar. Dados do Censo Agropecuário do IBGE (2006 apudMaselli, 2015) apontaram para a existência de 1.055 estabelecimentos agrícolas na cidade do Rio de Janeiro , sendo que, desse total, 790 são oriundos da agricultura familiar. A leitura desses dados oficiais indica que o município do Rio de Janeiro tem uma produção agrícola relevante . Apesar de tais números, a agricultura familiar carioca é uma atividade que pode ser considerada como desvalorizada e que historicamente vem sofrendo com a falta de apoio institucional e a ausência de políticas agrárias. A agricultura urbana, por sua vez, ainda é vista pelos atores institucionais como uma atividade irrelevante; uma prática fora do lugar e feita por pessoas despreparadas.

Vale ressaltar que a revisão do Plano Diretor do município não é suficiente se conjuntamente ao reconhecimento de áreas rurais não ocorrer o reconhecimento dos agricultores urbanos e a promoção de novas leis que se apliquem e beneficiem essa categoria. A Rede CAU, ao longo desta última década, tem assumido uma agenda ampla de defesa por todas as expressões de agricultura na cidade do Rio de Janeiro. Uma das ações consideradas estratégicas é a participação no grupo de trabalho de revisão do Plano Diretor da cidade (que deve ser publicado ainda em 2021), que busca sensibilizar o quadro técnico da Secretaria de Urbanismo a identificar práticas ainda pouco convencionais de agricultura no território municipal. Criado em 2011 (renovado a cada 10 anos), o Plano Diretor não faz menção à presença de territórios rurais. Na verdade, os planos diretores não reconhecem as áreas de agricultura urbana. O que se faz é o zoneamento da cidade (área rural, área urbana, área industrial, área de comércio, áreas mistas, área de preservação ambiental). O que se defende é a necessidade de reconhecimento da zona rural e, ao mesmo tempo, que as zonas urbanas reconheçam a agricultura como prática socioeconômica (não apenas como zona da cidade).

Os movimentos da agricultura urbana no município vêm crescendo nos últimos vinte anos, tanto por meio de reproduções de modelos de vida antigos, vinculados ao resgate dos próprios costumes, como - e, cada vez mais - são revelados hábitos inventivos nos quais moradores urbanos de diferentes classes sociais, sem nenhuma referência anterior com o campo, passam a se dedicar a essas atividades.

Aqui no RJ, a REDE CAU defende a produção local de alimentos como caminho para se alcançar metas de garantia da soberania alimentar. Ao possibilitar o acesso ao plantio e consequentemente à alimentação, permite-se uma nova relação com o que se come, reduzindo o percurso da cadeia produtiva e aproximando produtores de consumidores, pois ambos se confundem nas experiências de agricultura urbana. Sugere-se, portanto, que a oposição entre essas duas categorias, produtores e consumidores, é cada vez menos rígida.

O compartilhamento de experiências de AU em diferentes cidades no mundo permite identificar um conjunto de dinâmicas que têm estimulado seu fortalecimento nas últimas décadas. Hespanhol (2019, p.3) elenca os seguintes fatores que, combinados de modos distintos, podem ser recorrentes:

O crescimento da população urbana e a intensificação da urbanização; o aumento dos índices de pobreza nas cidades; o encarecimento dos preços dos alimentos; o agravamento dos problemas ambientais; e a crescente preocupação de uma parcela da população com a qualidade dos alimentos consumidos. Houve também a emergência de uma miríade de movimentos que defendem, sob diferentes justificativas, a ocupação dos espaços ociosos nas cidades por meio da prática da agricultura urbana.

Ainda durante esses últimos anos foi conquistada, a partir de lutas populares desse movimento, a implementação de políticas públicas e alguns resultados econômicos e sociais, destacando-se a articulação em redes, por meio das quais se propiciou a interação do trabalho de distintos atores sociais em diferentes localidades do município, o que fortaleceu suas reivindicações e resultou em conquistas - como o acesso a mercados, emissão de DAPs , acesso ao Programa Nacional de Alimentação Escolar - PNAE e, mais recentemente, a construção da Frente Parlamentar de Segurança Alimentar e da Agricultura Urbana . Mas ainda assim existem lacunas de informações objetivas nos dados oficiais que permitam uma análise aprofundada da relevância da agricultura urbana no município do Rio de Janeiro de forma a atender à diversidade das possíveis práticas desenvolvidas e ao viés agroecológico. A constituição de uma política municipal de AU deve prever a realização de uma leitura clara das informações existentes e a busca por novas informações complementares.

2. As estratégias da articulação em rede a partir da AU

Prado, Mattos & Fernandez (2012) ressaltam que as expressões da agricultura agroecológica na cidade, através de associações e redes, recriam sociabilidades e permitem uma maior participação em diferentes espaços. Na busca por visibilidade dos esforços de redes e associações da AU, a participação social cresce na medida em que são construídas estratégias de fortalecimento nas dimensões políticas, sociais e ambientais. O CEM, organização comunitária que desde 2011 vinha atuando pelo reflorestamento e preservação da Serra da Misericórdia - último remanescente de Mata Atlântica da Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro e localizada no Parque Proletário do Grotão, uma de suas maiores favelas - desenvolvia com a comunidade do entorno mutirões de plantio e manejo arbóreo. Inspirados em outra organização mais antiga, o Verdejar Socioambiental - localizada na outra vertente da Serra e tendo como referência o mestre Luiz Poeta - o CEM passou a se organizar enquanto rede.

É preciso destacar o caráter desafiador da iniciativa de Luiz Poeta, ao sensibilizar os moradores para ações de reflorestamento e manutenção das áreas verdes em localidades já fortemente adensadas e em permanente processo de disputa.

A partir da inserção do CEM na REDE CAU, em 2012, são criadas novas percepções em relação à sua forma de atuar, tanto na agricultura quanto na articulação e mobilização no território. Seus integrantes começam a participar de cursos de formação em agricultura urbana com enfoque agroecológico, de intercâmbios de troca de saberes, oficinas e seminários de formação. Sobre esse encontro do CEM com a Rede CAU, Marcelo Silva, um dos coordenadores da organização comenta:

A gente conheceu a Rede CAU e tudo mudou na nossa vida. Tem cinco anos. Nosso trabalho mudou. Nosso foco era reflorestar a Serra da Misericórdia, depois virou agrofloresta e revimos nosso objetivo. Agora é a produção de alimentos, pensando na SAN. Entramos para o Consea-Rio. (coordenador do CEM, 2017).

Notamos, assim, que a participação do CEM na Rede CAU favoreceu novas construções, com as trocas e articulações que se estabeleceram. No âmbito do CEM, o ato de plantar foi sendo enriquecido de novos sentidos através da conexão que se passou a estabelecer com a alimentação. Ao perceber que juntamente ao reflorestamento da Serra, uma prática já estabelecida, também poderiam cultivar uma agrofloresta, a produção de alimentos, condimentos e plantas medicinais foi incorporada às práticas da organização. Por sua vez, as novas parcerias também reverberaram sobre a agenda da Rede CAU e na formulação de suas propostas e agendas locais.

Durante o seminário “Avaliação do acesso aos Produtos da Gente ”, ocorrido em 2016 na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), o CEM relatou que, naquelas favelas onde atuava (sendo elas: Estradinha, Favelinha, Nova Jerusalém/Terra Prometida, Vila Cruzeiro e Grotão ), eram vendidos produtos in natura nas feiras, sacolões e hortifrútis que por lá se mantinham; por outro lado, os produtos processados e ultraprocessados eram mais facilmente encontrados em grande parte dos bares, quitandas e mercadinhos localizados nas áreas mais distantes do asfalto. Sendo estas áreas onde as habitações são mais precárias sendo seus moradores com menores rendimentos, tal observação também indica que a capacidade de distribuição desses produtos em relação aos não processados aumenta nos pontos de venda localizados em áreas de menor poder aquisitivo. As barreiras físicas e financeiras e a ausência de políticas públicas para ampliar o acesso à alimentação saudável , constituem estímulos para maior incidência da venda e consumo de produtos processados e ultraprocessados.

Mesmo com produção ainda tímida de alimentos agroecológicos, o CEM alcançou a certificação orgânica - inédita em uma favela carioca. Em seguida, reivindicou a diminuição do preço dos produtos vendidos na feira - que até então seguiam o valor do mercado - para preços acessíveis à realidade da região: “Você sai de dentro da favela com a verdura pra vender, mas atinge um público que não é o seu vizinho e sim aqueles que vêm de fora, e isso não é autonomia, não é agroecologia” (Ana Santos, Coordenadora do CEM).

Nos espaços de comercialização, o CEM passou a circular e a se tornar conhecido. A mobilização territorial já existia, mas compreende-se que o diferencial surge quando, da articulação local, ocorre a proposta de se trabalhar a temática da AU agroecológica: “Eram muitas as demandas locais e com isso vínhamos perdendo força de atuação, porém a agroecologia perpassa diversos temas e com ela conseguimos unir aquilo que estava fragmentado” (Coordenadora do CEM). A partir de iniciativas de abastecimento de alimentos saudáveis, em parceria com outros grupos, foi possível, pouco a pouco, a consolidação do que hoje é chamado de Arranjo Local da Penha. Com seu estabelecimento, passaram a atuar mais fortemente de forma descentralizada e um novo conceito de trabalho em rede foi se formando.

Considera-se que esta experiência específica pode ser fonte de inspiração para outras iniciativas de mobilização comunitária. Neste sentido, a partir do Arranjo Local da Penha, propomos a discussão sobre Arranjos Locais de Agricultura Urbana como uma tecnologia social que, a partir da mobilização comunitária com enfoque na agricultura urbana, visa o fortalecimento da produção agroecológica local de alimentos e a promoção do acesso destes aos moradores. Neste artigo, o conceito de tecnologias sociais expressa um conjunto de técnicas e metodologias que podem ser aplicadas (e/ou reaplicadas) para a solução de problemas sociais, a partir da construção e envolvimento efetivo dos atores que a utilizarão (Neves, Lima e Gonçalves, 2020).

Foi justamente assim que a Organização Não Governamental AS-PTA , inspirada pela mobilização territorial desempenhada pelo CEM, viu no projeto “Agricultura Urbana e Arranjos em Mercados Locais na Região Metropolitana do Rio de Janeiro”, mais conhecido como Projeto Arranjos Locais, a oportunidade de fortalecer esta experiência e replicá-la, possibilitando a integração com outros territórios da cidade.

Na figura 1 estão destacadas, no município do Rio de Janeiro, as áreas de atuação contempladas pelo projeto da AS-PTA no período de 2016 a 2019, os chamados Arranjos Locais. Nesses bairros se encontram moradores urbanos que cultivam hortas em pequenos espaços para o consumo próprio e/ou para comercialização em mercados de proximidade. São encontrados também agricultores familiares em situações urbanas cuja atividade agrícola familiar se insere num complexo arranjo de trabalho e produção de renda, caracterizado pelo ingresso de ativos provenientes também de outras fontes comuns da cidade.

Fonte: Acervo AS-PTA, elaborado por Bruno Araújo, 2020.

Figura 1: Arranjos Locais fortalecidos pela AS-PTA

Entre esses espaços ocorrem interações por meio de redes de trocas (de saberes, sementes, insumos e outros). Em forma de teia a articulação entre as Redes Locais de produção e abastecimento demonstrou que seus participantes atuam como multiplicadores de potencialidades das atividades da agricultura urbana que envolvem, além da prática agrícola, a produção de artesanato, atividades de processamento, xaropes e remédios naturais, entre outras ocupações relacionadas à pluriatividade na agricultura. Utilizando como instrumento de trabalho metodologias voltadas a estreitar os vínculos entre os grupos de agricultores, como intercâmbios, oficinas e mutirões, as interações entre os diferentes Arranjos demonstram o alcance indireto a moradores da região através das redes sociais locais estabelecidas.

Considerando a importância do território para o entendimento do Arranjo, este conceito é trabalhado aqui como uma práxis, ou seja, uma categoria da prática e também uma categoria analítica. Dessa forma, a noção de território é compreendida no sentido atribuído por Milton Santos como um “(...) lugar em que desembocam todas as ações, todas as paixões, todos os poderes, todas as forças, todas as fraquezas, isto é, onde a história do homem plenamente se realiza a partir das manifestações da sua existência” (Santos, 1999, p.7). Compreende-se, portanto, a visão de território enquanto espaço que propicia o fortalecimento das relações e de articulação de redes.

A partir de metodologias participativas, o Arranjo Local da Penha estruturou um sistema de comunicação popular , tanto para comunicação interna referente ao planejamento das ações, quanto externa, para divulgação às comunidades vizinhas. O aprimoramento da comunicação por seus integrantes permitiu a estes a criação de espaços de produção e comercialização, bem como sua participação na coordenação da Feira Orgânica de Olaria . O Arranjo Local da Penha passou a desenvolver ações com os moradores da comunidade e equipamentos públicos, tais como: 1) mutirões de plantio em áreas públicas; 2) construção de composteira em Escolas Municipais; 3) criação de horta em creches; 4) desenvolvimento de oficinas de formação com agentes de saúde e Mulheres usuárias da Clínica da Família (CF) - este em especial será foco de atenção neste artigo. No plano político-institucional, o Arranjo promoveu parcerias com outras organizações, universidades e redes para além da Rede CAU, como a Articulação de Agroecologia do Estado do Rio de Janeiro (AARJ).

As atividades do Arranjo estão ancoradas em um conjunto de objetivos que dizem respeito à promoção de: 1) produção agrícola em espaços da favela; 2) alimentação adequada e saudável para moradoras e moradores da comunidade; 3) geração e/ou incremento de renda a partir de atividades agrícolas e afins (como artesanatos e processados); 4) fortalecimento e/ou criação de espaços de venda de alimentos agroecológicos a preços acessíveis à realidade local; 5) garantia da autonomia de produção e consumo; 6) envolvimento e protagonismo das mulheres, assim como da juventude, no desenvolvimento das atividades.

À luz dos objetivos do Arranjo, destacamos a seguir aspectos da mobilização territorial, seus significados e aprendizados, apresentados como forma de dar concretude à discussão sobre os limites e possibilidades da atuação em rede.

3. A xepa na favela

Em 2017, a nutricionista responsável pelo Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) e também coordenadora do grupo “Alimentação e saúde” da Clínica da Família Dr. Felippe Cardoso, localizada na Penha, constatou, durante sua atuação em ações de acompanhamento das famílias do Programa Bolsa Família , um elevado número de casos de sobrepeso e obesidade, como também o diagnóstico de doenças relacionadas à alimentação não saudável e pobre em nutrientes. Diante disso, a coordenação do NASF, junto aos(às) agentes de saúde, buscou aproximação com o CEM, a fim de promover o acesso dessas famílias aos alimentos agroecológicos que eram produzidos no local e comercializados no bairro vizinho, na Feira Orgânica de Olaria. Esses alimentos seriam destinados aos pacientes diagnosticados principalmente com doenças crônicas não transmissíveis . Os integrantes do CEM idealizaram uma proposta de abastecimento de alimentos saudáveis a preços acessíveis. Esta ação foi o despertar da ideia de fornecer à favela verduras, hortaliças, frutas e legumes frescos agroecológicos, com valor simbólico de R$0,50 (cinquenta centavos de real) cada molho , alcançando não somente os pacientes da CF, mas também outros moradores da região. A ação ocorreu da seguinte forma: os produtos não comercializados durante a feira - chamados de “xepa” pelos feirantes - eram doados por cada uma das barracas e retornavam à Penha, onde parte deles eram plantados e colhidos.

Ao invés da favela descer à feira, foi a feira que chegou à favela. Essa estratégia inovadora se tornou uma prática que foi integrada no grupo, a qual possibilitou o acesso aos alimentos frescos, abastecendo uma localidade onde existe uma grande oferta de produtos ultraprocessados, e destinados para uma camada da sociedade mais vulnerável e com baixo poder aquisitivo, a qual não teria acesso a alimentos agroecológicos se não fosse a promoção da agricultura urbana.

Ainda sobre a “xepa na favela ”, foi possível perceber a partir das visitas de campo que as lojas fixas passaram a abastecer suas prateleiras com mais alimentos frescos, como um mecanismo de adaptação à “concorrência”. Por outro lado, vendedores ambulantes passaram a divulgar que, em sua maioria, muito daquilo que vendiam era produção colhida do próprio quintal e não das Centrais de Abastecimento do Estado do Rio de Janeiro (CEASA-RJ), como anteriormente diziam .

O pouco de comida fresca (abastecimento) que tem, melhora! A partir da concorrência de venda de produtos frescos as barracas e camelôs começam a reconhecer e dizer que a produção vem daqui mesmo, do próprio quintal, da laje, do terreno baldio, começam a aparecer hortas, a serem evidenciadas (Moradora do Grotão, participante do grupo “Saúde e Alimentação” informação verbal).

Sobre o levantamento dos locais de oferta de produtos, outra moradora complementa: “Ao permitir que a feira chegue à comunidade, hortaliças, frutas e verduras orgânicas passam a se tornar acessíveis e a compor as mesas e refeições das famílias” (Informação verbal).

Essas observações das moradoras vão na contramão de uma ideia muito difundida, que pode ser sintetizada na afirmação de que “se favelado não come nem alface, como vamos falar sobre Plantas alimentícias Não Convencionais? As tão famosas PANCs?” Nesta afirmação desconstrói-se a ideia de uma ausência de hábito de consumo de alimentos frescos como inerente ao morador da favela e, por isso, um impeditivo para difusão do consumo dos alimentos agroecológicos - a chamada comida de verdade.

Quando o acesso se estabelece, podemos observar um consumo valorizado desses alimentos, em especial pelas mulheres, muitas delas chefes de família. Esses gêneros alimentícios não se mostram totalmente desconhecidos. Mesmo as PANCs são por vezes bem familiares, embora nomeadas por elas como “Matos de comer ”.

Nesse sentido, ocorre um resgate de saberes, identificando na comida uma memória afetiva daquilo que foi um dia plantado, colhido e preparado pelas mãos de suas mães, avós, tias e vizinhas. Receitas são descritas exemplificando conhecimentos próprios de modos de fazer, inclusive de criação de pequenos animais. Como exemplo, muitas mulheres disseram ter tido galinheiro, porém hoje não têm mais espaço, tempo ou disposição para manter a criação de galinhas.

Sobre o consumo dessa carne, vale ressaltar que todas disseram frequentar o aviário, estabelecimento este ainda muito presente no bairro. A citação do aviário chamou a atenção, primeiro pela permanência desse tipo de empreendimento no território - já que não é tão facilmente encontrado em outras partes urbanizadas da cidade -, e pela forma como elas descreveram se relacionar com esse comércio. Contaram que preferencialmente compram o frango ainda vivo e, como critério de escolha, seguem seus conhecimentos acumulados e aprendidos através dos saberes próprios vistos durante a adolescência/infância, e assim determinam quais deveriam ser as aves mortas e preparadas às suas famílias.

A partir da comida a temática da saúde também se mostra relevante. A diversidade e variedade de alimentos sem veneno melhora a qualidade nutricional. Através do consumo e da disponibilidade do alimento à mesa, estimula-se o interesse do plantio, para que as mulheres possam começar a colher.

A partir desses mecanismos de sensibilização, encontros de quintais produtivos, mutirões, reuniões e trocas de receitas começaram a se espalhar pela comunidade e muitas começaram a produzir para consumir e também para geração de renda.

4. Mulheres e Agricultura Urbana - saúde e alimentação para além do plantar

Destinado a pacientes com necessidades de reeducação alimentar, a equipe do NASF da CF promoveu encontros abertos para discussões sobre alimentação saudável. Apesar de não ser voltado necessariamente apenas ao gênero feminino, em sua totalidade, o grupo se constituiu apenas por mulheres , sendo as participantes jovens adolescentes, adultas e idosas, portadoras de doenças como diabetes, hipertensão, obesidade e depressão. Os agentes comunitários de saúde, conhecedores do trabalho do CEM e de sua atuação no território, envolveram o grupo “Saúde e Alimentação” nas ações do CEM, que neste momento estava se articulando enquanto Arranjo. As atividades passaram a extrapolar as fronteiras da unidade da CF, tanto no aspecto físico, ultrapassando os limites do uso da sala de reunião, quanto na definição dos temas discutidos. Desde então foram facilitados oficinas, intercâmbios, cursos de formação, visitas de quintais produtivos, entre outras atividades. As mulheres passaram a ter também o acesso à “xepa na favela”, na qual puderam comprar os alimentos que até então não tinham acesso.

Questionadas sobre como faziam para manter frequente o consumo desses alimentos, destacaram como uma das dificuldades o desinteresse familiar:

Lá em casa moram sete, eu, meu marido, minha filha, minhas netas e minha sogra. Ninguém gosta de comer colorido, como aprendemos aqui (se referindo a orientação da Cíntia, nutricionista e coordenadora do grupo), só querem arroz, feijão, carne e macarrão. Eu que cozinho, não tenho como fazer três, quatro pratos diferentes. O que a Cíntia pede pra gente comer, eu teria que fazer só pra mim, porque se faço pra todos ninguém come e só reclama. (informação verbal interlocutora 1). “É difícil também lá em casa porque meu marido e meus netos não comem e acaba estragando” (informação verbal interlocutora 2).

No que se refere a possíveis estratégias para melhorar esse quadro, foram propostas por elas a elaboração de ações futuras a ser realizada nos encontros do Arranjo como oficinas de plantio de temperos, reaproveitamento de alimentos e o aprendizado de receitas mais atrativas para melhorar o hábito alimentar da família, em especial o das crianças. Para além disso, foi reforçado a importância de os companheiros participarem dos espaços de formação.

Os encontros no grupo proporcionaram às mulheres aprendizado de inúmeras práticas, tais como a produção de xaropes, chás e remédios caseiros (as chamadas “receitas da vovó”), o cultivo de plantas medicinais, o uso e preparo dos “matos de comer”, possibilitando o resgate da tradição de pratos típicos, festas e comemorações regionais em torno da comida. Essa experiência reforçou a compreensão de que os saberes e práticas tradicionais ligadas à terra são predominantemente passados por mulheres através das gerações e que, portanto, faz-se necessário garantir que esses espaços se mantenham vivos e que estes saberes sejam valorizados. Todas essas experiências incentivaram os chamados “cuidados preventivos”, em que passaram a se reconhecer umas nas outras, a transformar a paisagem através dos plantios e a valorizar e ter orgulho do local onde moram. Soares (2012) define o vínculo tradicional das mulheres com as plantas de quintal como uma “ética do cuidado familiar”. Segundo o autor: “é vivenciando como mãe, esposa, irmã, filha e amiga que as mulheres conhecem e usam plantas. É por isso que falar sobre plantas implica em relembrar eventos em que sua ação terapêutica permitiu atualizar o valor do cuidado” (Soares, 2012, p. 127). Sobre as atividades realizadas junto ao grupo de mulheres durante os anos de 2016 a 2019 a coordenadora do CEM comenta:

Agricultura Urbana é, além “do plantar”, um ato de construir relações no território. Dessa forma, o arranjo é mais do que plantar na favela, é a mobilização e fortalecimento do trabalho em rede a partir da AU. Conseguimos a socialização das pessoas, um território com muito conflito gera baixa autoestima, ninguém circulava por conta dos tiros, tinham moradoras que não levantam a cabeça para não cruzar o olhar com bandido. Foram conquistados novos parceiros e desses trouxemos visibilidade para dentro e fora da favela. O arranjo possibilitou a permanência da atividade do CEM para além da conquista de uma sede, pois havia vários outros pontos que não identificamos. Ou tentávamos desse jeito ou não íamos ter nada” (Coordenadora do CEM, 2018).

A partir das entrevistas e da realização das dinâmicas com o grupo de mulheres do Arranjo Local, destacou-se a compreensão dos sujeitos como: 1) um lugar de conforto, até então encontrado por elas apenas em organizações e/ou instituições de cunho religioso: “Só aqui, além da minha igreja, que me sinto bem, que falo de mim e da minha família (roda de conversa grupo das mulheres, 2018)”; 2) um espaço de promoção da saúde na sua integralidade e melhoria na qualidade de vida: “Aqui eu vejo que não estou sozinha, sei que muitas passam pelo mesmo problema” (moradora e participante da roda das mulheres, 2018). Nestas constatações, sugere-se que mesmo a agricultura urbana sendo normalmente associada exclusivamente a promoção da saúde, por conta do abastecimento da alimentação saudável, a AU transcende a prática curativa, contemplando o indivíduo em todos os níveis de atenção e considerando o sujeito inserido em um contexto social, familiar e cultural.

5. Aprendizados e considerações finais

Propusemos neste artigo a reconstituição da trajetória da construção do Arranjo Local da Penha - uma tecnologia social que visa o fortalecimento da produção agroecológica local de alimentos e a promoção do acesso aos mesmos, a partir da mobilização comunitária com enfoque na agricultura urbana.

A formação e o fortalecimento do grupo das mulheres constituída nesse Arranjo indicam a importância de questões como cuidado, autoestima e o empoderamento feminino no contexto da agricultura urbana. Sua articulação possibilitou o envolvimento de novas moradoras e a circulação delas para dentro e fora do território. Esse elemento de participação social e envolvimento em redes fora da comunidade, vinculado à participação na Rede CAU e junto a outros grupos, permitiu que as mulheres da comunidade vivenciassem outras realidades, ampliando sua capacidade de participação política e coletiva. Envolvidas com a pauta da agricultura urbana, suas participantes passaram a contribuir para a promoção da saúde na sua integralidade, para além das mudanças nos hábitos alimentares. Foram observados sinais de melhoria na qualidade de vida, no que diz respeito ao alívio dos sintomas de depressão, por exemplo, conquistados a partir do cuidado com a terra e umas com as outras.

Esse fortalecimento pode estar associado ao fato de que as ações de AU se concentram em sua maioria nas mãos de mulheres, embora esse protagonismo nem sempre seja evidenciado. Constata-se a necessidade de dar visibilidade aos conhecimentos das mulheres e às opressões e barreiras vividas cotidianamente por elas. A partir desta pesquisa, foram apontados exemplos de aprimoramento dos arranjos através da construção de espaços promovidos por e para mulheres. Nesse processo, sua atuação foi potencializada não apenas em sua condição de agentes de soberania alimentar, mas também enquanto promotoras de saúde e senso de pertencimento. Consideramos, portanto, a construção do Arranjo Local da Penha como um legado no campo da agroecologia, onde as dinâmicas agroecológicas foram mobilizadoras de diferentes atores sociais, em especial das mulheres.

No que se refere às implicações do uso do solo é importante considerar os conflitos de interesses oriundos de convivências plurais da realidade local e suas assimetrias. Estes estão presentes, enquanto elemento de iniciativas de agricultura urbana, por vezes opondo diferentes posições sobre a prioridade de ocupação da terra: para plantar, para preservar ou para morar. Ao articular reflorestamento, cultivo do alimento e moradia, o Arranjo propõe a conciliação das três necessidades.

Nesse sentido, esse modelo de articulação local em rede exerce influência na gestão social e ambiental das cidades, podendo contribuir para a melhoria da qualidade de vida da população urbana, para a sustentabilidade, possibilitando a interação entre as pessoas, criando novos espaços de sociabilidade. Somente a partir de toda essa interação e difusão do trabalho em rede poderão existir conquistas e, consequentemente, avanços sobre o tema de AU no decorrer dos anos. Por fim, destacamos, a partir da experiência vivenciada nesta pesquisa, uma sugestão para possível continuidade do tema. A sistematização das iniciativas locais protagonizadas pelo Arranjo Local da Penha, a partir das suas propostas de modificação do cenário atual, visa subsidiar o debate sobre a construção de articulações em rede no âmbito da agricultura urbana, os chamados Arranjos Locais, para o município do Rio de Janeiro.

Agradecimentos

As reflexões discutidas neste artigo são resultado da pesquisa de dissertação de mestrado desenvolvida pela primeira autora no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Práticas em Desenvolvimento Sustentável (PPGPDS) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Pelas trocas de saberes, por existir e resistir nesses anos de luta, agradeço particularmente às mulheres agricultoras da cidade do Rio de Janeiro, ao Arranjo Local da Penha e à Rede Carioca de Agricultura Urbana. A AS-PTA, instituição que incentivou e apoiou o desenvolvimento desta pesquisa, em especial ao Marcio Mattos de Mendonça, coordenador do programa de Agricultura Urbana. Dedicamos este trabalho ao CEM, sobretudo, à Ana Santos e ao Marcelo Silva, pelas oportunidades de aprendizado compartilhadas.

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Recebido: 21 de Julho de 2020; Aceito: 05 de Fevereiro de 2021

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