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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES vol.42  Lisboa jun. 2021  Epub 23-Jun-2021

https://doi.org/10.15847/cct.23833 

ENSAIO

O Espaço-tempo da experiência vivida e a crítica da vida cotidiana: algumas reflexões

The space-time of lived experience and critical everyday life: some reflections

Rodrigo José de Góis Queiroz1 
http://orcid.org/0000-0002-7433-4615

1Universidade Federal do Ceará, Brasil. Email: joserodrigois@yahoo.com.br


Resumo

O presente ensaio tem como objetivo principal discutir as aproximações teóricas e práticas da análise do espaço-tempo da experiência vivida com a crítica da vida cotidiana. Através de ampla revisão bibliográfica, buscamos apresentar a proposta da crítica da vida cotidiana de Lefebvre em aproximação com a perspectiva das derivas experimentais dos Situacionistas, destacando as possibilidades de construção das representações cartográficas através de experiências espaciais como uma crítica do planejamento capitalista do espaço. Tal perspectiva tem uma profunda ligação com o método dialético, bem como com a crítica das vanguardas artísticas na virada do século XIX para o século XX, em suas representações do espaço apoiadas nas geometrias não-euclidianas.

Palavras-chave: espaço; cartografia experimental; crítica da vida cotidiana

Abstract

This essay discusses the theoretical and practical possibilities of approximation in the analysis of the space-time of the lived experience and critique of everyday life. Through an extensive bibliographic review, we seek to present the proposal of Lefebvre's critique of everyday life in approximation with the perspective of the experimental drifts of the Situationists, highlighting spatial experiences as a critique of capitalist space planning. This approach presents the influence of the dialectical method, as well as with the critical of artistic avant-garde at the turn of the 19th to the 20th century, in their representations of space by non-Euclidean geometries.

Keywords: space; experimental cartography; critique of everyday life

Introdução

Com base em pesquisa teórica, este ensaio apresenta reflexões sobre o espaço-tempo da experiência vivida e a crítica da vida cotidiana. Buscamos fazer uma discussão sobre a teoria e prática Situacionista, em seus estudos do espaço-tempo da experiência vivida, culminando no seu método da psicogeografia e das cartografias experimentais e as possibilidades de uma aproximação com o método dialético da crítica da vida cotidiana. De acordo com Damiani (2008), a cartografia Situacionista, na esteira do entendimento do espaço de forma relativizada, é um instrumento muito importante para as pesquisas na ciência geográfica, como forma de aproximação dos sujeitos políticos na produção do espaço através dos trabalhos de campo.

No plano contemporâneo, observamos uma crítica da cartografia tradicional em diversas frentes, com propostas de aproximação entre a cartografia e a arte, bem como das cartografias sociais, que compreendem os movimentos sociais como sujeitos políticos, investigando suas imaginações geográficas e memórias coletivas no interior dos conflitos espaciais. Por sua vez, a cartografia Situacionista traz uma contribuição proeminente no sentido de compreender o processo de produção do espaço no interior de uma crítica ampla do modo de produção capitalista, que no momento contemporâneo atinge todas as esferas da vida na busca da consolidação de um cotidiano programado. Se por um lado temos o predomínio do poder econômico e político na produção do espaço, por outro, contraditoriamente, não podemos negar os processos de resistência social na construção dos espaços diferenciais, no qual a cartografia Situacionista se apresenta de grande valia.

No tocante a Geografia crítica, destacamos uma aproximação da proposta de Damiani (2008) no entendimento da cartografia Situacionista, pensando as possibilidades críticas que surgem nas fissuras para a construção da utopia espaço-temporal. Nesse sentido, em um retorno às obras da juventude de Marx, Lefebvre (1991) apresenta uma teoria da crítica da vida cotidiana, na qual encontra uma conceituação para pensar os sujeitos políticos. Com isso, propomos uma discussão teórica sobre as possibilidades de estudo do espaço-tempo da experiência vivida através da proposta dialética da crítica da vida cotidiana, em que a cartografia Situacionista tem grande importância.

O espaço-tempo da experiência vivida e a crítica da vida cotidiana

Em nosso ensaio, trabalhamos com a proposta desenvolvida pelos Situacionistas em torno do espaço-tempo da experiência vivida, compreendendo a mesma de forma indissociável com a dialética da crítica da vida cotidiana. Para Damiani (2008, p.297), em termos de método, a crítica da vida cotidiana busca: “A apreensão de como acontece o espaço na vida cotidiana das pessoas (...)”. Para a autora, a análise da experiência vivida do espaço-tempo, como uma práxis espacial, surge no campo das possibilidades para a transformação do espaço.

Nesse caminho, Damiani (2008, p.75) argumenta que: “(...) o nível do imediato, da pequena história, de uma temporalidade que aparecia como residual à historicidade, se torna crucial”. A autora destaca que as pesquisas sobre o espaço-tempo da experiência vivida utilizam de metodologias qualitativas de aproximação e troca de saberes com os grupos sociais, como fundamentais para captar as representações dos sujeitos envolvidos, especialmente os movimentos sociais e diversos grupos subalternos em conflitos na produção do espaço, buscando espacializar os conflitos e as dimensões culturais vividas.

Deste modo, a crítica da vida cotidiana, como método de análise da totalidade no plano do vivido, compreende que as possibilidades de reconstrução do espaço social em bases emancipadas passam pela crítica da geografia humana, como uma crítica do planejamento capitalista do espaço (Debord, 1997a). Esse processo passa pelo movimento em que cada indivíduo, através de suas experiências diretas, passa a construir o espaço social, nos termos possíveis, no caminho de uma democracia direta.

Em sua reflexão, Debord (1997b) deixa claro que a crítica da vida cotidiana, como proposta dialética, busca transformar o mundo e mudar a vida, apresentando uma crítica da separação entre o sujeito e o objeto operada pelas metodologias cientificas positivistas. Por esse ângulo, surge a crítica das análises em que o investigador não se encontra implicado com o objeto de pesquisa, levantando a importância de processos de articulação com a luta social, como podemos observar na argumentação de Corrêa e Mhereb (2018), no qual a produção de mapas do espaço vivido pelos Situacionistas são tratados como documentos selvagens, pois foram utilizados nas lutas de rua para favorecer o processo de resistência das barricadas no contexto do Maio de 1968 na França.

Em vista disso, ao debater as perspectivas de transformação consciente da vida cotidiana, Debord (1997b, p.72), deixa claro: “É por isso desejável mostrar, graças a uma ligeira deslocação das fórmulas correntes, que a vida quotidiana se encontra aqui mesmo”. Pensar essa proposta da crítica da vida cotidiana na perspectiva Situacionista, de acordo com Jappe (2008), parte da reflexão em torno da crítica dialética das experiências das vanguardas artísticas do início do século XX, bem como da importância da leitura do volume 1 da Crítica da vida cotidiana de Lefebvre . Apesar das divergências em suas trajetórias políticas, tendo em vista a história de ligação de Lefebvre ao Partido Comunista Francês, ao passo que os Situacionistas sempre dialogaram com as perspectivas autogestionárias, a proposta da crítica da vida cotidiana os aproximou.

No volume 1 da Crítica da vida cotidiana, escrito em 1946, Lefebvre (1991) deixa clara sua preocupação em analisar através do método dialético a realidade prática, histórica e social do proletariado e suas formas de consciência, em contradição com o processo de alienação. Em suas palavras: “Sua consciência depende de sua vida real, de sua vida cotidiana. O significado de uma vida não pode ser encontrado em nada além da própria vida. Está dentro dela e não há nada além disso.” (Lefebvre, 1991, p.144). Obviamente trata-se de uma concepção dialética da totalidade, em que o autor faz a crítica da separação operada pelas análises econômicas que negligenciavam o processo vivido pelos trabalhadores. De todo modo, ele prossegue: “(...) O contraste entre as ideias e a vida, a relação complexa entre elas, implicará então não apenas a crítica das ideias pela vida, mas também, e mais especificamente, a crítica da vida pelas ideias (crítica da vida real)” (Lefebvre, 1991, p.146).

Por conseguinte, Lefebvre (1991) destaca a importância da retomada das obras filosóficas da juventude de Marx, sem negar a importância da crítica da economia política, especialmente o conceito de fetichismo da mercadoria, demonstrando o rebatimento desses processos na realidade vivida pelos trabalhadores, pois “a alienação aparece na vida cotidiana, na vida do proletário” (Lefebvre, 1991, p.167). Ou seja, a busca de uma aproximação dos problemas da vida cotidiana dos trabalhadores não prescinde do rigor do método dialético, ficando clara a renovação do mesmo no interior da crítica materialista.

Para Lefebvre (1991), trata-se, isto sim, de compreender esses fragmentos vividos no interior da totalidade concreta. Ele diz mais: “Somente a crítica social marxista é capaz de descobrir a gênese das representações e dos sentimentos; revela suas condições, suas funções práticas, a maneira como funcionam, e analisa as proporções relativas de aparência e realidade.” (Lefebvre, 1991, p. 194). Aqui fica clara a aproximação da perspectiva da psicogeografia com a dialética da crítica da vida cotidiana, especialmente no que diz respeito ao entendimento das contradições em torno das representações e sentimentos dos sujeitos no âmbito da crítica do planejamento capitalista do espaço.

A proposta de Lefebvre (1991) também operacionaliza as possibilidades advindas de sua renovação da crítica materialista em termos de pesquisa, tencionando descortinar o aspecto vivido das contradições da sociedade capitalista. O autor destaca a importância da especificação das formações econômico-sociais e das diferenciações regionais na práxis vivida dos trabalhadores. Em suas palavras: “Conduzida metodicamente, essa pesquisa iria finalmente suplantar as divagações de filósofos ou romancistas (...) com verdades humanas solidamente estabelecidas” (Lefebvre, 1991, p.199).

De nossa parte, observamos que no âmbito das ciências humanas, em muitos casos, existe a transposição de conceitos desconectados dos processos estudados, contribuindo para obscurecer o objeto de estudo. Por sua vez, a proposta dialética da crítica da vida cotidiana contribui para o entendimento do entrecruzamento dos aspectos da totalidade presentes no interior da práxis da experiência vivida. Ademais, nas palavras de Vaneigem (2016, p.150): “O triunfo de uma arte de viver, da construção de situações autenticamente vividas está presente em toda parte como potencialidade e em toda parte desnaturada pelas falsificações do que é humano”. Nesse sentido, Lefebvre (1991, p. 199) já destacava: “A crítica da vida cotidiana tem uma contribuição a dar à arte de viver.”

Com base nessa teoria, os Situacionistas compreenderam o seu momento contemporâneo do pós-segunda guerra mundial na França com total aderência à realidade vivida. Em 1958, no texto “questões preliminares à construção duma situação”, eles já afirmavam que: “A construção de situações começa após o desmoronamento moderno da noção de espectáculo” (Situacionista, 1997a, p.23). Entretanto, apenas posteriormente essa noção foi ampliada. Em 1967, na sua obra “Sociedade do Espetáculo”, Debord (1997a) já apresentava o espetáculo como uma nova etapa de aprofundamento da dominação capitalista, em que a lógica do fetichismo da mercadoria se ampliou em graus nunca vistos para todos os aspectos da sociedade.

Em sua argumentação, ele afirmou que no capitalismo após a segunda guerra mundial se observava a passagem de uma sociedade do ter para o parecer, consubstanciando uma sociedade do espetáculo. Em suas palavras: “a fase atual, em que a vida social está totalmente tomada pelos resultados acumulados da economia, leva a um deslizamento generalizado do ter para o parecer” (Debord, 1997a, p.18). Para Debord (1997a), essa nova fase do capitalismo, denominada de sociedade do espetáculo, se caracterizou pelo predomínio do ver e do parecer, em que a economia-política se materializou em imagens, pois “o espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem” (Debord, 1997a, p.25).

Em outra passagem, Debord (1997a, p.28) afirma: “O mundo presente e ausente que o espetáculo faz ver é o mundo da mercadoria dominando tudo o que é vivido” (Debord, 1997a, p. 28). No interior desse debate, Jappe (2014, pp.18-19) deixa claro que: “O espectáculo está por todo o lado onde o vivido é substituído por uma representação, é toda a ocasião em que a contemplação passiva de uma ideia, de uma imagem (no sentido lato), substitui a vivência na primeira pessoa.” Nesse sentido, a contemplação, como uma forma de não intervenção dos sujeitos sociais perante o movimento econômico, político e cultural da modernidade, se apresenta como característica principal da sociedade do espetáculo.

Por sua vez, Raul Vaneigem, que também foi membro da Internacional Situacionista, destacou todas as nuances do sistema de coações produzido pela sociedade do espetáculo e a delicadeza dos seus métodos de opressão na sua obra A arte de viver para as novas gerações, escrita em 1967. Para Vaneigem (2016), a sociedade do espetáculo regula a organização da aparência no interior do modo de produção de imagens. Em suas palavras: “Do ponto de vista do espetáculo a redução do homem a consumidor é um enriquecimento (...)” (Vaneigem, 2016, p. 179).

Por outro lado, a vida, que não deveria ter estimativa de preço, na ótica do espetáculo se reduz a mercadoria. O autor diz mais: “O projeto de enriquecimento do espaço-tempo da experiência vivida passa pela análise daquilo que o empobrece” (Vaneigem, 2016, p.287). Para ele, é justamente a sociedade do espetáculo que se esforça para quebrar a unidade do espaço-tempo da experiência vivida, empobrecendo-a, no sentido de esmagar a criatividade das experiencias espontâneas dos sujeitos políticos, “Transformando a experiência vivida em mercadoria, lançando-a no mercado do espetáculo, ao sabor da oferta e da procura (...)”(Vaneigem, 2016, p. 288).

Desta feita, para Vaneigem (2016), a sociedade do espetáculo se apresenta de modo triunfante no contexto do capitalismo após a segunda guerra mundial, consubstanciando a expansão do colonialismo para além das relações de centro e periferia entre as nações. Para ele, a vida cotidiana se apresenta colonizada pelo capitalismo espetacular, produzindo uma sociedade passiva de espectadores. Em suas palavras: “Seu gosto de viver autenticamente é perdido em um espaço-tempo espetacular” (Vaneigem, 2016, p.291). Ademais, ele afirma que: “É sem dúvida da inadaptação à sociedade do espetáculo que virá uma nova poesia da experiência vivida e uma reinvenção da vida” (Vaneigem, 2016, p.174).

Desse modo, a crítica da vida cotidiana surge como uma inversão de perspectiva, pois prioriza a vida. Nas palavras de Gombin (1972, p. 77): “O esclarecimento da análise teórica desloca-se, pois, do estudo dos factores econômicos (modo de produção, descida tendencial do lucro, etc.), para a crítica da vida quotidiana”. Pode-se dizer que durante os anos 1950 os membros da Internacional Letrista, e depois Internacional Situacionista, amadureceram o debate da crítica da vida cotidiana, proporcionado pelo volume I da “introdução a crítica da vida cotidiana” de Lefebvre. Eles foram os primeiros a impulsionar a virada espacial no interior da teoria crítica, com a crítica do urbanismo e da fragmentação das lutas sociais proporcionada pelo planejamento espacial.

De acordo com Lefebvre (1969, p. 168): “Os Situacionistas foram os primeiros a perceber as implicações e consequência da crítica da vida quotidiana. (...) Foram os primeiros a compreender a importância dos problemas urbanos e de uma crítica do urbanismo atual como ideologia”. Em um texto muito importante, denominado de Programa elementar do bureau de urbanismo unitário, escrito em 1961, a perspectiva Situacionista já se apresentava de forma bem amadurecida. Nesse texto, eles afirmam: “O desenvolvimento do meio urbano é a educação capitalista do espaço” (Kotànyi, & Vaneigem, 2003, p. 139).

Sob outra perspectiva, trata-se de fazer a crítica da modelagem do espaço social pela forma da mercadoria no pós-segunda guerra mundial, em que o planejamento das cidades tem como objetivo fazer as pessoas esquecerem a possibilidade do encontro, de uma crítica viva do espetáculo do modo de vida urbano. Para os Situacionistas: “O espetáculo se manifesta no habitat e nos deslocamentos (alto padrão de moradia e de carros pessoais). Porque, de fato, não se mora num bairro da cidade, mas no poder” (Kotànyi, & Vaneigem, 2003, p. 140). Ou seja, trata-se de uma descoberta potente no campo da práxis dos movimentos políticos, tendo as vista as possibilidades e impossibilidades de uma mudança socioespacial, pois: “A totalidade do espetáculo que tende a integrar a população se manifesta como planejamento das cidades (...). É um enquadramento sólido para manter as condições existentes de vida” (Kotànyi, & Vaneigem, 2003, p. 140).

Destarte, em uma perspectiva dialética, os Situacionistas destacam que: “Durante ainda muito tempo as pessoas terão de aceitar o período reificado das cidades. Mas a atitude com a qual elas aceitam pode ser mudada desde já” (Kotànyi, & Vaneigem, 2003,, p. 140). Em outro texto muito importante, denominado Teses sobre a Comuna de Paris, escrito em 1962, eles afirmam: “A Comuna representa até hoje a única realização de um urbanismo revolucionário (...) reconhecendo o espaço social em termos políticos (...).” (Debord, Kotànyi, & Vaneigem; 2013, p. 227). Para os Situacionistas, a Comuna de Paris foi a maior festa do século XIX, possibilitando reconhecer as contradições e a política do espaço social, se apresentando como um momento de aparição de um urbanismo autêntico na busca de transformar o mundo e mudar a vida .

Nesse contexto, de acordo com Jappe (2008), a Internacional Situacionista insiste que o núcleo da concepção de uma crítica da vida cotidiana, como uma crítica da alienação vivida, já se encontra nos escritos da juventude de Marx, buscando compreender seus desdobramentos na dinâmica do espaço urbano após a segunda guerra mundial. Nesse processo, as análises do espaço-tempo da experiência vivida na proposta Situacionista aparecem como uma crítica do planejamento do espaço. Essa problemática fica clara:

“A sociedade que modela tudo o que a cerca construiu uma técnica especial para agir sobre o que dá sustentação a essas tarefas o próprio território. O urbanismo é a tomada de posse do ambiente natural e humano pelo capitalismo que, ao desenvolver sua lógica de dominação absoluta, pode e deve agora refazer a totalidade do espaço como seu próprio cenário” (Debord, 1997a, p. 112).

Para os Situacionistas, o planejamento capitalista do espaço aparece como uma técnica de separação social, barrando as condições do encontro e reunião dos trabalhadores, ampliando a esfera da acumulação do campo circunscrito da fábrica para a vida cotidiana, que agora precisa ser meticulosamente planejada e organizada. De acordo com Vaneigem (2016, p. 40): “Do ponto de vista da coação, a vida cotidiana é regida por um sistema econômico no qual a produção e o consumo da ofensa tendem a se equilibrar”. Por outro lado, a crítica da vida cotidiana, como uma crítica do planejamento do espaço, necessita aguçar a sensibilidade do olhar e dos sentidos através de uma cartografia renovada, que valorize a compreensão e transformação do espaço-tempo da experiência vivida. Ele afirma: “A vantagem do ponto do espaço vivido está no fato de ele poder escapar ao sistema de condicionamento generalizado: o seu inconveniente é o de não possuir uma existência autônoma” (Vaneigem, 2016, p. 285).

Assim sendo, os aspectos ideológicos da produção do espaço, no interior do movimento de organização capitalista da aparência, passam a imagem de uma imobilidade. Ao mesmo tempo, no plano do espaço material temos a preponderância do ângulo geométrico e da separação, negando as possibilidades do espaço vivido. Por outro lado, para Vaneigem (2016), a construção de situações, como no caso das possibilidades abertas pelas cartografias do espaço-tempo da experiencia vivida, propõe uma inversão de perspectiva através da práxis espacial. Em suas palavras: “A inversão de perspectiva implica uma espécie de anticondicionamento, não um condicionamento de tipo novo, mas uma tática lúdica: o jogo da subversão, o desvio (detournement)” (Vaneigem, 2016, p.236).

Assim, surge a crítica da concepção geométrica do espaço, pois esta, através do planejamento capitalista do espaço, busca sufocar as possibilidades vividas de transformação do espaço pelos sujeitos políticos. Nas palavras de Vaneigem (2016, p. 127): “A forma pura que frequenta o espaço social é o aspecto visível da morte da humanidade. É a neurose antes da necrose, o mal de sobreviver que se estende à medida que a experiência vivida é substituída por imagens, formas, objetos (...)”.

O espaço-tempo da experiência vivida e as cartografias experimentais

Pensar a relação entre a análise do espaço-tempo da experiência vivida na proposta da Internacional Situacionista e a práxis da produção das cartografias experimentais, parte de uma leitura dialética da crítica da vida cotidiana. Essa proposta, de acordo com Debord (1997b, p. 72): “(...) seria um empreendimento perfeitamente ridículo, e desde logo condenado a nada discernir no seu objeto, se explicitamente não nos propuséssemos estudar esta vida quotidiana com vista a transformá-la.” Nas palavras de Jappe (2008, p. 93): “Com o mudar a vida de Rimbaud, as vanguardas artísticas haviam tomado um caminho inverso: a vida quotidiana aparece como algo que pode e deve mudar.”

Nessa acepção, tendo em vista a influência da teoria crítica da vida cotidiana de Lefebvre para a práxis Situacionista, que culminou com a proposta de estudo do espaço-tempo da experiência vivida, destacamos que no volume I da Crítica da vida cotidiana Lefebvre vai além da separação esquemática entre base e superestrutura, propondo um conceito de produção amplo, pensando a realidade como produção social, com base nas obras da juventude de Marx. Lefebvre (1991) destaca uma contraposição ao conceito restrito de produção que aparece nas obras econômicas apenas como fabricação de produtos, mas sem prescindir do mesmo. Buscando um aprofundamento em torno da teoria da crítica da vida cotidiana, trazemos à tona as contribuições do jovem Marx.

Apontando a história como uma produção social, o jovem Marx enfatiza que a concepção materialista parte dos homens ativos para aí sim chegar às formas de consciência. Nas teses Ad Feuerbach, Marx identifica o conceito de práxis como fundamental, ao afirmar que a realidade é uma produção social, obra social em conflito com a dimensão abstrata da alienação. Em sua segunda tese Ad Feuerbach, Marx afirma “a disputa acerca da realidade ou não realidade de um pensamento que se isola da prática é uma questão puramente escolástica” (Marx, 2007, p. 533).

Nesse momento, a obra de Marx apresenta uma concepção dialética e autocrítica, aberta à concepção da história como um processo social, uma produção humana, na qual a dimensão da alienação atinge todas as dimensões da vida social , quando “(...) no lugar de todos os sentidos físicos e mentais entrou, portanto, a simples alienação de todos esses sentidos, o sentido do ter” (Marx, 2017, p. 242). Por outro lado, a apropriação sensível da essência e da vida humana, da produção humana como criação, vem da luta contra a propriedade privada no caminho do tempo livre.

Para Marx: “Por isso, a superação da propriedade privada é a completa emancipação de todos os sentidos e qualidades humanos (...)” (Marx, 2017, p. 242). Como se vê, as contradições do processo de abstração das qualidades vividas e experienciadas e as possibilidades de superação expõem as relações entre alienação e desalienação, ou melhor, as dimensões de dominação e apropriação descobertas por Lefebvre (1991), como de fundamental importância para compreender que o aspecto sensitivo vivenciado na práxis cotidiana se apresenta com uma dimensão da totalidade.

Deste modo, no âmbito da totalidade, surge a dimensão do indivíduo na história, aquele que não se compreende como agente externo ao processo histórico, mas implicado em seu interior, compreendendo que a crítica da totalidade compõe uma autocrítica. Para os Situacionistas, todos os momentos são processualmente interligados, pois: “a totalidade só pode ser determinada se o sujeito que a determina é ele mesmo uma totalidade; e se o sujeito deseja compreender a si mesmo, ele tem de pensar o objeto como totalidade” (Lukacs, 2012, p. 107) .

No interior desse debate, Damiani (2008) destaca a psicogeografia dos Situacionistas como uma metodologia que articula o pensamento à ação para ser utilizada nos trabalhos de campo na ciência geográfica, na busca de uma aproximação do entendimento do espaço vivido pelos sujeitos subalternizados. Para a autora, os resultados das derivas psicogeográficas através dos trabalhos de campo trazem uma nova complexidade espacial que deve ser retratada nas representações cartográficas, proporcionando um enriquecimento do entendimento do espaço vivido. Ela diz mais: “A busca de sítios espontaneamente psicogeográficos e o reconhecimento das construções que enquadram milhares de pessoas nas periferias, alojando pessoas tristes, são momentos indispensáveis” (Damiani, 2008, p.390).

Para Damiani (2008), a psicogeografia busca trabalhar com as representações espaciais dos sujeitos envolvidos no interior das contradições e processos na produção do espaço. No interior desse debate, Damiani (2008, p.61) argumenta sobre suas pesquisas de campo na periferia de São Paulo: “(...) o Capão não aparece como um todo homogêneo, tem fronteiras invisíveis, áreas interditadas e livres; diferentes ambiências, que jamais uma pessoa externa a essas circunstâncias poderia contemplar em profundidade.” De acordo com a Geógrafa, os Situacionistas buscavam exatamente compreender essa delicadeza do espaço vivido em suas propostas de deriva experimental e cartografia psicogeográfica.

Outrossim, a cartografia como uma forma de representação do espaço tem sua história de longa duração associada ao pensamento espacial, desde a Grécia antiga, passando pelo renascimento e as grandes navegações no final do século XV, bem como na Geografia científica, na esteira do iluminismo. No interior da história das práticas cartográficas, vale salientar a importância das concepções de espaço associadas ao pensamento cartográfico, em que, no plano recente, os debates em torno da produção social do espaço ampliam o entendimento da cartografia para além das noções apenas matemáticas. De acordo com Girardi (2014), no momento contemporâneo, a ciência geográfica tem despertado para as potencialidades das novas cartografias para análise do espaço relacional, para além das representações do espaço absoluto de ordem matemática e geométrica.

Desta feita, a proposta de construção das cartografias do espaço-tempo da experiência vivida surge no interior da Internacional Letrista e posteriormente na Internacional Situacionista. Tal proposta vem na esteira da crítica dialética negativa das correntes artísticas desde meados do século XIX, nas figuras de Baudelarie, Lautremont, Rimbaud, os Dadaístas, Surrealistas, Construtivistas, dentre outros. De acordo com Smith (2010), em 1972 Debord comenta que a chave tática das derivas e explorações psicogeográficas no “(...) vaguear sem destino nas ruas das cidades mapeando ambientes (...)” (Smith, 2010, p.104) , foi o núcleo significativo do trabalho do grupo em meados dos anos 1950.

Ademais, Damiani (2008) destaca que o exercício psicogeográfico acorda o sujeito “(...) para os limites de sua relação com o corpo e com o espaço e, ao mesmo tempo, é a busca de uma relação possível com o espaço sem ser alienante, numa geografia relativa sem fins últimos.” (Damiani, 2008, p.298) Com base nessa metodologia, apropriada pela Geografia crítica contemporânea , “É possível estabelecer - com a ajuda de velhos mapas, fotos aéreas e derivas experimentais - uma cartografia influencial que falta até o momento (...).” (Debord, 2003b, p.91). Entretanto, pensando no plano das ciências parcelares, Debord (1997b, p.74) deixa clara a importância de as pesquisas superarem a metodologia do observador desinteressado, em que os intelectuais “(...) são totalmente exteriores à vida quotidiana das populações vulgares (...)”.

Além disso, a perspectiva da cartografia das derivas experimentais através do método da psicogeografia, na representação das ambiências vividas, traz uma crítica profunda da concepção absoluta do espaço, reconhecida como empobrecedora das experiências do espaço-tempo. Para Vaneigem (2016, p.284): “O tempo controla o espaço vivido, mas controla-o do exterior, fazendo-o passar, tornando-o transitório”, em que fica clara a necessidade de enriquecimento do espaço-tempo da experiência vivida através da práxis espacial. Ele também afirma: “O espaço-tempo unitariamente vivido é o primeiro foco de guerrilha, a faísca do qualitativo na noite que ainda esconde a revolução da vida cotidiana” (Vaneigem, 2016, p.287).

De todo modo, a concepção de cartografia do espaço-tempo da experiência vivida precisa aprofundar o entendimento do espaço ao qual enseja cartografar. De acordo com Lefebvre (2013), a concepção de espaço absoluto defendida nas propostas renascentistas entendia o mesmo como um espaço dado, um espaço em si. Entretanto, numa proposta crítica, esse espaço absoluto não desaparece, ele persiste como uma camada no interior do espaço histórico relativizado.

Nessa perspectiva, Lefebvre (2013) apresenta um aprofundamento sobre a proposta de Leibniz e afirma: “En la polémica de Leibniz contra Spinoza y Descartes, así como en la de Newton y Kant contra Leibniz, las matemáticas de hoy en día dan la razón a Leibniz”(Lefebvre, 2013, p.217). Para Lefebvre (2013), a proposta de Leibniz busca a dimensão processual da ocupação do espaço, negando a noção de um espaço pré-existente dotado unicamente de propriedades formais.

Aprofundando o debate, Lefebvre (2013) enfatiza que a produção do espaço é uma relação social que sempre esteve presente na história da humanidade, se remetendo a comunidades indígenas andinas pré-colombianas que produziram o espaço material e simbolicamente, deixando testemunhos. O autor deixa claro seu argumento sobre a impossibilidade da reprodução social sem a produção do espaço, afirmando: “Una existencia social que se postula y se dice real, aunque no produzca su espacio, seria uma entidad (...) incapaz de evadirse de lo ideológico o incluso de lo cultural”(Lefebvre, 2013, p. 111). Para o autor, cada sociedade produz um espaço, o seu, incluindo cada modo de produção e as diversidades que o mesmo engloba em seu conceito geral.

Com isso, pensando a categoria do espaço-tempo como construção social, Harvey (2001) questiona as teorias absolutas do espaço e do tempo em seu caráter de imutabilidade, apresentando o debate dos paradigmas científicos na transição do século XIX para o século XX. De acordo com Harvey (2001), no período de transição entre esses séculos, novas formas de experimentação do espaço-tempo surgem através da experiência artística e de outras linguagens para além da matemática, culminando em uma arte politicamente comprometida. Assim, surgem questionamentos em torno da hegemonia da razão iluminista no campo científico, levantando críticas em torno de suas propostas de fixidez categórica e de naturalização da história, que eram comuns em correntes cartesianas que se apoiavam na lógica matemática e na geometria tridimensional euclidiana.

No tocante a dimensão absoluta do espaço, Harvey (2001) argumenta que desde o renascimento, em sua recuperação das teorias da antiguidade clássica, como a geometria euclidiana, assentaram-se os alicerces conceituais do projeto iluminista, especialmente no que diz respeito ao domínio da natureza. Ele afirma: “sendo o espaço um “fato” da natureza, a conquista e organização racional do espaço se tornou parte integrante do projeto modernizador” (Harvey, 2001, p.227), ao passo que os mapas apareceram como sistemas abstratos para a organização do espaço. E diz mais: “o pensamento iluminista operou nos limites de uma visão “newtoniana” bem mecânica do universo, em que os absolutos presumidos do tempo e do espaço homogêneo formavam continentes limitadores do pensamento e da ação” (Harvey, 2001, p.229).

De acordo com Harvey (2001), a problemática da pressuposição homogeneizante operada pelo conceito absoluto do espaço elimina os vestígios das práticas de produção do espaço em prol da conquista e do controle do espaço, visto que nega a rica diversidade de itinerários e trajetórias espaciais. Contudo, os grandes processos e transformações socioespaciais operados na esteira da revolução francesa, bem como sua continuidade nas lutas dos trabalhadores no século XIX na Europa, forçaram o início de uma reflexão crítica sobre o entendimento fixo e imutável da dinâmica espacial, primeiramente captado na esfera artística e filosófica. De acordo com Harvey (2001, p. 238): “os eventos de 1847-1848 também abalaram certezas sobre a natureza do espaço”.

Ele destaca que escritores como Baudelaire e Flaubert e pintores como Manet, através da arte e experimentação, vão propor outras linguagens para além da matemática, gerando mudanças na experiência do espaço e do tempo: “a descoberta das geometrias não-euclidianas que abalou a suposta unidade da linguagem matemática no século XIX” (Harvey, 2001, p. 36). As leituras do espaço numa perspectiva relacional pelos movimentos artísticos na virada do século XIX para o século XX ganharam muita força, questionando as verdades absolutas e lineares do espaço geométrico. Nas palavras de Vaneigem (2016, pp.291-292): “Nada melhor que a criatividade artística para exprimir a busca inquieta e apaixonada por um novo espaço vivido”.

Por esse ângulo, aqueles que captaram a riqueza da crítica do espaço absoluto antecipando a crítica da vida cotidiana foram os círculos artísticos na virada do século XIX para o século XX. Na esteira desse processo, a Internacional Situacionista se apresentou como herdeira crítica desses círculos, sempre alertando sobre a necessidade de realizar a arte ao invés do consumo da arte como espectadores passivos. De todo modo, em suas palavras: “A actividade artística fora sempre a única a dar conta dos problemas clandestinos da vida quotidiana, embora de maneira velada, deformada e parcialmente ilusória” (Debord, 1997b, p.81).

Entretanto, diferente dos Surrealistas, a proposta da psicogeografia dos Situacionistas não espera muito dos sonhos (Aquino, 2006). Eles partem do princípio de que, “A atividade permite a participação do indivíduo no mundo: a arte foi sempre a mais alta forma do trabalho criador” (Gombin, 1972, p.93). Ao discutir as relações entre psicogeografia, arte e urbanismo unitário, a Internacional Situacionista (1997b, p. 52) afirmou: “A nossa presença na arte experimental é uma crítica da arte”. Assim, surge a proposta da cartografia das experiências urbanas: “Entre diversos recursos de mais difícil aplicação, parece realizável de imediato uma renovação da cartografia” (Debord, 2003a, pp.41-42).

No interior dessa proposta, acredita-se que a dimensão construtiva da práxis espacial acorda os sujeitos da letargia proporcionada pelo planejamento espacial moderno, surgindo possibilidades de reapropriação do espaço urbano, como no exemplo da Comuna de Paris e do maio de 1968 na França. Eles deixam claro: “uma tal investigação só tem sentido para indivíduos que actuem, na prática, com vistas a uma construção de situações” (Situacionista, 1997a, p.24).

De acordo com Debord (2003a), as mudanças psíquicas no transcurso das transformações urbanas fazem parte de um processo de condicionamento objetivo da vida, em que o método da psicogeografia foi identificada como “(...) o estudo das leis exatas e dos efeitos precisos do meio geográfico, planejado conscientemente ou não, que agem diretamente sobre o comportamento afetivo dos indivíduos” (Debord, 2003a, p.39). Assim, a construção da cartografia do espaço-tempo da experiência vivida parte da investigação dos efeitos produzidos pelas diferentes ambiências espaciais sobre os sentimentos dos sujeitos.

Nesses termos, a psicogeografia busca analisar a dimensão social das transformações do espaço através da experiência direta: “A brusca mudança de ambiência numa rua, numa distância de poucos metros; a divisão patente de uma cidade em zonas de climas psíquicos definidos (...) o aspecto atraente ou repulsivo de certos lugares; tudo isso parece deixado de lado” (Debord, 2003a, p. 41), pois: “As pessoas sabem que existem bairros tristes e bairros agradáveis. Mas estão em geral convencidas de que as ruas elegantes dão um sentimento de satisfação e que as ruas pobres são deprimentes, sem levar em conta nenhum outro fator” (Debord, 2003a, p.41).

Nessa acepção, a construção de mapas psicogeográficos através da experiência da deriva não estão descoladas do entendimento da totalidade dialética no processo de produção do espaço. No artigo “urbanismo unitário no final dos anos 1950”, escrito em 1959, a Internacional Situacionista (1997b) deixa claro que a experiência da deriva também é um instrumento de estudo objetivo da cidade. Em outras palavras:

“As pesquisas que precisaram ser feitas sobre a disposição dos elementos do quadro urbano, em estreita ligação com as sensações que eles provocam, exigem hipóteses arrojadas que convém corrigir constantemente à luz da experiência, pela crítica e pela autocrítica” (Debord, 2003a, p.41).

Essa proposta visa contribuir na reapresentação do espaço de forma insubmissa, destacando os espaços negligenciados pela lógica do espetáculo, que trazem como riqueza a criatividade espontânea de uma vida nas fissuras que nega o espaço absoluto da vida cotidiana normatizada. Para Vaneigem (2016, p.245): “(...) a espontaneidade constitui uma experiência imediata, uma consciência da experiência vivida, dessa experiência vivida cercada por todos os lados, ameaçada por proibições e, contudo, ainda não alienada, ainda não reduzida ao inautêntico”. Assim, os instrumentos metodológicos proporcionados pelos Situacionistas, em suas derivas experimentais, devem ser trabalhados de forma aderente a realidade vivida, respeitando as singularidades espaciais, mas articulando com as dimensões da totalidade, na busca de compreensão da produção social do espaço-tempo.

No plano contemporâneo, o processo de urbanização mundial está associado com o aprofundamento da sociedade do espetáculo . Mesmo em países da América Latina, como o Brasil, esse processo pode ser observado, articulando as dimensões da universalidade, particularidade e singularidade. De todo modo, de acordo com Maricato (2011), sempre existe a necessidade de uma interpretação especifica para pensar a cidade na periferia do capitalismo, destacando os aspectos históricos de suas formações econômico-sociais como resíduos persistentes. De todo modo, de acordo com Gohn (2014), por exemplo, as manifestações de Junho de 2013 no Brasil tiveram grande influência das teses da Internacional Situacionista. De nossa parte, destacamos as interações entre a crítica Situacionista dos anos 1950 sobre a predominância do planejamento urbano para o carro na França e o Movimento Passe Livre - MPL no Brasil nas manifestações de Junho de 2013.

Em 1959, no texto Posições Situacionistas sobre a Circulação, Debord (1997c) já destacava que o tempo de transporte é um sobretrabalho que reduz a jornada de vida pretensamente livre dos trabalhadores. Tal tese foi incorporada de forma profunda pelos movimentos de Junho de 2013 no Brasil. Contudo, concordamos com Maricato, (2011, p. 120), quando ela afirma que: “Com persistência e aderência à realidade, vai se construindo uma representação da cidade periférica que não cabe no modelo dominante calcado na literatura estrangeira”. Nesse caminho, a argumentação de Vaneigem (2016) é muito promissora em termos de possibilidades de pesquisa, ao afirmar que o único e o particular surgem no âmbito da contradição dialética com a totalidade, em que o espaço e o tempo cumprem papel fundamental. Assim, acredita-se que a proposta da cartografia das derivas experimentais se apresenta como uma metodologia aberta para o entendimento da realidade vivida, negando as dimensões apriorísticas que se afastam da dinâmica da práxis espaço-temporal.

Nesse contexto, outra metodologia que se apresenta no contexto contemporâneo é a cartografia social. De acordo com Santos (2011), a cartografia social é a busca pela análise da dimensão espacial dos movimentos sociais e de suas práticas espaciais. Os objetivos da cartografia social são contribuir para visibilidade dos interesses das comunidades; propiciar a participação de todos os membros das comunidades; criar e apoiar iniciativas autônomas das comunidades. A construção da cartografia social se dá através da troca de saberes, em que são utilizadas metodologias participativas, como narrativas de vida, trajetórias, que buscam dar conta das representações espaciais dos sujeitos tal qual elas são vividas. Nas palavras de Santos (2011, p. 141): “O mais importante nem sempre é o mapa ou o cartograma produzido, mas sim, o próprio processo de construção e os aprendizados decorrentes dele: pensar sobre o espaço.”

É nesse sentido que Girardi (2014) e Girardi et al (2011) falam da importância do resgate das práticas espaciais e dos mapas psicogeográficos produzidos através das derivas experimentais pelos Situacionistas em meados do século XX. Em suas palavras: “Produções cartográficas desenvolvidas pela Internacional Situacionista (IS) na década de 1950 vêm sendo resgatadas como possibilidade de se pensar o espaço na contemporaneidade” (Girardi et al, 2011, p. 8). Para Seeman (2012), a cartografia Situacionista permite captar o movimento no espaço, através das trajetórias e dos fluxos produzidos pelos seres humanos, ao mesmo tempo que enfatizam a importância do registro das emoções.

Nesse debate, Grossman (2006) apresenta contribuições sobre as relações entre a psicogeografia e as cartografias das unidades de ambiência, em suas palavras: “A descrição psicogeográfica elaborada a partir de uma prática urbana, levada a cabo através da deriva, juntamente com a aplicação do desvio de elementos da cultura, conduziu os Situacionistas à produção tanto de mapas quanto de livros (...)”(Grossman, 2006, p.102). A autora apresenta alguns exemplos dos mapas produzidos no interior dessa metodologia, afirmando que desde o ensaio de Guy Debord sobre a crítica da Geografia urbana em 1955 já haviam sugestões sobre as possibilidades de reapropriação de mapas tradicionais, reformulando-os através da associação com as práticas experimentais de vivência do espaço, com intuito que “(...) documentassem as estruturas psicológicas escondidas da cidade” (Grossman, 2006, p. 104).

Para Grossman (2006), os Situacionistas produziram uma verdadeira crítica da cartografia tradicional que servia apenas para a análise do espaço absoluto. Tal proposta surgiu no interior da experiencia vivida das transformações espaciais as quais vinha passando Paris em meados do século XX, na busca de apreender as unidades de ambiência em vias de extinção formalizadas pelo planejamento espetacular do espaço. Em suas palavras: “A cidade que interessava aos Situacionistas estava à beira de desaparição, não mais podendo ser experienciada pelo pedestre, que cedia espaço às novas vias de automóvel” (Grossman, 2006, p.106). Para a autora, as transformações espaciais foram captadas pelos Situacionistas através de sua vivência cotidiana, que proporcionava a compreensão dessas transformações espaciais no comportamento afetivo dos homens.

Considerações finais

Neste ensaio, apresentamos a proposta da cartografia Situacionista como uma cartografia do espaço-tempo da experiencia vivida, remontando suas raízes na crítica das vanguardas artísticas do final do século XIX e início do século XX. Ressaltamos a passagem do entendimento do espaço como um ente imutável para uma compreensão do mesmo como produto social. Se por um lado a perspectiva do espaço absoluto abstrai as qualidades vivas do espaço, valorizando apenas os aspectos geométricos, por outro, a perspectiva do espaço relacional busca um entendimento dos processos, conflitos e relações sociais na produção do espaço, trabalhando o papel político das memórias coletivas, bem como da construção de uma nova imaginação geográfica pelos movimentos sociais.

Ao longo da história da humanidade, o conhecimento espacial foi tratado como um saber estratégico ligado às práticas de expansão territorial e colonização, ao passo que contemporaneamente, desde a crítica do espaço vivido desenvolvida pelas vanguardas artísticas, passando pelas propostas Dadaístas, Surrealistas e Situacionistas, bem como de marxistas como Henri Lefebvre, estamos observando uma virada espacial no entendimento da totalidade social. Nesse contexto, a cartografia Situacionista ganha grande importância, pois o processo de produção capitalista do espaço se organiza em prol da dominação, ao passo que surge a necessidade de novas imaginações geográficas em prol da libertação social.

Desta feita, o levantamento teórico contribuiu em diversos aspectos no que diz respeito ao entendimento dialético do espaço, em seu movimento fluido de “vir-a-ser”. Nosso interesse pelo tema se pautou na busca de entendimento da dialética processual da crítica da vida cotidiana como possibilidade de leitura e representação do espaço, através da cartografia do espaço-tempo vivido. A lição que fica da práxis dos Situacionistas é sobre a possibilidade e a riqueza de uma análise viva do espaço-tempo presente através de uma práxis experienciada. Trazer à tona esses elementos para o debate sobre o espaço relacional faz coro com as leituras que buscam desnaturalizar o processo de produção capitalista do espaço no interior da Geografia crítica, identificando os mecanismos de dominação, mas salientando as possibilidades de criar um espaço metamorfoseado, com a prevalência do uso, aberto para as inúmeras possibilidades criativas da sociedade humana.

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Recebido: 03 de Março de 2021; Aceito: 16 de Junho de 2021

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