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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES vol.43  Lisboa dez. 2021  Epub 30-Dez-2021

https://doi.org/10.15847/cct.24332 

ENSAIO

A cidade como texto: Aproximações entre antropologia, urbanismo e semiótica do espaço

The city as a text: Approximations between anthropology, urbanism and space semiotics

Patrícia Falco Genovez1 
http://orcid.org/0000-0003-4453-7312

José Luiz Cazarotto2 
http://orcid.org/0000-0001-9970-9500

1Universidade Vale do Rio Doce, Brasil. Email: patricia.genovez@hotmail.com

2Royal Anthropological Institute. Email: jlcazarotto@uol.com.br


Resumo

Este ensaio parte de alguns conceitos de cidade apresentados por alguns estudiosos (Mumford, Benveniste, Rapoport, Heidegger, Volli) para compreender a sua fenomenologia. A seguir elabora-se o conceito de textualização da cidade especialmente a partir de Lotman e Hjelmslev. A erradicação de Itueta (Minas Gerais-BR) e a remodelação de West End (Boston-USA) são analisadas como exemplos de mudanças radicais nas textualizações urbanas e seus efeitos sobre seus moradores. Os efeitos culturais, sociológicos e psicológicos das mudanças - luto, patologias, desconforto - são discutidos, demonstrando como a cidade também é o resultado de um texto - escrita e testemunho - que estabelece relações profundamente significativas para a vida de seus moradores.

Palavras-chave: Território; semiótica do espaço; semiosfera; Lotman

Abstract

Starting form some city concepts coming from some scholars (Mumford, Benveniste, Rapoport, Heidegger, Volli) this reflection aims understand urban phenomenology. The next step is the insight of the city as a text mainly from Lotman and Hjelmslev. The Itueta (Brazil) eradication and the West End (Boston - USA) reshuffle are examples of radical changings in the urban text and their effects over their inhabitants. The cultural, sociological and psychological changings - grief, psychological pathologies, discomfort - are at stake in this analysis. So, as conclusion: city is actually the end outcome of a text - as a write down and as a testimony - stablishing deep and meaningful relationships to the life of its dwellers.

Keywords: territory; space semiotics; semiosphere; Lotman

Introdução

Em que sentido podemos pensar a cidade como fenómeno cultural e como um texto? A resposta a esta pergunta exigirá um diálogo interdisciplinar promissor entre a antropologia, o urbanismo e a semiótica do espaço. Isso se faz necessário dado que a cidade, pensada na sua amplitude, traduz-se numa complexidade que acolhe diversas temporalidades e espacialidades, que se podem entrecruzar de maneira variada conforme a narrativa de cada morador. Essas narrativas podem ser multiplicadas ao infinito. Mas o que teriam elas em comum? Podemos inferir que a cidade transpira mensagens que são lidas dos mais diversos modos. Essa miríade de narrativas, que expressam os diversos percursos plasmados pelos inumeráveis habitantes da cidade, estaria comunicando não apenas informações ou dados sobre a mesma, mas também mensagens.

Karl Bühler, já em 1934, afirmava que a comunicação humana não é apenas um processo capaz de apresentar dados com um código recebido por outrem e que passa a ser compreendido quando descodificado. Nas palavras de Bühler, “podemos considerar a existência de um emissor que através de um elemento de expressão apresenta dados ou informações sobre o «estado das coisas»”. Ainda que este «estado das coisas» fosse importante, o autor sublinhava o facto de a comunicação ter Appell, apelo (termo escolhido por ele a partir do latim porque remete ao termo appellātĭo: chamada, advertência). A recepção da comunicação ocorre na forma de uma proposta de ação, como um convite, com uma impressão emocional, como se fosse uma chamada a tomar uma posição (Bühler, 2011).

De certo modo, as incontáveis narrativas sobre a cidade expressam informações de algo que os habitantes experimentam. Mas a leitura que eles fazem remete não apenas a uma cidade concreta e de formas construídas de tijolo e betão - em termos da semiótica, uma cidade sincrónica -, mas também a uma cidade significada. Em outros termos, uma cidade em processo contínuo de significação, ou seja, uma cidade diacrónica. Isto significa que a cidade é para os habitantes um conjunto complexo de signos ou, em outras palavras, um texto que expressa suas experiências e deve ser observado tal como uma orquestra.. Mais do que a maestria de cada instrumentista isolado, a orquestração de todos os instrumentos cria “uma harmonia cosmológica vital que brota da interação, da replicação e mesmo de sua ampla classificação” (Fernandez, 1986, p. 178). É isto que faz a música complexa da orquestração que se conclui num todo. Esta metáfora nos impele a pensar que cada uma das inúmeras narrativas da cidade tenha um valor em si mas, quando colocadas no “texto da cidade”, elas se transformam na parte de um todo e se transcendem em suas informações, fazendo da cidade uma harmonia cosmológica vital. É claro que o inverso também é verdadeiro. Se cada um agir por conta própria, teremos uma desarmonia caótica mortal.

Para tratar da textualização urbana, que tanto se pode tornar uma harmonia cosmológica vital ou uma desarmonia caótica mortal, propomos deixar algumas fronteiras disciplinares de lado, num percurso onde entenderemos o surgimento e a dimensão semiótica textual do fenômeno urbano a partir dos itens “Cidade: o que é isso?” e “A textualização urbana” e, por fim, refletir sobre “As intervenções urbanas” a partir de dois exemplos indiciários: a remodelação de West End (Boston-USA) e a erradicação de Itueta (Minas Gerais-Brasil).

Cidade: o que é isso?

O que é uma cidade? Como pode ser compreendida? Como surgiu na história e para que serviu e ou para que serve? Estas questões e muitas outras relacionadas com a cidade revelam sua complexidade. O historiador Lewis Mumford elenca quase duas centenas de características atribuídas à cidade ao longo da história - como lugar de agressão, como centro de comunicação, como representante do cosmos, como uma simulação do céu, como uma cristalização de uma ideia, como um sistema orgânico, etc. - exatamente para aclarar a complexidade do fenómeno urbano, que pode começar dos mais diversos modos, desenvolver-se singularmente e durar por milénios ou terminar logo sem que haja uma explicação efetiva e razoável (Mumford, 1989).

Olhando mais de perto o próprio termo cidade, vamos lançar mão da ajuda de Émile Benveniste (1969). A reflexão dele, rica de detalhes sobre cultura indo-europeia, apresenta duas ideias que merecem especial atenção. Num primeiro momento, ele afirma que existem, especialmente no Ocidente, duas linhas de compreensão da cidade: a da πόλις (pólis) e a da ciuitas. A primeira remete a uma ideia de fortaleza, lugar murado muito associado ao mundo grego.. A partir de pólis vem o polites, isto é, o morador. Em outras palavras, primeiro vem a cidade e depois o cidadão. Qualquer sujeito que chegasse a uma pólis grega só passaria a fazer parte da mesma, como polites, submetendo-se aos ditames da cidade (raramente como polites de início, mas quase sempre como estrangeiro, escravo, mercador, etc.). A segunda remete ao modelo da ciuitas, surgindo primeiro o ciuis ou cidadão e depois a cidade. Em termos de uma imagem geral pode-se dizer que no mundo grego a cidade precede o cidadão; e o cidadão só o é na cidade. No mundo romano, o cidadão precede a cidade. Nesta ordem está implícita a ideia do “documento” ou da extensão da espacialidade da cidade (urbs). Onde estiver um cidadão romano com este título, ali estará a cidade-Roma, o direito de cidadania.

No caso do mundo grego, o cidadão só o é plenamente nas atividades da/na pólis, em especial nestes três espaços urbanos: na Akrópolis, como participante dos debates na Ágora, nas encenações no Theatron ou ainda nos ritos ocorridos no Parthenon. Em contraponto, as principais cidades do império romano eram vistas como cópia da verdadeira cidade: Roma. O início dessas cidades dava-se com o fórum romano, e nele o primeiro edifício a erguer era um templo. Em simultâneo surge um outro termo, urbs, para o mundo citadino e que vinca o contraste entre os habitantes da cidade e do campo (o rústico). Ainda hoje os termos urbano e urbanidade trazem a ideia de polido, educado, que age com civilidade, do sujeito que mora na cidade (Benveniste, 1969).

Em nossas experiências atuais pode ocorrer uma experiência mista em termos da reflexão de Benveniste. Se residirmos numa cidade qualquer do Brasil e enquanto brasileiros, temos direito de cidadania (documentos) que nos permitem habitar ali ou em qualquer outro espaço do território nacional. Contudo, a nossa entrada numa cidade estranha e onde, para além dos documentos, outros referenciais são necessários, pode fazer-nos sentir uma estranheza semelhante à do estrangeiro que chegava à Atenas clássica. Certamente, ainda hoje levaremos algum tempo para nos sentirmos polites de uma cidade, apesar do estatuto deciuis. A cidade, além de um lugar jurídico, é também um lugar cultural: encontra-se ali uma rede de costumes, de modos de ser, de valores, de vínculos pessoais que só com o tempo nos damos conta, mediante o envolvimento e a nossa vivência cotidiana.

Lewis Mumford não tem ilusões quanto à dificuldade de se traçar elementos objetivos quanto ao surgimento da cidade e afirma que dos 5.000 anos de registos de sua presença, temos mais outros tantos sem registros (Mumford, 1989). Certamente a cidade surge dentro de uma progressão da passagem do nomadismo para um sedentarismo gradual e efémero via pastoreio, até à fixação definitiva num determinado ambiente. Isto pode ser visto como uma espécie de paralelo da história da habitação. Para Amos Rapoport (1969), o sedentarismo efémero teria sido inicialmente motivado pelos próprios animais e suas necessidades adaptativas, obrigando os homens a construir abrigos temporários para os acompanhar e a praticarem ma espécie de sedentarismo nómada. Rapoport afirma que num passo ulterior, a construção de uma habitação definitiva e padronizada dependeu de dois elementos básicos: do ambiente - lugar seguro ou conveniente - e dos materiais disponíveis. No fundo, serão esses os elementos básicos para o surgimento do vilarejo por vezes estabelecido ao longo de uma estrada, numa encruzilhada, numa aguada, num caminho movimentado, etc. Dos pequenos agrupamentos de casas às cidades mais extensas e complexas, encontramos as mais diversas modalidades de territórios, cujas histórias remetem para múltiplos fatores.

O ser humano, como de algum modo referiu Amos Rapoport, não constrói simplesmente uma habitação, um simples lugar. Juntamente com a habitação e através de uma relação dialética, o ser humano também se constrói nesse processo, ou pelo menos, transfere para os modelos de casa as suas ideias e sonhos relativos ao espaço privado, ao habitar e a si próprio. Constrói assim uma mensagem. Isso explica, segundo o autor, porque é que especialmente nos Estados Unidos os modelos de casa almejados e construídos pelos que têm mais capacidades económicas vão muito além de simples espaços destinados à função do habitar (Rapoport, 1969). Nesta linha de raciocínio, já nos anos 1950, Martin Heidegger pensava algo assemelhado refletindo sobre o próprio processo de construção da habitação e até da cidade de um modo mecânico e focado na redução de custos do pós-guerra.

No sentido de proteger e cultivar, construir não é o mesmo que produzir. A construção de navios ou a construção de um templo produzem no reverso, de certo modo, a sua obra. Tendo em mente o cultivo, construir remete a edificar. Ambos os modos de construir: construir como cultivar, em latim, colere, cultura, e construir como edificar construções, aedificare, estão contidos no sentido próprio do [termo alemão] bauen, isto é, em habitar. No sentido de habitar, ou seja, no sentido de ser e estar sobre a terra, construir e permanecer, para a experiência cotidiana do homem, aquilo que desde sempre é, como a linguagem diz de forma tão bela, habitual (...). Parece que esse acontecimento se refere a uma transformação semântica ocorrida no mero âmbito das palavras. Na verdade, porém, aí se abriga algo muito decisivo: o fato de não mais se fazer a experiência de que habitar constitui o ser do homem [atual], e de que não mais se pensa, em sentido pleno, que habitar é o traço fundamental do ser-homem. (Heidegger, 2014, p. 103)

Martin Heidegger tem em mente a experiência da construção de habitações ao longo da história da Alemanha, em que algumas são típicas e remetem à cultura local, à semelhança de outros lugares do mundo, e outras projetadas e construídas no pós-guerra sem a participação dos moradores e olhando sobretudo ao cálculo dos custos. Enquanto a habitação no passado era sonhada antes de ser construída, no pós-guerra ela foi construída sem os moradores, dando a estes, com o passar do tempo, a ser dando ao morador a sensação de um espaço colonizado e de se estar zu Hause (em casa).

Quanto à complexidade do fenómeno urbano, em sua dimensão semiótico-textual, podemos partir do resumo feito por Ugo Volli (2009). Na reflexão orientada para a compreensão da cidade como texto, ele refere que a cidade já foi vista até como “máquina para habitar” pelos planejadores funcionalistas. Mas também como um “lugar utópico, uma ecologia humana, uma rede, uma obra de arte, a base material da sociedade” e até como um espaço etológico, comparando-se com o caso das colmeias e formigueiros (Volli, 2009, p. 9). Como vimos acima com as categorizações de Lewis Mumford, podemos dizer que a cidade é uma espécie de caleidoscópio, que a cada movimento - dela ou nosso - corresponde a uma imagem diferente. “A multiplicidade de denominações linguísticas dos ambientes urbanos corresponde, portanto, às de concepções de cidade” (Volli, 2009, p. 11).

A partir do modo de pensar de Yuri Lotman (1985, 1990), que veremos adiante, as concepções de ambiente urbano - que se traduzem numa linguagem, desde a coloquial até a mais técnica - vão priorizar num momento as vias de comunicação, noutro as habitações e, ainda em outro momento, os espaços sociais como as praças. Nesta mesma linha de pensamento, Volli (2009, p. 11) afirma que por mais óbvio que seja, “a cidade não é um fenômeno natural, uma coisa no mundo como as ilhas, as montanhas, mesmo quando podemos identificá-la na objetividade do construído”. Diversos aspetos a diferenciam dos fenómenos naturais, tais como a sua história social, os pensamentos, crenças e ideologias de quem a planejou, seja desde o início ou passo a passo em seu crescer orgânico. “A cidade é o resultado de um projeto” (Volli, 2009, p. 11). Ela é a objetivação de um sistema de pensamentos. Se considerarmos a cidade enquanto construção que expressa uma linguagem podemos pensá-la em termos de uma textualização.

Textualização urbana: o espaço numa perspetiva semiótica

Se a cidade é fruto da cultura humana, então ela pode, de acordo com Lotman e outros estudiosos da semiótica, ser compreendida como um fenómeno semiótico, isto é, resultado de uma semiose. Ainda que ela se apresente física e estruturalmente diante de nossos olhos como algo que está aí (uma natureza), ela é mais do que vemos, ela é uma rede de signos (uma cultura). É isto que faz com que as pessoas (cidadãos) falem de modo tão diverso do mesmo objeto. Esta apresentação da cidade, segundo a língua natural, é o que Lotman vai chamar de sistema modalizante primário, ou seja, a cidade é apresentada através de um discurso da língua natural. De um certo modo, todos entendemos o que cada um fala, mas isto pode levar ao engano do realismo ingénuo. Os estudiosos da semiótica não lidam somente com este primeiro nível. Sobre este primeiro sistema teríamos outro ao qual Lotman chamará inicialmente de sistema modelizante secundário, que será substituído mais tarde pelo termo Semiosfera (Pezzini, 2009; Sedda, 2004, p. 372; Machado, 2015, p. 19). Neste caso, precisamos entender que cada termo remetido a um objeto se torna um signo: as folhas das árvores significam trabalho de Sísifo constante do varredor e também sinal de presença de arborização e quem sabe, a possibilidade de redução da sensação de calor e assim por diante.

Aqui vale a pena fazer uma pequena apresentação do conceito de Semiosfera. A ideia que lhe está na base vem do termo e metáfora “Biosfera”, elaborado pelo biólogo Vernadsky (1926). Ele procurou contextualizar os seres vivos no seu espaço vital que vai, em tese, desde o topo do Everest (8.848m) no Nepal às fossas Marianas (11.034m.) no Pacífico. Já a Semiosfera é o espaço do mundo dos signos, da cultura e que pode implicar desde toda cultura humana - toda e qualquer transformação da natureza em cultura - até pequenos detalhes onde uma cultura se destaca de uma outra, como por exemplo, uma vitrine num corredor de um shopping (Traini, 2005). O próprio Lotman usa para isto a metáfora do museu, onde coexistem objetos de tempos e de lugares diversos e com os mais variados significados. Temos em cada um dos objetos pelo menos três leituras: a do autor da “obra”, a do administrador do museu e a do visitante. Podemos tomar o exemplo de uma cafeteira antiga: inicialmente ela foi um mercadoria numa loja, depois um equipamento do cotidiano de uma cozinha, depois, com o tempo, passou a ser “coisa antiga” e interessou ao museu e, por fim, o visitante pode contemplar e comparar, tanto o objeto como o modo de se fazer café desde tempos mais antigos aos atuais. Assim é a Semiosfera que em parte é a “memória da coletividade”, mas que não é um depósito estático. Pelo processo de tradução dialogal, os objetos, mesmo num museu, estão sempre comunicando e constituindo uma nova cultura (Lotman; Uspenskij, 1978; Lotman, 1985; Lotman, 1990).

O texto, segundo Dubois et al. (2006, p. 586), “é uma amostra de comportamento linguístico que pode ser escrito ou falado”. A proposta de ampliar a abrangência do conceito de texto vem de longe, com destaque para Bakhtin na década de 1940. De acordo com o autor: “Dois elementos determinam o texto como enunciado: a sua ideia (intenção) e a realização desta ideia. As inter-relações dinâmicas desses elementos, a luta entre eles, determinam a índole do texto” (Bakhtin, 2011, p. 308). Na mesma época, com Louis Hjelmslev e outros estudiosos, o conceito de texto foi sobremaneira ampliado sendo remetido praticamente a todo e qualquer objeto em que haja algum tipo de “cultivo”. Por outro lado, ele afirma: “é impossível ter um texto sem uma língua que esteja por trás dele (...). Um texto, ainda que puramente virtual, pressupõe um sistema linguístico concreto (Hjelmslev, 2013, p. 44). No momento em que os estudos da semiótica passam da língua - langue, de Saussure - para os mais diversos sistemas de linguagem, tudo passa a ser de algum modo texto (Hjelmslev, 2013). É o que também vem sintetizado por Dubois et al. quando afirmam que a semiótica deseja ser uma “teoria geral dos modos de significar” (2006, p. 537). Ao abrir um livro temos um texto, ao entrarmos numa loja de calçados também e, de certo modo, nos dois “lugares”, de alguma forma, encontramos um sistema linguístico em ação. Este aspeto será valorizado por Lotman, ou seja, por trás dos textos temos, de um lado, a gramática - que fortalece a mensagem - e, de outro, textualização - que pode favorecer a flexibilidade dos textos. Ele afirma que as culturas podem ser classificadas como gramaticais considerando tanto as rígidas e de pouca mudança como aquelas em processo permanente de textualização, isto é, as flexíveis e diacrônicas (Traini, 2005).

Como a cidade pode ser um texto?

Considerar o fenómeno cidade como sendo um texto implica retomar a origem deste último termo. Vale a pena aprofundar um pouco o significado deste conceito. A origem da palavra remete ao termo latino textum que significa “tecido”, “entrelaçamento”. Há aqui uma tendência de se ver ora os elementos que estão sendo vinculados (os fios), ora os efeitos dos laços que relacionam os diversos elementos (o resultado). De qualquer modo, ao observarmos de perto um tecido, logo intuímos que sem os fios não há trama, e sem trama os fios deixam de ser um tecido e passam a ser simples rolo de fios desordenados. Já Kant (1985, p. 89), em 1781, afirmava: “Pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições em conceitos são cegas”. Isso remete ao facto de que o conhecimento resulta de um encontro dialogal dos dados objetivos com um processo de significação dos mesmos.

Por outro lado, como nos adverte Isabella Pezzini (2008), cada percurso na cidade não proporciona simplesmente uma nova leitura, mas também uma nova escritura. É como se a cidade que está ali diante de nós recebesse de forma contínua uma nova proposta textual. Por isso, ela distingue e aprofunda a ideia que está por trás do termo “texto”. Num primeiro momento, ela afirma o sentido original do termo latino, concluindo que a cidade é mesmo “o resultado de uma tessitura”, onde urdiduras e tramas diversas se encontram dentro de campos e tempos relacionais semióticos diversos. Mas, a cidade é também testis, termo latino que remete a “testemunha”, ou seja, o percurso pela cidade não nos revela apenas uma trama, mas também uma história de sucessos, conflitos, tensões, dramas, fracassos, violência etc. mais ou menos transparentes. Um exemplo disto é a visita a uma cidade histórica: quanto mais informações tivermos dela, tanto mais o casario, os monumentos, as vielas, as pontes e fontes nos falam de seus moradores atuais e antigos. Até um terrain vague (terreno baldio) pode transmitir algo, uma vez que ele se apresenta como uma voz ou palavra divergente do esperado, expressando os alternativos e “os excluídos de toda sorte” (Giannitrapani, 2013, p. 79-80). Este conceito merece atenção, uma vez que praticamente todas as cidades têm os seus terrain vague, que fisicamente podem estar “fixos” num lugar ou terem o seu significado alterado ao longo do dia, consoante o perfil de frequentadores e o tipo de vivências.

Num primeiro resumo desta tessitura podemos acolher a síntese de Béatrice Collignon quando ela comenta uma obra de Mondada, Décrire sa ville: “A cidade se nos apresenta como um objeto complexo e é vivida, compreendida e falada dos mais diversos modos pelos seus atores, que são também muito variados (habitantes, comerciantes, responsáveis de todo tipo, militantes, intelectuais, trabalhadores, etc.)” (Collignon, 2001).

Sobre tamanha variação podemos retornar ao conceito de Semiosfera de Lotman (1990), desta vez aplicado ao fenómeno urbano. Tendo isso em vista, vale a pena acolher esta sua observação:

“A semiosfera é marcada pela heterogeneidade. As língua[gens] que perpassam o espaço semiótico são variadas e elas se relacionam entre si ao longo do spectro que vai desde a completa e mútua tradutibilidade até a mais completa intraduzibilidade. A heterogenia tanto é definida pela diversidade de elementos como pelas diferentes funções. Assim se fizermos a experiência mental de imaginar um modelo de espaço semiótico onde todas [ou muitas] as língua[gens] passam a viver ao mesmo tempo e sob a mesma influência de um mesmo impulso, nós mesmo assim não teríamos um código único estruturante, mas um conjunto de sistemas diferentes ainda que conectados por uma mesma ideia” (Lotman, 1990, p. 125).

Ele usa o museu, mas podemos igualmente usar para a cidade ou qualquer outro fenómeno cultural complexo. Tomemos o exemplo de um percurso por uma cidade. Ao percorrer uma avenida ou um bairro encontramos a heterogenia que se manifesta na variedade de construções. Elas podem ser tomadas como se fossem palavras num texto - contexto - que se apresentam em parte como semelhantes em termos de suas funções (lojas, moradias, escolas etc.) e em parte diversas pela sua natureza. Com o conceito de semiótica que vimos acima, o andante está permanentemente construindo processos de significação que vai desde a visualização das construções até a história das mesmas, como numa frase, onde temos a palavra e a história de seu significado.

Tendo estes elementos presentes podemos usar a metáfora do texto para compreender a cidade; mas os estudos atuais referem que ela mesma é um texto ou, quem sabe, mais que um simples texto pronto, mas um texto em processo de tecitura, como vemos nas experiências das “cidades criativas” (Brito Cardoso, 2017). Como uma planta cultivada, a cidade bem ou mal está sempre viva e em movimento.

Como veremos adiante com Benveniste (1969) e Lotman (1985; 1990), o ponto de ancoragem da cultura é a linguagem, compreendida no seu sentido amplo. Como nos adverte Ugo Volli (2009), a cidade não é um fenómeno natural, ela brota direta ou indiretamente de projetos, de visões de mundo, de decisões e mesmo de indecisões; ela depende de pensamentos, desejos, crenças, ideologias, etc. Com isto, a cidade apresenta-se para nós como um texto a ser lido, mas permeado também de mensagens entrecruzadas. Mas, a metáfora do texto urbano vai mais longe.

Os textos são relevantes na vida social, não só por aquilo que são materialmente, mas também pela capacidade de remeter a algo para além deles mesmos, segundo a célebre definição agostiniana [segundo a qual] os sinais são aliquid pro aliquo (algo que está no lugar de outra coisa); isto é, eles são capazes de suscitar e fazer agir um nível semântico, um plano de conteúdo que age de modo não causal, não puramente psicológico e associativo, mas convencionalmente normalizado e regulado na mente das pessoas (Volli, 2009, p. 13). Tendo esta ideia presente como uma espécie de pano de fundo, vamos aproximar-nos um pouco mais do fenómeno “cidade”.

As intervenções urbanas: podas ou sangrias?

Quanto à textualidade, com Colombo e Eugeni (apudVolli, 2009, p. 12) podemos ver a cidade tanto como um textum e como um testis. No primeiro sentido, “ela é um tecido composto por pessoas, coisas, histórias de vida, meios de produção e moradias”, lançados juntos no processo de significação. Entretanto, mesmo sem querer ou quem sabe, pelo facto de se tratar de um ser (ente) que se textualiza, ela é também testis (testemunha) tanto do passado que perdura, como no horizonte de futuro de seus habitantes. A cidade deve ser pensada a partir da sua duração ao longo do tempo. E, além disto, podemos dizer que metaforicamente, a cidade fala, discursa, emite mensagens e também silencia ou é silenciada.

Massimo Leone, tomando como referência o evento histórico da destruição de imagens - entre o Século VII e IX no Império Bizantino (iconoclastia) -faz uso do termo policlastia. Ele mesmo se pergunta se não existirá uma ars oblivionalis (arte de esquecimento) que, de algum modo, possa ser usada e aplicada à cidade? No fundo, Leone reconhece que não existem na história exemplos de cidades que tenham realmente desaparecido sem deixar rasto - nem mesmo Cartago, apesar do sal que os romanos espalharam sobre as suas ruínas. -

Temos inúmeros exemplos deste processo de intervenção no tecido da cidade e ao mesmo tempo, de procedimentos de apagamento das memórias. No final dos anos 1950, a administração da cidade de Boston levou adiante um processo de “revitalização” de um bairro popular da cidade - o West End - que tinha um significado especial para os seus moradores, na maioria imigrantes. Ali fora o seu lugar de chegada. O efeito desta renovação foi um processo psicológico de doença e até de luto para grande parte da população que ali morava, apesar de todo o planejamento para efetivação das alterações. Mas quem se lembra de Boston e seu West End antes da grande renovação do final dos anos 1950? Só mesmo pelas inúmeras fotos de antes e depois encontradas na Internet. Entretanto, os estudos de Marck Fried (1968) revelaram os profundos efeitos deste processo de renovação urbana na vida das pessoas. Para muitos, significou a destruição de seus lugares de vida.

A compreensão do bairro de West End como um texto por Fried (1968) reflete a experiência da leitura feita por diversas pessoas que moravam ali. Elas não veem o bairro como um todo homogéneo, isto é, como se ele pudesse ser resumido numa palavra única. Para umas pessoas o que se perdeu - e o que o bairro significava - foi sobretudo os seus lugares de relacionamentos: bares, padarias, lojas etc. Já para outros, a ênfase desta perda foi para as redes de relações - parentes, amigos, conhecidos etc. - que se expressavam nestes lugares e que de uma hora para outra desapareceram. Muitos emigrantes desenvolveram uma relação afetiva forte com aquele bairro, uma vez que era como um porto de salvação, um lugar de esperança onde aportaram depois de deixarem os seus países. Assim e para muitos deles, as novas habitações proporcionadas pelo país de acolhimento, apesar de até permitirem mais conforto, não traziam consigo o ambiente das antigas habitações do West End. Por isso, muitos adoeceram, voltavam sempre de novo para “ver no que dera” o seu lugar querido (Fried, 1968). No processo de remodelação o antigo bairro foi simplesmente aterrado e implicou a retirada de todas as pessoas e o desmantelamento das habitações. A cidade do século XIX deixa de existir e dá lugar a uma cidade pós-industrial. As imagens deixam evidente a intenção de não permitir que as mesmas pessoas voltassem e que nem o bairro assumisse a antiga fisionomia. A re-escritura faz com que o West End deixe de ser um lugar para morar e se torne um lugar para compras, serviços, lazer, etc. (Fried, 1968). Não só o aspeto fisionómico muda, como também o aspeto funcional. Além das habitações apaga-se igualmente o modo como as pessoas moravam ou utilizavam aquele espaço.

Um outro exemplo semelhante foi a erradicação da cidade de Itueta - Minas Gerais - por ocasião da construção de uma barragem hidroelétrica. Após a construção de uma cidade nova e da remoção dos moradores da cidade antiga, inúmeros efeitos psicossociais se manifestaram. A transferência da antiga Itueta para a nova localização não respeitou a tecitura original e acabou por desmanchar a trama entrelaçada ao longo do tempo. De uma forma objetiva, a empresa responsável pela transferência negociou com os moradores a partir de faixas indemnizatórias, o que levou ao desmantelamento de diversas redes que entrecortavam a antiga cidade. Desfez-se o texto urbano que significava não só os lugares e territórios, mas a identidade e o sentimento de pertença dos ituetenses. A transferência foi traumática, não só no momento fatídico da remoção, mas assim permanece mesmo depois de uma década. Doença e frustração acompanharam os moradores da nova Itueta, que possui aspeto fantasmagórico e sem vida, visto que a antiga cidade permanece como um cadáver insepulto (Cazarotto; Genovez, 2015, p. 87-98).

Com o diálogo entre a antropologia, o urbanismo e a semiótica temos elementos para refletir sobre o fenómeno da intervenção a partir de dois conceitos: a des-inauguração e a textualização.Para Lotman a cultura é “a memória não hereditária da coletividade” (Lotman; Uspenskij, 1978, p. 211). Como a memória da cidade estava “registrada” no solo, nos terrenos, nos jardins, nas moradias, etc., estes signos precisam ser anulados também em termos espaciais se quisermos anular a sua memória. Facto que pode ser observado no caso de Itueta. Lá, o Consórcio responsável pela transferência dos moradores procurou retirar do cenário todo e qualquer resquício, tanto das edificações quanto dos espaços públicos. Mas, curiosamente, mesmo diante dessa atitude de completa anulação é frequente a ida de grupos de moradores que visitam a antiga cidade e ainda conseguem identificar os espaços e, até mesmo seus respetivos quintais.

West End e Itueta levantam a questão: por que razão este textum-testis (tecido-testemunha) é tão difícil de ser anulado? Porque, de algum modo eles passaram por processos de ritualização da experiência, como nos informa Bruce Kapferer (1986, p. 191): “o grande número de rituais relatados pelos antropólogos são composições que entrelaçam diversas de suas formas: artes plásticas, liturgia, música, cantigas, narrativas das lendas, artes dramáticas, entre outros”. Isto tudo ordena a experiência e a realidade com forte densidade emocional. Nesta linha de pensamento, Massimo Leone (2009) recorda os processos de inauguração e de des-inauguração das cidades no âmbito cultural do mediterrâneo, apresentando o arado como um dos instrumentos simbólicos. Este tanto era usado para estabelecer os limites - o arado é por excelência um signo da cultura, da intervenção do ser humano na natureza - como para revolver o solo da cidade condenada, como no caso de Cartago e Itueta. No caso de West End podemos dizer que os efeitos do esquecimento - anulação, desenraizamento - se deram de dois modos: no corpo das pessoas, muitas das quais adoeceram, e na remodelação radical do bairro tornando-o irreconhecível (Fried, 1968). Mas não está aqui o fator principal.

Uma cidade em termos de sua fenomenologia cultural - especialmente no mundo do Mediterrâneo - era antes de tudo um fenómeno que tinha a ver com os “deuses”, daí o principal fator não ser propriamente a sua delimitação física, mas a in-auguração nas estrelas, ou seja, o estabelecimento da sua relação com os áugures (especialmente pelo voo das aves). Como bem nos lembra Antônio Geraldo da Cunha, inaugurar vem do latim inaugŭrāre: tomar o agouro, dedicar, consagrar. Ainda hoje relacionamos bons augúrios com sorte, mas na antiguidade isto era muito mais significativo, uma vez que uma das primeiras construções eram os templos dedicados aos deuses protetores da cidade.

Por outro lado, no caso de um aniquilamento da cidade, temos também o processo de des-inauguração que também requer um ritual que implica além de arar o solo, o lançamento de condenações ou de maldições para com a cidade aniquilada e seus eventuais futuros moradores. Tanto isto era forte e significativo que os romanos “convidaram” os deuses dos cartagineses para se transferirem para novos templos dedicados a eles em Roma, depois da maldição da sua cidade (Cunha, 1982, p. 430; Leone, 2009, p. 347). O próprio Leone (2009) nos adverte para uma distinção importante: o que resta da cidade destruída pode ser macerie (refugos, entulhos, cascalhos inúteis) ou rovine (ruínas). O que os soldados de Alexandre o Grande encontraram em Persépolis foram ruínas e as respeitaram de tal modo que permanecem lá até hoje; o que os soldados romanos deixaram em Cartago foram refugos inúteis, de tal modo que as ruínas que temos são os arcos do triunfo romanos construídos mais tarde. Há, portanto, duas textualizações expressas através de ruínas ou de entulhos. Por exemplo, a casa que a família construiu ao longo de anos na antiga Itueta representava para os moradores atuais, ruínas - memórias em três dimensões - mas para a empresa encarregada de aniquilar a antiga cidade, não passava de entulho a ser incorporado no solo e des-memorizado. Existem relatos dos moradores descrevendo como os tratores e escavadoras arrancavam as casas vizinhas do solo em questão de minutos. O sentimento era de que o vizinho da antiga convivência cotidiana fora aniquilado, assim como qualquer vestígio da sua passagem na cidade (Cazarotto; Genovez, 2015). Distinto de Itueta, o processo em West End passou por duas etapas diferentes: primeiro, a construção de um novo bairro e a remoção e alocação das pessoas em diversos lugares ainda que considerando o poder aquisitivo dos moradores; segundo, a destruição total do bairro antigo (Fried, 1968).

Em Itueta, muitos moradores idosos mantiveram suas memórias mesmo diante de uma intervenção radical como aquela imposta pelo Consórcio da barragem. No caso de West End, vários moradores voltavam várias vezes para ver em que ponto estava a sua “antiga habitação”, mas com o tempo deixaram de visitar. Cabe, portanto, questionar como são mantidas as memórias ou mesmo como se procura, por vezes de um modo radical, fazer desaparecer as lembranças? Concordando com Massimo Leone (2009), não é fácil organizar categorias para as diversas intervenções possíveis. Temos mudanças nas cidades que podem ser catastróficas - como em Lisboa, 1755 - que levam não só a mudar a cidade, mas também o modo como o ser humano se compreende.

Para isto necessitamos compreender o processo de textualização. Na realidade, assim como a escrita de um texto qualquer - uma carta, um ensaio, uma propaganda, etc. - requer um conjunto de procedimentos que levam em conta não somente as palavras, mas também um estilo, um género, ou nos termos de Hjelmslev (2013), uma expressão e uma mensagem, também o processo de textualização de uma cidade - de um bairro, de uma rua e mesmo de uma casa - traz em si processos peculiares. É evidente que podemos fazer uma propaganda na forma de uma carta e mesmo escrever um ensaio na forma de poesia, mas de qualquer modo, tanto a propaganda-carta como o ensaio-poesia continuam trazendo em si a textualização que pretende significar uma mensagem através de uma expressão. Os casos de Itueta e West End possuem contornos dramáticos, na medida em que os seus moradores deixaram de ter protagonismo no processo da nova textualização e não reconhecem a nova rede de significação que lhes foi imposta.

Nesse sentido, Greimas e Courtès (2016, p. 504-505) chamam a atenção para duas delimitações importantes na relação do texto como discurso, isto é, no processo de textualização, que valem também para o texto-cidade: a linearidade e a elasticidade. Aqui, temos uma distinção importante para o caso da textualização da cidade. Na fala há uma dada linearidade temporal, inclusive - caso não tenhamos uma gravação - cessa de existir assim que paramos de falar. Já na escrita, nas pinturas, nas imagens, etc. a linearidade é espacial. Esta sugestão subtil é importante para se distinguir, no caso de um estudo, a linearidade da fala das pessoas sobre a sua cidade, sua habitação, sobre as experiências de intervenção mais ou menos dramáticas e a sua leitura-fala da cidade-texto. Essa última pode ser feita e refeita muitas vezes, visto que a linearidade e a memória espacial permitem muitos percursos. Para compreender isto podemos imaginar as inúmeras narrativas contadas por moradores de Itueta ou de West End sobre seus espaços cotidianos antes da erradicação. Cada narrador pode assumir tantos conteúdos quantos forem os percursos.

Ao mesmo tempo verifica-se que a textualização é elástica. Por trás desta ideia há uma crítica aos modelos estruturais de compreensão do texto totalmente tributários das “gramáticas”, que não vem ao caso discutir aqui. Essa perspetiva de elasticidade. tanto do texto quanto da textualização, permite acolher com mais facilidade o aspeto da memória espacial. Além do mais, este conceito enseja a compreensão dos signos espaciais vinculados à experiência e, portanto, à elaboração de uma dada memória que sempre se manifesta de maneira atualizada. Tomemos o fenómeno da localidade, tanto no caso de West End como de Itueta. Este conceito de “localidade” trabalhado por Arjun Apadurai (1997) relaciona as pessoas, não em termos de distância - como no caso da vizinhança - mas em termos do significado das relações. Tanto em West End como em Itueta as pessoas, apesar de conviverem e desenvolverem atividades juntas - festas e atividades comunitárias -textualizaram a cidade de modo bem diverso. Ainda que tenhamos uma memória espacial até bastante próxima em termos de seu conteúdo, o significado dos diversos elementos da cidade adquire um valor elástico. O que era o bar para alguns moradores de West End e o que era o centro comunitário em Itueta “adquire um peso diverso” para os seus moradores. Neste sentido, a leitura do texto linear é superada pela leitura elástica; esta leitura, por exemplo, acolhe além das informações dos dados, as informações das experiências peculiares de cada um no espaço.

Podemos inferir que o peso diverso que os elementos da cidade adquirem depende do registo mnemónico de cada morador. Quanto mais intenso o registo, mais significativo o espaço perdido terá e maior sua repercussão em termos do sentimento de perda e possível adoecimento. Em alguns casos, percebem-se resistências como a dos moradores de Itueta em relação ao antigo cemitério. Esse espaço, dado o seu valor sentimental para os moradores, não foi erradicado. Ele permaneceu como uma espécie de “cordão umbilical” que mantém fortes vínculos com a antiga cidade aniquilada. Passada uma década da transferência, ainda existe resistência dos moradores em sepultarem seus entes queridos no novo cemitério uma vez que a sua terra natal continua tendo como referência, para uma boa parte da população, a antiga cidade. As mudanças radicais ocorridas no tecido urbano de West End que levou ao realojamento dos antigos moradores em lugares diversos e mesmo distantes, fizeram com que aos poucos o antigo bairro tenha mudado de uma terra de acolhimento para uma terra estranha, e talvez até um terrain vague.

Neste ponto podemos lançar mão da metáfora de Fernandez (1986), exposta na introdução. As inúmeras narrativas dos moradores da antiga Itueta não constituem uma orquestra capaz de lhe dar outro sentido: aquele da erradicação. Tampouco podem compor uma harmonia cosmológica vital da nova Itueta. Deve-se ressaltar que essas narrativas não nos trazem apenas informações dentro de um código, mas também um estilo, palavras próprias de cada situação vital (Lebenswelt). As palavras não estão fora da vida. Este estilo, entre outras coisas, está presente nas palavras usadas e mesmo na emoção que elas trazem e às vezes não prestamos atenção por não nos serem familiares. Algumas dessas palavras, usadas pelos nossos narradores, buscam a exata dimensão do que sentiram, especialmente quando remetem ao momento em que as casas vizinhas são “arrancadas”. Está presente nesta palavra, assim como em outras, além de uma dimensão social da sua atividade, uma dimensão cultural que transpira em seu vocabulário, tendo este uma história cultural. A cultura de cada um contamina a sua narrativa. Assim como os estudos de Benveniste nos apresentam a história do sentido de um termo ao longo de milénios de história, assim também as palavras usadas por cada um deles estão contaminadas pelas suas experiências, ou seja, por sua história e pelo trauma da erradicação.

Este aspeto é essencial para compreendermos a colaboração de Lotman, especialmente em seu conceito de “tradução”, “fronteira” e de “formação” (Machado, 2015, p. 15). Mesmo falando a mesma língua e usando referenciais próximos em termos semânticos, os processos de elaboração de significado podem ser muito diferentes. Não devemos esquecer que atrás das falas de cada um dos ituetenses há uma dimensão emocional devido à sua imersão na experiência e uma proposta a um “fazer”. Podemos assim ter em mente que cada um deles constitua uma cultura que em parte compartilham entre si e em parte não. Segundo Stefano Traini (2005), para a escola de Tartu (leia-se Lotman) um sistema de significação isolado não constitui uma cultura, uma vez que a base mínima para uma cultura é que existam pelo menos dois elementos, nem que sejam a cultura e a não-cultura, a Umwelt e a Semiosfera (Lotman, 2002, p. 35). Para que uma cultura viva e cresça ela necessita de espaços de diálogos - de não-ela - onde ela é posta em questão ou seus elementos são acolhidos (Traini, 2005, p. 8).

Ao contrário da nova Itueta, onde os moradores são os mesmos e moram na mesma vizinhança - e relativamente próximos da antiga Itueta - os moradores de West End com o passar do tempo simplesmente viram o seu antigo bairro não sendo seu espaço vital e passaram a visitá-lo como os demais moradores de Boston, isto é, pelos serviços que ele oferece.

Em vista do nosso tema - a cidade como texto no processo de intervenção - da cena informativa tanto de Itueta como de West End podemos deduzir pelo menos dois aspetos: que a cidade é um cenário percorrível por diversas vias e cada percurso chama a nossa atenção para uma (mens)agem tanto em sua linearidade quanto na sua flexibilidade. A cidade não está pronta. Do ponto de vista semiótico, ela está em processo de escritura e de leitura. Assim, devido ao fato de que a cidade está permeada de diversas temporalidades, “a escritura urbana é por sua própria natureza quase que essencialmente uma re-escritura, um processo de reunião e de sobreposição de estratos de sentido, um constante retirar e colocar, uma correção do organismo pré-existente que passa a ser modificado continuamente” (Volli, 2009, p. 18). Nesta mesma linha de pensamento podemos considerar que a cidade está imersa “no princípio dominante da textualização, compreendido como tradução apropriadora do real que, filtrada pela língua (linguagem), se transforma em texto” (Pezzini; Sedda, 2019, p. 6). Por isso, percorrer a cidade é fazer uma leitura de signos em parte transparentes e em parte opacos.

Além disto, estas diversas vozes e leituras podem fazer parte de uma harmonia cósmica vital quando ouvidas; ou de uma cacofonia caótica quando deixadas cada uma isolada em seu domínio por mais que cada uma se esforce por falar bem ou fazer bem o seu papel. Este é, em resumo, o desafio da compreensão do fenómeno da cidade em termos semióticos e aqui buscamos compreender, em especial, as modificações da cidade - sobretudo aquilo que se convencionou chamar de “cidades criativas”. Os nossos instrumentos foram os da semiótica do espaço (semiosfera), e aqui valorizaremos especialmente aqueles conceitos que remetem à cidade como fruto de cultura e de textualização que nos vêm desde Mihkail Bakhtin, mas principalmente de Iuri Lotman (Bakhtin, 2011).

Conclusão

A partir de alguns conceitos de Yuri Lotman, especialmente da dimensão cultural da experiência humana (cidade-texto) e das reflexões de estudiosos da cidade e da abordagem da antropologia da experiência, procurámos refletir sobre os efeitos das intervenções na tessitura urbana. Como conclusão e síntese realçamos três aspetos significativos que nos podem auxiliar nessa reflexão: (1) a textualização urbana como “harmonia cosmológica vital” de James Fernandez (1986). A cidade - e talvez tudo o que o ser humano transforma da natureza em artefacto - é um “texto” cultural em busca constante de uma harmonia, imerso no sonho de um cosmos (Lebensraum - espaço vital). As intervenções - sejam elas na forma de uma renovação brusca ou como uma inovação (cidades criativas) - movimentam as águas do tecido urbano e com isto todo o sistema de significação. (2) “Ruínas e entulhos”: praticamente, como na reforma de uma casa, temos como resultado algumas coisas que procuramos manter - uma vez que são memórias -, e outras das quais nos desfazemos e se tornam simples entulhos. Numa cidade, as intervenções podem produzir espaços de memória como vemos nas tentativas de manutenção de obras significativas e, outras vezes, processos aos quais Massimo Leone (2009) vai chamar de policlastia, que podem ocorrer até nos momentos em que a cidade se fecha sobre si mesma pela falta de “hospitalidade” e se transforma num vazio ou terrain vague.

Por fim, temos a (3) “memória espacial” que, diversamente da memória linear, permite a construção de “textos multidimensionais” que ao serem percorridos por abordagens “elásticas” permitem o desvelamento não só das dimensões arquitetónico-urbanísticas da cidade, mas também suas temporalidades, seus percursos semióticos, etc. Neste caso, não só os habitantes estarão presentes, mas também as suas experiências. Com Mumford podemos concluir que muitas vezes, por diversos motivos, a cidade inteira, ou parte dela ou ainda algumas de suas instituições se tornam invisíveis, isto é, deixam de ser “palavras-faladas” no discurso de seu texto. Esse é um modo de exclusão. “A cidade visível torna-se o lugar indispensável” mesmo que seja uma ruína; já a cidade invisível - ou invisibilizada - torna-se “uma vasta rede de elementos despersonalizados” (Mumford, 1989, p.563). Essa invisibilidade e despersonalização disseminam a desabitação e a des-inauguração ao seu redor.

O ponto de encontro entre a antropologia e o urbanismo se dá exatamente na semiótica enquanto “teoria geral dos modos de significar” (Dubois, 2006, p. 537). A cidade pode ser compreendida pela antropologia exatamente por se tratar de um artefacto, isto é, aspetos do mundo natural modificados com alguma intencionalidade. Por isso, toda e qualquer intervenção no tecido urbano é uma intervenção numa inauguração e, por isso, remete a um processo de nova in-auguração. Ou como Ugo Galimberti, em sua reflexão sobre a técnica nos adverte: “a passagem do senhorio do homem para a técnica é o traço característico que diferencia qualitativamente a técnica antiga - arte - da técnica moderna” (Galimberti, 2006, p. 390). Que cidade queremos: a humana ou a dos equipamentos? Disto resultará o ser humano que nela habitar.

Os dramas vividos pelos moradores de Itueta e de West End deixam claro que o texto urbano é também um testemunho e que a sua destruição - ou interferência - gera efeitos danosos e até mortais. Por isso, nestas intervenções, as pessoas não devem simplesmente ser tratadas como se fossem equipamentos ou peças de reposição, mas como seres de relações e especialmente, seres de significação.

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Recebido: 19 de Abril de 2021; Aceito: 06 de Setembro de 2021

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