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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES vol.44  Lisboa jun. 2022  Epub 15-Jun-2022

https://doi.org/10.15847/cct.27187 

RECENSÃO

Recensão do livro Direitos Humanos e Habitação: Evolução do direito à habitação em Portugal

Book review of Direitos Humanos e Habitação: Evolução do direito à habitação em Portugal

1DINÂMIA'CET-Iscte, Portugal, sasls@iscte-iul.pt


O recente livro do geógrafo, professor e investigador Gonçalo Antunes, do Centro de Estudos CICS.NOVA da NOVA.FCSH, intitulado Direitos Humanos e Habitação: Evolução do direito à habitação em Portugal - publicado em 2021 pela editora Caleidoscópio -, expõe a partir de uma perspetiva geral e cronológica um estudo que articula a questão dos direitos humanos e do direito à habitação, com o desenvolvimento das políticas de habitação em Portugal, sendo enriquecido ainda por uma reflexão sobre os desafios atuais no domínio habitacional.

A ótica cronológica guia o leitor num trajeto sinuoso pelos 200 anos de construção e desenvolvimento das bases das proto políticas e políticas públicas habitacionais em Portugal, fazendo em momentos chave, paralelismos com o que foi contruído em termos de habitação e modelos de cidade em Portugal e noutros países da Europa, denotando discrepâncias ideológicas e temporais.

Através de uma análise cuidada das políticas de habitação pública, privada, de reabilitação e de arrendamento em Portugal, o estudo em questão foca-se nos direitos humanos patentes nas Constituições Portuguesas - e.g. Constituição de 1822, Carta Constitucional de 1826, Constituição de 1838, Constituição de 1911, Constituição de 1933 e Constituição de 1976.

Fonte: Arquivo Histórico Parlamentar (AHP) - Exposição Virtual Periódica PERCURSOS. Consultado a 04 de Abril de 2022. Disponível em: https://www.parlamento.pt/Parlamento/Paginas/PercursosConstituicao.aspx

Figura 1 Constituições Portuguesas desde 1822 até 1976 

Os encadeamentos entre as principais temáticas permite ao autor não só refletir sobre o papel da habitação perante os direitos humanos, como possibilita aos leitores uma clarificação dos múltiplos significados da habitação - e.g. como abrigo, bem essencial, ativo financeiro, status social, lugar de identidade, entre outros - e uma ampla perceção sobre o desenvolvimento das políticas de habitação como direito constitucional.

A temática das políticas habitacionais patente nesta obra não é isolada de anteriores publicações do autor (e.g. “O arrendamento em Portugal desde meados do século XIX: pequena síntese” (2019a), “Política de habitação social em Portugal: de 1974 à actualidade” (2019b), “Políticas de habitação 200 anos” (2018) e “Da Musgueira à Alta de Lisboa: Recomposição Social e Urbana” (2015)). Assim, esta obra emerge de uma reflexão continuada sobre a temática das políticas habitacionais, agora articulada com a questão dos direitos humanos e, em particular, com o direito à habitação.

O direito à habitação visto nos últimos 200 anos através das Constituições Portuguesas e das Políticas de Habitação

O livro estrutura-se em quatro partes e dez capítulos, sendo precedidos pela nota do autor e introdução e sucedidos pelo posfácio.

A introdução, apresenta ideias-chave importantes para a compreensão da temática no geral, sendo elas: i) a habitação como um direito consagrado e fundamental; ii) o esclarecimento do papel fundamental da habitação na vida quotidiana das populações e iii) as declarações, cartas, protocolos, convenções, conferências fóruns e relatórios relacionado com os direitos humanos, entre 1948 até 2017. Recomenda-se vivamente a leitura destes conceitos, com particular destaque para a sistematização do terceiro ponto.

O posfácio apresenta-se como um texto isolado e escrito à posteriori, que atualiza as questões relacionadas com a articulação entre direitos humanos e o direito à habitação, bem como o agudizar do problema da habitação nos últimos 3 anos (2019, 2020 e 2021), contemplando os desafios imprevistos que sobressaíram com a pandemia da Covid-19. O autor salienta que a reflexão realizada no anterior capítulo (capítulo X), escrita em 2018, pode parecer datada face aos atuais acontecimentos que suspenderam grande parte dos processos em curso. Ainda assim, nesta curta reflexão atualizada são destacados temas importantes para melhor enquadrar a urgência da atual questão urbana. No final do livro são incorporadas a seleção de referências bibliográficas e a lista de siglas.

É com certeza uma casa portuguesa: a alegria da pobreza, está nesta grande riqueza, de dar e ficar contente

A primeira parte, intitulada de ‘Pequena retrospetiva às políticas de habitação em Portugal’, divide-se em dois capítulos, nos quais o autor analisa as Constituições Portuguesas, desde 1822 a 1933, fazendo um paralelo entre elas relativamente aos direitos humanos e às políticas debatidas e/ou promulgadas nesse período.

Se no período Monárquico, Republicano e da Ditadura Militar existiu um fator comum relativamente à garantia da habitação - consagrada como sendo inviolável, tanto enquanto asilo ou enquanto casa - no período do Estado Novo esta garantia aparece aclarada “num estilo mais formal e menos proclamatório do que os textos constitucionais liberais” (Antunes, 2021, p.49). No título III da constituição de 1933, referente à família, no que toca à questão habitacional encontram-se consagrados “princípios tradicionalistas, conservadores e com apelos nacionalistas e à raça” (Antunes, 2021, p.50). Ou seja, apoiado no esboço “elementar e embrionário dos direitos sociais, defendia-se que o apoio à constituição de lares independentes com condições de salubridade cabia aos poderes central e local, assim como a instituição do casal de família.” (Antunes, 2021, p.50). Outro ponto a destacar é a questão da propriedade que se consagra como função social.

Neste sentido, o autor conclui que “as constituições oitocentistas foram fundamentais para consolidar vários princípios, tais como a liberdade de expressão, a propriedade privada (submetida ao bem comum, prevendo-se a expropriação e a indeminização) (…), no domínio habitacional, os textos constitucionais portugueses garantiam a inviolabilidade do domicílio e o direito de propriedade privada (…)” (Antunes, 2021, p.33). As constituições limitaram-se a seguir os mesmos princípios protecionistas e liberais, com exceção da Constituição de 1933, que suspendeu direitos fundamentais adquiridos nas constituições liberais, num evidente retrocesso civilizacional.

Em suma, durante os 41anos de Estado Novo perdeu-se “a oportunidade de abraçar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pelas Nações Unidas, em 1948, que versava sobre a importância da habitação para o bem-estar humano” (Antunes, 2021, p.66), bem como não se desenvolveram robustas políticas sociais, particularmente no pilar da habitação.

Quanto aos projetos-lei de 1883/1908 e 1914/1915 - nunca operacionalizados - surge o que o autor considera como as proto políticas habitacionais. Foram apresentados nove projetos-lei (sete deles durante o período Monárquico e outros dois durante a Primeira República), que deixaram um importante papel na “erudita discussão teórica e inclusão de extensos relatórios1, [sobre] os debates entre a promoção direta e indireta2, a discussão entre a construção de casas unifamiliares ou de edifícios coletivos, a disputa entre o arrendamento e a propriedade resolúvel, a maior precisão jurídica dos projetos apesentados no século XIX e a assunção de preocupações mais holísticas3” (Antunes, 2021, p.37).

Sem nenhuma política publicada até então, foi no interregno Sidonista, em 1918, que se promulgou a primeira política habitacional, “Casas Económicas4. Ainda, nesse mesmo ano, foi promulgado um decreto para construção de bairros operários associados ao Ministério do Trabalho5, foi continuada a tendência de liberalização das rendas, bem como a isenção de contribuição predial por um período de 10 anos e a criação o Fundo Nacional de Construção e Rendas Económicas. Em 1928, foi retomada pelo poder central a ideia da política de “Casas Económicas”6 de 1918, bem como em 19337, sendo que esta última diverge das suas antecessoras, tanto no processo de financiamento, como de construção e atribuição das casas.

Fora do meio rural existiram duas outras políticas habitacionais. A primeira promovida pela Junta de Colonização Interna (1936), ligada ao meio rural e aos territórios do interior do país e que fomentava colónias agrícolas que “tinham como objectivos fixar população e uniformizar o território através do redimensionamento da propriedade.” (Guerreiro, 2022, p. 8). E a segunda promovida pela Junta Central dos Pescadores (1946), ligada ao território do litoral e que fomentava bairros piscatórios.

Em 1945 foram promulgadas outras políticas intituladas Casas para Famílias Pobres8 e Casas de Renda Económica9, que se destinavam ao meio urbano e principalmente aos eixos industriais. Em 1947, promulga-se uma outra política, Casas de Renda Limitada10, com o intuito de fomentar a participação dos privados. Dentro deste período falta ainda evidenciar a Lei do Inquilinato11, o Regulamento Geral das Edificações Urbanas12 (RGEU) e o Regime de Propriedade Horizontal13.

Sobre este panorama, é possível concluir que não foram promovidos instrumentos de planeamento que permitiram a construção em larga escala de parque habitacional público para mitigar o problema da habitação nas camadas da população com rendimentos mais baixos. Destes 152 anos (1822-1974) o autor conclui que “quase tudo ainda estava por fazer no que respeita às políticas sociais. No que refere em concreto às políticas habitacionais, os passos mais significativos foram depois de 1933, mas sempre numa ótica corporativa e de sobrevivência do próprio regime.” (Antunes, 2021, p.67).

Liberdade: Só há liberdade a sério quando houver a paz, o pão, habitação

A segunda parte, intitulada ‘Revolução e políticas de habitação’ é composta por um capítulo, no qual são analisadas as políticas habitacionais durante a transição democrática.

Em 1974, como seria de esperar face ao retrato dos tempos anteriores pautados pelos graves problemas habitacionais, acrescem também as carências de equipamentos coletivos, de serviços públicos e de transportes, bem como de infraestruturas básicas, como água, eletricidade e saneamento. A mobilização social em manifestações foi um fator determinante para que a habitação estivesse na agenda política. Assim, logo no I Governo Provisório, foi integrada uma menção para o “financiamento de equipamentos coletivos, com especial incidência no sector da habitação (…)” (Diário do Governo, 1974, p. 625) e perante tal urgência foi criada, dentro do Ministério do Equipamento Social e do Ambiente, a Secretaria de Estado da Habitação, liderada pelo arquiteto Nuno Portas (n. 1934).

Contudo, o “clima de efervescência revolucionária, reivindicativa e emancipatória” (Antunes, 2021, p.74) levou a fenómenos como a apropriação pública e privada de terrenos e habitações por parte de populares (as chamadas ocupações14), que foram legitimadas mais tarde e depois revertidas. Segundo o autor, o tema das ocupações revela-se um caso paradoxal, no sentido em que “neste embate, o direito de propriedade privada tem tendência a sobrepor-se, pois o direito à habitação não deve depender da usurpação ou condicionamento de outros direitos inscritos no plano nacional e/ou internacional, mas sim da exigência da organização políticas públicas de habitação que possibilitem o acesso a habitação consigna para todos.” (Antunes, 2021, p.75).

A organização popular em “comissões de moradores (…), verdadeira matriz de onde saíram, devido à adesão ao programa de Serviço Ambulatório de Apoio Local (SAAL)15, as associações de moradores” (Faria, 2009, p.158), foi o impulsionador para a mitigação do problema da habitação. Assim, destaca-se esse programa como a política com maior relevância neste período da transição democrática. Em oposição às políticas do regime ditatorial, o SAAL promovia a colaboração e participação das populações nas transformações dos seus bairros e casas, sendo especialmente dirigia para as classes mais carenciadas. Segundo Antunes e em linha com outros autores, esta é uma política de habitação social participada, não só por apelar à participação dos moradores, como também pelos processos de autoconstrução da habitação e habitat urbano.

Outra política lançada no ano de 74, foram os Contractos de Desenvolvimento para a Habitação16 (CDH). A medida previa a construção através da promoção privada e oferecia benefícios como a criação de “bolsas de casas”17 e a “compra de casas”18. No mesmo ano foram promulgados dois regimes, o Regime Jurídico da Cooperação habitacional19, e o segundo o Regime de “Cooperativas Económicas (CHE)20. Por fim, também foi criado um programa habitacional da Comissão para Alojamento dos Retornados21 e promulgadas várias leis sobre o mercado de arrendamento22.

Em conclusão, o período do Processo Revolucionário em Curso (PREC), segundo o autor, “foi marcado por um clima de instabilidade e complexidade, em que os ideais político-ideológicos mais revolucionários (…) tiveram forte repercussões no mercado de habitação e legitimaram fenómenos heterogéneos, como a ocupação de casas devolutas, a constituição de comissões de moradores, o domínio do cooperativismo, o estímulo da Democracia direta, o congelamento das rendas e o dever de arrendar” (Antunes, 2021, p.80).

Uns vão bem outros mal: Quem governa faz tábua rasa, mas lamenta com fastio a crise da habitação

A terceira parte, intitula-se ‘O direito à habitação ao abrigo da Constituição da República Portuguesa’ e divide-se em seis capítulos, nos quais são analisadas a implementação do direito à habitação na Constituição da República Portuguesa (CRP) de 1976 e as políticas de habitação promulgadas após a CRP.

A grande mudança, quanto ao direito à habitação, está no seu reconhecimento no Art. 65 da CRP e na sua consagração como um direito social. A outra grande alteração é a garantia estatal do mesmo - seja tanto na construção de programas de promoção direta ou indireta - a articulação com outras políticas, tais como as de ordenamento do território, mobilidades e equipamentos de apoio á população e por fim, a questão da nacionalização ou municipalização dos solos quando necessário.

Em suma, o direito constitucional à habitação está em linha com as experiências internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, a Carta Social Europeia, de 1961 e o Pacto Internacional dos Direitos económicos, Sociais e culturais, de 1966 e apresenta-se como sendo mais progressista.

Sobre as alterações institucionais dos institutos, que estudam e concretizam as políticas habitacionais, é importante destacar a sua instabilidade e as suas posturas interventivas, particularmente na questão das competências e responsabilidades que assumiram. Estas alteraram as formas de fomento, perante as suas descentralizações constantes.

Quanto às políticas habitacionais no período da democracia, o autor divide-as em quatro categorias: i) políticas de promoção direta - promoção central e municipal - ii) políticas de arrendamento, iii) políticas de reabilitação e iv) políticas de promoção indireta com apoio do estado -promoção de cooperativas, instituições particulares de solidariedade social, empreitadas privadas e apoios à pessoa.

A questão da promoção direta beneficiou do entendimento do conceito de habitação social23. Com a portaria que definiu este conceito, ficou também definido juridicamente os parâmetros para a construção de habitação social24, concretizados no documento Recomendações Técnicas para a Habitação Social (RTH), de 1985. Durante o período democrático a grande fatia de construção de promoção direta foi para as políticas de realojamento. Em 1987 e 1988, promulgaram-se os diplomas que estabeleciam o Regime de cooperação entre a administração central e local em programas de habitação social e o Regime de financiamento de habitações sociais em operações de realojamento, destinados a aquisição própria, assumindo assim o estado um papel de “financiador e gestor, sendo que a promoção pública foi definitivamente descentralizada com responsabilidade do poder local” (Antunes, 2021, pp. 125-126).

A grande questão para a promoção direta foi a “erradicação das barradas”, que levou ao desenvolvimento dos programas Plano de Intervenção a médio Prazo25 (PIMP) e Programa especial de Realojamento26 (PER). O programa PIMP “foi uma espécie de experiência-piloto de cooperação pública para o alavancar das operações de realojamento” (Antunes, 2021, p.130) e foi fundamental para servir como modelo para os contratos-programa assinado entre os municípios, o INH [Instituto Nacional da Habitação] e o IGAPHE [Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado], no âmbito das iniciativas de realojamento” (Antunes, 2021, p.132).

Com a entrada para a CEE e com a maior visibilidade do grave problema habitacional, principalmente nos grandes centros urbanos, seguiu-se o PER, tendo o PIMP como modelo. “As habitações construídas ou adquiridas ao abrigo do PER deviam respeitar os limites estipulados para a habitação a custos controlados e ser arrendadas em regime de renda apoiada (…), deixando em aberto a possibilidade de alienação das habitações" (Antunes, 2021, p.134). O programa foi ainda alargado a outras entidades, nomeadamente ao mercado privado, com o PER famílias (1996) e às cooperativas de habitação (2001).

Em suma, o PER consolidou em alguns municípios das áreas metropolitanas um alargado parque habitacional, devido à construção de habitação pública e cooperativa. Contudo, também “acabou por criar novos problemas urbanos, visíveis nos bairros municipais edificados, muitos deles de grandes dimensões, espacialmente isolados e concentradores de fenómenos de pobreza e de exclusão multidimensionais e acumulativos” (Antunes, 2021, p.137).

No início do século XXI, em termos de políticas de realojamento, estas basearam-se em políticas de reabilitação com o Programa de Financiamento para Acesso à Habitação27 (PROHABITA), que previa não só resolver situações de grave carência habitacional, como situações de calamidade e outras situações de emergência. Com este programa, que se estendeu para lá das áreas metropolitanas, foi possível produzir milhares de fogos municipais, privilegiando a reabilitação ao invés da construção nova.

Sobre a evolução das políticas de reabilitação durante o período democrático, o autor conclui que só ganharam maior relevância depois da Revolução dos Cravos, com o Programa Especial para a Reparação de Fogos ou Imoveis em Degradação28 (PRID), sendo um programa que promovia não só a melhoria das habitações, como também das redes públicas elementares em todo o território nacional.

Destaca-se ainda a Iniciativa Bairros Críticos29, que apesar do seu fim prematuro (2005-2012), experimentou em três bairros de habitação pública com fragilidades - Cova da moura na Amadora; Lagarteiro no Porto e Vale da Amoreira na Moita - uma metodologia de ação integrada, que potenciava a aproximação dos agentes locais e da população residente. Também o Plano Estratégico da Habitação 2007-2013 (não aprovado) e a Estratégia Nacional Para a Habitação 2015-2031, são documentos relevantes para atestar a premência da necessidade de resolução do problema da habitação, refletindo de forma holística sobre o sector habitacional.

Relativamente aos instrumentos para a promoção de reabilitação da habitação e da cidade, sucederam-se vários Planos e Programas perante um cenário de degradação dos centros históricos desde os anos 80, que o autor enuncia no livro.

Quanto às políticas de arrendamento, as alterações estruturais viriam a acontecer entre 1985 e 2000, “alterações que flexibilizaram, liberalizaram e modernizaram em definitivo as políticas de arrendamento e, por consequência, o mercado da habitação do país” (Antunes, 2021, p.160), nomeadamente com a Lei das Rendas30, o Regime de Arrendamento Urbano31 (RAU), o Incentivo ao Arrendamento Jovem32 (IAJ), a Legislação Própria do Regime de Renda Apoiada33.

No início do século XXI, abre-se o caminho para a liberalização total das políticas de arrendamento, com a promulgação do Novo Regime de Arrendamento Urbano34 (NRAU) e com a revisão do mesmo35, no contexto do Memorando de Entendimento sobre as Condicionantes de Política Económica, assinada entre o Governo Português e o Fundo Monetário Internacional, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu (Troika).

Quanto à promoção indireta e de apoio em Democracia, são destacadas três políticas: as Cooperativas de Habitação, os Contratos de Desenvolvimento para a Habitação e a Habitação a Custos Controlados (HCC). Os Instrumentos de Apoio à Pessoa, como o Crédito Bonificado e o Apoio ao Arrendamento são igualmente analisados nesta parte.

Não sei o que é que fica: Habitação é fratura exposta, (…) o problema é haver uma casa para 100

A quarta e última parte, intitulada ‘O direito à habitação em Portugal’ é composta por um capítulo. Nele o autor reflete sobre os direitos humanos alcançados durante o período da democracia portuguesa, em articulação com o direito à habitação. Como tal, considera-se este o capítulo mais inovador do livro, não só por transmitir um precioso contributo sobre o legado das políticas habitacionais, mas também pelas reflexões sobre o atual estado da habitação e da plena consagração do direito habitacional como direito humano consagrado na constituição de 1976.

Segundo o autor, o direito à habitação deve ser entendido numa perspetiva universal, dada a sua integração no vasto conjunto dos direitos económicos, sociais e culturais. No que toca ao caso português, o autor apresenta as suas reflexões e conclui que, não obstante as imperfeições e ausência de estratégias concertadas, as políticas habitacionais procuraram criar mecanismos socialmente abrangentes. O autor aponta para a inconsistência, a casuística, a incipiência e até a contrariedade entre políticas. Acrescenta que na “nossa democracia as políticas de habitação foram dominadas pela bonificação de juros no crédito à habitação; sem anúncio formal, essa foi a estratégia adotada para solucionar o problema da habitação e os desequilíbrios do mercado.” (Antunes, 2021, p.174). Quanto ao fator tempo, o autor destaca-o como essencial, na medida que não se tem perante o problema da habitação uma abordagem proactiva e atempada, numa ótica da prevenção, mas sim numa ótica de modelo reativo, que peca por respostas tardias e desatualizadas.

Muito se evoluiu nos últimos 40 anos, mas ainda continua muito por fazer no futuro - como referem os recentes dados do Eurostat (2018), o relatório anual “O Estado da Nação e as Políticas Públicas” (2019) e os dados de habitação da Área Metropolitana de Lisboa da plataforma “LXHabidata” (2022) - para garantir não só uma habitação digna, mas também o habitat urbano adequado. Assim, perante velhos e novos desafios o autor afirma que “já não é possível responder apenas com as premissas do direito à habitação, sendo necessário atender, também, ao direito à cidade” (Antunes, 2021, p.181).

Por fim, o autor deixa uma última nota sobre a mercantilização dos direitos humanos e do direito à habitação, no sentido da sua dependência face ao mercado livre. É referida a necessidade de salvaguardar estes direitos através do poder público, ressalvando a função social da habitação e “assegurando relações de equidade entre as várias partes que compõem a vida da cidade, protegendo os indivíduos em situações de maior vulnerabilidade e colocando os interesses da comunidade acima dos interesses particulares.” (Antunes, 2021, p.185).

Projetar o futuro das políticas habitacionais: Repercussões multidimensionais diversas

O livro de Gonçalo Antunes oferece um discurso sobre os direitos humanos - como valores para a construção de uma sociedade civilizada, desenvolvida, livre e democrática - articulado com o direito à habitação. Demonstra que sem uma habitação adequada e digna, o bem-estar humano não pode ser garantido. Afere ainda que a melhoria das condições habitacionais está intimamente ligada com as conquistas da democracia portuguesa e a integração do país na união europeia, ressalvando que ainda muitos problemas e desafios subsistem, tendo em conta o percurso já feito.

Dada a exaustiva compilação de informação, este livro apresenta-se como um importante contributo no campo das políticas habitacionais e do direito à habitação, em conciliação com as constituições portuguesas e com as declarações e protocolos internacionais dos direitos humanos. Adiciona uma reflexão maturada sobre o percurso dos 200 anos das políticas de habitação, que compreende as possíveis soluções a adotar para responder aos atuais e novos desafios para garantir o direito à habitação e à cidade.

Não obstante a preocupação em produzir um livro dirigido a um público-alvo mais abrangente, reconhece-se que é uma obra de grande relevo para o contexto académico e que servirá de referência tanto para investigações no âmbito dos estudos urbanos, como também para o desenvolvimento de políticas públicas, sociais e económicas em torno das temáticas habitacionais, tal como instiga o autor no posfácio, evidenciando as questões em torno do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).

Agradecimentos

Este trabalho é apoiado pela FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, como parte de um projeto de doutoramento intitulado "Habitação em Democracia": Estruturas morfológicas e sociais das políticas de habitação na Área Metropolitana de Lisboa" [Número da subvenção DFA/BD/5568/2021].

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1Dos quais eram descritas as condições de vida dos bairros populares das principais cidades do país.

2Com clara vantagem para a segunda.

3Condições das habitações, qualidade construtiva, integração de equipamentos de apoio `população, regimes especiais de expropriação, acesso a materiais de construção, etc.

4Decreto nº. 4137, de 25 de Abril de 1918.

5Decreto nº. 5397, de 14 de Abril de 1919.

6Decreto n. 16055, de 22 de Outubro de 1928.

7Decreto-lei 23052, de 23 de Setembro.

8Decreto-Lei n.°34 486, de 6 de Abril de 1945.

9Lei n. 2007, de 7 de Maio de 1945.

10Decreto Lei n. 36 212, de 7 de Abril de 1947.

11Lei n. 2030, de 22 de Junho de 1948.

12Decreto Lei n. 38 382, de 7 de Agosto de 1951.

13Decreto Lei n. 40 333, de 14 de Outubro de 1955.

14Decreto-lei 198-A/75, de 14 de Abril de 1975.

15Despacho DD4630, de 6 de Agosto de 1974.

16Decreto-lei nº. 663/74, de 26 de Novembro de 1974.

17Serviço municipal ao qual cabia a comercialização das habitações.

18As autarquias garantiam a compra das casas não comercializadas.

19Decreto-lei nº. 730/74, de 20 de Dezembro de 1974.

20Decreto-lei nº. 737-A/74, de 23 de Dezembro de 1974.

21Decreto-lei nº. 663/74, de 26 de Novembro de 1974.

22Decreto-lei nº. 217/74, de 76 de Maio de 1974 e Decreto-lei nº. 445/74, de 12 de Setembro de 1974.

23Portaria nº. 580/83, de 17 de Maio.

24Mais tarde o termo foi alterado para habitação a custos controlados.

25Decreto-lei 226/87, de 6 de Junho. Programa destinado ao município de Lisboa.

26Decreto-Lei nº. 163/93, 7 de Maio. Programa destinado ás áreas metropolitanas de Lisboa e Porto.

27Decreto-Lei nº. 135/2004, 3 de Junho.

28Decreto-Lei nº. 704/76, de 30 de Setembro.

29Resolução do Conselho de Ministros n.º 143/2005 e Resolução do Conselho de Ministros n.º 189/2007.

30Lei nº. 46/85 de 20 de Setembro.

31Decreto-Lei nº. 321-B/90, de 15 de Outubro.

32Decreto-Lei n.º 162/92, de 5 de Agosto.

33Decreto-lei nº. 166/93, de 7 de Maio

34Lei nº. 6/2006, de 27 de Fevereiro.

35Lei nº. 31/2012, de 14 de Agosto.

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