Introdução
As denominadas “ilhas” do Porto são estruturas habitacionais originárias da revolução industrial, localizadas no interior dos quarteirões e, desprovidas, em grande medida, de condições mínimas de habitabilidade (Figura 1). Desde a sua origem, estas habitações com reduzidas áreas - na sua génese, com cerca de 20m2 em média, sem casa de banho no interior, nem iluminação e ventilação naturais em todos os compartimentos - foram identificadas como um problema habitacional grave. Contudo, a falta de alternativas para as cerca de 10.000 pessoas - aproximadamente 5% da população da cidade - que hoje se estima residirem em “ilhas”, (Breda & Conceição, 2015) inviabilizou a sua erradicação, ao passo que a profundidade das obras necessárias e a falta de recursos de proprietários e inquilinos impediram a resolução deste problema. Durante mais de 100 anos, a situação perpetuou-se (Borges Pereira, 2003), mas recentemente, após longo tempo de negação por parte das entidades públicas, ganhou o seu reconhecimento e a necessidade de reabilitação, onde esta apresenta viabilidade, tornou-se incontornável.
O presente artigo apresenta precisamente um trabalho em curso sobre as ilhas, promovido a partir de várias instituições públicas, que pretende dar, pela primeira vez, uma resposta qualificada e em grande escala à realidade antes descrita. Por um lado, pretende-se expor algumas das práticas desenvolvidas e, dessa forma, permitir o escrutínio da ação do poder público, por outro, evidenciar as dificuldades concretas sentidas neste tipo de intervenções e facilitar a replicação de aspetos úteis em outros contextos similares. Parte-se de dois programas resultantes da institucionalização de experiências já apresentadas em outros lugares (Varea Oro et al., 2018a, 2018b, 2019a, 2019b), que importa restituir, e nos quais os autores estão envolvidos. Esta restituição permite apresentar a natureza não linear destes processos, para os quais concorrem circunstâncias muito diversas, como os mandatos políticos1 e as ferramentas que delas decorrem, mas também as alterações imprevistas das circunstâncias2, tendencialmente esquecidas pelas lentes puramente académicas, disciplinares ou burocráticas.
Assim, este trabalho está construído sobre as aprendizagens retiradas do “Programa Ponte”, materializado entre 2019 e 2022, a partir de um contrato de cooperação entre o Município do Porto e a Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto (FAUP), e o programa “Estratégias Específicas para a regeneração habitacional das Ilhas do Porto”, desenvolvido entre 2020 e 2022 pela Porto Vivo, Sociedade de Reabilitação Urbana dentro do programa AIIA- Porto (Abordagens Integradas para a Inserção Ativa). O primeiro visa atingir um conjunto de objetivos articulados entre si, nomeadamente: constituir uma entidade mediadora que agilize a articulação entre os vários agentes envolvidos na reabilitação das ilhas; criar um enquadramento arquitetónico, urbanístico e financeiro, propício para a correta reabilitação destes núcleos; e produzir e transmitir conhecimento útil para o desenvolvimento das operações urbanísticas a desenvolver. O segundo programa, apoiado numa equipa multidisciplinar e no trabalho em rede das instituições locais, pretende dar a conhecer os problemas dos residentes em ilhas, desenvolver modelos integrados de intervenção sócio espacial que possam ser posteriormente executados pelo Município e potenciar o acesso dos residentes aos recursos existentes ou a mobilizar.
O texto está estruturado em quatro partes. Primeiro, será realizada uma introdução histórica que, colocando a génese e desenvolvimento das ilhas em diálogo com as grandes propostas de intervenção sobre estes espaços, servirá para evidenciar os problemas existentes e o porquê da sua persistência, bem como orientar as linhas de intervenção necessárias à sua resolução. Em segundo lugar, a realidade atual destes núcleos será contextualizada dentro do conceito de vulnerabilidade urbana que, em diálogo com os programas e respostas criadas, permite perceber as lacunas cujo preenchimento viabiliza a ação transformadora do poder público. Em seguida, apresentamos uma leitura prospetiva do território e dos seus habitantes que, decorrente das metas traçadas e ações já desenvolvidas, permite definir as principais condicionantes à intervenção. Finalmente, apresenta-se um balanço das grandes opções tomadas para ultrapassar os entraves identificados.
1. As ilhas do Porto: uma expressiva manifestação das escolhas do poder público
Apesar da complexidade da matéria, é possível realizar um enquadramento histórico da génese e desenvolvimento das ilhas, desde o seu surgimento até aos dias de hoje, a partir de apenas quatro marcos temporais que, pelas suas caraterísticas, evidenciam a importância de uma das principais variáveis em causa: as principais tendências do poder público em relação a este fenómeno. A escolha desta narrativa, em detrimento de outras que também seriam possíveis, tem a ver com o argumento que se vai defender neste trabalho: a necessidade de vincular a resolução dos problemas nas ilhas a dois requisitos de natureza operacional. O primeiro tem a ver com o grau de envolvimento das políticas públicas na criação de um cenário alternativo ao existente no terreno, que deve ser profundo. O segundo relaciona-se com a lente utilizada para ler a situação e implementar um plano de ação coerente tanto com os objetivos traçados como com a natureza dos agentes envolvidos e a envolver. Como se verá mais à frente, apenas uma convergência destes dois requisitos terá condições para tirar as boas intenções do papel e concretizar a mudança desejada, fortemente balizada pela realidade sentida no território das ilhas, pormenorizada no ponto 1.2.
1.1. Quatro marcos na génese e evolução das ilhas
O primeiro dos marcos localiza-se nos finais do século XIX, corresponde a uma ausência do poder público, manifesta-se na proliferação das ilhas e revela uma leitura das ilhas que as identifica como uma oportunidade para resolver o grave défice de alojamento para as classes operárias. A ausência de habitação na cidade capaz de absorver a enchente demográfica causada pela revolução industrial encontrou um forte aliado nos regulamentos municipais que, à data, não se aplicavam para as construções no interior dos quarteirões. Os efeitos desta convergência são claros e manifestam-se no surgimento e crescimento exponencial desta tipologia habitacional, acessível às massas de trabalhadores graças às suas caraterísticas precárias (Figura 2). É importante notar que, entre 1864 e 1900, a população do Porto praticamente duplicou, passando de 90.391 para 167.955 habitantes, e que, nesse período, 63% do volume de construção correspondeu à edificação de ilhas (Teixeira, 1985).
O segundo marco corresponde a um momento onde as ilhas são lidas como um fenómeno de saúde pública, constituindo o higienismo como a plataforma à volta da qual se pensam e executam as soluções para os problemas identificados. Com a tímida promoção de habitação de maior qualidade para uma minoria operária, promovida primeiro pela iniciativa privada e depois pela Câmara Municipal e pelo Estado - precisamente com o intuito de inspirar os privados, que nunca chegaram a acompanhar os desejos da administração pública - convivem outras duas abordagens. A Campanha de salubrização das ilhas do Porto, na década de 1940, procurou intervir direta e cirurgicamente sobre estes núcleos, reduzir a densidade de ocupação, demolindo uma em cada três casas, e promovendo melhores condições de iluminação e ventilação. O Plano de Melhoramentos3, associado ao plano Auzelle e à expansão da cidade, produziu habitação em massa na periferia com o objetivo de erradicar as ilhas nas localizações centrais.
O terceiro período, que abrange espaço temporal entre 1974 e 1976 e assume as limitações das estratégias que não intervêm, de forma robusta e consistente, nas localizações centrais onde residem as populações com menos recursos, representa um momento de valorização tanto das ilhas como dos seus moradores. Assim, o processo Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL), no Porto, visou a criação de alojamentos em terrenos expectantes próximos dos locais de intervenção para, numa segunda fase, proceder ao realojamento temporário dos moradores e, imediatamente, reabilitar as ilhas onde viviam, melhorando substancialmente as condições de vida. Apesar do caráter inovador do projeto - que viabilizava uma ponte direta entre o Estado Central e os moradores, via financiamento às brigadas técnicas, delegando nas Câmaras apenas a estruturação dos terrenos - o processo SAAL não conseguiu perdurar no tempo devido à fragilidade do seu enquadramento institucional, o que impediu um compromisso duradouro de todos os envolvidos.
Finalmente, encontramos o período que chega até os dias de hoje, caraterizado por duas abordagens diferentes. Até 2013, o debate técnico sobre as ilhas pode considerar-se residual, destacando-se a atitude do Município que visava a erradicação desta tipologia, quer a partir de ações diretas (principalmente da demolição de ilhas municipais), quer a partir de ações indiretas (por falta de enquadramento urbanístico no Plano Diretor Municipal-PDM). Após esta data, assistimos novamente a um momento de valorização desta tipologia, com um poder municipal que retomou a estratégia de servir de exemplo aos privados, pela reabilitação das ilhas de que era proprietária. Como em momentos passados, esta estratégia de comunicação não resultou até ao momento, por não ter existido, pelo menos até 2018, um conjunto de ferramentas financeiras, regulamentares e procedimentais, que permitissem aos proprietários concretizar as operações desejadas.
1.2. A atual realidade do espaço físico e social das ilhas do Porto
Resultante desta história de ciclos e contraciclos, herda-se uma paisagem marcada pela precariedade, que pode ser ilustrada a partir de alguns dados de malha fina trabalhados ao abrigo do programa AIIA. Para esse efeito, serão mobilizadas algumas informações retiradas do levantamento sócio espacial realizado em 2020 na zona da Lomba, que incidiu sobre 19 ilhas, que comportam 213 casas, 132 das quais ocupadas - 11 destas sem uso habitacional permanente. 97 dos 122 agregados residentes aceitou colaborar no estudo, o que configura uma amostra de 177 pessoas. Foram utilizadas oito dimensões para caracterizar o tecido social residente: idade, escolaridade, rendimentos, situação face ao emprego, número de elementos do agregado familiar, tempo de permanência na habitação, presença de doença crónica e valor da renda (Vieira et al., 2022).
Em termos de classe etária, verifica-se uma predominância de pessoas entre os 55 e 74 anos, sem diferenciação significativa da distribuição por sexo. Abaixo destes escalões etários há uma folga e a distribuição volta a subir em torno da classe etária dos 25 aos 34 anos. A escolaridade traz também alguns aspetos a reter: cerca de 15% da população não dispõe de nenhum grau de escolaridade, 6% não sabe ler nem escrever e 30% detém apenas quatro anos de escolaridade. No outro extremo, estão 5% que possuem o grau académico de licenciatura. Nesta população, a maioria (39%) é reformada ou pensionista e 27% está empregada. A taxa de desemprego é de 14%, isto é, somente 2/3 da população residente tem alguma fonte estável de rendimento, embora escasso: cerca de 80% da população vive com rendimentos abaixo dos 665 euros por mês.
As rendas variam entre os 2,5€ e os 640€, sendo que 85% se encontram abaixo dos 262,5 euros/mês. Em termos de chegada e permanência no edificado, a generalidade (55%) habita há mais de 20 anos e uma parcela muito significativa (36%) reside há menos de 5 anos. O estudo permitiu destacar dois grupos com fragilidades acrescidas: idosos e desempregados. No primeiro grupo, os principais problemas centram-se em torno da saúde, baixos rendimentos, carência alimentar, falta de conforto habitacional, falta de apoio familiar e de redes informais de apoio. No segundo grupo, encontram-se os problemas de desempregados ou emprego precário mal remunerado, de dependência de subsídios e dificuldade de acesso ao mercado de trabalho fruto das baixas qualificações. Aproximadamente 54% dos residentes inquiridos nos dois grupos tem diagnosticada, pelo menos, uma doença crónica. Além destas conclusões, é possível, face à realidade apresentada, intuir que muito dificilmente esta população poderá por si, a curto ou médio prazo, sair do ciclo de pobreza e melhorar as suas condições de vida para patamares condignos.
O estudo às estruturas físicas conduz a uma situação igualmente precária do ponto de vista espacial. A análise realizada a 114 casas de ilha na zona da Lomba revela duas dimensões importantes relacionadas com o edificado (Varea Oro, 2022). Do lado das condicionantes físicas, falamos de um parque de habitação pouco ocupado (cerca de 40% dos fogos estão desabitados) e com escassa ou nula manutenção (41% encontra-se em mau ou péssimo estado de conservação, com apenas 17% em bom ou excelente estado de conservação). Cerca de 20% dos fogos ainda não dispõe de instalações sanitárias dentro de casa e 67% apresenta infiltrações de humidade significativas. A área das casas oscila entre os 32m2 para um T1 e os 41 para um T3, isto é, respetivamente, 40% e 55% menos de área do que o previsto para estas tipologias no Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU). A inexistência de funções essenciais no interior dos fogos acaba por ter, como consequência inevitável, a proliferação de anexos clandestinos que, localizados no exterior, contribuem para a excessiva impermeabilização do solo e a perda de condições de iluminação e ventilação naturais.
Do lado das razões que explicam esta precariedade física encontramos um conjunto de constrangimentos e dinâmicas que, a permanecer, irão dificultar enormemente a reabilitação destes núcleos. Em relação aos constrangimentos, identifica-se o peso que, nesta precariedade, tem a configuração espacial existente (dimensão das casas e do loteamento, bem como as dificuldades em aumentar as áreas das casas sem agravar as desconformidades em relação à ocupação do solo, barreiras arquitetónicas e relações de confronto no interior do quarteirão). Em relação às dinâmicas, verifica-se um aumento da atividade imobiliária que, sem se materializar numa melhoria expressiva das condições de habitabilidade, contribui tanto para um aumento muito significativo dos valores fundiários e de arrendamento como para a fragmentação da propriedade. Estas circunstâncias limitam as possibilidades de ação, tanto pela dispersão de interesses como pelos constrangimentos espaciais decorrentes do novo cadastro, inviabilizando, por exemplo, operações de emparcelamento de casas de ilha ou reabilitações integrais destes conjuntos.
2. Da carência material à vulnerabilidade urbana. Uma proposta de transformação social
Dados como os apresentados na epígrafe anterior, sistematicamente relatados nos levantamentos que periodicamente têm vindo a ser realizados e divulgados, contribuíram para que as ilhas do Porto tenham sido tradicionalmente caraterizadas como núcleos pouco qualificados do ponto de vista urbanístico e habitacional, pautados pela precariedade sócio económica dos seus habitantes (Breda & Conceição, 2015; Loureiro de Matos et al., 2009; Pimenta el al., 2001). Contudo, só com a pandemia causada pelo SARS-Cov-2 é que se tornaram visíveis as causas e as consequências das desigualdades sociais em presença (Varea Oro et al., 2020). A população residente em ilhas tinha menos capacidade para se proteger do vírus - pela exiguidade das casas e pela inviabilidade do teletrabalho -, reagir favoravelmente ao contágio - por, tendencialmente, ser envelhecida e possuir uma saúde mais frágil - ou manter a sua base material de suporte - por não dispor, por exemplo, dos meios de prova formais requeridos para receber os apoios públicos. O facto de a transmissão do vírus ser democrática, mas o seu impacto ser maior na população com menos recursos, chama a atenção para o conceito, mais preciso, de vulnerabilidade urbana.
Este conceito chama a atenção para a combinação de múltiplas dimensões de desvantagem, para a qual concorrem fatores sociodemográficos (envelhecimento, imigração, agregados “atípicos”), socioeconómicos (precariedade e instabilidade laboral, endividamento, desemprego e baixas qualificações) ou residenciais (más condições habitacionais, sobrelotação, fraca acessibilidade, deficiente enquadramento no meio urbano), entre outros (Alguacil, 2006). Estas condições de desvantagem constituem, no fundo, a razão pela qual as situações de risco acabam por se materializar, consolidando, com mais facilidade, um cenário de exclusão (Hernandez Aja et al., 2018; Bruquetas, Moreno, Walliser, 2005). O reconhecimento de que estes grupos estão sujeitos a maiores ameaças e riscos e que têm, em simultâneo, menos mecanismos e margens de manobra para os enfrentar, sublinha a importância da sua prevenção, abrindo a porta a um ponto de vista operativo, isto é, à “aplicação de atuações ou medidas preventivas para que as potencialidades negativas não se tornem finalmente em factos ” (Hernandez Aja et al., 2018) (Figura 3).
2.1. A leitura e abrangência do problema
Uma análise ao sentido de intervenção destas medidas permite-nos desvendar duas grandes linhas de entendimento que remontam ao século XIX. A primeira defende que a pobreza é “um problema individual de pessoas que não sabem ou não podem aproveitar as vantagens que oferece esta sociedade” e a sua conversão em políticas públicas tende a incidir “no investimento em educação e reestruturação dos agregados pobres a partir de comportamentos da classe média, sem alterar a sua situação material, a precariedade dos seus empregos, as suas condições sanitárias e os seus bairros pouco equipados” (Monreal, 1996). A segunda considera tratar-se de um problema social, que não se pode resolver a partir de medidas segmentadas e isoladas, sendo necessário abordar o contexto mais amplo que molda as condições de vida, possibilidades e escolhas dos vários grupos. Neste sentido, o problema da habitação carece de ser abordado como um problema sociopolítico, na medida em que a forma das políticas públicas é consequência direta da correlação de forças dos vários intervenientes (Madden & Marcuse, 2016).
O trabalho aqui apresentado enquadra-se nesta segunda linha de entendimento, assumindo alguns dos pressupostos defendidos por Madden e Marcuse (2016), nomeadamente: que a organização e interesses do Estado poderão ser parte do problema, mas que a sua participação é absolutamente necessária na resolução do problema; que apostar em reformas pontuais baseadas no uso aparentemente neutral da técnica é tão pouco produtivo como aguardar pela chegada de uma improvável “revolução messiânica”, sem fazer nada no entretanto; e que a única abordagem viável é colocar em cima da mesa questões que possam ser resolvidas no mundo real, embora apontando para transformações mais profundas. Aposta-se em duas frentes: por um lado, no envolvimento de uma frente ampla de atores que poderão ter interesses convergentes caso as perguntas sejam colocadas da forma certa; por outro, na técnica enquanto condição de acesso aos recursos, pelo que se deverá democratizar o acesso e a forma como é construída e transmitida.
2.2. Pressupostos para a intervenção
A intervenção nas “ilhas” vem precedida por um crescente descontentamento social face às dificuldades em aceder a uma habitação condigna a custos comportáveis para os agregados, que, por terem atingido a classe média, acabou por ocupar um lugar de destaque na agenda mediática e política a nível nacional. Falamos de um conjunto de manifestações e posicionamentos públicos que abrangeram desde a organização da sociedade civil (Morar em Lisboa, Habita, Stop Despejos, apenas para citar algumas) até relatórios de organismos internacionais - como o da Relatora Especial das Nações Unidas para Habitação Condigna (Farha, 2017) - ou audições parlamentares e resoluções da Assembleia da República. A criação, em 2017, de uma Secretaria de Estado da Habitação (integrada em 2019 no recém-formado Ministério das Infraestruturas e da Habitação) colocou na agenda a emergência de programas de apoio financeiro, entre os quais se destaca o 1º Direito - Programa de Apoio ao Acesso à Habitação (Decreto-Lei n.º 37/2018, de 04 de junho), dirigido à população em carência financeira e em situação de indignidade habitacional.
O curso da ação a nível nacional alimenta e acompanha a situação a nível local, onde a posição do município do Porto em relação às “ilhas” já tinha mudado em 2013, com a reabilitação dos três núcleos de que ainda era proprietária. Contudo, o efeito demonstrativo foi parcial e ficou, naturalmente, circunscrito apenas aos proprietários com capacidade de acesso a financiamento, interessados em executar intervenções pouco qualificadas e direcionadas para o arrendamento de curta e muito curta duração.
Com o lançamento do 1º Direito, em pleno contexto de pressão especulativa e mediática sobre as ilhas, o município do Porto encontrou uma oportunidade para facilitar o acesso ao financiamento aos proprietários descapitalizados (a esmagadora maioria das quase 1.000 ilhas existentes na cidade) e, simultaneamente, vincular as candidaturas a critérios de qualificação territorial, mais profundos, definidos a nível local. Em 2019, estas duas opções estratégicas ficaram patentes na Estratégia Local de Habitação (ELH) do Porto, atualmente em fase de operacionalização, onde se reconhece a necessidade de criar “mecanismos de contacto com proprietários e residentes”, identificar “condições e intenções de investimento” e apoiar a “análise da viabilidade das intervenções”. Fazemos, em seguida, um zoom à dimensão local do problema das ilhas.
3. A política municipal para as “ilhas” do Porto
É difícil apontar um momento exato para a criação de uma política municipal para as “ilhas” do Porto. Como foi referido, a mudança de paradigma começou em 2013, com a reabilitação da “ilha” da Belavista, com a qual o município pretendia ensaiar modelos de intervenção para e com os moradores. No entanto, finda a intervenção e com apenas mais duas “ilhas” municipais reabilitadas num universo de cerca de 1.000, as possibilidades reais de continuidade para esta estratégia não eram claras. Em 2015, o Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano do Porto (PEDU) referia que “a disponibilidade de novos instrumentos de financiamento” podia “tornar-se um fator de estímulo à intervenção dos proprietários privados detentores desta tipologia de alojamento”. Este financiamento só surgiu em 2018 com o lançamento do 1º Direito, existindo, entre as duas datas, apenas um trabalho desenvolvido nesta área pelo programa Habitar Porto - uma iniciativa do terceiro setor -, em articulação com a Junta de Freguesia do Bonfim, a Junta de Freguesia de Campanhã e a Divisão Municipal de Reabilitação Urbana da Câmara Municipal do Porto, extinta em 2018.
O mês de fevereiro de 2018 é outro marco importante nesta cronologia, porque, no dia 9, em sede de Audição Parlamentar, assistimos a um reposicionamento a dois níveis. Do lado do governo central, a então Secretária de Estado de Habitação apresentava o 1º Direito, frisando que o seu objetivo seria resolver as situações de grave carência habitacional a nível nacional e não apenas as ilhas. Do lado da autarquia, o presidente da Câmara do Porto anunciava que “os responsáveis pelo Habitar Porto apresentaram à Câmara e às Juntas de Freguesia uma expansão deste projeto piloto que permite institucionalizar (...) uma estrutura específica de apoio e acompanhamento das operações de reabilitação urbana nas ilhas”. A expansão, viabilizada a partir da FAUP, teve início em 2019, em simultâneo com a elaboração da ELH, que prevê a reabilitação de frações para 730 residentes em “ilhas” até 2025. A aprovação da ELH, no final de 2019, coincidiu por sua vez com a atribuição de competências da reabilitação das “ilhas” à Porto Vivo, SRU, que lançou, em maio de 2020, o projeto AIIA.
Em comum, os dois programas têm uma mesma génese - o trabalho desenvolvido pelo Habitar Porto em articulação com as autarquias locais -, um mesmo objeto de estudo - as ilhas - e uma metodologia idêntica - como referido em sede de Audição Parlamentar, “a partir das práticas concretas, desenhar políticas”. Em divergente, têm a natureza das principais entidades promotoras, que irá balizar as potenciais sinergias: a FAUP é uma entidade de ensino e investigação, cujo trabalho incide na consolidação do quadro urbanístico para a intervenção, na definição de uma abordagem sistemática ao problema e “na capacitação técnica dos projetistas”; a Porto Vivo, SRU é uma empresa municipal que assume o papel de entidade gestora de uma Operação de Reabilitação Urbana (ORU) e operacionaliza as propostas. Este jogo de semelhanças e diferenças, quando articuladas, viabilizam a definição de uma linha de montagem que, a partir dos recursos disponíveis e das instituições públicas locais envolvidas, permite a territorialização das soluções preconizada no 1.º Direito e dar sentido às políticas que, por serem legisladas a nível nacional, são necessariamente abstratas.
3.1. A linha de montagem
Apresenta-se, em seguida, o trabalho desenvolvido e os resultados tangíveis alcançados no âmbito da política municipal referida. Optou-se por estruturar uma narrativa do ponto de vista lógico e sequencial da operacionalização prevista, abdicando de diferenciar, em pormenor, o que foi realizado dentro de um e de outro programa. Entende-se que há mais vantagens em apresentar o esqueleto e as articulações da linha de montagem construída (Figura 4) do que em expor todos os avanços e recuos, facilitando a leitura e compreensão dos objetivos atingidos e das razões que lhes estão subjacentes. Descrevem-se, em seguida, os cinco pontos estruturantes e diferenciadores da política municipal em curso.
3.1.1. Criação de uma Entidade Mediadora
Na reabilitação das “ilhas” identifica-se um abismo entre a complexidade técnica das operações e a capacidade real dos seus proprietários, tanto em acompanhar os processos associados, como em suportar os encargos que estes acarretam, antes mesmo de avançar para as obras, que são, por si só, extremamente onerosas. A colmatação deste espaço em branco por parte do poder público não é viável pelo simples financiamento dos técnicos que permitem desenvolver os projetos ou pelo envolvimento de quadros técnicos e divisões orgânicas municipais - duas frentes que implicam um elevado investimento para qualquer município. A dificuldade reside em trazer para a formalidade situações que, do ponto de vista morfo-tipológico e social, não se enquadram nas práticas instituídas em cada uma das entidades que é necessário mobilizar. Como veremos, esta falta de enquadramento percorre praticamente todos os níveis de intervenção, desde os regulamentos municipais até aos programas de apoio financeiro nacionais e comunitários, incluindo os conhecimentos habituais entre projetistas, revelando a dificuldade para passar do plano legislativo e teórico à prática.
A solução identificada consiste na criação de uma Entidade Mediadora de perfil técnico e especializado, com uma dupla missão: identificar, para transmitir aos atores responsáveis, as dimensões onde a implementação cega das diretrizes válidas para outras situações simplesmente esbarra com a realidade e especificidade das ilhas; articular as soluções delineadas com os procedimentos e requisitos dos restantes intervenientes. Este caminho de ida e volta permite, por sua vez, criar a relação de confiança necessária ao comprometimento de todos os intervenientes com o processo e, ainda, simplificar/agilizar/dispensar alguns procedimentos burocráticos. O resultado é uma metodologia de trabalho que acompanha o proprietário desde o início da operação até à submissão da candidatura de apoio a financiamento, apoiada em cinco fases: (1) obtenção das descrições prediais e análise do enquadramento urbanístico; (2) levantamento físico e social pormenorizado da ilha; (3) desenvolvimento de proposta arquitetónica e urbanística com o apoio da Direção Municipal de Desenvolvimento Urbano; (4) definição de Programa Base, determinação do valor de reabilitação e das rendas resultantes e negociação com proprietários e inquilinos; (5) compilação e produção de elementos instrutórios e apresentação de candidatura ao 1º Direito.
A experiência acumulada neste ponto permite identificar alguns ganhos. Até à data, foi possível fazer dois processos de submissão de candidaturas ao 1º Direito (a primeira, em novembro de 2021, quando foram candidatadas três ilhas privadas; a segunda em junho de 2022, abrangendo uma ilha privada e seis ilhas a serem adquiridas e reabilitadas pela Porto Vivo, SRU4). Este facto reveste alguma importância por duas razões. A primeira é que se viabiliza o pedido de financiamento por parte de atores sem capacidade técnica e financeira, sem que esta falta de profissionalização se traduza em operações de pouca qualidade. De facto, a adesão ao 1º Direito é muito superior entre os proprietários mais descapitalizados e o seu envolvimento tem um impacto potencialmente superior, não só na criação de habitação com rendas controladas - exigidas pelo programa - como, expressivamente, na qualificação do território5. 6A segunda razão é que se verifica a importância de dispor de uma metodologia que permita reagir rapidamente às alterações dos quadros financeiro e regulamentar7, de forma a garantir a sustentabilidade no tempo da abordagem e estar em situação de força para aproveitar as oportunidades quando elas se apresentarem.
3.1.2. Criação de um quadro de avaliação e referência urbanístico
Junto com o envolvimento prioritário dos proprietários, e não apenas dos inquilinos, trata-se, sem dúvida, do elemento mais contraintuitivo na resolução das desigualdades sociais e, em simultâneo, um dos que mais impacto potencial tem na resolução do problema. A necessidade desta ferramenta foi colocada pela Divisão Municipal de Reabilitação Urbana da Câmara Municipal do Porto e aborda uma das maiores contradições existentes neste domínio: a tentativa de reabilitar uma morfo-tipologia que o PDM propunha, naquele momento, erradicar. A construção de um quadro de avaliação e referência era necessária para viabilizar as operações de reabilitação em “ilhas”, mas também para balizar os moldes em que estas deviam decorrer. Esta segunda dimensão é importante porque, o quadro regulamentar existente à data, via Regime Excecional de Reabilitação Urbana (RERU), permitia viabilizar operações que não cumpriam os parâmetros de habitabilidade e salubridade mínimos exigidos pelo Regime Geral das Edificações Urbanas (RGEU).
A proposta consistiu na definição de um conjunto de princípios e métricas que permitiriam conciliar a proteção do existente consagrado em vários diplomas (como o Regime Jurídico da Reabilitação Urbana - RJRU - e o Regime Jurídico da Reabilitação e Urbanização - RJUE) com as necessárias condições de habitabilidade, conforto e segurança (como o RGEU, o Código Regular do Município do Porto, o Diploma de Acessibilidades e outras orientações municipais, como as dadas, por exemplo, pelo Batalhão de Sapadores Bombeiros do Porto). Mas a aposta consistiu em desvincular estes princípios das possibilidades económicas dos inquilinos, por se entender que condicionar as caraterísticas das habitações ao rendimento das famílias contribuía para a perpetuação da precariedade física e para a consolidação e, até mesmo, promoção das desigualdades sociais via produção habitacional. O quadro de avaliação e referência criado objetiva, assim, a possibilidade de transformação de cada “ilha” à luz de critérios básicos como áreas tendencialmente próximas das regulamentares, iluminação e ventilação em todos os compartimentos, redução de barreiras arquitetónicas e melhoria da envolvente urbanística, designadamente a permeabilidade do solo e condições de meação.
Destacam-se dois resultados nesta frente de ação. Primeiro, a definição de um “programa base” que utiliza o desenho como ferramenta privilegiada para evidenciar, de forma esquemática, a viabilidade urbanística (plantas e perfis chave), estimar a viabilidade da operação (quantificação do número de fogos e aferição de montantes de investimento e rendas a praticar, via medição de áreas), comunicar com proprietários e inquilinos (ilustração do resultado pretendido), reagir rapidamente a qualquer alteração das circunstâncias (como a introdução de novos regulamentos em matéria de reabilitação ou novas condições de financiamento), bem como facilitar e condicionar o acesso ao financiamento público disponível. Segundo, a alteração ao Regulamento do PDM, que, em 2021, criou condições mais favoráveis à intervenção em ilhas, desde que as reabilitações melhorassem as condições de habitabilidade, tivessem por objeto a totalidade do núcleo, aumentassem a permeabilidade do solo e se destinassem a habitação com rendas controladas (acessíveis, condicionadas ou apoiadas)8.
3.1.3. Conhecimento do meio e das possibilidades reais de intervenção
Apesar de existir já um número elevado de levantamentos socioespaciais sobre as “ilhas”, alguns bastante pormenorizados, estes acabam por não ser um instrumento útil para a operacionalização. Primeiro, os inquéritos nos quais geralmente se apoiam respondem com mais frequência à lente do investigador do que à realidade do investigado, servindo, por vezes, para consolidar lugares-comuns, em vez de abrir novas frentes. Segundo, verifica-se a falta de informações detidas por outras entidades, que podem servir para medir a adequação das respostas públicas, como, por exemplo, as relativas aos programas de subsídio à renda. Em terceiro, as limitações não são apenas de cariz epistemológico ou ao nível de informações relevantes, mas também se prendem com o caráter avulso e estático dos levantamentos, impedindo abordagens pró-ativas que travem as dinâmicas existentes. Finalmente, embora estes diagnósticos sejam utilizados na definição e defesa das políticas, por vezes não cruzam com a dimensão operacional, o que explica parcialmente a pouca taxa de execução na implementação das mesmas.
Para ultrapassar estas limitações, foi ensaiada a criação de um “Observatório das Ilhas”, que, para medir e diminuir a distância entre o desejo do plano e a realidade no terreno, assenta em vários princípios, nomeadamente: na realização de inquéritos que incidem sobre parâmetros chave para a operacionalização das medidas (desde os critérios de elegibilidade ao programa 1º Direito até a determinação do nível de conservação do edificado que possibilitam acionar os instrumentos de execução da política urbanística previstos pelo RJRU); na mobilização de informações relevantes (como a estrutura de propriedade) e de várias fontes (desde a Autoridade Tributária até cadastros realizados pelo próprio Município); na georreferenciação destas informações, à escala do fogo, permitindo vincular as decisões a critérios de índole territorial e não apenas estatística; ou o uso dos programas base anteriormente descritos, para antecipar os problemas e oportunidades das ferramentas existentes.
Assim, a ativação do conjunto de dispositivos de observação - e dos intervenientes que o detêm - não pretende descrever a realidade nem proceder ao seu tratamento estatístico, mas, antes, criar condições favoráveis para a intervenção e para a concretização do maior número possível de operações exemplares. Assumindo um papel de vanguarda, e não de retaguarda ou constatação, o Observatório permite acumular e articular conhecimento útil para mudar práticas de atores chave e acelerar, e qualificar, a tomada de decisão a partir de, pelo menos, três frentes de ação. A primeira, constituir um histórico de operações já validadas em ilhas, com o objetivo de orientar os programas base ainda a produzir, garantindo a coerência sem prejuízo de introduzir as alterações necessárias para afinar os parâmetros em que este assenta. A segunda, monitorizar os recursos (financeiros, regulamentares, sociais, etc.) que permitem otimizar a execução das operações previstas. A terceira, identificar as localizações onde as operações de reabilitação podem causar mais impacto em termos de qualificação do território e de coesão social.
3.1.4. Escolha de territórios de intervenção prioritária
Quando se fala nas “ilhas”, é habitual referir que ocupam “localizações centrais na cidade”. Esta afirmação oculta um facto, o das “ilhas” se encontrarem, no fundo, espalhadas por toda a cidade, sem por isso alavancar as vantagens que, para a reabilitação urbana, possuem algumas destas localizações. Referimo-nos, por exemplo, às possibilidades previstas no Regime Jurídico da Reabilitação Urbana (RJRU), que viabiliza, desde que devidamente justificado o interesse público e o seu enquadramento nos objetivos das Operações de Reabilitação Urbana (ORU), a mobilização de ferramentas como: a imposição da obrigação de reabilitar e obras coercivas, o recurso à empreitada única, o direito de preferência, o arrendamento forçado, a expropriação, a venda forçada ou a reestruturação da propriedade. Em outras palavras, os instrumentos de gestão territorial podem também ocupar o papel de nivelador das desigualdades sociais que normalmente se atribui a fatores como a proximidade aos transportes, ao emprego ou à cultura. No caso concreto das “ilhas”, esta possibilidade permite dar o salto para um patamar mais profundo de qualificação urbana e de consolidação de direitos dos residentes.
No nosso estudo de caso, esta possibilidade foi explorada devido a uma convergência relevante. Por um lado, o facto de o 1º Direito possibilitar, no caso das ilhas, o financiamento de operações espoletadas pelos mecanismos previstos no RJRU. Por outro lado, a existência de uma zona com elevada concentração de ilhas dentro de uma Unidade de Intervenção localizada em ORU de tipo sistemático. Esta circunstância levou a que o levantamento descrito no ponto anterior fosse conduzido, unicamente, dentro deste território, abrangendo um total de 19 ilhas. Ao longo do trabalho, foi realizado um programa base para cada uma das ilhas, segundo três modelos de intervenção: (1) integral, dentro dos limites de cada ilha; (2) parcial, articulando as ilhas com o edificado envolvente; e (3) integral, agrupando várias ilhas. Esta última possibilidade foi prevista para um conjunto de seis ilhas contiguas e materializa as opções existentes no RJRU - para viabilizar a aquisição e reabilitação por parte da Porto Vivo, SRU, entidade gestora da ORU (Figura 5).
Fonte: AIIA - Abordagem Integrada para a Inclusão Ativa - Atividade III.7. do Programa Estratégico “As ilhas do Porto”: Estratégias específicas para a regeneração habitacional das “Ilhas do Porto”. Financiado por Portugal 2020 - Fundo Social Europeu.
Este trabalho, realizado ao longo de 2021, permitiu estar em situação favorável para aproveitar a comparticipação não reembolsável do PRR. A operação, a partir da qual o Município prevê a aquisição e reabilitação das seis ilhas referidas por um montante de 7.5 milhões de euros, consegue garantir a permanência, em condições de habitabilidade melhorada e por rendas comportáveis, dos atuais 47 agregados residentes (cujo enquadramento era inviável a partir de operações individuais promovidas por cada proprietário isoladamente). Da mesma forma, face à sua abordagem integrada, a operação permite resolver problemas que não teriam solução a partir de intervenções dentro dos limites de cada ilha, tanto ao nível do cumprimento dos parâmetros previstos no quadro de avaliação, como a criação de zonas verdes e percursos no interior do quarteirão. Finalmente, a operação, que abrange 63 casas, irá resultar em 47 fogos, o que permite cumprir cerca de metade dos objetivos previstos na ELH para a Porto Vivo, SRU com uma única operação que, pelo seu caráter integrado, usa a qualificação urbana como elemento de coesão social e territorial.
3.1.5. Acompanhamento e encaminhamento social
Apesar das más condições de habitabilidade, a realização de obras pode não ser entendida como uma prioridade, antes pelo contrário: pode constituir motivo de ansiedade, mesmo quando garantidas melhores condições de habitabilidade e rendas ajustadas aos rendimentos auferidos. Ao longo do trabalho, foi possível verificar vários casos onde, após se ter chegado a acordo com proprietários e entidades financiadoras, os beneficiários recusaram as operações por razões várias - desde a idade avançada até a desconfiança no processo, passando por situações de elevada fragilidade de saúde. O levantamento realizado permitiu perceber que cerca de 64% dos agregados sofria de alguma doença crónica, cujas causas podem ser atribuídas às más condições de habitabilidade atuais. Simultaneamente, eram um fator de risco durante a pandemia, pelo que estas pessoas deviam receber um acompanhamento de proximidade por parte da Junta de Freguesia. Finalmente, a existência de problemas sociais de todo o tipo - situações de violência doméstica, problemas de isolamento, entre outras - remete para uma dimensão que não será necessariamente resolvida com a componente habitacional e, desde logo, não pode aguardar até esta estar concretizada.
A mobilização de conhecimentos e profissionais das ciências sociais constitui um elemento importante, embora às vezes invisibilizado e desvalorizado. A possibilidade de ter equipas em permanência no terreno permitiu ensaiar algumas práticas. Foi desenvolvido um modelo de definição dos programas base em duas fases: primeiro, para os moradores, tendo em conta apenas as possibilidades urbanísticas e as necessidades habitacionais; segundo, uma vez balizadas as possibilidades, com os moradores, considerando as sensibilidades e expectativas de cada um face ao projeto. Este modelo permitiu confirmar que a preservação da alegada “identidade” das ilhas não constitui uma prioridade para os moradores e, simultaneamente, comprovar que, apesar das prometidas melhorias das condições de habitabilidade, os residentes não estão disponíveis a aceitar a reabilitação em quaisquer circunstâncias. Já em outro âmbito, foi ainda realizado um trabalho de acompanhamento com base semanal, agilizando a articulação com entidades de proximidade e, em algumas situações, contribuindo para o empoderamento, a autoafirmação e o bem-estar das populações.
No momento de escrita deste texto, a criação de relações de confiança e a existência de processos de mediação entre inquilinos e proprietários parece ter contribuído para a viabilidade das operações - ou o desenvolvimento social associado às mesmas. Da mesma forma, o envolvimento de profissionais da área das ciências sociais é uma ferramenta útil para atrair entidades que podem não ter competências em matéria de habitação, mas que possuem o interesse e os conhecimentos necessários para sinalizar os agregados que poderão ser elegíveis ao abrigo do 1.º Direito e no quadro da ELH do Porto. A resolução das dúvidas que estas entidades possam colocar e a sua mobilização para este processo servirá não só para garantir as métricas previstas na ELH como também para assegurar que os agregados que beneficiam do financiamento disponível são os que mais precisam dele, não os que têm os meios e as capacidades de solicitar o apoio.
4. Balanço dos objetivos atingidos e principais conclusões
Ainda é cedo para afirmar que a abordagem proposta é um sucesso, uma vez que ainda não foram concretizadas as obras, nem aprovadas candidaturas ao programa 1º Direito, mas também porque o número de situações acompanhadas é reduzido quando comparado com o universo global das “ilhas”. Contudo, estes indicadores também não censuram a pertinência da política municipal em curso. Por um lado, o 1º Direito está em processo de consolidação, verificando-se que todas as câmaras do país estão a atravessar dificuldades similares, apesar dos diferentes recursos alocados (Jorge, 2022). Por outro lado, esta experiência ainda não foi divulgada nos canais municipais, estando o trabalho cingido aos atendimentos aos proprietários que, espontaneamente, decidem solicitar apoio ao município. Mas, apesar das incertezas referidas, é possível verificar duas coisas: primeiro, sem o trabalho preparatório e posterior institucionalização da abordagem proposta, a reabilitação das ilhas não estaria sequer em cima da mesa (desde a inclusão na ELH até ao início da capitalização dos interesses dos proprietários que, antes, não tinham outra opção que não deixar o património ao abandono ou vendê-lo no mercado especulativo); segundo, quando abraçadas pelo poder público, as possibilidades de concretização exponenciam (como prova o projeto de aquisição e reabilitação de seis ilhas na Unidade de Intervenção da Lomba).
Mais especificamente, o trabalho realizado foi para lá do inicialmente previsto na zona da Lomba, permitindo analisar um universo de 28 ilhas, com 291 casas (das quais 11 são não habitacionais e 126 são devolutas) e 154 agregados (dos quais 129 foram colaborantes, perfazendo um total de 223 pessoas). Esta amostra não se esgotou na elaboração de diagnósticos, tendo conduzido a propostas de intervenção em 26 ilhas, resultando 167 casas que dão resposta aos 131 agregados residentes e permitem ainda atrair 36 novos inquilinos. Com as operações previstas, a área média das casas passa dos 33m2 para os 60m2, assegurando, em todos os casos, o aumento da permeabilidade do solo e, na operação promovida pela Porto Vivo, SRU, a criação de espaço público antes inexistente na zona Lomba. No momento de escrita deste texto (julho de 2022), tinham sido aprovadas para financiamento duas candidaturas ao 1º Direito9 e outras cinco estavam em fase final de submissão10.
Estas conclusões preliminares permitem-nos verificar a hipótese de partida: de que é possível construir um marco a partir do qual as causas que conduzem e perpetuam a vulnerabilidade social podem ser mitigadas pela ação do poder público. Dentro do curso de ação descrito, podemos identificar pelo menos três princípios estruturantes: (1) para garantir que as populações com menos recursos conseguem usufruir das respostas visadas pelas políticas públicas, é necessário um apoio técnico de proximidade que, neste momento, está demasiado dependente da posição económica e até geográfica de cada agregado; (2) o objetivo não deve ser a execução do financiamento disponível, mas, acima de tudo, criar infraestruturas para o desenvolvimento social que possam perdurar para lá do financiamento, ou seja, a qualificação das ilhas não passa apenas pela reparação das casas, sendo necessária uma regeneração física e social mais abrangente; (3) para atingir os dois objetivos anteriores é necessário criar um novo ponto de encontro entre todos os envolvidos. Em jeito de conclusão, é possível densificar este terceiro ponto, por constituir o fator estruturante e diferenciador da intervenção do poder público neste domínio.
4.1. Definir um plano de ação objetivo e mensurável, compreensível por todos
Quando a incerteza é grande, importa ter métricas e metas que balizem e orientem a ação. Ao longo deste trabalho foram referidos vários exemplos: o recurso ao RGEU para definir marcos que deviam ser cumpridos na reabilitação; ou metas traçadas a nível municipal, como o número de reabilitações previstas em “ilhas”. Mas, ao longo do trabalho, foram mobilizadas outras como a taxa de esforço recomendada e o regime de rendas praticáveis ao abrigo dos programas estatais. Todas estas questões são úteis para tornar as operações bem-sucedidas. Primeiro, por estarem baseadas em regulamentos e princípios aprovados pelas instituições, facilitam o cumprimento dos procedimentos administrativos associados. Segundo, dando garantias a cada um dos intervenientes e provando que a linha de montagem proposta traz ganhos para a área em que cada um age, é mais fácil que todos se comprometam com o processo e estejam disponíveis para assumir mais riscos.
4.2. Atrair as situações para a formalidade, sem afastar aqueles para quem a formalidade é um problema
Para perceber que a inserção na formalidade, por si só, não resolve o problema, basta pensar que, quando foi desenvolvido o quadro de avaliação e referência, era possível, do ponto de vista regulamentar, intervir nas “ilhas” sem aumentar as áreas ou reduzir as barreiras arquitetónicas. O desafio, portanto, não deve ser o cumprimento cego das regras vigentes, mas sim a garantia do maior impacto possível nas populações. O problema que aqui se coloca é duplo. Por um lado, os proprietários nem sempre confiam neste tipo de processos ou dispõem dos recursos necessários para financiar os trabalhos implicados. Por outro lado, é necessário fazer uma leitura crítica dos objetivos e procedimentos burocráticos em cada fase da linha de montagem, sob pena de os processos não avançarem ou, no seu desenrolar, prejudicarem os que decidem seguir a via da formalidade. Neste ponto, identificamos adaptações importantes de natureza programática (podemos dar o exemplo da alteração do PDM para alargar as margens de intervenção na reabilitação das ilhas) e procedimental (por exemplo, a avaliação e certificação por parte da câmara municipal da viabilidade urbanística com base em programas base, adotando procedimentos mais simplificados do que os previstos no RJUE).
4.3. Garantir a harmonia entre as entidades públicas e o princípio de proporcionalidade entre os seus procedimentos
O trabalho realizado permite-nos estar em condições de responder a uma pergunta que, com o recurso aos fundos comunitários, é ainda mais pertinente: como fiscalizar o uso dos dinheiros públicos sem colocar o ónus do lado de quem deles precisa nem aligeirar as prestações de contas à custa da simplificação das operações? A criação de uma Unidade Mediadora a nível local para o caso das ilhas prova que há um cenário alternativo possível: minorar ou fasear o cumprimento dos procedimentos burocráticos é útil para exigir mais ao resultado final e não tanto aos envolvidos no processo. Este devia ser o princípio orientador da função pública, que pode ficar profundamente deturpado se os requisitos de acesso às ferramentas e programas públicos se tornarem um fator de exclusão. Para garantir que os processos são materializados na íntegra é necessário que os intervenientes públicos consigam um equilíbrio entre aquilo que é a prova necessária e suficiente e a capacidade de resposta dos requerentes, por forma a não existirem entraves artificiais às candidaturas. Este esforço, deve ser acompanhado de respostas concisas e em linguagem clara, por vezes em prejuízo de alguma tecnicidade, permitindo que o cidadão comum perceba aquilo que lhe está a ser pedido. Num momento onde já parecem estar estabilizadas as regras para a intervenção a nível local e estatal, urge recuperar a “abordagem integrada e participativa” e a “governança multinível” preconizada por uma Nova Geração de Políticas de Habitação, sob pena deste espírito poder desaparecer do processo de implementação do 1º Direito.