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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES vol.45  Lisboa dez. 2022  Epub 29-Dez-2022

https://doi.org/10.15847/cct.28115 

RECENSÃO

Recensão do livro Habitação: Cem Anos de Políticas Públicas de Habitação em Portugal (1918-2018)

Book review of Habitação: Cem Anos de Políticas Públicas de Habitação em Portugal (1918-2018)

11Centro de Investigação em Arquitetura, Urbanismo e Design, da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa (CIAUD-FAUL), Portugal, jcabral@fa.ulisboa.pt


Não há outro lugar para habitar além dessa, talvez nem essa, época do ano e uma casa é a coisa mais séria da vida Ruy Belo

Este trecho do livro de poemas de Ruy Belo de 1962 (Belo, 1997), assim como o seu título, O Problema da Habitação, são metafóricos do interrogar do poeta sobre o sentido da sua presença, em qualquer lugar, no espaço habitável, como casa poética, mas também como um problema de representação. A casa, ou a habitação, lida como metáfora, como desejo e necessidade do indivíduo, é também política quando o poeta se interroga como um colectivo: “Nascemos e morremos e é sempre o mesmo sol lá fora” (Belo, 1997, p.27).

Em 1887 Friedrich Engels editou, sob o título Para a Questão da Habitação, três artigos anteriormente publicados na imprensa, criticando a visão de Proudhon para a solução da questão da habitação face à concentração populacional nas grandes cidades e às más condições da habitação dos trabalhadores. Nestes textos, Engels contesta a condição do papel do arrendamento da habitação no quadro da criação de valor pelo capitalista, que iria, segundo Proudhon, transformar o operário em proprietário resolvendo assim o problema do acesso à habitação, e desenvolve as reflexões que continuam hoje presentes na abordagem da “questão da habitação” enquanto política: da necessidade de analisar as condições em que se dá a concentração nas grandes cidades face às condições de vida e do regime de ocupação dos trabalhadores das zonas rurais, ou de quem emigra para os centros urbanos à procura de trabalho, e de conhecer as “relações concretas determinadas da sociedade” na abordagem do problema da habitação.

A habitação como política pública é o objeto do livro organizado por Ricardo Agarez, Habitação: Cem Anos de Políticas Públicas de Habitação em Portugal (1918-2018)1. O conceito de política pública é muito abrangente, mas tem sempre como foco as acções e decisões do governo na resolução de problemas de interesse público que podem envolver parcerias e acordos com outros sectores da sociedade e da economia. A leitura do que é o interesse público depende, porém, da forma e do papel do Estado entendido no seu racional e justificação histórica. Os cem anos em que se debruça a investigação representam, assim, diferentes modelos de Estado, de exercício do poder e de aceitação e interpretação do conceito de democracia e de participação pública que condicionaram fortemente as leituras dos problemas e a forma de lhes dar resposta.

A questão da habitação enquanto política tem sido abordada em várias frentes, nomeadamente no quadro da economia política como parte da formação e do circuito do capital e das condições concretas em que se afirma no processo de urbanização e de construção da cidade. Num número da revista CIDADES, Comunidades e Territórios de 2019 dedicado ao estado da habitação, Aalbers e Cristophers (2019) identificam o múltiplo papel da habitação como capital “enquanto processo de circulação, enquanto relação social e enquanto ideologia”. Não será aqui o espaço para explicar em detalhe as diferentes componentes. Interessa, porém, salientar alguns aspetos principais.

No processo de circulação (aquisição dos meios de produção, transformação com geração de bens e serviços e realização no mercado com mais-valias), a produção e comercialização da habitação, para além de uma necessidade (valor de uso), adquire um valor de troca e como tal pode proporcionar lucro ao capital envolvido na sua produção.

A habitação tem, no entanto, características especiais. Em primeiro lugar é um produto fixo, que ocupa um determinado espaço com um determinado valor, para a utilização do qual é paga uma renda que depende de múltiplos fatores, normalmente definidos pela sua localização e nível de infraestruturas. Em segundo lugar, e comparando com outros produtos, o processo de produção de habitação estende-se por períodos normalmente longos, exigindo grande investimento inicial, e durante os quais o capital fica imobilizado, sujeito a pagamento de juros e risco de desvalorização. Para além disso, a sua venda e transação funcionam numa esfera de distribuição, já fora do processo de produção, e que nada acrescenta ao seu valor como objeto útil, extremamente diversificado (mercado de habitação nova, usada, para arrendamento), que necessita de capital e esquemas de financiamento próprios, representados por agentes imobiliários e setores de crédito e financeiros especializados.

Enquanto relação social, sendo a habitação um bem de consumo essencial e constituindo um elemento necessário à subsistência da força de trabalho, a sua produção e comercialização são elementos importantes na reprodução do sistema e do capital. Uma relação evidente será a que o empregado ou operário paga pela sua habitação e o salário que recebe. Se o valor da habitação aumentar, o preço da mão-de-obra (para além do preço do solo e das matérias primas) poderá acompanhar a subida, reduzindo assim a margem de lucro e consequentemente o ritmo de acumulação.

Por outro lado, existe uma série de valores ideológicos associados ao conceito de habitação que contribuem para a manutenção e reprodução do sistema económico e social instituído. Casa própria, propriedade privada, são considerados como símbolos de estabilidade na continuação do fortalecimento da família e da sociedade capitalista. Problemas associados com carência ou deficiente habitação são origem de conflitos sociais que podem pôr em causa a ordem estabelecida. Finalmente, hierarquia e segregação nas zonas residenciais servem para traduzir a diferenciação das classes sociais reconhecidas pelo sistema.

Um segundo nível do debate sobre a questão da habitação como política será sobre o papel do Estado no processo urbano entendido como o reflexo de um sistema de decisões públicas e privadas sobre o uso do solo. Nesta perspectiva, o Estado aparece como o imperativo histórico de garantia das relações de produção e reprodução. É o facilitador do processo de acumulação de capital, disponibilizando recursos, intervindo na reprodução do sistema, providenciando habitação, cuidados de saúde, a necessária educação e formação, e mantendo a ordem vigente. O contexto urbano será o do crescimento da sociedade urbanizada, que se reflete numa maior complexidade da hierarquia de centros e na materialização do sistema espacial (produção e reprodução diretamente ligadas ao espaço e à circulação). Por um lado, o sistema de ocupação, transformação e uso do solo é estruturado pela maximização da renda fundiária. Por outro lado, a densidade de ocupação do solo é um processo problemático, tendo em conta: (i) a relação contraditória entre a dinâmica da acumulação e a inércia da construção civil; (ii) a provisão das infraestruturas necessárias com custos altos e o retorno do investimento demorado; e (iii) as desigualdades dos impactos nas transformações no uso do solo (vantagens locativas geram o aparecimento das aglomerações e das cidades, mas criam outros problemas - congestionamento, insalubridade, poluição, etc.). Dentro deste contexto, o planeamento urbano aparece na história como o meio de coletivamente reajustar o processo de desenvolvimento espacial e temporal na utilização/apropriação do espaço urbano.

O planeamento e as políticas urbanas justificam-se assim pela necessidade de garantir as condições para o funcionamento eficiente, mas contido, do sistema urbano. Em termos do mercado de habitação, os diversos agentes (promotores, construtores, instituições de crédito, etc.) funcionam dentro da estrutura criada pelo Estado que regulamenta o planeamento económico e de utilização do solo. Os elementos mais importantes desta estrutura serão: (i) os planos e disposições que regulamentam o uso e valor do solo; (ii) a legislação fiscal, bancária, sobre arrendamento, regulamentação urbana e de construções; e (iii) as políticas sectoriais e/ou macroeconómicas que, directa ou indirectamente, afectam o sector da construção (como por exemplo a exportação e importação de materiais de construção, políticas industriais). Além disso, e não menos importante, o Estado pode organizar a sua própria estrutura de intervenção através de investimentos em programas de habitação social (para venda ou arrendamento), subsídios e facilitação na compra ou construção, programas de autopromoção e de investimento em infraestruturas e equipamento urbano.

No quadro do modelo de desenvolvimento fordista dominante do mundo ocidental e da criação das necessárias condições de reprodução social, em que a habitação está incluída, o caso de Portugal é particularmente periférico, por isso designado também na literatura como fordismo periférico. Os 48 anos de ditadura do Estado Novo com uma economia protegida da competição, caracterizada por baixos salários e um consumo interno muito condicionado, não criaram nem exigiram condições para uma reprodução alargada.

A revolução de 25 de Abril de 1974 colocou fim ao cenário protecionista e de repressão social e salarial. A nova Constituição de 1976 veio garantir os direitos fundamentais, nomeadamente o direito, de todos, à habitação (artigo 65º), incumbindo o Estado, entre outras tarefas, da programação e execução de uma política de habitação, com integração das iniciativas das comunidades locais e a adoção de um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de controlo do parque imobiliário. Em 2004, na revisão da Constituição, o artigo 65º referente à Habitação incluiu também o termo Urbanismo, com a incumbência da promoção da construção de habitações económicas e sociais, a colaboração das autarquias locais e a definição das “regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, designadamente através de instrumentos de planeamento” (e “garantida a participação dos interessados”).

As alterações constitucionais refletem também a evolução do modelo de desenvolvimento, dos ciclos políticos e da integração na economia europeia, com mudanças legislativas e diferentes abordagens e formas de intervenção do Estado em termos do desenvolvimento territorial, do processo de urbanização e da produção e consumo da habitação. A partir de 1974, sem nunca ter conhecido um verdadeiro Estado Providência, Portugal desenvolveu um enorme esforço de investimento público em infraestruturas, equipamentos e serviços que conformaram o padrão de desenvolvimento das cidades como uma dimensão da política urbana à qual Nuno Portas designou de Cidade-Providência (Portas et al, 2003). Comparativamente, para além do Fundo de Fomento da Habitação e do Programa Especial de Realojamento, o investimento direto na produção de habitação não foi assumido, até 2017, como uma política e um programa com dimensão e impactos equivalentes.

O livro Habitação: Cem Anos de Políticas Públicas de Habitação em Portugal (1918-2018) surge, assim, como uma referência na análise e sistematização de informação sobre a forma como a produção e o consumo da habitação foram enquadrados pelo Estado português ao longo do século XX e entrando no século XXI, desenvolvendo, em paralelo, através de casos de estudo, temas e aspectos críticos que ilustram a complexidade e ajudam à compreensão da questão da habitação como política na urbanização do território.

No capítulo 1, “Notas para uma história em construção”, Ricardo Agarez apresenta a abordagem e a organização do livro, referindo três aspectos representativos dos conteúdos das diferentes investigações. Um primeiro, denominado “Trabalho”, para mostrar a forma como diferentes “momentos-chave” da história das “políticas públicas de apoio à habitação foram também instrumentos de actuação do Estado na gestão da procura e oferta de mão-de-obra para a construção civil, bem como na tentativa de criação de uma força de trabalho mais produtiva, e politicamente coesa, através da melhoria das suas condições de vida” (p.12). Encontramos aqui uma aproximação, mesmo que parcial, à abordagem da economia política acima referida e do papel da habitação nos circuitos do “capital”. Esta abordagem fica mais completa com os outros dois aspectos que se referem às relações da “Habitação” com a “Urbanização” e com a “Governação”, demonstrando, por um lado, que, “a história da concepção e realização das políticas públicas de habitação em Portugal desde 1918 é, em larga medida, a história da urbanização do País e da edificação dos seus principais centros urbanos” (p.12) e, por outro lado, sistematizando evidências e retirando lições do papel do Estado através da actuação das suas estruturas administrativas, instituições, agentes e gabinetes que conformaram diferentes modelos de projectar e de fazer política.

O quadro cronológico da intervenção do Estado e do desenho das políticas é-nos dado através de seis capítulos, que representam diferentes perspectivas e abordagens sobre a questão da habitação, associados a diferentes regimes e sistemas políticos, sociais e económicos. Os capítulos 2, 3 e 6, no contexto da afirmação e vigência do Estado Novo, referem-se, respectivamente: (i) à posição da República sobre a questão social da habitação no rescaldo da Guerra (1918-1933) com o Decreto nº 4137 de 1918, que cria as condições legislativas para o lançamento do programa de construção de “Casas Económicas” (Eliseu Gonçalves); (ii) ao desenvolvimento do capítulo anterior com os primeiros programas habitacionais do Estado Novo, das casas económicas e casas desmontáveis (Virgílio Borges Pereira, João Queirós, Sérgio Dias da Silva, Tiago Lemos); e (iii) ao arrendamento social público entre 1945 e 1969, através de novos projectos em termos de “escala, programas e agentes” (Maria Tavares, João Miguel Duarte).

Os capítulos 7, 9 e 12, enquadram os períodos de transição e de relativa abertura do regime ditatorial do final da década de 1960, de consolidação da democracia a partir de 1974 e de entrada no século XXI, abordando, respectivamente: (i) a criação do Fundo de Fomento da Habitação (FFH) em 1969 (“a habitação como técnica estatal de ordenamento social”) e da forma como a instituição construiu e viabilizou, até 1982, sob diferentes formas e contextos políticos, uma política pública de habitação (José António Bandeirinha, Tiago Castela, Rui Aristides, Joana Alves); (ii) “Os anos de crescimento (1969-2002)”, descrevendo, numa perspectiva mais quantitativa, a evolução e extinção do FFH e o aparecimento de outras estruturas e instituições (como o Instituto Nacional de Habitação) numa “mudança de paradigma na promoção de habitação” e das condições de acesso à sua aquisição (Eduardo Vilaça e Teresa Ferreira); e (iii) “A política de habitação em Portugal de 2002 a 2017: programas, políticas públicas implementadas e instituições envolvidas”, com uma análise da intervenção dos diferentes governos e instituições e o “aumento da importância atribuída ao mercado na resposta às necessidades de habitação” (Romana Xerez, Pedro Rodrigues, Francielli Cardoso).

Outros temas e aspectos críticos, desenvolvidos em paralelo, em cinco capítulos, objecto de investigação por diferentes autores, complementam e contextualizam o quadro cronológico da intervenção do Estado e do desenho das políticas. Os títulos e temas, organizados por capítulos, são ilustrativos:

- Capítulo 4 (Dulce Freire, Pedro Borges) “O problema da habitação rural: Debates e políticas públicas durante o Estado Novo” explica, detalhadamente, as iniciativas e projetos assistencialistas do Estado Novo, a partir de 1933, de promoção da “casa própria” numa visão ruralista, que tiveram, porém, “um carácter disperso, irregular e disperso” (p.155), nomeadamente através do Programa de Casas para Famílias Pobres com a participação de outras entidades (e.g. Fundação Salazar), e das ações da Junta de Colonização Interna (JCI) no âmbito das Aldeias Melhoradas e do Programa de Bem Estar Rural.

- Capítulo 5 (Filipa Guerreiro) “Colónias agrícolas construídas pela Junta de Colonização Interna (JCI) entre 1936 e 1960: Do desenho do território ao desenho da casa - Diversidade, circunstância e experimentação” investiga, na sequência do capítulo anterior, o trabalho da JCI na formação e consolidação de sete colónias agrícolas, identificando quatro momentos de um quadro colonizador, que construíram uma imagem e uma identidade formal e programática, cuja análise detalhada tem contributos importantes em termos do desenho da paisagem e dos projetos e da economia e gestão dos assentamentos.

- Capítulo 8 (Patrícia Pedrosa) “As cooperativas de habitação portuguesas: O jogo dos possíveis” desenvolve e reflete sobre o tema do cooperativismo em Portugal, de complicada implementação durante o Estado Novo, em particular no setor da habitação, por razões ideológicas e de adequação ao quadro institucional e legislativo vigente, mas que, após a Revolução, vai ganhar uma nova dimensão com iniciativas e exemplos marcantes ao nível do projeto urbano, da arquitetura e da organização cooperativa, ilustrados neste trabalho de investigação. A evolução e os resultados do movimento e das iniciativas cooperativistas na área da habitação motivam as reflexões finais sobre as suas potencialidades como estrutura organizativa e colaborativa, mas também sobre as dificuldades em alargar os princípios do cooperativismo e da atenção ao bem comum às classes mais carenciadas, limitada que ficou aos grupos mais afluentes, ao imperativo da propriedade privada e ao seu acesso.

- Capítulo 10 (Jorge Malheiros, José Luís Zêzere, Anna Ludovici, Susana Pereira, Sandra Oliveira, Margarida Malheiros) “Um século de respostas habitacionais públicas a catástrofes: Experiências passadas e reflexões para o futuro”, “visa identificar e analisar, de forma sintética, as iniciativas públicas habitacionais promovidas em resposta aos eventos catastróficos ocorridos em Portugal (continental e ilhas) nos últimos 100 anos, entre 1918 e 2017” (p.366). A investigação faz um levantamento sistemático de diversas catástrofes que tiveram diferentes respostas ao nível da reconstrução e do realojamento, de cuja análise (como para todos os casos extremos) se podem retirar lições para a ação nas políticas públicas, nomeadamente sobre as soluções de desenho e de projeto que foram adotadas, sobre a sua perenidade, integração urbanística e capacidade de resposta institucional e preventiva.

- Capítulo 11 (Filipa Serpa (coord.), Maria Manuela da Fonte, Alessia Allegri, Nuno Arenga, Madalena Líbano Monteiro) “Habitação de promoção pública: Da construção nova à reabilitação, uma leitura dos projetos” faz um levantamento e análise de projetos habitacionais promovidos pelo setor público ao longo de 36 anos, entre 1982 e 2018, enquadrados por diversas políticas e programas de construção nova (de que o PER - Programa Especial de Realojamento é um dos mais marcantes) mas também de reabilitação e renovação do parque edificado. O levantamento foi seletivo, mas também exaustivo, cobrindo nove municípios, num total de 180 projetos/conjuntos urbanos habitacionais, que representam uma boa amostragem do panorama nacional, analisados em termos urbanos nos seus atributos (e.g. continuidade dos traçados, diversidade tipológica e funcional, relação com envolvente e projeto de espaço público) e na conceção e organização dos fogos. A análise das características únicas e de experimentação destes projetos, associados ao quadro particular da encomenda pública, permitem, como referem os autores, desenvolver “uma leitura a partir do projeto e para o projeto” (p.457) com lições e contributos importantes para a avaliação e desenho da habitação de promoção pública.

Livros como este, que organizam, de forma orientada, trabalhos importantes de investigação, são uma referência não só para a leitura e conhecimento das políticas e da sua história, mas também, e não menos importante, para retirar lições para o desenho e conteúdo das políticas futuras. Se os cem anos estão associados ao início do programa de “Casas Económicas”, o ano de 2017 marca também o lançamento de um conjunto de medidas de política e de novos diplomas e legislação com a criação da Secretaria de Estado da Habitação, a publicação em 2018 do documento da Nova Geração de Políticas de Habitação (NGPH) e da Lei de Bases da Habitação em 2019. As novas medidas foram enquadradas pelo Levantamento Nacional das Necessidades de Realojamento Habitacional (IHRU, 2018) que, pela primeira vez, fez o retrato, mesmo que controverso, por ser redutor, das necessidades em termos de habitação. O objetivo enunciado no documento de lançamento da NGPH é de aumentar o peso da habitação com apoio público na globalidade do parque habitacional de 2% para 5% (um acréscimo de cerca 170.000 fogos, passando na classificação europeia do escalão “muito pequeno” para o “pequeno”) e “baixar a percentagem de população que vive em agregados familiares com sobrecarga das despesas com habitação no regime de arrendamento de 35% para 27%”.

A capacidade e oportunidade dos Estados para desenharem e implementarem políticas e investimentos de dimensão significativa equivalentes ao da Europa do pós-guerra, e da constituição de um Estado Providência no Portugal democrático (mesmo sabendo que o setor da habitação foi residual), já não é, todavia, a mesma. A globalização dos mercados, a financeirização da economia (e do mercado de habitação), a crise financeira de 2008-2009 e as posteriores medidas de austeridade, introduziram novos parâmetros que conformaram e condicionaram a capacidade de intervenção do Estado. Para o caso de Portugal, Luís Mendes (2022) identificou como contradições “entre o discurso e as práticas no direito à habitação”, para além das lógicas de financiamento e financeirização da habitação, a emergência de um Estado (neoliberal) mais programador e menos regulador e provisor de habitação, e o novo modelo (ainda não testado) de promoção da subsidiariedade através da descentralização e da municipalização das políticas públicas.

O novo quadro para o desenho e operacionalização das políticas urbanas, e em particular da habitação, numa sociedade democrática, será, assim, o da adequada integração das políticas públicas a nível central em articulação com as especificidades e a autonomia e participação do nível local, através das respectivas estruturas administrativas e comunitárias. Neste cenário, as contribuições e as lições a retirar desta publicação podem ser lidas através de três áreas analíticas que dizem respeito às escalas, aos modelos e aos processos no desenho das políticas e do seu planeamento as quais, por sua vez, remetem, para os debates político, formal e processual.

Em relação ao debate político, das escalas de intervenção e de representação democrática, retiram-se lições sobre como diferentes modelos de Estado, posições ideológicas e de acesso a recursos (ditatorial e assistencial, providência e liberal) se refletiram no funcionamento de instituições (e.g. FFH, IGAPHE, INH e mais tarde o IHRU) com diferentes perspetivas, e resultados, sobre o papel da habitação e da propriedade na sua relação com a economia, ordenamento do território e processo de urbanização.

Em relação ao debate formal, do modelo de planeamento e do papel do desenho através dos seus instrumentos, como planos e projetos urbanos e arquitetónicos, os diferentes períodos estão também associados a diferentes abordagens e quadros de intervenção política. As lições a retirar remetem para a importância da avaliação do papel do local e dos contextos específicos, em que instituições, ateliers e equipas de projetistas refletiram e representaram novos modelos e soluções.

A mesma abordagem aplica-se em relação ao debate processual, sobre o desenvolvimento das diferentes medidas de política e projetos ilustrados neste livro: Qual a informação e organização utilizada? Quais os agentes que foram envolvidos? Quais os recursos? Qual a sua proveniência e prioridade? Estas interrogações remetem para as questões da cultura no e do planeamento em diferentes momentos, contextos e modelos de desenvolvimento. Será nestas áreas, como em muitas outras, que se podem fazer mais estudos, como indica Ricardo Agarez, de forma a retirar lições para o desenvolvimento de melhores e mais eficazes práticas nas políticas de habitação, sendo estas necessárias para a elaboração das Estratégias Locais de Habitação, como refere Sílvia Jorge (2022).

Referências bibliográficas

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1 Agarez, R. C. (coord.) (2018). Habitação: Cem Anos de Políticas Públicas de Habitação em Portugal (1918-2018). Lisboa: Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana.

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