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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES vol.45  Lisboa dez. 2022  Epub 29-Dez-2022

https://doi.org/10.15847/cct.28235 

TESTEMUNHO

100 anos de Nuno Teotónio Pereira e da sua obra, um resgate emotivo

100 years of Nuno Teotónio Pereira and his work, an emotional rescue

João Santa-Rita1 

1Universidade Autónoma de Lisboa, Portugal, arqjoaosantarita@gmail.com


1. Conhecendo a pessoa e a obra

Desde muito cedo que a figura do Arquitecto Nuno Teotónio Pereira e a sua obra foram uma presença na minha vida: ora porque o seu nome era, entre palavras veladas, falado no círculo da família e dos seus amigos mais próximos - viviam-se então os anos antes do 25 de Abril de 1974 -; ora porque entre queridos amigos e colegas de infância contavam-se alguns dos seus sobrinhos. Depois, com a adolescência e a curiosidade natural, aconteceu também a descoberta da cidade e o seu reconhecimento através de algumas obras que a marcavam pela novidade que representavam. Destaco os casos do Franjinhas e da Igreja do Sagrado Coração do Nuno Teotónio Pereira.

Assim foi acontecendo e sendo construída uma relação distante, unicamente através dos objectos e da sua imagem, mais do que através da sua essência e das ideias inovadoras que traduziam. Essa distância viria a ser progressivamente superada, quer através do encontro e reencontro com as suas obras, quer do contacto pessoal que se foi tornando mais próximo com o passar dos anos. Essa possibilidade, infelizmente tardia, deu-me a conhecer de um outro modo a sua forte e tenaz personalidade, bem como a sua dedicação e atenção pelos Arquitectos e pela profissão, que aliás tão notavelmente orientou, nos anos em que presidiu ao Conselho Directivo Nacional da Associação dos Arquitectos Portugueses (1984-1986 e 1987-1989).

Durante a difícil crise que os Arquitectos atravessaram de 2008 a 2015, por mais de uma vez em contactos que mantivemos, Nuno Teotónio Pereira manifestou a sua preocupação pela crescente falta de oportunidades de então. Recordo-me, em particular, da sua sugestão de uma proposta a apresentar aos Governos da altura, tendo em conta a sua vivência e experiência no âmbito do Inquérito à Arquitectura Popular Portuguesa. Tratava-se de uma proposta, uma vez mais, de grande generosidade e abrangência: um programa nacional de Levantamento, com carácter analítico, crítico e prospectivo, do Património de Conventos na posse do Estado, mobilizando para tal Topógrafos, Arquitectos, Arquitectos Paisagistas e Engenheiros, numa campanha, que o tempo viria a provar que, a ter sido implementada, teria sido de grande utilidade. Não só do ponto de vista da História, mas também do ponto de vista operativo, permitindo a criação de um documento orientador em futuras intervenções no património em causa. O seu entusiasmo era grande perante a possibilidade da realização desse Levantamento, passados quase dois séculos, sobre a data em que foram declaradas extintas as ordens religiosas e incorporados os seus Conventos e Mosteiros na Fazenda Nacional. Sonhava com um Documento de grande oportunidade perante os Programas, no momento, em desenvolvimento no país.

Confesso que o Nuno Teotónio Pereira era, para mim, uma figura próxima, pelos motivos expostos, mas ao mesmo tempo muito mais distante do que suponha. O motivo principal era sem dúvida a falta de consciência da relevância e das implicações do seu trabalho enquanto Arquitecto e da sua actividade na esfera social e política portuguesa. O conhecimento da sua Arquitectura no sentido pleno do termo aconteceria, efectivamente, muito mais tarde, com o meu ingresso na Escola de Belas-Artes e, depois, com o passar dos anos.

2. Três projectos para Lisboa

Como tal, interessa-me em particular registar impressões e recordações que, por motivos diversos, se foram consolidando na minha memória relativamente a três projectos para Lisboa, muito distintos no tempo e na sua situação urbana: o Bloco das Águas Livres de 1953-1957 (com Bartolomeu da Costa Cabral) (figura 1), as Torres de Habitação dos Olivais Norte de 1957-1961 (com Nuno Portas e António Pinto de Freitas) (figura 2) e o Conjunto Habitacional na Rua Diogo Silves/ Quarteirão Rosa no Bairro do Restelo de 1984-1985 (com Nuno Portas, Joāo Paciência e Pedro Viana Botelho) (figura 3).

Os três trabalhos são representativos do seu envolvimento com o tema da Habitação, e do modo como sempre defendeu enquanto princípio inabalável o direito de todos os cidadãos à Habitação - “Habitação para o maior número”. Esse princípio, essencial na sua vida e obra, manter-se-ia válido e presente até à sua morte, tendo sempre defendido que a Habitação era o grande desafio para os Arquitectos, reconhecendo a relevância do Habitar para a construção do bem-estar da Sociedade, do Homem e da Cidade. Tal como aliás viria a sublinhar no emotivo texto “Para que a casa volte a estar na cidade”, escrito para o número seis da revista “Textos e Pretextos”, intitulado As Casas.

Foto de João Santa-Rita (2022).

Figura 1 Bloco das Águas Livres 

Foto de João Santa-Rita (2022).

Figura 2 Torres de Habitação dos Olivais Norte 

Foto de João Santa-Rita (2022).

Figura 3 Quarteirão Rosa no Bairro do Restelo 

Por outro lado, os trabalhos em causa espelham temáticas muito diversas no que se refere aos contextos em que se concretizam e ao modo de intervir, desenhar e construir a Cidade, através desse grande suporte e pano de fundo que é precisamente a Habitação. Os três projectos demonstram também como soube pensar e desenhar para contextos físicos e sociais diferentes, tornando possível oferecer e proporcionar a todos com a mesma generosidade uma qualidade no habitar, ainda que formalizada e materializada de diferentes modos. No caso do Bloco das Águas Livres, estamos perante uma intervenção nos limites da Cidade consolidada de então, na transição entre o Rato e as Amoreiras. Para ali, Nuno Teotónio Pereira propôs um novo lugar naquilo a que hoje comummente designamos como um vazio urbano marcado, ainda para mais, pela presença patrimonial do Aqueduto das Águas Livres. Este define um dos limites da intervenção sendo motivo para o embasamento em pedra do conjunto arquitetónico. No caso das Torres dos Olivais Norte estamos perante uma intervenção integrada no âmbito de uma vasta operação de expansão da cidade de Lisboa. Esta foi orientada por uma nova ideia de urbanismo e por um plano no qual, ainda que de um modo integrado, se reconhecem as autorias e as diferentes propostas arquitetónicas, neste caso numa Tipologia da Torre.

No caso do Quarteirão Rosa do Restelo, situado igualmente numa situação limite, entre o Plano das Moradias do Restelo e a área das Torres do Restelo, Nuno Teotónio Pereira desenhou precisamente essa transição, abrindo caminho para as futuras intervenções na envolvente.

Para além do modo de intervir na cidade, também o modo de desenhar nestes três projectos é profundamente distinto. No primeiro caso, o desenho é o de um Bloco, um edifício Corbusiano, lembrando Marselha, enquanto programa híbrido, marcado pela coexistência de Comércio, Habitação, Estúdios, recorrendo, para além das colunas de elevadores, a um sistema de galerias de acesso aos diferentes pisos do edifício. No caso dos Olivais Norte, as duas Torres reforçam o conceito urbano subjacente, marcando um lugar entre os diversos edifícios envolventes. Já no caso do Restelo, a intervenção espelha o regresso à cidade tradicional, à reflexão em torno da rua e do quarteirão, assente num programa diversificado do ponto de vista das Tipologias de Habitação que o compõem.

A memória lembra-me os quarteirões históricos, as visitas aos siedlung e aos bairros modernos de Amesterdão, mais precisamente aos conjuntos desenhados por Michel de Klerk. Tal como comecei por referir sobre a obra de Nuno Teotónio Pereira, a minha afinidade e relação com os seus projectos incluindo estes 3, são muito diversas e assentes em situações e experiências que foram acontecendo de um modo disperso e, um pouco por acaso, ao longo do tempo, desde a minha infância até aos dias de hoje.

Conheci o Bloco das Águas Livres desde muito cedo, através das visitas a casa de um amigo, dos tempos da Escola Primária, que ali habitava num dos fogos do topo sul. Por estranho que pareça, parte do espaço fronteiro ao Bloco era ainda, ao tempo, finais dos anos de 1960, ainda um descampado, contrastando com a imponente frente do edifício e com o seu robusto muro de pedra da base. Para quem, como eu, vivia num edifício corrente de Habitação do início dos anos de 1960, de tipologia esquerdo-direito, com estrutura espacial interna assente no espaço de um hall e de um corredor, as Habitações do Bloco das Águas Livres constituíam um misto de surpresa e fascínio.

Efectivamente, a inocência da infância permitia uma leitura pura, isenta de preconceitos, baseada exclusivamente na vivência dos espaços e naquilo que essa mesma vivência nos suscitava. O que me surpreendia naquela casa era algo de que não tinha ainda qualquer consciência, mas que estava naturalmente presente, o desenho das coisas, chamemos-lhe assim. As coisas, essas, eram afinal as mesmas que estavam presentes em tantas outras casas, embora ali parecessem, no entanto, mais idênticas em si mesmas, na imagem e nos materiais - como a madeira - porque sujeitas afinal a uma disciplina comum, que obviamente não conseguia entender. Os elementos da arquitectura, as portas, os armários que acompanhavam os corredores, constituíam, assim, um todo que me fascinava pelo conforto que proporcionavam.

Outro fascínio era a surpresa que os espaços de circulação constituíam e a hierarquia que estes proporcionavam na distribuição dos compartimentos que, para nós, então crianças, proporcionavam uma alternativa ao simples corredor linear em que tudo era evidente, permitindo uma utilização lúdica desses espaços. O espaço da Sala era também surpreendente, na sua regular irregularidade, para a qual contribuía o espaço trapezoidal, desenhado em conjunto com a varanda de grande dimensão, também esta de configuração trapezoidal, uma vez mais com um desenho distante da comum varanda linear e estreita. Aquela Habitação proporcionava um luxo, inclusive na criação dos seus dois acessos, por elevador, quase privado, e por galeria. Esses dois modos de acesso constituíam uma novidade para quem visitava o Bloco e eram uma prova de que a galeria poderia ser também uma possibilidade, ainda que num contexto muito diverso da habitação social, onde já tinha sido amplamente experimentada. Mais tarde, descobri o encanto de ler as plantas dos pisos de Habitação e apreciar o modo, tal como numa sinfonia, como as tipologias vão variando ao longo de um piso. Os encantos da minha infância, deram lugar ao fascínio pelos conceitos que proporcionaram tamanha qualidade aos espaços e um certo prazer em os Habitar.

Já no caso do Bairro dos Olivais, este era para mim e para todos os que habitavam na Cidade antiga um lugar distante, estranho, inclusive difícil de memorizar e de referenciar, do mesmo modo a que nos tínhamos habituado. Conheci os Olivais primeiramente na minha infância através de visitas ao Gabinete Técnico de Habitação (GTH), onde por vezes o meu pai me levava em trabalho e onde me encantava com as maquetes e com os desenhos fixos, com pioneses, nas paredes.

Estava longe de imaginar que o mundo que viria a conhecer mais tarde, tinha sido pensado e desenhado naquele lugar onde tinha passado largos dias da minha infância.

Mais tarde, já adolescente, acompanhava por vezes o meu pai a casa do seu amigo, também Arquitecto, o Raul Cerejeiro, onde também se juntavam outros amigos e arquitectos do GTH, o que me proporcionava quase sempre, antes desses encontros, visitas de reconhecimento ao Bairro.

Já no início dos anos 2000 com a mudança do meu atelier para o Bairro, as Torres dos Olivais Norte passaram a fazer parte de alguns dos meus percursos e assim pude conhecer aquele troço do Bairro, com o seu sabor e carácter anglófono, presente não só no desenho das Torres, mas também no conjunto próximo de Habitações em banda em tijolo vermelho. As Torres com um desenho distinto do Bloco já não eram um volume único, mas antes um conjunto composto por três volumes, um dos quais, o corpo dos acessos, que interligava os dois volumes das Habitações.

Assinalo aqui uma vez mais o modo como foram desenhados alguns dos espaços interiores, como o caso das circulações, e como de novo, estas, ainda que num contexto de maior contenção do ponto de vista económico, continuam, nas tipologias maiores, a ser resolvidas como uma sequência de espaços, em que ligeiras torções de paredes abrem a circulação sobre as salas, criando surpreendentes e subtis espaços de transição. Ou o caso do conjunto dos espaços da Sala e da Cozinha, no modo como comunicam entre si, imprimindo a possibilidade de uma vivência alternativa ao tradicional modo de Habitar.

No último caso, o Quarteirão Rosa, no Restelo, a sua construção já aconteceu durante a minha frequência na Escola de Belas-Artes de Lisboa, coincidindo ainda com algumas visitas a amigos que viviam no Restelo. Em meados dos anos de 1980 viria a conhecer numa dessas visitas uma das moradias em banda e a entender melhor a proposta de conjunto, não só do ponto de vista dos espaços interiores, mas também no modo como as frentes das ruas são desenhadas, com soluções distintas do ponto de vista arquitectónico. Efectivamente, uma das riquezas do conjunto é a diversidade de Tipologias de Habitação, proporcionando modos de habitar diversos, sobretudo se tivermos em conta o momento e o contexto em que o conjunto foi edificado, permitindo o acesso à Habitação numa zona privilegiada de Lisboa, na qual tardavam e escasseavam novas oportunidades, em alternativa ao consolidado Bairro das Moradias ou às Torres localizadas na proximidade.

3. Nota conclusiva

O Nuno Teotónio Pereira leu e compreendeu muito bem os tempos em que viveu e, no caso especifico da Habitação, soube desde muito cedo intervir em cada momento, defendendo aquilo a que hoje designamos de políticas públicas, no sentido de salvaguardar a Cidade e os direitos dos mais desprotegidos acima de tudo, sendo prova disso mesmo as inúmeras intervenções em colóquios e congressos, os manifestos clandestinos e, por fim, os seus próprios projectos, que finalmente são também modos directos de actuar na transformação do espaço e da sociedade urbana.

Sempre ciente e crente da relevância da Habitação e do papel da mesma no contexto de qualquer sociedade enquanto um direito que contribuirá sempre para a construção da dignidade de qualquer cidadão, soube intervir e desenhar em diferentes contextos, quer físicos, quer sociais, proporcionando a todos, através do desenho, a mesma generosidade e qualidade de Habitar, ainda que materializada de diferentes modos. Que melhor herança, efectivamente, nos poderia ter deixado o Nuno Teotónio Pereira senão essa grande lição e reflexão em torno da Habitação.

Não viveu os recentes momentos de clausura durante a pandemia, nos quais se tornaram tão evidentes as difíceis condições em que o Trabalho e o Habitar co-existiram no seio de tantas famílias, provando, uma vez mais, que a “Habitação para o maior número” (Pereira, 1969) é também a Habitação melhor e mais digna para o maior número, devendo esse direito ser um factor de aproximação e não de distinção, ou mesmo de exclusão, como sempre defendeu.

João Santa-Rita, arquitecto

Texto escrito entre Lisboa e Santo Estevão

28 de Agosto de 2022.

Referências

Pereira, N. T. (1969). Habitações para o maior número. Colóquio de Urbanismo (pp. 87-100). Funchal: Câmara Municipal do Funchal. [ Links ]

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