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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES vol.45  Lisboa dez. 2022  Epub 29-Dez-2022

https://doi.org/10.15847/cct.28240 

TESTEMUNHO

O problema da habitação: uma questão de classe

The housing issue: a matter of class

Coletivo Habitação Hoje1 

1Portugal, habitacaohoje@gmail.com


A Habitação Hoje é uma organização que nasceu no Porto para os que defendem o cumprimento radical e absoluto do Direito à Habitação, para os que querem lutar para que ninguém fique sem tecto e para os que acreditam que é possível resolver este problema.

Defendendo que a organização é a única forma de reverter os problemas criados ao longo de tantos anos, a Habitação Hoje trabalha em várias frentes, nomeadamente: na solidariedade e na luta com os que estão mais longe de ver este direito cumprido; na compreensão de que a habitação tem um papel basilar no cumprimento de outros direitos e na análise dos mecanismos e das múltiplas políticas que encobrem os problemas com falsas esperanças e que afectam sempre as classes mais baixas.

Se tivermos de resumir a prática - real e imaginada - da Habitação Hoje, podemos dizer que o título deste texto lhe faz jus. A construção de uma hegemonia que acredita que a sociedade é composta por indivíduos alienados não durará para sempre, nem existe desde sempre. A manutenção do problema da habitação é central para a ideologia dominante nos dias de hoje por esse mundo fora, e, por isso mesmo, tem em si um ímpeto revolucionário.

O acesso a uma habitação digna é um direito consagrado na Constituição Portuguesa, a par com outros direitos como a saúde e a educação. No entanto, sabemos que nunca foi garantido de forma plena, nem é compreendido desse modo. A habitação enquanto peça base para uma vida digna é, ao mesmo tempo, causa e consequência do estado a que chegámos e do seu tratamento como mercadoria, transacionada em função do seu valor de troca - cada vez mais inflacionado. Não seria viável tornar-se um dos maiores activos financeiros mundiais (Tostevin, 2021) se não fosse uma necessidade básica, e esta construção é tanto legislativa, como ideológica.

Por isso, acreditamos que esta demanda, por habitação digna para todas as pessoas, deve ser travada em todas as frentes. Por um lado, acreditamos que é na rua, junto de quem está mais vulnerabilizado, que a luta deve ser construída. A organização popular em torno deste problema, actualmente lido e resolvido na individualidade, é a chave para que seja possível uma mudança de paradigma. Por outro lado, a compreensão do panorama global em que este problema se insere e a leitura da sua evolução histórica são ferramentas essenciais para a construção de uma luta informada e reivindicativa.

Neste último ano, tivemos capacidade de pôr em prática acções nos dois campos. Acompanhámos moradores em situação de despejo, no parque habitacional privado e público, auxiliando em todas as questões que nos são possíveis ajudar - ler documentos, escrever cartas, conseguir o apoio de advogados - mas sempre sabendo que o limite desse suporte burocrático tem de ser compensado com a organização dos moradores, na construção de redes de solidariedade e luta a longo prazo. O que vimos e vemos na rua é que o problema da habitação em Portugal é precário e sufocante.

Assistimos ao dia a dia de uma família em situação de despejo: a ansiedade de não saber se é a última noite na sua casa; a ameaça constante de “não ser um bom pai ou mãe”, por não conseguir garantir uma habitação segura para os filhos; a pressão das instituições que estão sempre prontas para os retirar à família; a sujeição a trabalhos precários e abusivos, na tentativa de conseguir pagar a renda; o cansaço de ultrapassar a burocracia associada à inscrição para uma casa camarária; a medicação que é prescrita na tentativa de resolver problemas de saúde que advêm da falta de condições de habitabilidade; a permanência em situações de violência doméstica, porque a alternativa é ficar sem casa ou perder a guarda os filhos; a dificuldade em conseguir a independência porque o trabalho precário não permite ter condições para arrendar uma casa, ou, em pleno século XXI, por ainda não se ter água canalizada ou electricidade...

Duas questões que tornam difícil a organização desta luta são as suas múltiplas facetas e a camada de culpa e vergonha de anos de individualização do problema, em que nos foi incutido que, quando não conseguimos, é totalmente culpa nossa.

A nossa sociedade foi construída, nos últimos quarenta anos, com base em políticas centradas no financiamento do crédito para aquisição de casa própria e, em paralelo, na diminuição da oferta pública de habitação. Hoje vivemos num país com 2% do parque habitacional público e mais de 70% (Cordeiro Santos, 2021) de proprietários de habitação própria - sendo que 36% desses continuam a pagar um empréstimo ao banco. No entanto, ser proprietário também não significa ter condições dignas na habitação, não havendo muitas vezes capacidade económica para manutenção ou mudar para melhor.

Entretanto, as políticas recentes em pouco ou nada desafiam esta lógica. Para todas as pessoas que nunca conseguiram aceder a um crédito, é cada vez mais difícil encontrar uma casa que consigam pagar. O aumento das rendas contrasta com a estagnação dos salários e com a precarização do mercado de trabalho (Rosa, 2022). As políticas actuais não atacam o problema na raiz, sendo visível no terreno o que os programas existentes catalisam. Ao tentar compensar a dificuldade das famílias com apoios ao arrendamento, o Estado está a financiar e potenciar os lucros dos proprietários - que não terão problema em despejar uma família para aumentar a sua renda - sem garantir condições de habitabilidade e estabilidade aos inquilinos. Isto não contribui em nada para baixar as rendas, muito pelo contrário.

O Programa Renda Acessível, por exemplo, é descrito como sendo compatível com os rendimentos das famílias, mas calculado a partir do valor do mercado e não sobre os rendimentos do agregado. Por um lado, apesar de ser um brilhante jogo de palavras, a sua propagação vai agravar a situação de ainda mais famílias, por permitir que o mercado se adapte, a partir do aumento das rendas (Habitação Hoje, 2021). Por outro lado, alguns regulamentos de gestão dos parques públicos municipais estão a ser reescritos de modo a alterarem o tecto limite para este regime. Isto faz-nos questionar quem terá direito a uma habitação pública no futuro e para onde vão, novamente, os mais pobres. Os preços desregulados das habitações são muitas vezes justificados com a falta de oferta, mas nunca são postos em confronto com os mais de 723 mil alojamentos devolutos por todo o país (INE, 2021). A ideologia dominante está para nós claramente espelhada nesta contradição: mesmo os mais solidários com pessoas em situação de sem-abrigo não questionam que os edifícios vagos poderiam estar a cumprir a sua função social (Diário da República, 2019), dando resposta a essas pessoas. Mesmo as mais vulnerabilizadas e desapossadas acabam por defender que a acumulação ilimitada de propriedade é legítima e meritocrática, fruto de décadas de discurso neoliberal onde esta ideia nos vem sendo incutida.

Temos tentado tornar esta contradição clara com o levantamento de edifícios devolutos (Habitação Hoje, 2022). O método é empírico e ainda não cobrimos território suficiente, mas conseguimos tirar já algumas conclusões: apenas na Rua de Santa Catarina e na Rua da Alegria - duas ruas centrais do Município do Porto - identificamos alojamentos devolutos suficientes para providenciar habitação ao dobro das famílias em lista de espera por habitação social no Porto, que neste momento ronda os mil agregados. Mais ainda, temos visto também, tanto pela proximidade àqueles que vivem a insegurança de não ter uma casa digna, como pela leitura dos regulamentos, que entrar para a lista - que é longa e requer muitos anos de espera - tem vindo a tornar-se cada vez mais difícil, com cada vez mais pessoas a verem a sua candidatura indeferida. Não porque vivem numa casa com condições de habitabilidade ou têm rendimentos para arrendar no mercado livre, mas porque os critérios estão desenhados para as excluir.

Um estudo de 2015 aponta que o parque público habitacional é composto por cerca de 120 mil casas e que quase 7 mil (INE, 2015) dessas estão vazias. Este parque público, gerido pelos municípios ou pelo IHRU1, tem vindo a ser alienado em vez de aumentado, estando, entretanto, em curso um processo de transferência de competências, em que o IHRU passa o seu património habitacional para as Câmaras Municipais correspondentes. Neste processo, esta instituição tem tentado resolver os casos de ocupações em habitações que ainda estão sob sua gestão. Segundo o mesmo estudo, existiam 800 ocupações nesse património. Este número foi agora dado como estimativa para as ocupações apenas em Lisboa (Moreira, 2022). Entender estas ocupações implica perceber o contexto em que estas acontecem.

Não estando, como já referimos, assegurado o direito à habitação a todas as pessoas, dependendo estas de um mercado selvagem, é impossível para uma família pobre, trabalhadora ou reformada, ter uma habitação digna. Temos visto nos bairros inúmeras casas vazias e entaipadas e os relatos dos moradores informam que esta situação se mantém há décadas. Estas casas são vizinhas de famílias em sobrelotação, de pessoas em situação de sem abrigo, de pessoas que foram despejadas e não têm alternativa, de famílias que estão em lista de espera há anos. Para estas famílias ocupar é a única forma de garantir um direito básico. Na Habitação Hoje defendemos que essa é uma luta justa.

A ocupação de uma casa é um acto de desespero, uma situação de último recurso, muitas vezes levadas a cabo por mães solteiras, obrigadas a ocupar porque a alternativa é viver na rua com os filhos ou perder a guarda das crianças. A maioria dos casos que nos chegaram até hoje são despejos de habitações públicas, processos violentos e ilegais. A resposta do Estado face ao desespero destas famílias constitui para nós a maior contradição e o maior atentado ao direito à habitação. Nos casos de ocupações de habitações públicas, a lei define que não podem ser despejados agregados em comprovada carência habitacional sem que sejam previamente encaminhados para uma solução digna de acesso à habitação (República Portuguesa, 2016), ponto recentemente reiterado na Lei de Bases da Habitação (Diário da República, 2019). Por todo o país, temos assistido a centenas de despejos de famílias nestas condições, sem nenhum encaminhamento para uma solução digna. Pelo contrário, vemos, por parte de quem acompanha e executa os processos, a substituição da lei por moralismo, lições de meritocracia, culpabilização e institucionalização dos mais vulnerabilizados.

Esta violência é silenciosa e invisibilizada, mas quotidiana e incapacitante. Acompanhamos famílias que, no processo de despejo, foram ameaçadas com a retirada dos filhos, encaminhadas para pensões onde apanharam carraças ou que ficaram fechadas dentro de casa com tijolos colocados a mando do IHRU, bem como assistentes sociais que dizem não conseguir arranjar alternativas por causa da etnia das famílias e tantas outras situações que não têm voz no espaço público. Este é o exemplo mais pragmático de como a casa é a base para o acesso a todos os direitos. Sem uma casa digna, direitos como a saúde, o trabalho ou a educação ficam comprometidos, perpetuando-se situações precárias e ciclos de pobreza.

A resolução do problema da habitação e a luta diária para que haja cada vez menos pessoas a viver em situações indignas tem de partir da coletivização e da compreensão do problema na sua condição sistémica e estrutural. Décadas pautadas pela falta de vontade em resolver o problema, tornaram hegemónica a culpa, o sentimento de vergonha, a responsabilização individual. É contra isto que nos organizamos: contra a desumanização e exploração, pela solidariedade e o direito a uma vida digna.

O ímpeto revolucionário da luta pelo direito à habitação está na sua clara relação com a luta de classes - por isso apelamos aos moradores de todo o mundo, uni-vos.

Referências

Cordeiro Santos, A. (2021). Sociedade de proprietários de bem estar patrimonial: a propriedade no centro da política. Le Monde Diplomatique, Dezembro. https://pt.mondediplo.com/2021/12/sociedade-de-proprietarios-e-de-bem-estar-patrimonial-a-propriedade-no-centro.htmlLinks ]

Diário da República (2019). Art.º4 da Lei de Bases da Habitação - Lei 83/2019, de 3 de setembro. Diário da República. [ Links ]

Habitação Hoje (2021). O Mito da Renda Acessível. Habitação Hoje. https://www.habitacaohoje.org/mito-renda-acessivelLinks ]

Habitação Hoje (2022). Edifícios e Terrenos Devolutos. Habitação Hoje. https://www.habitacaohoje.org/levantamento-devolutosLinks ]

INE (2015). 120 mil fogos de habitação social em 2015, com uma renda média mensal de 56 euros - 2015. Instituto Nacional de Estatística. https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_destaques&DESTAQUESdest_boui=250034590&DESTAQUESmodo=2&xlang=ptLinks ]

INE (2021). Dados provisórios dos Censos 2021. Censos. https://censos.ine.pt/scripts/db_censos_2021.htmlLinks ]

Moreira, C.F. (2022). Há 800 casas da Câmara de Lisboa ocupadas ilegalmente. Oposição questiona presença policial nos despejos. Público, 27 de abril. https://www.publico.pt/2022/04/27/local/noticia/ha-800-casas-camara-ocupadas-ilegalmente-oposicao-questiona-presenca-policial-despejos-2004065Links ]

República Portuguesa (2016). Art.28º e Art.35º do Regime de Arrendamento Apoiado, Lei 23/2016, de 19 de agosto. [ Links ]

Rosa, S.M. (2022). Rendas Subiram em todas as freguesias de Lisboa e do Porto com uma excepção. Saiba quanto e qual. Expresso, 24 Junho. https://expresso.pt/sociedade/2022-06-24-Rendas-subiram-em-todas-as-freguesias-de-Lisboa-e-do-Porto-com-uma-excecao.-Saiba-quanto-e-qual-34ad2df3Links ]

Tostevin, P. (2021). The total value of global real estate. Savills, September. https://www.savills.com/impacts/market-trends/the-total-value-of-global-real-estate.htmlLinks ]

1 IHRU, I.P. - Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana - “É a entidade pública promotora da política nacional de habitação, com a natureza de instituto público de regime especial e gestão participada integrado na administração indireta do Estado, dotado de autonomia administrativa e financeira e de património próprio, e prossegue as atribuições do Governo na área da habitação, sob superintendência e tutela do membro do Governo responsável por essa área governativa.”

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