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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES vol.45  Lisboa dez. 2022  Epub 29-Dez-2022

https://doi.org/10.15847/cct.28602 

EDITORIAL DE DOSSIER

Acesso à habitação e Covid-19: Leituras a partir das Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto

Access to housing and Covid-19: readings from Lisbon and Porto Metropolitan Areas

1Centro de Investigação em Artes e Comunicação, Universidade do Algarve, Portugal, sbviegas@ualg.pt

2CiTUA-IST, Universidade de Lisboa, Portugal, silviajorge@tecnico.ulisboa.pt


Este dossier temático sobre o acesso à habitação condigna e adequada em Portugal, lido a partir das Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto, resulta da convergência de quatro projetos de investigação, três individuais e um coletivo: “INSEhRE 21. Inclusão sócio-espacial e habitacional dos refugiados na Europa de hoje: Lições da diáspora africana em Portugal”, concluído por Sílvia Leiria Viegas no Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra (CES-UC) e “​Refugee Research for (Post)Covid-19. National Measures and Local Actions in the Algarve: A Digital Tour for Access to Adequate Housing and Living Conditions”, agora em desenvolvimento por Sílvia Leiria Viegas no Centro de Investigação em Artes e Comunicação da Universidade do Algarve (CIAC-UAlg); “Habitação como 1.º Direito: Enfrentando a precariedade habitacional na Europa contemporânea. Contribuições a partir da realidade portuguesa”, em desenvolvimento por Sílvia Jorge no Centro para a Inovação em Território, Urbanismo e Arquitetura do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa (CiTUA/IST-UL); e “Middle-Class Mass Housing in Europe, Africa and Asia”, na medida em que ambas as investigadoras foram co-chairs da sessão “Covid-19, Housing and Middle Class: Discussing socio-spatial imbalances and materialities in the Portuguese context”, que integrou a Conferência Internacional “Optimistic Suburbia II, Middle Class Mass Housing Complexes”, promovida no âmbito deste projeto coletivo (Lisboa, Junho 2021).

O mote da referida sessão e os seis trabalhos aí apresentados estiveram na origem dos artigos científicos que compõem este dossier temático. Juntaram-se duas entrevistas sobre o tema em destaque - o acesso à habitação em Portugal -, uma recensão da obra Habitação: Cem Anos de Políticas Públicas de Habitação em Portugal (1918-2018) e dois testemunhos críticos: um sobre o direito à habitação e práticas de intervenção a partir da experiência do coletivo Habitação Hoje, outro sobre o legado de Nuno Teotónio Pereira no ano em que se comemoram os 100 anos da sua vida. Pretendeu-se, desta forma, celebrar e contribuir para espessar as vozes que destacam a importância do seu legado no quadro geral da arquitetura contemporânea em Portugal. Apontamos, por exemplo, o percurso antifascista e ativista pelos direitos sociais e políticos, a advocacia da habitação condigna para um maior número de pessoas, a atividade no quadro do Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL), após o 25 de Abril, com lógicas de participação cidadã, os projetos de habitação social ou a investigação na área da reabilitação urbana. A sua obra, de significado tão atual, reverbera no tempo cruzando-se com o que nos traz aqui: o acesso à habitação em Portugal, em particular nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto.

A dificuldade de acesso à habitação em Portugal é estrutural e transversal a toda a sociedade urbana. Agudiza com os crescentes processos de financeirização, mercantilização e turistificação que ocorrem no país nas últimas décadas, com maior expressão nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto, afetando tanto a dita classe média quanto os grupos de menores recursos, mais vulneráveis. É, portanto, nestas geografias que se têm sentido as maiores dificuldades, embora processos semelhantes ocorram noutras regiões do país, com o custo da habitação, ao nível da compra e venda e do arrendamento, a atingir valores máximos. Esta crise habitacional antecede a pandemia de Covid-19, mas foi particularmente evidente durante e após o seu aparecimento, iluminando velhos e novos desafios a que urge agora encontrar resposta.

Com um olhar centrado nas políticas de habitação e na sua articulação com a política de solos, Sílvia Jorge analisa as respostas dirigidas aos grupos mais vulneráveis, ao abrigo do Programa Especial de Realojamento e, mais recentemente, do 1.º Direito - Programa de Apoio ao Acesso à Habitação. Esta análise toma como caso de estudo o município da Amadora, integrado na Área Metropolitana de Lisboa (AML), especificamente o território ocupado pelo outrora designado Bairro de Santa Filomena, de ocupação e construção não legal, alvo de um processo de realojamento e, posteriormente, de uma grande operação urbanística dirigida ao mercado livre. Como podem operações urbanísticas como esta contribuir para o aumento do parque habitacional público? Esta é a questão a que se procura dar resposta.

Tendo como pano de fundo as cidades de Lisboa e Porto, Fabiana Pavel e Patrícia Romeiro analisam as políticas públicas de turismo e habitação desenvolvidas em Portugal na última década, identificando o seu impacto no arrendamento de curta duração e as nuances que assumiram em tempo de pandemia. As autoras questionam se os programas municipais Renda Segura e Porto com Sentido lançados, respetivamente, pelas autarquias de Lisboa e Porto, potenciaram (ou não) o aumento da oferta habitacional de longa duração, gerando mudanças no mercado de habitação. Face à fraca adesão a estes programas, Pavel e Romeiro identificam algumas das limitações que justificam este cenário, propondo recomendações dirigidas sobretudo aos governos locais e à participação cidadã.

Sílvia Leiria Viegas traz-nos uma reflexão sobre o acesso à habitação de refugiados Africanos e do Médio Oriente em Portugal, a partir do seu trabalho de participação-ação para a decolonização do conhecimento no Fórum Refúgio Portugal (2019-2021), uma rede de conhecimento promovida por refugiados em diálogo com a academia, instituições, governo e sociedade civil. A partir das perceções dos refugiados com quem interagiu no seu trabalho de campo, norteada pelo conceito de direito à cidade, a autora apresenta o quadro empírico e político, analisa discursos sobre as dificuldades enfrentadas, e mostra como estes refugiados são agentes de esperança para a co-construção de cenários de inclusão.

Gonçalo Antunes e João Seixas avaliam a evolução do acesso à habitação na AML entre 2016 e meados de 2021, identificando, por um lado, as principais tendências imobiliárias no período pré-pandemia de Covid-19 e, por outro, em que medida essas tendências se alteraram com esta pandemia. Neste sentido, o artigo visa, a partir de uma abordagem espácio-quantitativa, identificar e avaliar o impacto da pandemia no mercado de habitação, estimando, quer nos 18 municípios da AML, quer nas 24 freguesias de Lisboa, o esforço requerido no acesso à habitação. Assinalam-se diferentes velocidades e desequilíbrios socioeconómicos nos territórios em enfoque, bem como uma grande capacidade de resiliência por parte do mercado.

Joana Pestana Lages aborda as desigualdades socioeconómicas e espaciais evidenciadas em tempo de pandemia, marcado pela máxima “ficar em casa”. Como fazê-lo quando não estão reunidas condições mínimas de habitabilidade? Esta é a questão que norteia a sua análise e reflexão, à luz de diferentes bairros precários localizados na AML, no quadro de um projeto de investigação-ação dirigido à participação das mulheres na implementação de intervenções rápidas de combate à propagação do vírus, ao nível do espaço e das práticas quotidianas. A autora conclui que, durante a pandemia, a resposta pública dirigida a quem vive em situações de precariedade habitacional foi insuficiente e desadequada, ampliando-se, assim, processos de desigualdade e exclusão.

Aitor Varea Oro e Paulo Vieira apresentam uma grelha de leitura e intervenção para as chamadas “ilhas” do Porto, tendo em conta as necessidades das populações que nelas habitam e a construção de uma sociedade mais justa e coesa. O trabalho apresentado, assente na noção de vulnerabilidade urbana e na definição e concretização de uma política municipal dirigida à reabilitação desta morfo-tipologia específica, ganha forma por via da prática, nomeadamente da participação e envolvimento direto dos autores no processo de intervenção aqui em análise. Face aos resultados alcançados, destaca-se o paradigma da reabilitação urbana na promoção do desenvolvimento social e a necessária adaptação das ferramentas existentes às características, necessidades e capacidades de promotores e beneficiários.

A entrevista a Jorge Malheiros - geógrafo, com trabalho sólido desenvolvido sobre inclusão social e habitacional cruzado com a área das migrações -, realizada por Sílvia Leiria Viegas e Sílvia Jorge, também aborda o acesso a uma habitação adequada em contexto pandémico focando-se, sobretudo, nos problemas estruturais enfrentados pela sociedade urbana, incluindo por imigrantes e refugiados, e as respostas públicas adotadas desde 1974 em Portugal. Assume, contudo, uma abordagem prospetiva no que toca às prioridades de intervenção e aos desafios habitacionais existentes e apontados para o futuro.

A entrevista a Yves Cabannes - urbanista, ativista e especialista em governança urbana e municipal -, realizada por Sílvia Jorge e Sílvia Leiria Viegas, aborda o acesso a uma habitação adequada em contexto pandémico, sublinhando os problemas e desafios que marcam o dia-a-dia dos grupos mais vulneráveis, bem como uma mudança de paradigma que assenta na transição de uma política de habitação social para uma política social de habitação. Seguindo uma abordagem crítica e propositiva, Cabannes identificou estratégias adotadas para enfrentar a crise, políticas públicas e instrumentos comprometidos com o direito à habitação, incluindo fiscais e orientadas/os para a regulação do mercado e dos investimentos imobiliários, mas também casos concretos de sucesso, como as Community Land Trusts.

A recensão do livro Habitação: Cem Anos de Políticas Públicas de Habitação em Portugal (1918-2018), coordenado por Ricardo Costa Agarez, fica a cargo de João Cabral. Usando a lente da habitação como política pública, restitui-se parte da estória que marca este período temporal, contextualizando os principais desafios e linhas de pensamento que determinaram ou influenciaram a resposta do Estado relativamente ao acesso à habitação e à salvaguarda de um direito consagrado na Constituição desde 1976. Neste marco dos 100 anos, pontuado pelo lançamento da Nova Geração de Políticas de Habitação (2018), Cabral destaca a importância desta obra de referência, e dos trabalhos de investigação ali apresentados, para o desenho informado e crítico de melhores e mais eficazes políticas e práticas públicas.

O testemunho de João Santa-Rita configura um resgate pessoal e emotivo sobre Nuno Teotónio Pereira. A partir do seu olhar de projetista e de pessoa profundamente engajada na prática profissional dos arquitetos, onde se destaca a presidência do Conselho Diretivo Nacional da Ordem dos Arquitectos (2014-2016), o autor ajuda a centrar o tema do acesso à habitação em Portugal na área disciplinar da arquitetura-urbanismo. A sua escrita versa sobre a sua relação, simultaneamente distante e próxima, com a pessoa e a obra de Teotónio Pereira, focando três trabalhos para Lisboa - o Bloco das Águas Livres de 1953-1957 (com Bartolomeu da Costa Cabral), as Torres de Habitação dos Olivais Norte de 1957-1961 (com Nuno Portas e António Pinto de Freitas) e o Conjunto Habitacional na Rua Diogo Silves/ Quarteirão Rosa no Bairro do Restelo de 1984-1985 (com Nuno Portas, João Paciência e Pedro Viana Botelho). Santa-Rita conclui que a melhor herança de Teotónio Pereira foi a grande lição e reflexão que nos deixou em torno do tema da habitação.

Por fim, o coletivo Habitação Hoje, comprometido com o Direito à Habitação de quem mais precisa, restitui parte do papel social que tem assumido nesta luta, a partir da sua prática e mobilização local. A sua ação incide sobretudo nos processos de despejo levados a cabo no parque público e privado de habitação, nomeadamente no apoio às famílias confrontadas com esta situação, procurando promover maior organização e capacidade de resposta a partir das bases. Face à realidade, este coletivo tece críticas às atuais políticas públicas de habitação, identificando limitações e subversões aos objetivos nelas traçados, inscritos no Direito à Habitação. Comprometido com a resolução de um problema ainda sem fim à vista, apela à união de quem sofre na primeira pessoa a dificuldade ou incapacidade de acesso a uma habitação condigna, e de quem não lhe fica indiferente.

Financiamento

O projeto SFRH/BPD/118022/2016 - FSE/POCH foi financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT, 2017-2022). O projeto 2021.03008.CEECIND é financiado pela FCT (2022-2028) no quadro do Concurso Estímulo ao Emprego Científico Individual. O projeto 2020.01858.CEECIND é financiado pela FCT (2021-2027) no quadro do Concurso Estímulo ao Emprego Científico Individual. O projeto Ref. PTDC/ART- DAQ/30594/2017 foi financiado pela FCT (2018-2022).

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