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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.sp23 Lisboa abr. 2023  Epub 10-Abr-2022

https://doi.org/10.15847/cct.30271 

EDITORIAL

O regresso da Economia Política

1Faculdade de Economia, CinTurs, Universidade do Algarve

2Centro de Estudos Sociais, Universidade da Coimbra, Portugal, hpinto@ces.uc.pt

3University of Barcelona, Department of Social Anthropology, Observatori d'Antropologia del Conflicte Urbà (OACU), Espanha, claudiomilano@ub.edu

4Université de Genève, Département d’Histoire, Economie et Société (DEHES), Suíça, bruno.amable@unige.ch


O estreitamento da ciência económica limitou a capacidade para entender as economias. No ensino e na investigação escasseiam abordagens capazes de entender contextos e complexidades. É preciso uma nova visão que dê conta das mudanças e transformações na sociedade contemporânea. A ciência económica impregnou o debate público e tem vindo a influenciar a agenda política e a concepção de políticas públicas com noções como a eficiência dos mercados, o equilíbrio entre oferta e procura ou a racionalidade dos agentes económicos. Estes são alicerces fundamentais da teoria dominante da Economia, designada de teoria neoclássica. Mas esta visão simplista dificilmente pode ser aceite e precisa de novas teorizações e conceptualizações

A debilidade da teoria dominante na ciência económica tem sido posta em evidência com as crises cada vez mais recorrentes que afetam a credibilidade dos seus alicerces. Em 1983, John Hicks, um eminente microeconomista, anunciava que a economia neoclássica estaria morta. Durante a crise de 2008, a rainha de Inglaterra perguntava a uma plateia de economistas na London School of Economics, um dos bastiões da ciência económica, como é que ninguém tinha previsto esta crise. Com a pandemia ficou, mais uma vez, claro que as respostas à crise carecem de um conhecimento complexo, muito além das causalidades simples e lineares que a ciência económica convencional está habituada a trabalhar. E relembrou-se que, na verdade, sempre subsistiu um pluralismo que aquele poder dominante não conseguiu apagar. Além disso, erroneamente as crises são interpretadas como choques 'externos' pontuais que perturbam o funcionamento do sistema económico quando na realidade devemos entendê-las como parte integrante das práticas estruturais da acumulação de capital. Ainda assim, a revolução paradigmática da Economia permanece por fazer.

Hoje existe uma convicção profunda que o ensino da Economia nas universidades está desajustado das necessidades para a compreensão da realidade económica e social. Os currículos são dominados por um núcleo central de disciplinas, ancorados em princípios irrealistas da escola neoclássica e numa abordagem metodológica dominada por uma única ferramenta, a econometria, centrada em modelos causais. Este afunilamento do ensino da Economia é transversal a vários contextos nacionais; em Portugal, à semelhança de outros países europeus, ter-se-á agudizado com o processo de Bolonha. Com a concentração dos cursos a maioria das disciplinas diferenciadoras simplesmente desapareceu. Uma das reações a este estreitamento do ensino da Economia, no contexto da crise de 2007-2008, foi o surgimento, em diversos países, de organizações de estudantes de Economia a pedirem um outro ensino da disciplina .

Também na investigação em Economia se tem assistido a um estreitamento das dimensões subjacentes ao campo da Economia, ao qual têm resistido escolas de pensamento capazes de se aproximarem mais eficazmente da complexidade do mundo, como é o caso da Teoria da Regulação, do Institucionalismo, ou do Pós-Keynesianismo. Ainda que a investigação possa ter um escopo mais alargado e ser mais plural, por força muitas vezes de programas de financiamento com um foco temático, a avaliação, principalmente naqueles programas com painéis disciplinares, continua a estar determinada pelo cânone da economia neoclássica e da modelização. Estas formas de financiamento da investigação económica pouco reconhecedoras do lugar da interdisciplinaridade acabam por deixar de fora muitas problemáticas essenciais do funcionamento das economias. Aspetos como as relações entre atores, as especificidades territoriais, as características socioculturais ou até as diferentes interpretações que os atores atribuem à multiplicidade de realidade(s) económica(s) por serem mais dificilmente tratados pela modelização económica acabam por ser descurados. Neste contexto, são vários os movimentos de economistas e outros cientistas sociais que apelam ao ressurgimento da Economia Política.

A Economia Política remete na sua origem para a disciplina plural que se centra na economia substantiva enquanto objeto de estudo. Era a disciplina que os pensadores clássicos da ciência económica como Adam Smith, David Ricardo ou Karl Marx responderiam que estudavam se lhes pudéssemos perguntar. No entanto, o final do século XIX e o início do século XX trouxeram uma transformação paradigmática da Economia. A física e a mecânica, com as suas ferramentas quantitativas e formalismo matemático, representavam um ideal positivista que invadiu o campo de estudo das economias. Daí resultou uma reconfiguração da noção de valor, um maior centramento nos mercados e nos seus mecanismos de coordenação descentralizada para uma provisão eficiente. Esta corrente designada de marginalista, na busca de uma ciência económica pura, veio estabelecer as bases da escola neoclássica, que se tornou dominante.

A Economia passou a ser entendida como a ciência que estuda o comportamento humano como uma relação entre fins e meios escassos que têm usos alternativos. A definição de Lionel Robbins é ainda hoje dominante na maior parte dos manuais de Economia. Com isto deixa-se para outros cientistas sociais ou economistas menos alinhados o estudo da economia substantiva. A economia impura. Por exemplo, em disciplinas como a antropologia, o estudo da economia tem sido central para o questionamento critico das práticas relacionadas com intercâmbio, distribuição e consumo com base nos debates entre substantivistas e formalistas. Em Portugal, este movimento concorreu para a criação da Associação Portuguesa de Economia Política em 2017. Reúne um leque alargado de cientistas sociais que estuda a economia na sua complexidade, os processos e resultados económicos nos seus contextos institucionais, históricos e geográficos, configurados por fatores de ordem social, política, jurídica, cultural, tecnológica e ecológica.

O Encontro Anual de Economia Política é o seu principal momento de reunião. No ano de 2022, na sua quinta edição, foi subordinado à compreensão das “Vulnerabilidades e transformações sociais e económicas” . O Encontro realizou-se nos dias 27, 28 e 29 de janeiro na Faculdade de Economia da Universidade do Algarve. A escolha não foi inocente nem casual. A pandemia tornou o Algarve num exemplo claro da necessidade de uma transformação estrutural do seu sistema socioeconómico e territorial. Este evento juntou, nesta edição, uma centena e meia de economistas e outros especialistas das mais diversas áreas disciplinares e abordagens, centrado no debate sobre a crise gerada pela pandemia e as necessárias transformações da economia e da sociedade.

O Encontro iniciou-se, como acontece em todas as edições, com a Escola de Inverno, onde se privilegia a discussão de projetos de doutoramento apresentados por estudantes de várias universidades. Nos dias seguintes, o evento geral decorreu com as habituais sessões paralelas, painéis temáticos e sessões plenárias. O presidente do Encontro foi Adriano Pimpão, Professor Catedrático Emérito da Universidade do Algarve, que entre outros cargos foi Reitor da Universidade do Algarve, Presidente do Conselho de Reitores, Vice-Presidente do Conselho Económico e Social, ou Membro da Comissão Independente para a Descentralização da Assembleia da República. O 5º Encontro Anual de Economia Política foi organizado pela Associação Portuguesa de Economia Política (EcPol), Faculdade de Economia da Universidade do Algarve, CinTurs - Centro de Investigação em Turismo, Sustentabilidade e Bem-estar, CEFAGE-UAlg - Centro de Estudos e Formação Avançada em Gestão e Economia e pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

O presente número especial resulta deste Encontro, apresentando um conjunto de contribuições ocorridas no seu âmbito ou ligadas aos temas do mesmo.

Organização do Número Especial

Este número organiza-se em torno de um conjunto de textos apresentados no Encontro.

O número inicia-se com dois testemunhos. O primeiro de Bruno Amable enquadra a “A Economia Política de Crises Estruturais” e o segundo de Claudio Milano sobre “A Economia Política do Turismo”.

O primeiro artigo, de Inês Tavares, intitulado “The immediate and long-term consequences of the Covid-19 pandemic on education in Portugal”, aborda a compreensão da pandemia como elemento central na reprodução de desigualdades sociais na educação. O texto centra-se na realidade portuguesa para analisar as consequências imediatas e a longo prazo da pandemia na educação.

O segundo texto, de João Maia, “Global capitalism crises in the 21st century: topics for a structural and holistic approach”, elabora uma retrospetiva das grandes crises no século atual, identificando aspetos que estiveram na sua génese. O texto destaca a mundialização da economia neoliberal, a economia da zona euro, os conflitos geopolíticos e a crise ecológica como elementos determinantes neste debate.

O terceiro texto, de Alexandre Matte Junior e colegas, “Regional resilience analysis for the Paranhana valley/RS/Brazil”, analisa a evolução socioeconómica nas ultimas duas décadas na região do Vale do Paranhana/Rio Grande do Sul, no sul do Brasil, para verificar a resiliência regional desse território O trabalho permite ilustrar o declínio da capacidade adaptativa da região a partir de 2014.

O quarto artigo, de Conceição, Nogueira e Pinto, “Transições sustentáveis e inovações sociais: o contributo de inovações de nicho para a sustentabilidade da água os casos de Lajedo de Timbaúba e de Tamera”, centra-se na comparação de dois casos de comunidades que estão a empreender esforços para uma gestão sustentável da água, desenvolvendo um conjunto de práticas que podem ser definidas como inovações sociais.

Villas Bôas Filho e colegas apresentam o ensaio “Vulnerability and Democracy: social vulnerability as a factor in increasing the democratic deficit”, que analisa o impacto da pandemia da Covid-19 no aumento de pessoas em situação de vulnerabilidade e, consequentemente, no aumento das desigualdades sociais e económicas no Brasil. Para tal, parte de uma reconstrução analítica dos conceitos de necropolítica e de legitimidade democrática, para mostrar, preliminarmente, como as políticas públicas e a gestão governamental durante a crise contribuíram para o agravamento do cenário caótico pós-pandêmico.

O ensaio “Political Economy Renaissance: challenges and opportunities”, preparado por Ângela Lacerda-Nobre e colegas, discute como a Economia Política pode fazer a ponte entre o mundo abstracto dos modelos, metodologias, teorias e conceitos com o mundo prático da existência prática na vida real.

O ensaio de Gameiro e colegas, intitulado “Tourism, Degrowth and Visual Aids: the missing link”, parte de uma perspectiva fenomenológica crítica, para interpretar o turismo como uma arena aberta onde diferentes atores interagem, produto e produtor do que está a acontecer a nível global. O ensaio explora criticamente o potencial dos contrastes entre o Norte e o Sul global para a melhor compreensão do turismo, incluindo aqui as teorias de decrescimento e outras perspectivas económicas heterodoxas.

Este número especial apresenta duas recensões críticas sobre livros recentes. A primeira de André Guerreiro sobre o livro Advanced Introduction to Social Innovation, de dois dos autores de referência neste domínio, Frank Moulaert e Diana MacCallum. A segunda de Fábio Sampaio, sobre o muito influente livro de Mariana Mazzucato, Mission Economy: A Moonshot Guide to Changing Capitalism.

O número especial termina com uma entrevista de Hugo Pinto a José Reis, eminente economista e Professor catedrático da Universidade de Coimbra, o primeiro presidente da Associação Portuguesa de Economia Política.

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