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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.sp23 Lisboa abr. 2023  Epub 10-Abr-2023

https://doi.org/10.15847/cct.30320 

TESTEMUNHO

A Economia Política de crises estruturais

1Université de Genève, Département d’Histoire, Economie et Société (DEHES), Suíça, bruno.amable@unige.ch


Um dos eixos fundamentais do 5º Encontro Anual de Economia Política foi a recorrência das crises, suas causas e implicações. A crise da COVID-19 parece ser apenas mais uma, de um leque sucessivo de crises que vão acelerando em termos de recorrência. Os impactos da pandemia estão longe de estarem compreendidos. A resposta à crise pandémica e a futuras crises exigirá uma mudança profunda das sociedades e das economias. Essa transformação deverá ser pensada em múltiplas dimensões, porque implicará não só a reflexão em torno da superação das fragilidades anteriores, como também, a transição para um paradigma de desenvolvimento diferente.

Uma economia política neorrealista de instituições e mudança foi proposta anteriormente (Amable & Palombarini, 2005, 2009) e utilizada em várias contribuições sobre estudos comparativos do capitalismo (Amable, 2003) e em estudos de caso nacionais (Palombarini, 2001; Amable, 2017). Tal abordagem analisava a dinâmica institucional a partir da diversidade de interesses socioeconómicos a nível individual e coletivo, bem como o conflito que tal diversidade traz consigo. Esse conflito é político e irredutível a simples determinantes económicos diretos. A diferenciação de situações geradas pela dinâmica económica influência esse conflito, mas não o determina rigorosamente.

Nesta perspetiva, os interesses não são 'naturais' e a sua perceção pelos agentes depende do 'mapa cognitivo' que os indivíduos aplicam ao seu ambiente. Os interesses variam de acordo com a posição social ocupada pelos agentes sob a influência das representações cognitivas dominantes - produzidas pela educação, ciência, religião, discurso mediático - e por todos os fatores que podem ser amplamente agrupados sob o termo «ideologia». Mas inclui também aquilo a que Pierre Bourdieu chamou de habitus.

Os agentes têm, portanto, expectativas diferentes em relação à definição de políticas públicas ou à conceção de instituições. O conflito entre estas expectativas pode ser resolvido através da formação de um compromisso. Os determinantes do compromisso não podem ser encontrados apenas em critérios tais como «eficiência económica» ou «superioridade moral», porque as próprias definições destes elementos são objeto de controvérsia.

O domínio político é parcialmente autónomo da estrutura económica e podemos distinguir três dimensões de autonomia (Palombarini, 2019). A primeira é a hegemonia e a formação de expectativas relativamente à estrutura social. A referência óbvia é Gramsci (para um resumo do pensamento de António Gramsci, cf. Howarth, 2015). Mas isto também está próximo do conflito de legitimidade defendido por Bourdieu (1997), que considera a luta “pelo poder de impor a visão legítima do mundo social”. A correspondência entre estruturas sociais e estruturas mentais tem uma função política.

O segundo domínio diz respeito à capacidade estratégica dos atores políticos para formarem compromissos. Eles escolhem entre as expectativas sociais existentes e exigem as que serão, pelo menos, parcialmente satisfeitas e as que serão ignoradas. Estas exigências não são exógenas à mediação política, que desempenha um papel na elaboração de uma visão comum de um futuro possível e desejável, ao qual podem aderir os portadores de expectativas e exigências diferentes, mas possivelmente compatíveis.

Finalmente, a definição de políticas públicas não é funcional para a proteção de interesses que poderiam ser qualificados como dominantes pela simples análise da esfera produtiva, independentemente da dinâmica política que melhor se caracteriza por uma lógica específica de acumulação de poder. Há também uma dimensão temporal: o funcionamento de uma instituição ou organização social pode sobreviver aos interesses que estiveram na sua origem.

Existem, portanto, pelo menos três níveis de análise.

Primeiro, a estrutura produtiva, que permite classificar os agentes com base na posição que ocupam e definir grupos socioeconómicos. Segundo, os grupos sociopolíticos, que reagrupam agentes que exprimem exigências compatíveis ou semelhantes. Terceiro, a tomada de decisões públicas, em que os agentes que se legitimam como representantes de certos grupos sociais, podem tentar desempenhar um papel ativo.

A cada grupo sociopolítico está associado um certo poder de influência sobre as decisões tomadas pelos atores políticos, o que corresponde à capacidade de gerar apoio político. Isto não se limita ao apoio eleitoral e antes inclui todas as ações suscetíveis de estabilizar ou reforçar a ação dos atores políticos. A natureza do apoio depende das instituições políticas e das possibilidades de ação dos grupos. Uma base sociopolítica suficientemente ampla implica que os atores políticos reúnam diferentes grupos sociais. Um bloco social é um conjunto de grupos sociais agregados por uma estratégia política.

Não é necessário que todas as expectativas dos grupos sociais pertencentes ao bloco sejam satisfeitas. Algumas destas exigências e expectativas podem contrariar outras consideradas mais importantes pelos atores ou, pelo contrário, supérfluas para obter apoio político. Assim, um bloco social implica não só uma separação entre os grupos que nele participam e os que são excluídos, mas também uma articulação interna entre os grupos centrais e constitutivos do bloco e os grupos integrados numa posição periférica.

Um bloco social que apoia uma estratégia vencedora de conquista de poder é um «bloco social dominante» (BSD). Um BSD estável existe quando uma certa mediação política ganha na competição política, com base nas políticas e mudanças institucionais que implementa. A existência de um BSD é uma condição necessária para a regulação do conflito social. Isto corresponde tanto à viabilidade de uma estratégia política capaz de reproduzir o apoio necessário para se impor no espaço político, como à relativa estabilidade da fronteira que separa os grupos dominantes incluídos no bloco e cujas expectativas serão, pelo menos, parcialmente tidas em conta na formação das políticas públicas, enquanto que as dos grupos dominados serão negligenciadas.

A hegemonia relaciona-se com o funcionamento do sistema económico, do papel do Estado, da hierarquia das dimensões da diferenciação política, o que afeta a tradução das posições objetivamente ocupadas na estrutura social. Os atores políticos podem envolver-se em lutas hegemónicas, cujo resultado, no entanto, está largamente fora do seu controlo. O domínio político, por outro lado, é determinado na arena política pela competição entre diferentes propostas de mediação política relativamente às expectativas sociais existentes, a possível constituição de um bloco dominante e a definição da fronteira que implica entre grupos politicamente dominantes e dominados.

Um bloco social é agregado por uma iniciativa política, que seleciona as exigências a serem , pelo menos em parte, satisfeitas pela implementação de políticas públicas e ações regulamentares, de acordo com o apoio dado pelos grupos sociais que as exprimem. Esta escolha de expectativas e, portanto, de grupos sociais, estabelece uma hierarquia baseada no peso político dos grupos, que não pode ser reduzida ao peso demográfico ou eleitoral. Um bloco social não é, portanto, homogéneo, mas estruturado de acordo com o peso político dos grupos sociais que o compõem.

Os grupos sociais são politicamente dominantes quando pertencem a um bloco social dominante. Isto significa que as suas expectativas e as exigências que consideram importantes são, pelo menos em parte, satisfeitas, o que leva ao apoio a atores políticos dominantes.

Os grupos sociais excluídos do BSD são politicamente dominados, as suas expectativas não influenciam significativamente a definição de políticas públicas ou a conceção institucional. As instituições são a expressão de compromissos passados. Diz-se que um grupo cujos interesses são favorecidos pelas instituições existentes, que podem refletir a sua influência passada nas decisões políticas, ou simplesmente ser o resultado da história, é dominante nesta área. Diz-se dominado se as instituições tiverem consequências prejudiciais para o interesse do grupo. A ideologia define uma visão aceite do mundo, o domínio do que é sensato, aceitável, possível, é dito ser dominante na dimensão hegemónica. É dominado quando a ideologia dominante considera as expectativas como ilegítimas, impossíveis de satisfazer, irrealistas ou desatualizadas.

Obtém-se então uma tipologia de grupos sociais, que podem ser dominantes ou dominados em cada uma das três dimensões: política, instituições e ideologia.

Um equilíbrio político é definido pela existência de um BSD estável, ou seja, uma aliança social que apoia a estratégia da liderança política. Em tal situação, a contestação proveniente de grupos sociais cujas exigências foram ignoradas, os grupos excluídos do BSD, não constitui uma ameaça à ordem política existente. A representação política dos grupos dominados encontra-se numa posição minoritária dentro do espaço político, ou legalmente reprimida com o uso da força. Um equilíbrio político não é necessariamente, ou mesmo predominantemente, uma situação em que as instituições não mudam.

A mudança de instituições implica a reabertura de um conflito que tinha sido anteriormente resolvido. Este movimento pode ser desejado pelos atores políticos no poder ou aspirando a estar, a fim de satisfazer certas expectativas emanadas de grupos sociais dentro ou fora do bloco social dominante. Os atores políticos no poder têm a possibilidade de iniciar uma mudança no desenho institucional, uma possibilidade que, na sua maioria, está fora do alcance dos partidos ou organizações que estão distantes do governo. A mudança pode ser orientada para a satisfação das exigências dos grupos do BSD, em detrimento dos grupos excluídos do BSD. Pode também ser um movimento no sentido da satisfação dos grupos dominados quando tal não for adverso aos interesses mais importantes do BSD, com vista a expandir o BSD ou a diminuir a oposição à estratégia política dominante.

A dissolução dos mais importantes compromissos institucionalizados conduz a uma situação de crise. Uma crise política corresponde a uma situação em que já não existe qualquer possibilidade de mediação política entre as exigências dos grupos sociais dominantes dentro dos limites da estrutura institucional existente. Esta situação corresponde à rutura do BSD, quando já não é possível satisfazer as exigências hierarquicamente superiores dos grupos que compõem o BSD. A resolução da crise política implica que o poder político deve encontrar uma solução. Isto pode envolver uma tentativa de recompor o BSD, incorporando grupos anteriormente excluídos, mesmo à custa de grupos que anteriormente faziam parte do BSD. Mas não há qualquer garantia de que tal seja possível, caso em que poderá ser necessário flexibilizar o constrangimento estrutural institucional, ou seja, implementar mudanças institucionais a fim de melhorar a probabilidade de encontrar uma aliança social que possa formar um BSD estável.

Uma crise política é gerada pela presença simultânea de dois fatores. Primeiro, a crise é suscetível de irromper quando o espaço de mediação política definido pela estrutura institucional se revelar incompatível com a estabilidade do BSD. Ou seja, quando dentro da estrutura institucional existente já não existir uma estratégia política capaz de satisfazer todas as expectativas dominantes. A crise pode ser evitada iniciando uma mudança institucional, reabrindo um espaço de compromisso entre os grupos participantes no BSD. Este deve ser suficientemente poderoso, forte e compacto, para que a reforma institucional seja levada a cabo. Caso contrário, haverá uma crise política. Um BSD não pode ser renovado com instituições inalteradas e que não fornecem apoio suficiente para a mudança institucional necessária para a sua existência contínua.

Uma primeira possibilidade é que, com instituições constantes, se forme um novo BSD, substituindo o antigo. A mudança no BSD não coincide necessariamente com um grande tumulto político. É possível que no núcleo do novo BSD estejam grupos que já estavam envolvidos no antigo. A modificação do BSD poderia ser conseguida simplesmente pela expulsão do bloco dominante de alguns grupos que ocupavam uma posição periférica na antiga aliança sociopolítica. Continua a ser necessário, no entanto, que uma estratégia política seja capaz de integrar grupos anteriormente dominados no novo bloco. Mas é também possível que dentro da estrutura institucional existente, um BSD radicalmente diferente do antigo se afirme, o que implicaria uma redefinição completa da fronteira dominante-dominada. O resultado da crise política seria uma modificação mais ou menos importante do BSD, sem pôr em causa as instituições sociais. Teríamos assim uma modificação das relações de poder social, mas com a estabilidade do modelo de capitalismo.

A segunda possibilidade é que a crise política, ou seja, a rutura do BSD, conduza a uma situação em que, com instituições constantes, nenhuma aliança social seja capaz de se afirmar como dominante. Neste caso, tratando-se de uma crise sistémica, a estrutura institucional define um espaço de mediação política que é incompatível não só com a renovação do antigo BSD, mas também com a emergência de um novo BSD. Numa situação de crise sistémica, qualquer projeto político que pretenda ser dominante deve incluir reformas institucionais. Numa crise sistémica, a instituição social estará no centro do conflito político, com um alargamento considerável do conflito social ligado ao questionamento de compromissos institucionalizados, e propostas de reforma diferentes e contraditórias. Uma crise sistémica é, portanto, uma situação em que o apoio ao modelo de capitalismo existente já não é suficiente para garantir a estabilidade política.

Agradecimentos

O autor agradece a Hugo Pinto o apoio na tradução e revisão deste texto.

Referências

Amable, B. & Palombarini, S. (2005). L’économie politique n’est pas une science morale. Paris: Raisons d’agir, coll. « Cours et travaux ». [ Links ]

Amable, B. & Palombarini, S. (2009). A neorealist approach to institutional change and the diversity of capitalism, Socio-Economic Review, 7(1), 123-143. https://doi.org/10.1093/ser/mwn018Links ]

Amable B. (2003). The Diversity of Modern Capitalism. Oxford: Oxford University Press. https://doi.org/10.1093/019926113X.001.0001Links ]

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Bourdieu, P. (1997). Méditations pascaliennes. Paris: Seuil. [ Links ]

Howarth, D. (2015). Gramsci, Hegemony and Post-Marxism. In M. McNally, A. Gramsci, (eds.) Critical Explorations in Contemporary Political Thought. London: Palgrave Macmillan. https://doi.org/10.1057/9781137334183_11Links ]

Palombarini S. (2001). La rupture du compromis social italien. Un essai de macroèconomie politique. Paris: CNRS Editions. [ Links ]

Palombarini, S. (2019) Politiques publiques et compromis de classe: les trois dimensions de l’autonomie du politique, ContreTemps, 41 (avril). [ Links ]

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