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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.sp23 Lisboa abr. 2023  Epub 10-Abr-2023

https://doi.org/10.15847/cct.27670 

ARTIGO ORIGINAL

Crises do capitalismo global no século XXI: tópicos para uma abordagem estrutural e holística

Global capitalism crises in the 21st century: topics for a structural and holistic approach

João Jerónimo Machadinha Maia1 
http://orcid.org/0000-0002-5392-9636

1CEIS20 - Centro de Estudos Interdisciplinares, Universidade de Coimbra, Portugal, joao.maia@uc.pt


Resumo

No século XXI tem ocorrido uma sucessão de crises do capitalismo global tendo por base uma multidimensionalidade de fatores. Este artigo visa fazer uma retrospetiva dessas crises identificando os tópicos associados aos fatores que estiveram na sua origem. O desenvolvimento do texto aborda uma série de assuntos-chave como a mundialização da economia neoliberal, a economia da zona euro, os conflitos geopolíticos e a crise ecológica como elementos determinantes nesta discussão. A partir daqui poderemos retirar contributos importantes para a estruturação do estudo da evolução do capitalismo global neste século segundo uma abordagem holística.

Palavras-chave: capitalismo; século XXI; evolução; crises

Abstract

In the 21st century, there has been a succession of crises of global capitalism based on a multidimensionality of factors. This article aims to make a retrospective of these crises, identifying the topics associated with the factors that were in their origin. The development of the text addresses a series of key issues such as the globalization of the neoliberal economy, the eurozone economy, geopolitical conflicts and the ecological crisis as determining elements in this discussion. From here we can draw important contributions to the structuring of the study of the evolution of global capitalism in this century according to a holistic approach.

Keywords: capitalism; 21st century; evolution; crises

1. Introdução

As crises do capitalismo global durante as primeiras décadas deste século têm revelado uma acentuada complexidade no que diz respeito à explicação das suas causas. Com efeito, cada vez mais perdem sustentação as abordagens clássicas assentes no estudo das crises tendo por base elementos meramente económicos ou financeiros. São abordagens que conceptualizam os sistemas económicos como sistemas fechados e, nessa medida, revelam-se redutoras para analisar fenómenos que evidenciam ser influenciados por uma multidimensionalidade de fatores. Na verdade, exige-se uma abordagem à estrutura dos sistemas económicos numa dimensão holística que identifique outro tipo de fatores que motivam a instabilidade económico-financeira e a instabilidade social.

Em parte, o século XXI tem-se assumido como o reflexo da escolha de determinadas políticas económico-financeiras através do chamado Consenso de Washington (Stiglitz, 2002; Santos B.S., 2001; Teodoro, 2001). A isto juntou-se um contexto geopolítico marcado pela Guerra ao Terror, iniciada a partir do 11 de setembro de 2001 (Daalder & Lindsay, 2003). Por outro lado, tem aumentado a evidência que vivemos uma nova época da história do planeta Terra denominada como o Antropoceno, que surge como consequência da implantação, pelo ser humano, do sistema urbano-agro-industrial à escala global (Durán, 2011). Entre os fenómenos que marcam o Antropoceno, está a enorme exploração dos recursos naturais e consequente interferência com os ecossistemas, por parte do sistema socioeconómico construído pelo ser humano. Estes elementos têm-se desenvolvido num cenário de grandes assimetrias entre países e regiões do globo, originando efeitos diversos consoante as especificidades locais. É neste quadro geral que temos a vindo a assistir ao despoletar de sucessivas crises que se têm manifestado, inclusivamente, no plano económico e social.

Neste sentido, este artigo revisita a série de abalos e de crises económicas ocorridos durante o século XXI até ao desencadeamento da crise pandémica da COVID-19 (Schaeffer, 2022). O texto debruça-se sobre a evolução recente do capitalismo global e os seus reflexos regionais, com especial enfoque na periferia europeia e em exemplos do caso português. É uma oportunidade de tratar de forma mais aprofundada a realidade que nos é mais próxima. Neste contexto, o presente artigo tem desde logo como primeiro objetivo fazer uma identificação multidimensional dos elementos presentes nas origens das crises do capitalismo global desde o início do atual século. O desenvolvimento dos conteúdos aborda tópicos de dimensão económico-financeira, social, cultural, geopolítica e ecológica que revelam estar na base das referidas crises. Embora não se pretenda concluir nada em definitivo sobre matérias que, como já foi referido, são de acentuada complexidade, pretende-se em última análise facultar contributos para o desenvolvimento de uma abordagem estrutural e holística à evolução do capitalismo global nas últimas décadas. Estes contributos poderão posteriormente servir de suporte a trabalhos de maior dimensão e estruturação, num campo de estudo onde existe ainda muito por fazer e onde ainda agora se procuram abordagens conceptuais e epistemológicas alternativas às abordagens inspiradas na matriz liberal clássica dos estudos económicos. Esta matriz, juntamente com os desenvolvimentos do monetarismo da economia neoclássica do século XX, tem vindo a influenciar os principais fundamentos da economia política neoliberal cuja a abordagem é central neste texto.

2. O Consenso de Washington e a viragem do século

O final do século XX e a consecutiva viragem para o século XXI não significou a vitória da democracia liberal e o fim da história, como chegou a ser sugerido (Fukuyama, 1992). Na verdade, seguiram-se décadas de instabilidade, a vários níveis, tendo como pano de fundo a persistência da bipolaridade Norte-Sul na ordem mundial. Se entendermos esta bipolaridade como a substituição das dicotomias países desenvolvidos/em vias de desenvolvimento, países industrializados/recentemente industrializados, países de alto rendimento/médio-baixo rendimento ou países colonizadores/ex-colónias, então podemos ver, como refere Korany Bahgat (1994), que a “nova equação global” resultante do fim da Guerra-fria deixou o Sul global ainda mais periférico do ponto de vista intelectual, político e económico devido à imposição do Norte-centrismo. Para percebermos como isto aconteceu, devemos passar em revista os acontecimentos que têm vindo a implicar alterações na ordem mundial.

Foi a partir do final da II Guerra Mundial, nos países do Norte global, que se estabeleceu uma ideologia desenvolvimentista que colocava a ênfase no crescimento económico e no aproveitamento do capital humano. Para além do processo de reconstrução que era necessário empreender nos países europeus devastados pela guerra, estávamos perante um paradigma de desenvolvimento que dava grande importância à adaptação das economias, e dos próprios sistemas produtivos, às novas tecnologias, algo que não era estranho à Guerra-fria e à corrida ao espaço. Na coordenação e na discussão das políticas implementadas por vários países, já nesta altura era bem visível o papel preponderante desempenhado por organizações internacionais como a OCDE que estavam especialmente vocacionadas para a cooperação e desenvolvimento económicos a nível internacional. No âmbito da cooperação internacional, estas organizações têm vindo a fornecer, aos países, diretrizes para as políticas de desenvolvimento, incluindo no seu delineamento em áreas sociais como a educação (Teodoro, 2001). Tendo em conta a grande relevância dada ao fator económico, a maioria dos países do Norte global consolidou, por essa altura, um modelo socioeconómico que permitiu a compatibilização do capital com preocupações de natureza social - o chamado estado-providência.

Inclusivamente, as décadas do pós-guerra foram décadas de ouro do crescimento económico. No entanto, haveriam de dar lugar a períodos de crise económica e financeira, a partir da década de 70, com o primeiro grande choque petrolífero trazendo sinais de incerteza ao modelo predominante de estado-social. É já nas décadas de 80/90 com a crise do estado-providência nas suas várias vertentes (burocrática, fiscal, administrativa e ideológica) e com a queda do bloco soviético que se acentua a mundialização da economia neoliberal. Agora o desenvolvimento é cada vez mais dependente de um gerencialismo global imposto a partir do chamado “Consenso de Washington” e perpetrado por organizações internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio (OMC), governadas maioritariamente pelas potências do Norte global. Estamos perante um modelo económico-financeiro baseado nas experiências de governação da administração norte-americana liderada por Ronald Reagan, do governo britânico da primeira-ministra Margaret Thatcher e também da ditadura militar chilena comandada por Augusto Pinochet, a partir dos anos 70. Este modelo, nas suas medidas basilares, foi aproveitado no fim da Guerra-fria pelas instituições económico-financeiras internacionais, em estreita ligação com as instituições financeiras norte-americanas, para impor, do ponto de vista global, um modelo económico da matriz liberal anglo-saxónica (Rodrigues, Santos A.C. & Teles, 2016).

Na base deste paradigma estão dez princípios de ação fundamentais que normalmente são impostos aos países quando estes são alvos de ajuda financeira internacional: a disciplina fiscal, para evitar grandes déficits fiscais em relação ao produto interno bruto (PIB); as prioridades nos cortes da despesa pública, o que se reflete em cortes na despesa social em áreas como a educação, a saúde e os apoios sociais; a reforma fiscal, traduzida com frequência num alívio da carga fiscal sobre os grandes grupos económicos e os negócios da bolsa, mas, ao mesmo tempo, pelo acréscimo do peso dos impostos sobre os rendimentos do trabalho e sobre os pequenos negócios; liberalização financeira, em termos da determinação das taxas de juro pelos mercados; a definição de taxas de câmbio competitivas; liberalização do comércio, no que diz respeito à abertura das fronteiras ao comércio externo eliminando barreiras legais e baixando as tarifas aduaneiras às importações; incentivo à entrada de investimento estrangeiro direto; privatização de setores estatais considerados chave até então, como a saúde, a educação, a segurança social ou empresas estratégicas do setor do estado como a água e a energia; desregulação dos mercados financeiros, nomeadamente na contratação de produtos financeiros de elevado risco especulativo; estabelecimento de um sistema internacional de patentes ou direitos de propriedade (Stiglitz, 2002; Santos B.S., 2001; Teodoro, 2001).

Estas políticas de âmbito económico-financeiro têm servido como mandamentos para os chamados programas de liberalização-choque que frequentemente as referidas organizações internacionais, com especial ênfase para o FMI, aplicam aos países que se encontram em dificuldades do ponto de vista das suas finanças públicas e da sua economia. Concretamente, são propostas, a esses países, transições rápidas para economias de mercado liberalizado sem acautelar muitos dos efeitos económicos e sociais que isso poderá acarretar. Nesta medida, estes programas implicam a rápida privatização de empresas estatais e a abertura abrupta dos mercados ao investimento estrangeiro, incluindo na entrada de capitais de curto prazo especulativos. O facto deste tipo de capitais implicar a criação de lucro que não é sustentável a médio-longo prazo e o facto de muitas destas economias terem dificuldade em fazer face à concorrência externa, pois têm um tecido empresarial frágil do ponto de vista competitivo, gera nestes países crises económico-financeiras e problemas de endividamento. Em paralelo, outras contrapartidas exigidas aos países, nos programas externos de ajuda financeira do FMI e do Banco Mundial, para receberem o dinheiro, traduzem-se normalmente em subidas das taxas de juro e em cortes na despesa pública. Evidentemente que a aplicação deste tipo de medidas mais não faz do que gerar um ciclo recessivo vicioso do qual os países têm muita dificuldade em sair (Stiglitz, 2007, 2002).

Por outro lado, é correto precisar que estamos a falar de um leque variado, a nível mundial, e por isso heterogéneo, de economias em que os referidos programas têm sido aplicados. Desta forma, embora as medidas aplicadas sigam determinados princípios-padrão, também surgem efeitos específicos da aplicação dessas medidas consoante o caso em questão. Inclusivamente, por vezes até se apresentam supostos casos de sucessos de países intervencionados pelo FMI, mas são casos que não resistem a um olhar atento e duradoiro. Por exemplo, o caso da América Latina e, em particular, da Argentina onde a intervenção externa acabou por levar a um aumento do consumo, mas onde as privatizações deixaram empresas-chave na mão de investidores estrangeiros o que acabou por não contribuir para a sustentabilidade do desenvolvimento do país. Também em África, as terapias-choque do FMI, juntamente com a epidemia da SIDA, que, neste contexto, é de difícil tratamento, devido a um comércio internacional de medicamentos altamente injusto para com o continente, têm tido consequências económicas e sociais nefastas em termos de destruturação das sociedades e promoção de conflitos (Stiglitz, 2007).

Ainda nos anos 90 do século passado, os fenómenos económico-financeiros relatados puderam ser constatados com os programas de ajustamento estrutural aplicados a economias periféricas e semiperiféricas de outros pontos do globo. Houve casos em que também foi possível distinguir efeitos bastante concretos deste tipo de programas levando em linha de conta as especificidades nacionais. Em particular, a passagem para uma economia de mercado dos países da antiga União Soviética assumiu contornos dramáticos. Isto foi especialmente visível na Federação Russa, onde a rápida privatização das empresas estatais resultou num desbaratamento dos ativos públicos, numa avolumada saída de capitais do país, na concentração das empresas estratégicas nacionais num grupo de oligarcas com proximidade ao poder político e num rápido agravamento das condições de vida para a generalidade da população (Stiglitz, 2002).

Na verdade, estamos perante um pragmatismo económico-financeiro aplicado a régua e esquadro sem obedecer aos processos democráticos. Em consonância com a visão de Joseph Stiglitz, isto acontece porque as instituições internacionais, que aplicam os programas de ajustamento estrutural, são dirigidas por quadros técnicos com ligações aos grandes grupos económicos e financeiros internacionais. Neste sentido, no exercício das suas funções, estes quadros refletem a visão e os interesses dos referidos grupos, sem terem grandes preocupações com a auscultação dos diferentes agentes políticos e sociais dos países intervencionados. Assim, na execução dos programas de liberalização-choque, os diferentes agentes políticos e sociais, dos países intervencionados, muitas vezes não são ouvidos na consideração das suas posições e das suas necessidades. Consequentemente, as especificidades locais acabam por não ser tidas em conta no delineamento dos planos de intervenção, sendo que estes acabam por resultar em efeitos indesejados e/ou imprevistos em termos de agravamento da situação financeira, económica e social dos países. Também em finais da década de 90, foi a aplicação de políticas em países do Sudeste Asiático e do Oriente, baseadas nas linhas orientadoras do Consenso de Washington, que provocou a grave crise dos mercados asiáticos. Esta crise em muito se deveu ao inflacionamento de bolhas económicas alimentadas pela entrada nestes países de grandes quantidades de capitais de curto prazo. Estes fluxos descontrolados de dinheiro, assentes no pressuposto do lucro rápido, tiveram como destino, em grande parte dos casos, grupos privilegiados próximos do poder político. A insustentabilidade deste tipo de operações financeiras contribuiu para um grande aumento das dívidas externas e para fortes convulsões sociais e políticas em vários países da região (idem). Já a China e a Índia, desde logo, no quadro da globalização económica, têm tido melhores indicadores económicos. Estes países não têm subestimado o papel do estado nomeadamente na ponderação da liberalização dos mercados, em especial com sérias restrições à entrada de capitais de curto prazo e especulativos, aproveitando os ensinamentos da referida crise dos mercados asiáticos. No caso da China, pese embora a subsistência de acentuadas desigualdades sociais entre a população, tem havido um investimento significativo em setores como a educação, saúde e o desenvolvimento tecnológico, em paralelo com a existência de um setor empresarial robusto do estado. A Índia, ainda assim, não consegue acompanhar os indicadores da China em todas estas áreas devido à especificidade da sua organização política e social (Zakaria, 2008; Stiglitz, 2007).

É precisamente das fraquezas internas às economias dos países intervencionados que se baseiam as premissas da aplicação das políticas do Consenso de Washington. No que diz respeito aos movimentos de privatização dos sistemas de segurança social, estes foram particularmente incentivados no contexto abordado. O argumento da mobilização da poupança em termos do seu contributo para o crescimento económico foi particularmente acolhido nos países em vias de desenvolvimento e do Leste Europeu na década de 90. Estes países enfrentavam um contexto de escassez de capital e pressão das principais instituições internacionais, no quadro dos programas de ajustamento estrutural em curso (Rodrigues, Santos A.C. & Teles, 2016). De modo geral, no que diz respeito às privatizações, quase todos os países da OCDE diminuíram o peso das empresas públicas no total da economia entre os anos de 1998 e 2003. Mas esse decréscimo foi precisamente mais significativo em países como a República Checa, a Finlândia e a Polónia (EFPP, 2012). Também a periferia do Sul da Europa, no que se refere a países como Portugal, Espanha e Grécia, havia atingindo o pico das privatizações nos anos 90 decorrente do processo de adesão europeia e suas obrigações de liberalização dos mercados. Portugal, em particular, vinha a fazer, desde o início dos anos 80, um movimento de modernização da economia que teve como marco, em 1983, a abertura do setor financeiro ao capital privado. Mas a entrada de Portugal para a CEE (Comunidade Económica Europeia) e a entrada em vigor do Ato Único Europeu constituíram elementos de pressão para a aproximação da economia portuguesa às práticas dos outros países europeus (idem).

Se por um lado, o paradigma económico posterior à II Guerra Mundial era mais baseado no crescimento industrial e das infraestruturas, por outro lado, o rápido desenvolvimento das tecnologias de informação e de comunicação tem propiciado a mundialização da economia neoliberal, em termos de uma economia mais virada para o conhecimento e para a informação. Neste contexto, um processo central que podemos identificar no gerencialismo global, desenvolvido a partir do Consenso de Washington, é o processo da financeirização. De modo geral, a financeirização pode ser definida:

“…como um conjunto de processos históricos e institucionais através dos quais os atores, os motivos e os mercados financeiros ganharam um peso acrescido no capitalismo contemporâneo, exercendo uma influência crescente nas suas dinâmicas” (Epstein, 2005, in Rodrigues, Santos A.C. & Teles, 2016, p.33).

Este processo, desenvolvido a partir da experiência do mundo anglo-saxónico, inclui fenómenos socioeconómicos variados como a privatização, desregulamentação e regulação conforme ao desenvolvimento da atividade financeira, expansão e proliferação de diferentes tipos de ativos financeiros na acumulação de capital, desigualdade crescente devido ao peso das recompensas financeiras capturadas pelo topo da pirâmide social ou, ainda, crescimento baseado no consumo alimentado a crédito (Fine, 2010, inRodrigues, Santos A.C. & Teles, 2016). Neste sentido, como refere José Reis, para além do seu significado mais geral, pode entender-se a financeirização como:

“…o processo em que se torna predominante a formação de ativos financeiros através da deslocação de montantes de riquezas vindos da esfera real da economia, acelerando-se a sua circulação em mercados próprios, tendo em vista rentabilizá-los. É isso que passa a dominar as relações económicas, criando-se uma economia de crédito e de endividamento” (Reis, 2018, p.61).

Esta linha de políticas não deixou, desde logo, de ter continuidade, em termos de aplicação, nos Estados Unidos da América (EUA) e no quadro da arquitetura monetária desenvolvida na União Europeia (UE). Ainda assim, tanto os Estados Unidos da América como a própria periferia da União Europeia registaram um crescimento económico elevado durante boa parte dos anos 90 devido à configuração política dos seus governos, numa altura em que começou a entrar em voga a denominada terceira via de centro-esquerda (Giddens, 1999). Estes governos aplicaram medidas de proteção do emprego e dos rendimentos e de alargamento do mercado de trabalho, o que permitiu salvaguardar os níveis de crescimento económico (Reis, 2018). No entanto, no caso dos países da periferia europeia, enquadrada a nível global como uma semiperiferia, as especificidades estruturais das suas economias não podiam ser disfarçadas durante muito tempo. Até certa altura prevaleceu uma conceção de “europeísmo feliz” alicerçada na convicção de que a redução das taxas de juro e o acesso ao crédito fornecido por um sistema financeiro liberalizado e integrado nos circuitos financeiros internacionais e no mercado interbancário europeu seria uma solução que tudo resolveria (Barbosa, coord., 1998, in Reis, 2018).

O caso português é um exemplo central nesta ordem de raciocínio. Também tendo em conta os atrasos estruturais do país, em termos de qualificação da mão-de-obra e da capacidade tecnológica, a maior abertura internacional da economia foi realizada através de um modelo exportador assente em salários comparativamente baixos e teve como contrapartida não desejada uma excessiva facilidade para as importações. Em paralelo, assistíamos à reconstituição dos grupos económicos nacionais e à sua vinculação à banca e à finança e não aos setores produtivos, tendo isso fortemente contribuído para a desindustrialização e, consequente, terceirização da economia nacional (Reis, 2018). Esta banca escolheu privilegiar no seu investimento setores pouco expostos à concorrência internacional, nos chamados setores dos bens e serviços não transacionáveis, com especial relevo para a construção e para o imobiliário. Neste contexto, ocorreram elevadas somas de crédito disponibilizadas às famílias pela banca e ligadas à compra e ao consumo nos ditos setores não transacionáveis, como o imobiliário, mas também a distribuição e as telecomunicações, progressivamente privatizadas (Rodrigues, Santos A.C. & Teles, 2016). Podemos aqui analisar que o incentivo que se deu à contração de crédito pelas famílias, e também pelas empresas, não deixou de ser uma forma de alavancar o crescimento económico, colmatando as debilidades do poder de compra, no que diz respeito ao nível médio dos salários, e as debilidades do país para competir nos setores industriais de alta intensidade tecnológica. Nesta medida, atenda-se à relação entre a disponibilização de taxas de juro baratas aos portugueses com a construção da União Económica Monetária (UEM), em termos de fenómeno que foi observável noutros países europeus e à semelhança do que ocorria pela mesma altura nos Estados Unidos da América. Isto porque as taxas de juro baixas e os afluxos de capital ainda mais substanciais só podiam ser alcançados através de modelos parcialmente dolarizados ou vinculados ao euro. Ou seja, era necessário um contexto de regimes cambiais rígidos, com os agentes nacionais a terem fortes incentivos para se endividarem em moeda estrangeira (Becker et al, 2010, in Rodrigues, Santos A.C. & Teles, 2016). Como resultado desta maior oferta de crédito, as famílias e as empresas portuguesas atingiram no final do século passado níveis de endividamento altos à semelhança do que acontecia com outras congéneres europeias (Rodrigues, Santos A.C. & Teles, 2016).

Outro indicador que explica os altos níveis de consumo e desempenho económico, nos anos descritos, foram os baixos preços dos combustíveis por via de baixos preços do petróleo. No entanto, esta década de bons níveis de crescimento, em particular no Ocidente, sofreria um sério revés no ano 2000 e no despontar do século XXI. A mundialização da economia neoliberal era compatibilizada nesta parte do mundo com medidas de proteção do emprego, dos rendimentos e de alargamento do mercado de trabalho (Reis, 2018). Como atrás foi referido, foi a época dos governos alinhados com a nova terceira via de centro-esquerda que tiveram como parceiro ideológico, do outro lado do Atlântico, o governo da administração democrata liderada por Bill Clinton. Só que a natureza cíclica de um modelo económico deste tipo, altamente dependente do consumo e com geração de grandes níveis de endividamento, viria ao de cima. No ano 2000 há um abrandamento da economia mundial em simultâneo com a subida dos preços do petróleo e dos combustíveis, o que não deixa de ser notado pelos relatórios oficiais (COM, 2001). Normalmente e de acordo com a receita prescrita, estes fenómenos são acompanhados com uma subsequente subida das taxas de juro, algo que não deixou de ocorrer embora a própria banca se tenha apressado a desdramatizar publicamente os seus efeitos (Público, 2000). A verdade é que em economias com as características da economia da portuguesa, a conjugação da subida das taxas de juro com a subida dos preços dos combustíveis foi especialmente gravosa para a subida do custo de vida, causando descontentamento social. Os próprios ciclos políticos tornaram-se indefinidos, curtos e instáveis. Embora não se possa falar de uma crise económica com a severidade da crise que estaria para vir alguns anos depois, o início do século XXI foi marcado por um abalo económico que se refletiria em quedas significativas no crescimento e que haveria de chegar a uma recessão internacional em 2001 (Reis, 2018).

Esta mudança de quadro económico internacional teve, inclusivamente, sequência com as alterações muito relevantes que ocorreram no quadro da geopolítica global. A chegada ao poder da administração norte-americana liderada por G.W. Bush marca uma viragem de décadas na política internacional, entrando em choque com a ordem mundial que vinha a ser gizada desde o tempo das duas guerras mundiais. A administração anterior, liderada pelo presidente Bill Clinton, representava a continuação da abordagem baseada na tradição do presidente Woodrow Wilson, em termos da construção de uma ordem mundial baseada no primado da lei. Clinton e os seus conselheiros argumentavam que a globalização estava a aumentar os laços económicos, políticos e sociais entre as nações e que esta crescente interconexão cumpria a visão de Wilson para o mundo. Nesta linha política, a administração Clinton continuou uma série de iniciativas como o estabelecimento de acordos internacionais para o controlo da proliferação internacional de armas de destruição maciça como também se envolveu no estabelecimento de novos acordos internacionais, tais como a criação do Tribunal Penal Internacional e o estabelecimento do Protocolo de Quioto, com o objetivo de combater as alterações climáticas (Daalder & Lindsay, 2003).

Ora a entrada em funções do presidente republicano G.W. Bush rompeu com esta série de políticas. A nova administração assentava numa combinação de elementos neoconservadores e de nacionalistas assertivos com ligações ao grande poder económico. Ambos os grupos coincidiam na crítica à tradição de Wilson da criação de instituições internacionais baseadas no primado da lei. A nova administração trouxe para o exercício do poder uma noção do mundo como um lugar perigoso. Esses perigos eram apontados como tendo potencialmente origem em adversários ou inimigos externos como a China, a Rússia, o Iraque ou a Correia do Norte. Havia que procurar “monstros” para destruí-los. Nesta medida, os EUA assumiram uma posição de unilateralismo na política externa pois o seu governo tinha como visão dominante a missão de transformar o mundo à imagem da América, em termos de uma ideia de segurança, prosperidade e liberdade. Ainda assim, este posicionamento não deixa de ter influências da real politique, uma vez que havia um objetivo claro de prolongar no tempo a supremacia militar e económica e a influência cultural do país, a nível mundial. Era entendimento desta administração a ideia de que os acordos e as instituições multilaterais não eram essenciais ou necessários aos interesses americanos. Apesar disto, há que precisar que do ponto de vista económico-financeiro este governo norte-americano mostrou um fiel alinhamento com as diretrizes emanadas do Consenso de Washington. Os seus membros foram desde o início notoriamente reconhecidos como defensores de políticas conversadoras relacionadas com o corte de impostos para os grandes grupos económicos ou as privatizações na área da segurança social (idem).

No entanto, em matéria de política externa o militarismo viria mesmo a ser nota dominante com Bush “filho”. Houve um aumento considerável do investimento na defesa e o multilateralismo foi desprezado. Nesta linha política, houve focos de crise tradicionais, como a questão palestiniana e a Correia do Norte, que sofreram retrocessos consideráveis em termos da obtenção de uma solução negociada. Com efeito, a noção do mundo, como um lugar perigoso, assente na visão a preto e branco da luta entre o bem e o mal, desde logo foi causando tensões e crispações, incluindo com outras potências globais como a China. A falta de vontade em chegar a entendimentos internacionais acabou por se refletir no abandono dos Estados Unidos da América em relação ao reconhecimento da jurisdição do Tribunal Penal Internacional e da ratificação do Protocolo de Quioto. É verdade que esta administração herdou uma situação de jihadismo internacional contra os EUA que já vinha a subir de escala com a administração anterior. Mas a ocorrência dos atentados do 11 de setembro de 2001, em vez de promover no governo norte-americano uma mobilização em torno das instituições internacionais para garantir a ordem e a paz mundial, acabou por fortalecer a visão de Bush da necessidade de transformar o mundo. Para se atingir a paz, a liberdade e fazer o mundo à imagem da América havia que remover os “obstáculos” através da designada “Guerra ao Terror”. Após a invasão do Afeganistão, santuário dos perpetuadores dos atentados ao coração da América, seguiu-se uma muito polémica invasão do Iraque segundo pretextos que se verificariam falsos, mas que serviria para satisfazer aqueles que nos círculos de poder norte-americanos defendiam a necessidade de completar o trabalho iniciado na 1ª Guerra do Golfo, a remoção do ditador Sadam Hussein do poder. Só que o avanço quase isolado dos EUA para esta guerra, ao arrepio de qualquer resolução das Nações Unidas, custaria ao país a alienação de alguns dos seus tradicionais aliados na Europa (idem). De qualquer forma, não há que negar que a hostilização provocada pelos responsáveis americanos foi dirigida para potências e forças tradicionalmente fora do quadro ocidental, do ponto vista geopolítico e cultural. Isto para muitos terá sido a confirmação do vaticínio do “Choque de Civilizações” realizado por Samuel Huntington (1996) alguns anos antes. Esta política belicista, crispada e unilateral fortaleceu uma conceção, ainda que redutora, das civilizações e das próprias culturas como blocos em larga medida fixos e constantes. O multilateralismo e o diálogo intercultural, que poderiam estabelecer pontes de entendimento entre diferentes blocos geopolíticos, estavam a ser flagrantemente negligenciados.

Num país, como o Iraque, situado numa região produtora de petróleo como o Médio-Oriente, sendo o próprio país um grande produtor de crude, esta guerra veio provocar graves disrupções económicas e sociais nomeadamente no setor energético. Com a guerra, os iraquianos deixaram de ter eletricidade para aquecer as suas casas e cozinhar a sua comida, a segurança tornou-se de tal forma precária que receavam sair à rua e os seus filhos não podiam ir à escola. Não havia gasolina para abastecer os carros e sendo que a vasta maioria das pessoas eram dependentes do dinheiro e dos serviços do estado iraquiano, acabaram por ficar sem qualquer tipo de garantias nesta matéria (Daalder & Lindsay, 2003). Como iremos observar neste texto, estava dado o mote para anos de instabilidade e conflitos geopolíticos que se iriam refletir do ponto vista económico em questões como a instabilidade no preço dos combustíveis e do petróleo e, por outro lado, pela não mobilização conjunta do mundo para atacar desafios globais como as alterações climáticas.

3. Entre a crise do subprime e a crise da dívida soberana europeia

As várias décadas consecutivas de políticas de liberalização económica e de desregulação financeira (Tooze, 2018), tanto nos Estados Unidos da América como noutros pontos do globo, baseadas no Consenso de Washington, haveriam de causar prejuízos sérios à economia mundial, como já não se registavam desde o tempo da Grande de Depressão de 1929. Apesar da mudança de ciclo económico ocorrida no ano 2000, o acesso ao crédito com baixas taxas de juro seria reposicionado durante mais alguns anos mitigando outros problemas económicos, o que no contexto europeu foi facilitado pela integração na moeda única (Rodrigues, Santos A.C. & Teles, 2016). No entanto, no ano de 2006 constataríamos os primeiros efeitos da chamada crise do subprime. Esta crise foi motivada pela concessão de empréstimos hipotecários de alto risco, prática que arrastou vários bancos para uma situação de insolvência e, em alguns casos, de falência, repercutindo-se fortemente sobre as bolsas de valores a nível global (Tooze, 2018). Concretamente, os cinco grandes bancos de investimento norte-americano, “Big Five”, haviam entrado numa espiral de realização de empréstimos de curto-prazo emitindo papel comercial de risco ao mesmo tempo que contraiam somas muito mais avultadas de dinheiro através de acordos de recompra, os chamados “repos” (Ball, 2018; Tooze, 2018). Antes da crise começar, havia a crença generalizada de que estes acordos de recompra eram seguros. Só que a realidade viria a contrariar esta crença. O Bear Stearns, o banco mais pequeno do “Big Five”, tinha investimentos especialmente grandes em hipotecas e títulos lastreados em hipotecas e, portanto, foi duramente atingido quando os preços da habitação começaram a cair em 2006. Um momento marcante da crise foi quando, em julho de 2007, dois fundos de investimento de risco patrocinados pelo Bear falharam. No quarto trimestre de 2007, o Bear Stearns tornou-se o primeiro dos cinco grandes bancos de investimento a reportar um prejuízo trimestral. Isto levou os investidores a perderem confiança no banco, o que levou, por sua vez, a avisos da parte das agências de rating, à queda dos preços das ações e ao aumento dos preços dos swaps de inadimplência de crédito para a dívida do Bear. De forma mais abrangente, estes acontecimentos viriam a provocar a perda de confiança no sistema financeiro e bancário norte-americano arrastando-o para um ciclo de declínio (Ball, 2018).

O facto do Bear Stearns ser o banco mais pequeno do “Big Five” não provocou logo o pânico que se seguiria quando os bancos maiores foram afetados neste efeito dominó. O Lehman Brothers começou a ter sinais sérios de problemas em março de 2008, durante a crise do Bear. O Lehman, um banco de maior dimensão, começou também a experienciar uma erosão gradual de confiança que se viria a tornar rapidamente devastadora. Sendo que este banco tinha uma natureza de investimentos muito semelhante à relatada, depressa se colocou uma crise de liquidez com riscos de propagação a outros bancos. O dia 15 de setembro de 2008 marca o “olho do furacão” da crise do subprime pois foi o dia em que a liquidez do Lehman Brothers ficaria a zeros. Ainda houve a esperança de sobreviver aos credores através de um acordo de resgaste do banco. Mas a Reserva Federal Americana em conjunto com a administração de G.W. Bush decidiram não intervir no Lehman receando os efeitos políticos de uma intervenção financeira desta natureza, que teria de ser de grandes dimensões. O Lehman Brothers haveria mesmo de declarar a falência (idem).

No entanto, a intervenção através de um resgaste em larga escala sobre o sistema financeiro e bancário norte-americano viria a ser uma realidade a breve prazo. A falência do Lehman despoletou uma crise de dinheiro nos mercados resultando em perdas significativas em outros grandes bancos e alastrando-se a outros países. Desta feita, não houve outra alternativa senão recorrer à injeção de dinheiros públicos no sistema financeiro e bancário de modo a salvá-lo. Do ponto de vista social, esta crise financeira teve graves consequências pois transformou-se numa crise económica de grande severidade. O desemprego atingiu níveis muito elevados levando vários anos a recuperar. Para além das estatísticas, os rendimentos dos trabalhadores diminuíram seriamente. Isto provocou problemas a muita gente em termos de prosseguimento dos estudos, início da sua carreira profissional ou desenvolvimento de problemas de saúde ou até de abuso de drogas (idem).

Por outro lado, se atendermos ao quadro das relações globais, podemos verificar que a crise do subprime não se desenvolveu de forma isolada. Ela ocorreu em paralelo com uma série de crises que iam revelando as fragilidades sistémicas e estruturais do modelo de desenvolvimento económico hegemónico. É exemplo disto a crise dos bens alimentares de 2006-2008. Tratou-se de uma crise na produção e no nível dos stocks de alimentos que originou um aumento muito significativo nos preços de diversos alimentos, como o trigo e o milho, em diferentes partes do mundo. As causas desta crise são complexas e carecem de aprofundamento em termos da sua compreensão. Mas, ainda assim, elas encerem-se num contexto em que a mundialização da economia neoliberal desenvolveu-se em simultâneo com uma série de problemáticas globais como o aumento da população mundial e a própria alteração dos padrões de economia, colocando grandes pressões na produção, as alterações climáticas e os conflitos geopolíticos. Terá havido uma inter-relação de diferentes fatores no desencadeamento desta crise. No entanto, como causas mais diretas para o aumento dos preços dos alimentos, podemos desde logo apontar a flutuação descontrolada que os preços do petróleo vinham a sofrer. Estes oscilavam entre 40 e 140 dólares por barril exercendo um efeito intermitente, mas ainda assim de pressão crescente sobre os preços dos bens alimentares. Tal pressão tendeu a fazer crescer os custos de produção e de transporte dos alimentos. A indústria alimentar moderna está muito dependente dos combustíveis fósseis, não só para efeitos de transporte da comida, mas também para efeitos de produção de fertilizantes e de pesticidas bem como para fazer operar a maquinaria (Holt-Giménez & Patel, 2009).

A este propósito, é recorrente afirmar-se que o crescimento das classes médias em países como a China e a Índia também tem feito subir o preço dos alimentos devido ao elevado aumento da sua procura. Holt-Giménez & Patel (idem) argumentam, no entanto, que este não é o problema em si. Na verdade, apesar de grande parte do Sul global permanecer com carências alimentares muito elevadas, estamos a assistir a uma generalização, para países como a China, do modo de produção alimentar industrializado e massificado oriundo do Norte global e orientado primariamente para a obtenção do lucro. A agricultura continua a ser muito menos intensiva em capital nos países de baixo e médio rendimento. No entanto, os níveis globais de investimento em toda a economia, ou a formação bruta de capital fixo, aumentaram nos últimos 25 anos. Isto aconteceu particularmente no caso do Leste Asiático e no Pacífico, graças à China, onde o investimento aumentou a uma taxa anual de cerca de 15%, enquanto nos países de rendimento alto o aumento foi em média inferior a 2% ao ano entre 1991 e 2014. No mesmo período, a parcela do investimento sobre o PIB passou de menos de 30% para mais de 45% na China. Por outro lado, a parcela do investimento sobre o PIB ficou entre os 22% e os 27% tanto em países de rendimento alto como em outros países de baixo e médio rendimento (FAO, 2017: 12-13). Esta realidade, também se tem refletido no aumento do investimento de capital intensivo no modo de produção alimentar em regiões como o Leste Asiático e o Pacífico, incluindo na China, apesar das diferenças substanciais que ainda separam, nesta matéria, a generalidade do Sul global em relação ao Norte global (FAO, 2017).

No entanto, o modo de produção alimentar industrial e massificado tem impactes negativos a vários níveis como o consumo de recursos naturais, a poluição e a degradação ambiental, o detrimento ou prejuízo de outras formas de agricultura e a concentração do sistema de produção alimentar num pequeno número de empresas. Neste sentido, os recursos naturais como a água e a terra tornam-se cada vez mais escassos. É, assim, a globalização deste modo de produção alimentar que coloca maior pressão sobre o sistema alimentar. Do mesmo modo, este modelo também tem tido um efeito nefasto sobre a problemática das alterações climáticas. A grande indústria alimentar é responsável por uma parte significativa da emissão de gases com efeito estufa, retirando espaço à agricultura orgânica e sustentável que poderia ajudar a mitigar o fenómeno. Por outro lado, de forma perversa, as alterações climáticas ao proporcionarem o aparecimento de mais fenómenos climáticos extremos têm vindo a destruir anualmente muitas colheitas, sendo mais um fator que se pode apontar à flutuação dos preços dos bens alimentares, inclusivamente no período referido. Isto torna-se especialmente grave em populações e em produtores dos países do Sul, uma vez que apresentam uma exposição e uma vulnerabilidade maior às contingências do clima (Holt-Giménez & Patel, 2009).

Nesta medida, a crescente aposta feita na produção de biocombustível, como é o exemplo da produção de milho destinado a servir como matéria-prima à produção de etanol, tem feito uso de grandes porções de terra arável retirando espaço à produção de alimentos. Com efeito, o uso de terra arável para fazer crescer a produção industrial de biocombustível tem reconhecidamente um impacto negativo em termos de uso da água e da energia e no que diz respeito às alterações climáticas (Fargione et al. 2008, inHolt-Giménez & Patel, 2009). E aqui chegamos a um elemento definidor da atual economia mundial, ao qual não escapa a produção alimentar: a especulação. Como a combinação dos efeitos das alterações climáticas, dos biocombustíveis e dos preços do petróleo impulsionaram a subida dos preços dos alimentos, os especuladores afluíram aos mercados de comodidades ansiosos para tirar partido dessa subida de preços. Especialmente após o desencadeamento da crise financeira do subprime, os alimentos foram percebidos como uma aposta segura e os investidores internacionais apostaram fortemente o dinheiro sobre a evolução do comportamento de mercadorias como o arroz, o milho, o trigo e a soja. Isto inflacionou ainda mais os preços atraindo cada vez mais investimentos com pouco ou nenhum controlo e/ou supervisão da parte dos governos. Na verdade, trata-se de um mercado que faz movimentar somas muitíssimo avultadas de dinheiro atraindo também a atenção dos grandes bancos internacionais de investimento. A Goldman Sachs, por exemplo, tornou-se mesmo uma importadora de bens envolvidos neste tipo de mercado (Holt-Giménez & Patel, 2009).

Esta sequência de crises, com ligação ao comportamento do setor financeiro e bancário, acabaria por culminar com a crise da dívida soberana europeia, desenvolvida a partir dos últimos meses do ano de 2009. Como refere Stiglitz (2016, p.163), “As crises bancárias e financeiras estão, de um modo geral, associadas às crises económicas, verificando-se uma quebra na procura agregada e na produção, enquanto o desemprego sobe em flecha”. No caso da crise da dívida soberana europeia, isto foi tanto mais verdade, desde logo, se nos reportarmos às origens da crise, como desenvolvimento da crise do subprime. A dívida dos países da periferia da zona euro tinha uma grande exposição às contingências do sistema financeiro internacional. Numa primeira fase, como defende De Grauwe (2011, inRodrigues, Santos A.C. & Teles, 2016, p.51),

“…embora os Estados periféricos se tenham aparentemente endividado em moeda local a taxas de juro baixas, na realidade, foi como se, de facto, se tivessem endividado em moeda estrangeira, sob a qual não têm qualquer controlo. Aquela aparência redundou numa falsa perceção de um nível de risco baixo, permitindo um crescimento excessivo do crédito dos bancos do centro para os da periferia, canalizado tanto para os setores público como privado”.

Aliás, a propósito daquilo que já foi referido para o decurso da criação da União Económica Monetária, também o euro terá ajudado posteriormente a criar bolhas financeiras em países como a Espanha e a Irlanda. Um dos princípios básicos da zona euro era o de que o capital poderia transitar livremente através das fronteiras, mesmo quando servia para criar bolhas imobiliárias, embora a ideologia fundamentalista de mercado negasse essa hipótese (Stiglitz, 2016).

Apesar de estarem em causa, num primeiro momento, as economias da periferia do euro, houve um entendimento da crise como sendo um problema da zona euro como um todo, o que levou à especulação acerca do contágio a outros países europeus e do possível fim da moeda única. No entanto, como o próprio Stiglitz (idem) acrescenta, as caraterísticas do euro revelaram-se problemáticas desde logo para as economias da periferia da moeda, no sentido de não terem mecanismos próprios que lhes possibilitassem ultrapassar a crise em que estavam a imergir. No caso dos países do euro não havia a hipótese das taxas de câmbio caírem, de forma a corrigir os desequilíbrios comerciais e a tornar a economia mais competitiva. A moeda única havia sido criada sem assegurar as instituições que permitissem a flexibilidade suficiente das regras. A existência do euro implica uma taxa de câmbio fixa entre os vários países, para além de uma só taxa de juro. Ora numa situação de crise financeira, os bancos deixam de conseguir conceder crédito, logo, as empresas e os agregados familiares cujos gastos dependem de empréstimos têm de cortar nas suas despesas. Neste sentido, o autor não deixa de notar que os países com melhor desempenho durante a crise financeira mundial foram aqueles que tinham os bancos centrais mais responsabilizáveis.

A repercussão da agenda neoliberal, para o contexto europeu, verificou-se não só na arquitetura do euro, mas igualmente nos programas de ajustamento estrutural que foram aplicados a países, como a Grécia e Portugal, pela Troika composta pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Central Europeu (BCE) e Comissão Europeia. A atuação destas entidades e as medidas dos programas implementados revelaram ser baseadas em medidas que o FMI já havia implementado anteriormente noutros pontos do globo, em países com necessidades de ajuda financeira externa. Com efeito, assistiu-se ao aumento da taxa de juro pelo BCE em plena crise do euro. Ao mesmo tempo, exigiu-se aos países intervencionados cortes substanciais nos salários esperando que esta desvalorização interna tivesse um efeito de alavancagem na economia, por intermédio da redução dos preços. Embora esta redução tivesse ocorrido, não foi o suficiente para recuperar o pleno emprego. A Troika prestou pouca atenção ao que poderia decorrer das especificidades estruturais das economias da periferia do euro que continuavam a demonstrar as fragilidades reveladas aquando do abrandamento económico do início do século. A grande dependência dos setores não transacionáveis, gravemente atingidos pelas medidas de austeridade impostas, levou a uma contração da procura e da produção, superando a lenta resposta do setor das exportações. O agravamento do défice comercial ocorrido, como efeito da desvalorização interna provocada, explica em grande parte as reduções do PIB e os aumentos das despesas públicas verificados (idem).

A este propósito, Stiglitz (idem) acaba por assinalar que a integração europeia nos dá uma certa visão da globalização em geral: a interdependência e a ambiguidade das políticas na forma como resultam tendo em conta a heterogeneidade das economias. No caso de Portugal foi visível que a dívida externa elevada, com grandes problemas de sustentabilidade, não está relacionada com o custo do capital em si, mas sim com a inserção internacional de uma economia pouco competitiva embora fortemente entrelaçada com a finança (Rodrigues, Santos A.C. & Teles, 2016).

4. O Antropoceno e a crise pandémica

No decurso daquilo que vem sendo exposto neste artigo, as problemáticas abordadas não devem deixar de ser analisadas no quadro de uma perspetiva ecológica e global. Atualmente, muitas das preocupações expressas em relação ao futuro do nosso mundo advêm das problemáticas ecológicas que se têm vindo a originar com os impactes das atividades humanas. É cada vez mais aceite pelos autores das áreas das ciências da terra e da natureza que estaremos a viver um novo período da história geológica do planeta Terra denominado por Antropoceno. Do ponto de vista académico e científico, a conceptualização da época do Antropoceno ainda está por consensualizar nos seus vários aspetos (Hamilton, Bonneuil & Gemenne, 2015). No entanto, para o autor Ramón Fernández Durán (2011), oriundo da área do ecologismo social, o Antropoceno será uma nova época da Terra que surge como consequência da implantação do sistema urbano-agro-industrial à escala global coincidindo com um aumento da população mundial sem precedentes históricos. Nesta perspetiva, o Antropoceno tem atuado como uma autêntica força geológica com fortes implicações ambientais negativas. Desde logo, a lógica de funcionamento do sistema socioeconómico humano não respeita o funcionamento da própria natureza. Nas atividades humanas, desenvolvem-se ciclos de utilização de materiais, separados em recursos (inputs biofísicos) e resíduos (outputs biofísicos). Ora na natureza não há recursos nem resíduos pois tudo funciona como um sistema interrelacionado, ativado pela energia externa solar.

O autor não deixa de referir que apesar de haver espaços semiperiféricos e periféricos no capitalismo global, registou-se um grande aumento da extração de recursos naturais no pós-II Guerra Mundial, coincidindo com as três décadas de grande crescimento económico. O crescimento das classes médias em muitos países (Barata, 2003) teve um efeito acelerador do consumo, em especial dos combustíveis fósseis com o aumento das emissões de dióxido de carbono para a atmosfera. Mesmo depois da Revolução Industrial, as emissões, daquele que é um dos principais gases de efeito estufa, ainda cresceram de forma relativamente lenta até meados do século XX. Em 1950, apenas cinco anos depois do fim da II Guerra Mundial, as emissões globais, por ano, subiram de 4 gigatoneladas para 6 gigatoneladas de dióxido de carbono. Mas, em 1989, esse número já tinha chegado a 22 gigatoneladas, ou seja, quase quatro vezes mais. Já em 2021, o mundo emitiu 36,4 gigatoneladas deste gás (GCP, 2021). Os espaços periféricos e semiperiféricos estão precisamente relacionados com a atividade industrial de baixo valor acrescentado, tendo, no entanto, maior atividade extrativa. Já os territórios centrais caraterizam-se por uma economia com maior valor acrescentado e com maior relevância do setor terciário. Estas discrepâncias e fenómenos têm vindo a criar progressivamente impactes negativos na vida das comunidades indígenas, na poluição dos ecossistemas, na contaminação da cadeia alimentar, na desertificação de grandes regiões, na promoção de conflitos político-militares e, de um modo geral, no contributo para as alterações climáticas (Durán, 2011). Neste contexto, paira sobre o mundo o cenário de um possível ecocídio. Como corrobora E.O. Wilson (1997), nunca na história do planeta existiram tantas espécies de seres vivos como atualmente existem. Mas precisamente devido à ação humana, a taxa de extinção das espécies atinge hoje níveis elevadíssimos tornando plausível a ideia da ocorrência da sexta extinção em massa da vida na Terra. Com efeito, podemos estar a aproximarmo-nos de um ponto em que o consumo excessivo dos recursos naturais, não permitindo a sua regeneração, coloca em causa a sustentabilidade das gerações futuras e do planeta. Para Ramón Fernández Durán, é o sistema urbano-agro-industrial, atualmente na sua versão capitalista global, que está na base do Antropoceno.

“Pero no es el conjunto del homo sapiens como especie el que la provoca, sino, un determinado sistema, eso sí, una construcción humana, que ha ido involucrando a una parte cada vez mayor de la especie en su dinámica infernal y que tiene ya una repercusión biosférica” (Durán, 2011, p.47).

Se as relações de cooperação não prevalecerem sobre as relações de competição e se os equilíbrios ambientais não forem respeitados, então poderemos sofrer reveses muito perigosos do sistema ecológico “Gaia”, segundo aquilo que é afirmado pelo autor (Durán, 2011).

Com efeito, a extinção em massa que o ser humano tem vindo a fazer da flora e da fauna tem criado uma crescente pressão sobre os ecossistemas (Wilson, 1997). Daqui se compreende o desencadeamento de fenómenos como a recente pandemia global da COVID-19. Outros autores coincidem na opinião de que está em causa a forma de organização social e económica cada vez mais dominante a nível global. José Manuel Oliveira Mendes (2020) defende que as pandemias do século XX e XXI são o efeito direto dos processos de urbanização desenfreados devido à criação de conurbações gigantescas. Segundo o autor, estas conurbações penetram, ocupam e tentam domesticar espaços rurais ou vazios de modo a albergar milhões de pessoas desenraizadas à força e concentradas em habitações insalubres. Estes grandes aglomerados populacionais visam servir de mão-de-obra acessível para todo o tipo de produção. É exemplo disto a cidade chinesa de Wuhan, epicentro da pandemia da COVID-19, dado o seu papel preponderante na construção automóvel a nível mundial.

Entretanto originou-se uma crise económica e social provocada pela pandemia global da COVID-19. A COVID-19 criou, por um lado, uma crise de saúde pública que matou vários milhões de pessoas e, por outro lado, uma crise económica que resultou numa perda maciça de postos de emprego, em fome e pobreza. A rapidez com que a pandemia se desenvolveu colocou grandes pressões nos sistemas de saúde por todo o mundo. No entanto, como se verificou em países como os EUA e o Brasil, os níveis de mortalidade estiveram ligados ao acesso e à qualidade dos serviços de saúde, sendo mais elevados, por isso, nos mais desfavorecidos e nas minorias. As quebras no PIB e as perdas de empregos foram muito elevadas em grande parte devido a confinamentos que implicaram o encerramento de indústrias, negócios e escolas (Schaeffer, 2022). A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que o rendimento global do trabalho tenha diminuído em 10,7%, ou 3,5 triliões de dólares americanos, nos primeiros três trimestres de 2020, quando comparado com o mesmo período em 2019. Sendo que este valor exclui o apoio ao rendimento proporcionado pelas medidas adotadas pelos governos (OIT, 2020). Também no capítulo do emprego, os mais sacrificados foram as minorias, as mulheres e os trabalhadores precários, pouco qualificados e/ou mal remunerados. As ajudas sociais e os pacotes de estímulos à economia adotados por vários países ainda impediram muita gente de cair numa situação de pobreza, pelo menos enquanto durou o seu efeito. No entanto, nos países pobres e em desenvolvimento, os governos tiveram grandes dificuldades em investir no mesmo tipo de ajudas, aumentando as fraturas sociais causadas por esta pandemia (Schaeffer, 2022). Independentemente disto, para o período atrás referido, a maior queda de rendimentos também se registou em países de baixo-médio rendimento, nos quais as perdas de rendimento do trabalho atingiram os 15,1%, sendo a região das Américas a mais duramente atingida com perdas na ordem dos 12,1% (OIT, 2020).

No campo das bolsas de valores, a crise pandémica começou por acarretar perdas avultadas. Depois os mercados voltaram às subidas estimulados pelas ajudas à economia, pelas baixas taxas de juro, pela queda dos preços dos combustíveis e pelos grandes lucros obtidos pelas empresas “Big Tech” durante este período. Robert K. Schaeffer (2022) observa que estes inflacionamentos abruptos dos mercados de valores revelam-se processos destrutivos e discriminatórios do ponto de vista económico e social. Mas o mesmo autor defende que a pandemia também contribuiu para uma desintegração dos laços económicos e políticos que fizeram a globalização possível. Na verdade, este movimento já vinha a ser observado com a administração norte-americana e republicana de Donald Trump. Trump envolveu-se numa série de guerras comerciais com países como a China, com quem os EUA tinham laços fortes nesta matéria. Criticou também a NATO e planeou a retirada de tropas da Europa colocando em causa uma aliança basilar na segurança internacional e fazendo os aliados europeus ponderarem a sua “autonomia soberana”. A presidência de Donald Trump foi mais um rude golpe encetado no multilaterialismo internacional, à semelhança daquilo que a anterior administração republicana havia feito. A pandemia, por sua vez, veio acicatar uma série de conflitos em vários pontos do mundo, estimulou extremismos e quebrou uma série de correntes de investimento estrangeiro em vários países forjando alianças políticas antiglobalização. Para Schaeffer, a pandemia terá inaugurado um novo período de competição e de conflito entre estados no sistema mundial e terá marcado o início do fim da hegemonia americana (idem).

Neste sentido, podemo-nos perguntar se estaremos perante fenómenos que ajudaram ao desenvolvimento de uma multipolaridade difusa, na ordem mundial, assente no declínio norte-americano, temida por Fareed Zakaria (2008) em “O mundo pós-americano”, ao permitir o enfraquecimento das bases do poder norte-americano e a afirmação independente de outras forças no domínio da geopolítica global? São elementos que carecem de confirmação. Atenda-se ao seguinte: será que é notória, de forma consistente, uma mudança transformativa resultante da pandemia no que concerne a relações internacionais, políticas transnacionais, interesses geopolíticos ou modelos de produção? No plano económico, será que fenómenos resultantes da crise pandémica, como a inflação, são discriminatórios, ou serão antes as políticas fiscais e económicas, assentes no modelo neoliberal, que promovem maior discriminação face à inflação?

No que diz respeito à periferia europeia e a Portugal, em particular, a crise pandémica mais uma vez revelou as vulnerabilidades que são geradas ou induzidas pelos processos políticos e institucionais. Por um lado, o desemprego cresceu ligeiramente até atingir 7,1% em 2020, e o número de falências chegou mesmo a cair nos primeiros meses da crise pandémica. Isto é atribuído ao esforço financeiro do estado que, através de vários programas de apoio às empresas, como o apoio ao layoff dos trabalhadores, terá evitado uma dinâmica recessiva de falências e despedimentos, reduzindo os custos com o pessoal (Frade, Santos A.C & Teles, 2021, p.2). Por outro lado, Portugal foi um dos países europeus onde o impacto da pandemia causada pelo novo coronavírus mais se fez sentir na economia em 2020. Com uma queda anual do PIB de -7,6%, Portugal registou a maior quebra do produto durante a democracia. Este impacto particularmente negativo na economia decorreu de uma crescente dependência do país em relação ao turismo, que sofreu uma quebra sem precedentes, tendo perdido receitas na ordem dos 60%, à semelhança do que aconteceu noutros países periféricos europeus igualmente dependentes deste setor, como a Espanha e a Grécia (idem, p.2). Como José Reis (2020) defende, estão em causa deliberações e formas de organização que juntam novas fragilidades à condição necessariamente incerta e contingente da vida individual e coletiva. Dada a dependência do país em relação aos setores económicos não transacionáveis ou menos transacionáveis, que foram especialmente atingidos pelos confinamentos, gerou-se uma recessão profunda. Isto porque …a economia mede-se pelo valor que cria, pela estrutura produtiva que adota, pelas capacidades que desenvolve, pelo nível de autossuficiência que garante, pela dependência face ao exterior que evita (idem, p. 44).

5. Reflexões finais

Face aos conteúdos expostos ao longo deste artigo, podemos aferir que atualmente temos um modelo de desenvolvimento aplicado a nível global e que está muito dependente de cinco vetores: da extração dos recursos naturais, do crédito, do consumo, da volatilidade bolsista e da dívida.

Como referem Rodrigues, Santos A.C. & Teles (2016), no quadro da financeirização internacional dos mercados, a dívida, como parte integrante do consumo e do investimento, é também uma forma de punção de rendimentos nas esferas de produção e de circulação implicando não só transferências de baixo para cima na pirâmide social, mas também de dentro para fora na pirâmide internacional, ou seja, das periferias e semiperiferias para o centro. Muitos dos elementos presentes nas origens e nas respostas às crises do capitalismo no século XXI, já haviam sido observados nos anos 90 do século passado nas crises do sistema capitalista de modelo neoliberal. Com efeito, estamos perante movimentos económico-financeiros de caráter global, baseados no Consenso de Washington, que se refletem na sua aplicação às economias dos países, embora possam manifestar alguns efeitos distintos tendo em conta a heterogeneidade destas. Aqui se revela um pragmatismo delineado a regra e esquadro que acaba por não prever toda uma série de consequências nefastas do ponto de vista económico e social para os países alvos de programas de ajustamento estrutural, como aqueles que são aplicados pelo FMI, ora sozinho, ora juntamente com outras instituições, como aconteceu no caso da crise da dívida soberana europeia. O fraco valor acrescentado das economias periféricas e também das economias semiperiféricas implica que estas entrem num ciclo recessivo e de endividamento do qual têm grandes dificuldades em sair, dadas as medidas de austeridade duras e os aumentos de impostos variados que implica a ajuda financeira internacional. Tratam-se de países que para a alavancagem das suas economias estão muito dependentes dos níveis de consumo internos e do crédito contraído por particulares e por empresas.

Os casos da periferia europeia e de Portugal, em particular, são exemplos típicos de países apanhados nos últimos anos em sucessivas crises e sendo mais afetados do que os seus parceiros europeus devido às crónicas fragilidades reveladas pelas suas economias. Concretamente são países que revelam grande dependência dos setores económicos não transacionáveis ou menos transacionáveis, tendo por base opções de investimento não reprodutivo.

Poder-se-á colocar em discussão a (re)emergência de potências no quadro da geopolítica global, como a China e a Índia, que revelam economias cada vez mais pujantes. Certamente que a entrada destas economias nos mercados mundiais, sob as regras da OMC, tem tido influência nos movimentos de globalização. Mas neste capítulo deve-se atender a dois elementos. Por um lado, os programas de ajuda financeira internacional foram, ao longo destas décadas, e continuam a ser, baseados nas medidas prescritas no Consenso de Washington. Por outro lado, o modelo de produção industrializada e massificada, oriundo do Norte global, tem sido importado para as potências emergentes. Não há aqui, para já, uma contraposição com um modelo económico diametralmente oposto. Ocorre sim o facto de algumas economias do Norte, com maior dependência da terciarização e/ou financeirização da economia, como é o caso relativamente recente dos próprios Estados Unidos da América, verem parte do seu investimento industrial ir para os países emergentes. Isto desencadeia reações antiglobalização como aquelas que são personificadas no movimento político trumpista.

A exploração maciça dos recursos naturais, que ocorreu com o grande crescimento económico do pós-II Guerra Mundial, tem sido exponenciada pelo desenvolvimento da financeirização da economia através dos mecanismos de especulação que tem associados. As crises dos preços dos bens alimentares ocorrem dentro de um modelo económico que maximiza a produção tendo em vista o fim último que é o lucro. Podemos reter que o crescimento da população mundial verificado não será, só por si, um fator determinante na explicação das crises dos alimentos, se atendermos à ocorrência das alterações climáticas e à generalização das relações de produção alimentar de âmbito industrial e massificado e enquadradas nos movimentos bolsistas. A isto se junta as flutuações significativas que os preços do petróleo e dos combustíveis têm sofrido nas últimas décadas. Tal fenómeno não estará desligado de fatores geopolíticos. A Guerra ao Terror desenvolvida a partir de 2001 e as suas repercussões provocaram grande instabilidade sobretudo em países do Médio-Oriente que são grandes produtores e exportadores de petróleo. Pese embora, alguns desvios e correções na política externa norte-americana, tem vindo a criar-se na cena internacional um crescente cenário de confrontação civilizacional. Neste contexto, atendendo a problemáticas globais como as alterações climáticas e a crise ecológica, verifica-se que as tensões e as rivalidades geopolíticas continuam a sobrepor-se a uma agenda global conjunta para o desenvolvimento sustentável.

Como demonstram os efeitos da crise pandémica, o desenho de novas soluções de desenvolvimento social sustentável passa pela previsão do impacto das políticas e da ação humana em três áreas fundamentais: a económica, a social e a ambiental (McKeown, 2002). Num âmbito mais lato, a estruturação do estudo das crises do capitalismo global no século XXI, numa dimensão holística, remeterá desde logo para o reconhecimento de uma inter-relação dos tópicos de dimensão económico-financeira, social, cultural, geopolítica e ecológica no desencadeamento das crises. A recente Guerra na Ucrânia coloca novos elementos para o desenvolvimento deste estudo, ao enquadrar-se num cenário de confrontação crescente entre superpotências com impactes económicos visíveis em matérias como o comércio dos alimentos, o aumento dos preços dos combustíveis e, de modo geral, a inflação. Em última análise, atendendo à sucessão de crises económicas das últimas décadas e às suas consequências a vários níveis, fica aqui presente a questão se caminhamos, ou não, para a estruturação de um modelo económico global de natureza diferente, tendo como pano de fundo o fim da hegemonia norte-americana e o surgimento de uma nova ordem mundial.

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Recebido: 15 de Julho de 2022; Aceito: 03 de Fevereiro de 2023

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