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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.sp23 Lisboa abr. 2023  Epub 10-Abr-2023

https://doi.org/10.15847/cct.28524 

RESENHA

Recensão de Economia de Missão: Um guia ousado e inovador para mudar o capitalismo

Book review of Economia de Missão: Um guia ousado e inovador para mudar o capitalismo

1Centro de Estudos Sociais, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Portugal, fabio.ffr.sampaio@gmail.com


Introdução

Mariana Mazzucato é autora de três livros amplamente elogiados pela crítica, distinguida com vários prémios académicos e literários, e neste momento desempenha as funções de Professora de Economia da Inovação e do Valor Público na UCL (University College London). Desde do seu primeiro livro, O Estado Empreendedor (2013), ao último, Economia de Missão, lançado em 2021, Mazzucato defendeu consistentemente um maior envolvimento do governo na economia e, por conseguinte, nos mercados financeiros. No decorrer do seu livro de 2013 onde a autora fala de enterpreneurial state, a mesma argumenta que o Estado pode e deve ser empreendedor e inovador, ou seja, deve existir uma mudança na forma de pensar o Estado, argumentando que o Estado deverá ser inovador e assumir riscos e não apenas um instrumento regulatório da sociedade.

Neste último livro, Mariana Mazzucato (2021), volta novamente a falar no papel do estado na sociedade, mas desta vez com uma maior proeminência no capitalismo, questionando e demonstrando como o Estado e capitalismo podem existir em simultâneo, intervindo e trabalhando em conjunto em prol da sociedade e não somente a favor dos interesses privados e corporativos. Economia de Missão: Um guia ousado e inovador para mudar o capitalismo, funciona como uma crítica política, revigorando o papel do Estado para enfrentar os problemas socioeconómicos que assolam as sociedades contemporâneas. O livro é escrito com tom de urgência, condizente com o momento de crise que atravessamos num pós-Covid-19, pedindo uma visão, ambição e propósito numa “nova estratégia económica”.

Temática central da obra

O enquadramento de Mazzucato no seu livro assenta sobre a premissa que o Estado estabeleça metas claras sobre as áreas prioritárias de desenvolvimento e impulsione ativamente a investigação e economia nessa direção. É possível considerar a Missão Economia como um bom ponto de partida de como construir as estruturas orientadoras para seguir o que a autora chama de ‘Mission Guide Orientation’. O livro tenta oferecer um caminho para ‘rejuvenescer’ e melhorar o papel do Estado e, assim, “consertar o capitalismo, em vez de acabar com ele”. O argumento da autora é que ao concentrar-se no poder que os governos têm para moldar os mercados poderão redefinir/refazer o capitalismo, desta forma, poderá ser construído um ‘novo capitalismo’ com um maior interesse publico e social, em vez de ter somente em mente o lucro, assim como os ganhos privados e corporativos.

No seu livro, Mazzucato identifica logo a forma disfuncional do capitalismo contemporâneo, focando-se sempre na crise climática que é alimentada pelo mesmo. Existe a priori uma identificação do que torna o capitalismo que conhecemos hoje totalmente desenquadrado da nossa realidade: 1) visão de curto prazo do setor financeiro; 2) financeirização dos negócios e do valor; 3) dependência de combustíveis fósseis; e 4) governos lentos ou ausentes. Desta forma, a autora considera que é preciso uma mudança sistémica e estrutural e essa mudança tem de ser a partir de um sentimento de missão coletivo, tem de existir uma apropriação deste sentimento de urgência de mudança pelas várias partes que englobam a sociedade. O grande exemplo de sucesso dado pela autora ao longo do seu livro, e no qual grande parte da sua premissa é baseada, é a Missão Apollo 11. Nesta missão, existiu uma visão política e liderança para definir uma meta clara, conseguindo que toda a sociedade civil ficasse envolvida neste único propósito.

Pedra Angular da Economia de Missão: Um guia ousado e inovador para mudar o capitalismo

A pedra angular da obra é o estudo de caso da missão Apollo 11, cujo objetivo foi levar o homem à lua. Segundo a autora, para realizar a missão Apollo, centenas de problemas tiveram de ser resolvidos, sendo que esses problemas foram enquadrados a partir de uma estreita parceria e colaboração entre governo e setor corporativo, com um grande apoio de toda a sociedade civil. Mazzucato propõe que a mentalidade da Economia de Missão, aquilo que pareceu existir no programa Apollo, poderia ser o núcleo da estrutura para abordar as várias preocupações e problemas contemporâneos da humanidade.

Ao longo do livro, a autora aborda as grandes dificuldades da Missão Apollo 11, explica que o próprio presidente dos USA na altura, J. F. Kennedy, foi explicito ao considerar que aquela missão seria complicada, que iria custar muito dinheiro, que várias coisas iam acabar por correr mal, mas que, no entanto, os seus efeitos e benefícios iriam valer a pena para a evolução da sociedade. A missão em si, teve o propósito de inspirar uma geração e demonstrar os benefícios de spillovers que iriam ter um valor social acrescido e não somente numa ‘procura’ restrita de comercialização de curto prazo com o único benefício de gerar lucros corporativos. Exemplo disso é que a inovação ocorreu na computação, comunicações, eletrónica, entre outros, trazendo uma gigantesca revolução das tecnologias de informação (assim como noutras áreas como a têxtil, nutrição, etc.) que estão connosco até hoje.

Convém compreender que o grande objetivo de Mazzucato ao focar-se na Missão Apollo foi não só mostrar o que se pode alcançar com o sentimento de missão, mas também revelar o papel dinâmico, visionário e inovador que o Estado pode ter, em contraste com perceções comuns de incompetência e fraqueza. Neste aspeto, a Missão Economia leva o argumento ainda mais longe, podendo ser considerada um guia de ‘como fazer’ para decisores políticos que desejem demonstrar o potencial do estado para resolver alguns dos grandes problemas e desafios da sociedade e do mundo.

Em suma, a linha orientadora de Mazzucato é que os governos, em diálogo com os cidadãos, possam definir os grandes desafios do nosso tempo, estabelecendo missões para resolvê-los em parceria com as empresas, demonstrando assim que o Estado pode ser eficaz e capaz de intervir tanto na sociedade como nos mercados. Essas missões devem ser ousadas e inspiradoras - desde resolver a crise económicas e financeiras até às crises politicas, culturais e climática. Ao concentrarem-se nos fins e não nos meios, os decisores políticos devem criar espaço para criatividade, experiência, inovação e colaboração entre vários setores públicos e privados. Com este sentido e sentimento de missão, como observado na Apollo 11, poderá existir uma abordagem global e em cooperação do problema, um esforço conjunto que culminará na sua resolução e consequentes spillovers de médio e longo prazo.

Breve abordagem e explicação das quatro partes da obra

O livro organiza-se em torno de quatro partes, cada uma dividida em vários capítulos que conduzem o leitor à compreensão que terá de existir para uma transformação da nossa política económica com uma metodologia/aproximação visionária como a que foi feita em 1960 com a missão Apollo. Os vários capítulos tentam abordar a necessidade que o mundo tem de pessoas e de uma mudança visionária, considerando a premissa que os governos não são ineficazes, mas sim capazes de induzir uma mudança sistémica e estrutural no sistema capitalista e de mercado se for feito em conjunto com o setor corporativo e sociedade civil.

No prefácio do seu livro, Mazzucato presenteia o leitor com uma introdução que justifica a premissa da obra. A autora alavanca a necessidade do sentimento de missão e de mudança do capitalismo, pois o mundo está a erguer-se e a recuperar de uma crise - Covid-19 - que, como é sabido, acarreta outras consequências e crises. Como tal, assim como foi feito durante a década de 60, é preciso um novo sentimento de missão. Uma missão económica que culmine na criação de uma nova política económica mais estável e justa. No decorrer das quatro partes seguintes do seu livro a autora demonstra como esta missão/objetivo pode ser alcançada.

Inicialmente, durante a parte I da sua obra, Marina Mazzucato, foca-se no facto de a economia política estar com problemas profundos e estruturais mesmo antes da Covid-19. Para estes problemas serem resolvidos é necessário pensar no “quadro como um todo”, ou seja, é preciso um sentimento de missão, como o que existiu no caso Apollo 11. Essa missão fez com que o governo estivesse disposto a gastar o que fosse preciso e necessário. Esse esforço foi recompensado, não só em termos da chegada à lua, mas também nos spillovers que ainda hoje estão entre nós. Por outras palavras, uma ambição para alcançar uma missão criou inúmeros “knock-on effects”. No entanto, não é fácil mudar as mentalidades relativamente a este aspeto. No entender da autora, requer uma mudança no nosso paradigma e pensamento sobre capitalismo e governo para que se consiga construir um mundo futuro que seja resiliente para conseguir prosperar.

Ainda no decorrer desta parte, Mariana Mazzucato aborda a questão da financeirização. O seu argumento assenta no pressuposto de que o setor financeiro financia primeiramente a si próprio e não a sociedade. Para além disso, existe ainda o argumento de que a financeirização também está a contribuir para o aumento do aquecimento global. Isto porque os interesses dos setores financeiros e empresariais permanecem tão poderosos e avessos à mudança que ainda não estamos a fazer o suficiente para prevenir a destruição do planeta. A Parte I, termina com a exposição de cinco mitos que, segundo a autora, são entraves ao progresso:

• As empresas criam valor e correm riscos; os governos só eliminam os riscos e ajudam: Os governos não deverão assumir ações visionárias ou riscos, pois, segundo esta perspetiva, este é o trabalho do setor privado;

• A finalidade do governo é reparar as falhas do mercado: Os governos devem fazer o mínimo possível; dito isto, nesta visão os governos deverão somente agir para corrigir os problemas que o livre mercado não consegue corrigir sozinho;

• O governo precisa de funcionar como uma empresa: É esperado que os governos sejam geridos como negócios, priorizando as preocupações orçamentais acima de tudo o resto;

• A terceirização poupa dinheiro aos contribuintes e reduz o risco: Os governos acabam por fazer outsourcing de cada vez mais trabalho a empresas privadas na crença de que irão fazer um trabalho melhor;

• Os governos não deveriam escolher vencedores: A autora dá um excelente exemplo do investimento por parte do governo dos USA na Tesla e na Solyndra. Sendo que a Tesla prosperou e ninguém deu o crédito devido ao governo, mas a Solyndra faliu, sendo reportado como um exemplo de uma decisão mal tomada por parte do governo.

A Parte II do livro aborda as lições diretas que poderão ser retiradas do Programa Apollo. Mariana Mazzucato refere que a primeira lição é sobre liderança. A autora explica que foi necessária uma visão e uma liderança com um propósito por parte do setor público. Neste contexto a liderança foi para além de conduzir o setor publico e corporativo perante um objetivo comum; foi também a criação de sentimento de inspiração e de pertença para com a sociedade civil. A lição seguinte que se deve ter em conta é a questão da inovação e mudança organizativa. A inovação no que diz respeito à assunção de riscos e experimentação. No programa Apollo 11, a NASA encorajou as suas equipas a correrem riscos e a investigar várias soluções para os problemas. No que diz respeito à mudança organizativa é dado o exemplo da forma inovadora como a NASA estava organizada, encorajando o trabalho inter/multidisciplinar. Por fim, existe a lição relacionada com as questões orçamentais e spillovers. Os orçamentos foram baseados em resultados. Ou seja, o governo estava comprometido em gastar o que fosse necessário para o sucesso. Isto porquê? Porque sucesso não significava somente aterrar o Apollo 11, mas também os inúmeros spillover effects que toda a inovação e a indústria iriam alcançar com a missão. Em suma, o Apollo 11 não foi somente um projeto para levar o homem à lua mas, sim, um projeto com resultados de longo prazo, com efeitos de longo prazo que perduram até hoje.

A terceira parte da obra tenta compreender quais serão os grandes desafios que devemos enfrentar atualmente. A autora tenta elucidar o leitor sobre o tipo de missões de que precisamos hoje em dia. O objetivo de colocar o homem na lua foi tão ‘simples’ e, em simultâneo, tão ambicioso, sendo isso o que o tornou tão brilhante. No entanto, no momento atual, os desafios que enfrentamos são tão grandes e urgentes que são necessárias missões mais prementes e fundamentais. Segundo a autora, das várias missões que podemos e devemos escolher atualmente, muitas delas têm uma ligação estreita com o meio ambiente e devemos focar as nossas energias neste pressuposto. No decorrer da Parte III, a autora aborda ainda os 17 objetivos sustentáveis das Nações Unidas, mencionando que se estivermos à procura de missões para a atualidade, estes objetivos são excelentes pontos de partida. Mazzucato aborda ainda a metodologia participativa e bottom up que as missões deverão ter, ao mesmo tempo que dá a um grande ênfase a missões relacionadas com o meio ambiente, a saúde e a democracia digital.

Por fim, a parte IV da obra refere o facto de existir a necessidade de estar numa missão para que se consiga rever a política económica e a sua real aproximação ao valor que pode criar para o público, e não somente para o setor privado. Existe, portanto, a necessidade de compreender qual será a próxima missão que vise reinventar a economia, os mercados e, por conseguinte, o capitalismo para existir um futuro mais próspero e socialmente mais justo. Tendo em consideração esta ideia, Mazzucato menciona que se pode ir da teoria à prática e, para tal, analisa sete aspetos da economia política que podem levar-nos a uma nova economia política:

• Valor: criado coletivamente - considerando a perceção de valores, ou seja, o valor deve estar alinhado com o propósito do público e não apenas com o valor monetário a curto prazo. Noutras palavras, não é só porque um negócio gera mais ou menos dinheiro que isso significa que seja mais ou menos benéfico para o bem público;

• Mercados: moldando e não reparando - o mercado é dinâmico mas pode e deve ser regulado e orientado pelo governo e pela sociedade sobre quais os valores desejados e os tipos de inovação que mais favorecem a sociedade civil;

• Organizações: capacidade dinâmicas - organizações dinâmicas e com capacidade de absorver o conhecimento, centradas essencialmente em metas e objetivos com foco num objetivo central;

• Meios financeiros: orçamento com base em resultados - o financiamento deve ser de longo prazo e resiliente, ou seja, não deve existir pressa em ter retorno, trabalhando para o resultado;

• Distribuição: partilha de riscos e recompensas - distribuição e crescimento inclusivo, noutras palavras, é o pressuposto de que criação de valor e a distribuição de valor andam de mãos dadas;

• Parceria: objetivo e valor para as partes interessadas - novamente a questão da missão, ou seja, o propósito impulsiona as parcerias e com esse propósito e todos crescem em simbiose (publico, privado e sociedade no geral);

• Participação: sistemas abertos para uma conceção conjunta do nosso futuro - tem em consideração a participação e cocriação, terá de existir multidisciplinaridade de áreas e saberes a trabalhar em conjunto.

Conclusão

A obra Economia de Missão é um guia fantástico para o quadro político-económico de como poderemos mudar o sistema capitalista a favor do bem público. No decorrer da sua obra, Mazzucato oferece um ‘aviso’, esse aviso pressupõe que temos de forma urgente de nos envolver numa ação coletiva. Essa ação coletiva possibilitará atingir um futuro melhor onde floresça a prosperidade e acesso igual a serviços públicos, colocando o interesse público e social à frente do interesse privado e corporativo. Este pressuposto mencionado pela autora pressupõe ainda uma solução para a crise climática que estamos a enfrentar e que, segundo a mesma, só se avizinham consequências piores se não mudarmos a forma de pensar e agir do sistema capitalista que nos rodeia.

Em suma, no decorrer da sua obra, Mazzucato aborda várias vezes o exemplo da Missão Apollo 11, cujo objetivo foi colocar o homem na lua. Esse exemplo e a sua constante menção não foi mero acaso. O paralelismo e analogia com a Missão Apollo 11 tiveram como objetivo estruturar alguns argumentos centrais que definem a pertinência e carácter de urgência da obra. Em primeiro lugar, se existir um sentimento de missão coletivo entre setor publico e privado, considerando o cidadão como centro do processo de definição da missão (visto os desafios de hoje serem mais holísticos), vamos conseguir alcançar feitos incríveis e sem precedentes como foi o caso da missão Apollo 11. Segundo, foi demonstrado o papel dinâmico, visionário e inovador do setor público, em contraste com as perceções comuns de incompetência. Terceiro, com o sentimento de missão, com a chamada economia de missão, para além dos resultados, existe a questão dos spillovers, ou seja, não e só a meta, mas sim o percurso e o que deixamos feito durante o caminho. Por fim, em quarto lugar, conjugando um pouco o que foi dito até ao momento, a nossa missão primordial é moldar os mercados e redefinir o capitalismo, refazer o capitalismo para que este sirva os interesses do setor publico e social. Esta será uma missão herculana e sem precedentes mas, como se verificou na missão Apollo 11, se existir uma parceria, esforço e visão conjunta entre sociedade-governo-setor privado em consonância com uma liderança forte, inovadora e criativa, tudo é possível e os resultados poderão efetivamente ser avassaladores, e os seus spillovers verdadeiros game changers.

Referências bibliográficas

Mazzucato, M. (2018). The entrepreneurial state. London: Penguin Books. [ Links ]

Mazzucato, M. (2021). Economia de Missão: um guia ousado e inovador para mudar o capitalismo. Lisboa: Temas e Debates - Circulo de Leitores. [ Links ]

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