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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.sp23 Lisboa abr. 2023  Epub 10-Abr-2023

https://doi.org/10.15847/cct.28521 

ENTREVISTA

Um olhar atento à perspetiva económica de José Reis

A closer look at the economic perspective of José Reis

1Faculdade de Economia, CinTurs, Universidade do Algarve

2Centro de Estudos Sociais, Universidade da Coimbra, Portugal, hpinto@ces.uc.pt


Resumo

José Reis é Professor Catedrático da Universidade de Coimbra. Assumiu cargos de relevância, mas foi sempre na Faculdade de Economia e no Centro de Estudos Sociais desta universidade que encontrou os seus espaços e momentos para a procura de conhecimento. A sua investigação tem inspirado muitos economistas e outros cientistas sociais que procuram respostas complexas aos problemas que atualmente afetam as economias, a iniquidade territorial, as ineficiências institucionais, as limitações de um modelo desequilibrador de capitalismo financeirizado. Não deixando de lecionar ao nível da licenciatura, foi também no ensino pós-graduado, em particular como coordenador do Programa de Doutoramento em Governação, Conhecimento e Inovação que promoveu uma abordagem plural para o estudo das economias. Foi membro fundador e presidente da Associação Portuguesa de Economia Política até 2021. Os primeiros dois mandatos da vida desta associação. Esta entrevista procura oferecer um olhar sobre a perspetiva económica de José Reis, quer sobre o domínio da economia, da ciência económica e do ensino e formação de economistas.

Palavras-chave: economia política; instituições; território

Abstract

José Reis é Professor Catedrático da Universidade de Coimbra. Assumiu cargos de relevância, mas foi sempre na Faculdade de Economia e no Centro de Estudos Sociais desta universidade que encontrou os seus espaços e momentos para a procura de conhecimento. A sua investigação tem inspirado muitos economistas e outros cientistas sociais que procuram respostas complexas aos problemas que atualmente afetam as economias, a iniquidade territorial, as ineficiências institucionais, as limitações de um modelo desequilibrador de capitalismo financeirizado. Não deixando de lecionar ao nível da licenciatura, foi também no ensino pós-graduado, em particular como coordenador do Programa de Doutoramento em Governação, Conhecimento e Inovação que promoveu uma abordagem plural para o estudo das economias. Foi membro fundador e presidente da Associação Portuguesa de Economia Política até 2021. Os primeiros dois mandatos da vida desta associação. Esta entrevista procura oferecer um olhar sobre a perspetiva económica de José Reis, quer sobre o domínio da economia, da ciência económica e do ensino e formação de economistas.

Keywords: political economy; institutions; territory

1. Introdução

Uma entrevista consiste numa conversa entre um entrevistador e um - ou mais - entrevistados. É uma das técnicas de recolha de dados mais utilizadas nas investigações qualitativas. As entrevistas diferem de conversas informais porque têm um tema específico e vinculativo, tendem a ser unidirecionais, com o entrevistador a colocar questões e o entrevistado a ocupar a maior parte do tempo da conversa com as suas respostas. Aplicada a um autor de referência, como é este caso, uma entrevista pode ajudar a descrever trajetórias e experiências de investigação, como o autor interpreta as suas razões e como determinados fatores sociais moldaram a sua carreira científica. Fornece também a interpretação das suas próprias contribuições para o seu campo e para a sociedade mais em geral. Escrito num estilo mais pessoal do que a escrita habitual de um artigo científico, uma entrevista ajuda-nos a aproximar de um autor, auxiliando assim à compreensão mais profunda do seu trabalho.

A entrevista atual com José Reis reflete os objetivos acima delineados. O Professor José Reis é uma das figuras de destaque no ensino e investigação sobre Economia Política em Portugal. Professor Catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC), onde se licenciou [1978] e doutorou [1989] em Economia com uma tese publicada em livro sob o título Os Espaços da indústria: a regulação económica e o desenvolvimento local em Portugal. Em 1998 obteve a agregação, com uma lição sobre "O institucionalismo económico: crónica sobre os saberes da Economia". É atualmente membro do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável, Coordenador do Observatório sobre Crises e Alternativas e Cocoordenador do Programa de Doutoramento em Governação, Conhecimento e Inovação. Foi Presidente da Comissão de Coordenação da Região Centro [1996-1999], Secretário de Estado do Ensino Superior [1999-2001], Presidente do Conselho Científico [1992-1994 e 2000-2004] e Diretor da FEUC [2009-2015] e Presidente da Direção da Associação Portuguesa de Economia Política [2016-2020]. Em 2018 foi convidado da Maison des Sciences de l'Homme, em Paris, como Directeur d'Études Associé. Foi investigador ou professor visitante em Universidades dos Estados Unidos da América, da França, da Itália e do Brasil. José Reis assume uma perspetiva de economia política institucionalista e interessa-se pelas economias portuguesa e europeia, desenvolvendo investigação em três grandes áreas: organização e evolução dos sistemas económico; territórios, sistemas produtivos e as dinâmicas regionais; e a governação e instituições da economia.

É autor de vários livros: Cuidar de Portugal: Hipóteses de Economia Política em tempos convulsos (2020), A Economia Portuguesa: Formas de Economia Política numa periferia persistente (1960-2017) (2018), Ensaios de Economia Impura (2007), Portugal e a Europa em Crise: Para acabar com a economia de austeridade (2011). Coordenou os livros A Economia Política do Retrocesso: Crise, causas e objetivos (2014) e Como Reorganizar um País Vulnerável? (2020).

Após esta breve introdução, o texto está organizado em quatro secções1. A secção 2 é dedicada à trajetória biográfica. A secção 3 fornece uma descrição dos principais temas de interesse de investigação, incluindo o programa de investigação de fundo e a atual fronteira do conhecimento sobre estes temas. A secção 4 inclui uma discussão breve sobre o objetivo da economia. A secção 5 discute questões-chave do ensino da economia.

2. Vida e trajetória pessoal

Porque decidiu estudar Economia? Que circunstâncias o levaram a escolher esta disciplina e Coimbra como local de estudo?

Creio que a primeira razão foi procurar compreender a organização da vida material. Interessava-me o modo como as sociedades se organizam para criar valor, gerar emprego e assegurar bem-estar. E parece-me que também esteve presente o interesse por uma relação muito direta com a causa pública, com “os comuns” e com a deliberação política.

Para quem nasceu onde eu nasci e vivi os primeiros anos, Coimbra era a casa mais próxima, apesar de distar 90 quilómetros. Era, naquele tempo, um lugar de oportunidades em matéria de saberes, de formação integral. Vim antes da universidade, para o ensino secundário, em 1969, no rescaldo da crise académica, que tanto me tinha despertado. E, na verdade, cheguei a uma cidade cheia de coisas novas: ideias, discussões, amigos. O que eu aprendi em pouco tempo! Fora da escola: no cinema, nos cafés, em livros que não imaginava. Depois, preparava-me para ir para o Porto quando Veiga Simão criou a Faculdade de Economia em Coimbra. Aí, voltei a ficar na casa próxima. E tive a magnífica experiência de entrar numa faculdade acabada de criar. Meses depois, em abril de 1974, abriu-se o tempo em que tudo se tornou possível. E fiz, portanto, um curso muito diferente do que me estava destinado, em que ousámos procurar aprender tudo. E assim fui feliz, coisa que continuo a ser nesta cidade magnífica onde vivo há mais de 53 anos.

Porque decidiu dedicar-se à carreira académica?

Essa foi um dos pouquíssimos passos da minha vida profissional e pública em que agi por iniciativa própria. Foi, de facto, uma escolha, uma vontade. É verdade que todo o contexto da minha vida estudantil, pelas relações na Faculdade e na cidade, me conduzia para a academia. Mas a ideia de que a Universidade é, simultaneamente, o grande espaço de liberdade e de possibilidades intelectuais e profissionais foi sempre muito clara para mim. Entendi que podia fazer muita coisa, quando terminei a licenciatura, mas o que a academia proporcionava, ao lidar com as ideias, a compreensão do mundo e a pequena ambição que acrescentar alguma coisa, por pouco que fosse, era inigualável. Acontece que tive logo uma proposta para passar seis meses no Centro de Estudos de Economia Agrária da Gulbenkian e isso foi muito importante, pois tratava-se de um ótimo ambiente de investigação. O rural, o agrícola serviu-me para compreender a diversidade, a sociedade e os meandros muito particulares da política económica. Foi a este propósito que escrevi o meu primeiro artigo e que, nele, usei o termo economia política. Mas também é verdade que já me sentia envolvido nos interesses e nas relações que vieram a dar o CES. A amizade e o trabalho próximo com o professor que mais nos influenciou no primeiro ano da Faculdade, Boaventura de Sousa Santos, foi absolutamente marcante. Isso levou a que a minha carreira tenha sido sempre no contexto muito aberto e plural onde o Boaventura tem estado e, por isso, ele é hoje o meu amigo mais antigo, aquele que ocupa um lugar muito especial.

Ao longo da sua carreira, trabalhou constantemente entre diferentes mundos - o académico e a elaboração de políticas. Esta mobilidade afetou (positivamente ou negativamente) o seu trabalho? Quais foram as aprendizagens mais importantes que reteve?

Os dois convites que aceitei na esfera pública [Presidente da Comissão de Coordenação da Região Centro, em 1996, e Secretário de Estado do Ensino Superior, em 1999] aconteceram quando a minha carreira académica estava a chegar ao topo. E só por isso os aceitei. Embora deva reconhecer que, no primeiro caso, o facto de ter sido convidado pelo Eng. João Cravinho, figura pública por quem tenho a maior das admirações, tornaria muito difícil não aceitar, quaisquer que fossem as circunstâncias. Foram momentos que me satisfizeram muito - desempenhei esses cargos com alegria e foram, do ponto de vista pessoal, muito positivos. As aprendizagens foram enormes: conviver com a deliberação, formar equipas, reconhecer a grande autonomia da decisão política e a necessidade de a conjugar com a legitimação pública e social constituem grandes recordações. Lembro-me muto bem, por exemplo, de quando decidi usar plenamente o poder que tinha para aumentar o acesso a vagas em Medicina, criando mais 500 vagas nos anos de 2000 e 2001 do que as que existiam no ano de 1999. Nunca mais isso voltou a acontecer. Foi um caso em que exercer uma competência e legitimá-la na sociedade estiveram muito ligadas. Mas poder lidar diretamente com a função essencial do Estado, que consiste em tomar a iniciativa para regular em nome do interesse comum e do bem-público, foi marcante. Foi o que fiz quando propus e foi aprovada uma lei de ordenamento e regulação do ensino superior num momento em que, tanto no público como no privado, era mesmo urgente regular e ordenar. Quando entendi que esse desafio público já não era suscetível de ser muito mais ampliado não aceitei dois outros convites lisonjeiros que recebi e regressei ao meu espaço de plena liberdade, a universidade. E só ali voltei ao que transcende a investigação e o ensino e que foi o lugar de Diretor da FEUC. Onde reencontrei, devo dizê-lo, o gosto pelo trabalho em equipa, pela decisão, pelo envolvimento com uma comunidade muito particular, que é aquela de que fazemos parte. Os lugares de aprendizagem são, de facto, muitos, em fases muito diferentes da vida.

3. Temas de interesse

Os temas em que trabalha mais intensamente, entre outros, têm sido as instituições, a governação e o território. Que circunstâncias o levaram a investigar sobre estes temas?

Creio que comecei pelo território, pela compreensão da base local de organização das economias, da proximidade e das inter-relações, porque essa era a porta mais próxima para lidar com a complexidade, com a diversidade e com a vida material nas suas diferentes dimensões. A procura de uma economia substantiva, por oposição à economia formal, convencional, era aqui um programa muito claro. Tive a sorte de ter um professor excelente, no final da licenciatura, o Professor António Simões Lopes (um homem da máxima elegância), com quem era fácil dar esse passo para compreendermos a economia de forma mais rica do que o habitual. Foi ele o orientador da minha tese de doutoramento. Deu-me uma enorme liberdade, aceitou as minhas intuições e deixou-me fazer o meu caminho.

As instituições vieram quando, depois de estudar o “pequeno”, o local e territorial, quis estudar o “grande” - o Estado. Aí entrei no imenso campo do institucionalismo, desde o “velho” até ao “novo” institucionalismo. Interessava-me ver como se alcançam “consolidações” de formas de agir, de deliberar, como isso não é atomizado, individual, mas sim coletivo, processual e diverso. Instituições, no meu entender, definem-se assim. A governação é parte disso, porque acho que falamos de governação exatamente porque, na vida, há diferentes mecanismos de coordenação das ações. E interessa-me tomar partido na articulação desses diferentes mecanismos. É nisso que consiste a deliberação e a política. Em qualquer dos casos, procurei densificar a relação, que presumo forte, entre conhecer bem as diversas escalas por onde passa a organização da vida (a micro, a meso e a macro) e intervir na deliberação, na política, no alargamento do espaço público, que é também o da democracia.

Qual é o seu programa de investigação mais profundo nestes seus temas de investigação? Poderia explicitá-lo brevemente?

Boa questão... Acho que é, como já aludi, chegar à complexidade, ao elogio da diversidade e à garantia de que há um espaço que devemos manter resistentemente amplo para escolhermos e deliberarmos em liberdade, justificando e reforçando as vivência democráticas. Sim, complexidade, diversidade e deliberação. Numa única expressão, Economia Política.

Nos seus temas de estudo recente, onde está a ‘fronteira do conhecimento’? Ou seja, que principais desafios existem atualmente?

Mais uma boa pergunta, das que obrigam a refletir... Eu creio que o principal desafio consiste em pensarmos na insustentabilidade que está a minar a nossa vida coletiva e em pensarmos no modo de cuidarmos de nós, de cuidar da vida e das sociedades (no plural: das sociedades!). Como sabe, publiquei um pequeno livro intitulado Cuidar de Portugal: Hipóteses de Economia Política em Tempos Convulsos. Foi um impulso logo no início da pandemia. Com ele, eu procurava situar todas estas questões, sabendo que elas começam nas relações de proximidade, mas devemos também situá-las em todos os planos que estão para lá da proximidade. Situá-las no plano mais macro possível: à escala dos países e das suas políticas públicas, à escala da Europa e do Mundo. Interessa-me muito saber o que confere coesão e sustentabilidade à vida e o que, inversamente, produz erosão, exaure e destrói. Interessa-me saber o que é inclusivo e o que é apenas extrativo. Estudar o capitalismo é, deste exato ponto de vista, um grande desafio. Porque há fases em que ele ligou e criou coesão (não interessa agora se por opção, por cinismo ou por ser obrigado) e há fases em que desliga, desfaz, explora, desestrutura. Vivemos agora uma dessas fases e por isso falamos de financeirização do capitalismo.

O seu trabalho tem diferentes nuances, de ‘profundamente teórico’, ‘fundamentado empiricamente’, e ‘politicamente relevante’. Atrever-se-ia a definir de forma mais concreta as principais características da ciência económica que pratica?

A primeira caraterística é a busca de uma ligação forte e sistemática a Portugal, à economia portuguesa, enfim, à sociedade portuguesa. Inclui-se nisto o meu “ancestral” interesse pelo local, pelos territórios e, porventura mais recentemente, pelos sistemas urbanos. Pode ainda juntar-se a Europa e as suas economias políticas. Nisso consiste o compromisso empírico. Mas nunca tratei o empírico como “revelação”. Parti sempre, porque aprendi isso no início, da convicção que é como uma visão das coisas, com um instrumento teórico, que somos capazes de olhar essa coisa fugidia e abstrata que é a “realidade”. Por isso desde há muito que me interessa saber o que é uma periferia e me liguei, no CES e sob a grande influência de Boaventura de Sousa Santos, à teoria da economia-mundo de Wallerstein. E, por outras paragens, envolvi-me na escola francesa da regulação, onde fiz amigos e que ainda hoje constitui um dos meus “círculos íntimos”. Ou ainda com os que, especialmente no sul da Europa, foram teorizando o território. Um encontro em Bolonha, há muito anos, com Giacomo Becattini e Giorgio Fuà (duas figuras enormes) e com Claude Courlet e Gioacchino Garofoli foi muito importante nesta linha. Como o foi um encontro em Toulouse com Jean-Pierre Gilly. No cume de tudo isto, para assumir o meu entusiasmo teórico, está o institucionalismo, a que cheguei quando, depois do território, que estudei para a minha tese, quis conhecer esse outro território, profundamente macro, que é o da organização dos nossos contextos de vida, “o processo da vida” de que falava Veblen. Aqui chegados, na soma de tudo isto, o “politicamente relevante”, aparece-me achado. Mas é claro que o que procuro fazer no debate público, seja com os meus trabalhos, seja acompanhando e coordenando os trabalhos do Observatório sobre Crises e Alternativas do Centro de Estudos Sociais, faz parte deste propósito.

4. Sobre economia como ciência

Qual o propósito ‘essencial’ da Economia? A definição mais influente de Economia refere-se a ela como uma ciência social “(…) preocupada principalmente com a forma como a sociedade escolhe empregar os seus recursos, que têm utilizações alternativas, para produzir bens e serviços para consumo presente e futuro”. Esta é uma definição do manual de Samuelson mas profundamente inspirada na definição de Lionell Robins. Qual é o seu ponto de vista sobre o que pode ser uma boa definição para a ciência económica?

Respondo quase em continuação da resposta anterior. A Economia não é uma técnica, nem um algoritmo abstrato de alocação de recursos. Também não é uma maquineta de obter resultados, saindo de um lado, sob uma nova forma, o que lá metemos do outro. O essencial da Economia é compreendermos como nos organizamos. Compreender o sistema de produção, isto é, de criação de valor, e o sistema de provisão (provisão de bem-estar) que o deve determinar. E, neste ponto preciso, introduzir a deliberação, quer dizer, o poder que queremos que estabeleça a lógica do conjunto. A Economia deve ser, então, o ramo do saber que estuda a organização da vida material, compreende as lógicas da criação e repartição de valor e possibilita a tomada de decisões para a justiça social e a sustentabilidade, assumindo devidamente o quadro institucional, de valores e de poder que a rodeia.

Então do seu ponto de vista, qual é a finalidade específica da Economia? O que é que os economistas devem fazer?

A finalidade específica da Economia deve ser contribuir com os saberes que permitem organizar a vida material em vista do bem comum, revelando o que impede este objetivo, isto é, os desequilíbrios fundamentais. Os economistas devem ser agentes não isentos das tomadas de decisões, sabendo que há sempre visões conflituais. A Economia é Economia Política.

Em vários dos seus livros e artigos, indica que utiliza uma abordagem ‘não globalista’ para os problemas que estuda. Evitar ‘mecanismos explicativos’ simplistas como os apresentados na economia tradicional. Que implicações tem esta distinção para fazer economia?

É frequente a Economia explicar problemas através de razões ou causas externas aos próprios problemas: a globalização, a chamada ‘governação económica europeia’, os ‘mercados’ ou, noutro plano, a os comportamentos irracionais, as falhas de informação ou a ‘externalidades’. Ora, é mais conveniente explicar os problemas pelos processos que os originam, pela lógica de organização em que se inserem ou pelo quadro institucional que construímos. Por exemplo, os baixos salários em Portugal têm que ser relacionados com a frágil especialização produtiva do país, que, por múltiplas razões, utiliza os seus recursos em atividades pouco qualificadas e pouco criadoras de valor. As constrições da política económica em Portugal existem porque se deliberou no sentido de construir uma arquitetura institucional europeia que é restritiva e privilegia os poderes financeiros.

O Professor tem um pequeno texto sobre os métodos em Economia. O que acha do domínio da Econometria enquanto método nas escolas e faculdades de economia pelo país e Europa?

As faculdades de Economia devem ensinar uma pluralidade de métodos com a mesma dignidade. A econometria faz todo o sentido neste contexto. Quando estudei econometria fi-lo com muito gosto e proveito. O que acontece é que ao erigir-se a econometria como saber em si mesmo, afasta-se o seu estudo do lugar onde devia estar, que é o de instrumento subordinado ao conhecimento económico aberto e plural. A econometria é usada para fechar os saberes e, por isso, reduzi-los a não-saberes.

Após várias décadas de erosão da economia do mainstream, como devemos lidar com as teorias económicas existentes?

Devemos lidar com elas sabendo que são várias e nenhuma deve ter poder de domínio sobre as outras. E que as mais fracas são as que reduzem e se fecham, as que reclamam uma autossuficiência que não têm. Em suma, devemos promover o pluralismo e lutar por ele. Estamos num momento especialmente favorável. A vida tornou claro que o mainstream gera problemas, não tem domínio sobre os problemas, é reducionista. E que, inversamente, só discutindo o que fica para lá do mainstream se podem encontrar soluções.

Nos últimos anos, tem havido uma tendência para um maior envolvimento social entre os académicos. Quais são os seus critérios para considerar um tema de investigação em Economia como relevante em termos de política? Qual é a sua opinião sobre esta tendência?

Um bom tema deve começar por interpretar um problema, “descascá-lo”, revelar o seu significado do ponto de vista da justiça social, das relações aí presentes, da correção de desequilíbrios e de dependências. E, ao mesmo tempo, apontar alternativas. Por exemplo, como é que se estuda a indústria automóvel? Para se saber como se produzem muitos carros e mais carros? Ou para saber que valor se cria, como se distribui, que efeitos produz nos sistemas em que tal produção ocorre?

5. Sobre o ensino da economia

Da leitura dos seus textos, é evidente que se inspira nos clássicos, tais como Veblen e Commons, e também em teorias mais recentes como as de Douglass North. Quais são as implicações destes seus pressupostos anteriores para ensinar Economia, especialmente ao nível de licenciatura (que são tão dependentes de conhecimentos empíricos)?

Os clássicos têm uma grande qualidade: são simples. E tratam, em geral, da substância das coisas. Ainda hoje estive a reler Schumpeter. É impressionante a relação que estabelece com o fio da história, com assuntos de cada época. E ele sabia que precisava de convencer, não apenas de argumentar ou proclamar. Mas o mesmo acontece quando lemos Keynes, mesmo sabendo que neste há passos mais complexos. É esta relação com a matéria das coisas, com o que faz a economia, que é preciso incutir nos estudantes de licenciatura. Fazer-lhes perguntas elementares. Para acarinhar os seus erros, se eles existirem, não para flagelar. Isso faz-se relacionando, estabelecendo uma coisa essencial em economia, que é o sentido das proporções. Como vê, pressuponho que o empírico e o teórico, os dados e a narrativa, a descrição e a interpretação, tudo isto, faz parte do mesmo. Não há que separar, há que ligar.

Qual é a sua posição sobre a interdisciplinaridade no Ensino nas ciências sociais? Que papel devem adotar os economistas em relação a outras disciplinas? Qual a importância da formação pós-graduada, por exemplo, de programas doutorais temáticos como o Governação, Conhecimento e Inovação, na promoção da inter/transdisciplinaridade.

Como sabe, sempre trabalhei com gente de outras disciplinas: sociólogos, agrónomos, geógrafos, arquitetos. E aprendi muito com gente da literatura, da crítica literária. Ou das artes. Há pouco tempo, numa longa conversa, disse que ia dar uma definição de Economia. E li uma frase. Sugeri que Economia é “esse difícil mister de formar o espaço, de o interrogar, de o inverter, de substituir um objeto pela sua sombra”. Só no fim, uma hora e meia depois, disse que a frase era de Rui Chafes. Ele, que é um notável escultor, um escultor do ferro, estava a definir, ancorado na história, a sua profissão. Vejo cada disciplina não como ‘uma parte’ para juntar às outras partes, mas como uma forma de ver, de interpretar, de agir. Parece-me óbvio que a interdisciplinaridade é algo que está para além de cada disciplina e da sua soma, está no espírito holista, aberto, culto que incute em quem a valoriza e que, no fim, é capaz de repercutir na sua própria disciplina, que passa a ser, se não outra coisa, pelo menos uma coisa melhor. Nos programas doutorais deve haver grande espaço para tratar de temas, de grandes questões que convocam e desafiam as sociedades naquele momento.

Relativamente à economia aplicada, qual é o papel que uma Associação como a EcPol pode ter ao lidar com muitas das limitações da Economia?

O primeiro papel é consolidar uma comunidade de investigadores muito relevante, originária de várias disciplinas, que existe em Portugal e representa uma visão interdisciplinar de Economia Política, querendo isto dizer uma visão interessada na compreensão dos contextos históricos, geográficos, institucionais e políticos nos quais a vida material se desenvolve. E é combater o que chamamos reducionismo epistemológico predominante nas visões disciplinares convencionais. Com isso, queremos pôr tais visões no seu lugar e não lhes atribuir mais poder do que aquele que corresponde a um quadro pluralista das ciências sociais.

Há vários anos que existe uma preocupação pela falta de oportunidades profissionais dos jovens licenciados (pelo menos na Europa). Qual é a sua opinião sobre as possibilidades de trabalho dos economistas? Como podem essas oportunidades de trabalho ser melhoradas?

O que mais prejudica o emprego, a valorização das qualificações, o surgimento das melhores oportunidades é uma sociedade desequilibrada, empobrecida, e uma economia reduzida a atividades pouco qualificadas, pouco criadoras de valor, dependentes de recursos a que também se dá baixo valor. No jargão da economia, uma má especialização produtiva, de serviços banais ou de indústria sujeita a um lugar menor em cadeias de valor que a deprimem. Claro que há algo a fazer em cada profissão. No caso dos economistas é não fazer deles gente que tem um qualquer saber especializado, desvalorizável mal se regista alguma turbulência.

E, finalmente, que recomendações daria aos futuros economistas, que ainda estão a estudar?

Duas ou três coisas simples: inquietem-se, cultivem a curiosidade e privilegiem o interesse pelo que mantem as sociedades sólidas. Sobretudo, não sejam egoístas nem redutores.

Referências

Portes, A., Fernández Esquinas, M. (2020). Una mirada más cercana a la perspectiva sociológica de Alejandro Portes, Revista Española de Sociologia, 29, 677-686. http://dx.doi.org/10.22325/fes/res.2020.41. [ Links ]

1 O guião desta entrevista foi fortemente influenciado pela entrevista realizada por Manuel Fernandez-Esquinas a Alejandro Portes (Portes e Esquinas, 2020). A entrevista realizou-se em outubro de 2022.

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