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CIDADES, Comunidades e Territórios

On-line version ISSN 2182-3030

CIDADES  no.au23 Lisboa Oct. 2023  Epub Oct 09, 2023

https://doi.org/10.15847/cct.32820 

EDITORIAL

O acesso a uma habitação condigna em Portugal: Um olhar sobre os grupos mais vulneráveis

Access to decent housing in Portugal: a look at the most vulnerable groups

1CiTUA-IST, Universidade de Lisboa, Portugal. E-mail: silviajorge@ tecnico.ulisboa.pt

2CIAUD- FAUL, enquanto investigadora colaboradora do GESTUAL

3CHAM-NOVA FCSH-UAçores, Portugal. E-mail: vanessa.p.melo@ gmail.com


A crescente dificuldade de acesso a uma habitação condigna representa um dos principais desafios atuais. Ao nível global, a Agenda para o Desenvolvimento Sustentável, aprovada em 2015 na Cimeira das Nações Unidas, sublinha a necessidade de assegurar o acesso universal a uma habitação adequada, segura e acessível. Ao nível europeu, a Agenda Urbana para a União Europeia, acordada em 2016, coloca a habitação como um dos dez temas prioritários. Em Portugal, a Nova Geração de Políticas de Habitação (Resolução do Conselho de Ministros n.º 50-A/2018, de 2 de maio), apresentada em 2018, e a Lei de Bases da Habitação (Lei n.º 83/2019, de 3 de setembro), publicada no ano seguinte, reiteram a habitação como um direito fundamental, lida como a base de uma sociedade que se quer estável e coesa, a partir da qual as cidadãs e cidadãos constroem as condições necessárias para aceder a outros direitos fundamentais, como a educação, a saúde e o emprego. Mais recentemente, o pacote Mais Habitação, lançado em 2023, amplia o leque de medidas dirigidas sobretudo ao mercado livre e, especificamente, às designadas classes médias e ao arrendamento acessível. Apesar deste encadear de medidas, a crise no acesso à habitação persiste e alarga-se a diferentes estratos sociais, colocando dificuldades acrescidas aos grupos mais vulneráveis, aqui em destaque.

De forma a garantir uma coerência entre as várias áreas de ação governativa, a Nova Geração de Políticas de Habitação preconiza uma articulação com os instrumentos que respondem especificamente às necessidades dos grupos mais vulneráveis, tais como: a Estratégia de Integração das Comunidades Ciganas; a Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo; e as medidas de apoio à proteção e ao processo de autonomização das vítimas de violência doméstica. Da mesma forma, apresentam-se programas específicos dirigidos a estes e outros grupos vulneráveis, nomeadamente o 1.º Direito - Programa de Apoio ao Acesso à Habitação e o Porta de Entrada - Programa de Apoio ao Alojamento Urgente. Também a Lei de Bases da Habitação, que estabelece as bases do direito à habitação e as incumbências e tarefas fundamentais do Estado na efetiva garantia deste direito (artigo 1.º), destaca os grupos em situação de especial vulnerabilidade, impedindo o Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais de promover o despejo de pessoas ou famílias nesta situação, caso não estejam previamente asseguradas soluções de realojamento (n.º 4, artigo 13.º). Face a esta mudança de narrativa, quais as principais oportunidades e obstáculos ainda sentidos pelos grupos mais vulneráveis no acesso a uma habitação condigna? Que respostas vêm sendo encontradas no diálogo entre as políticas públicas e a realidade em que (sobre)vivem estes grupos? O que falta para efetivar o direito à habitação, consagrado na Constituição da República Portuguesa desde 1976?

Estas foram algumas das questões levantadas na sessão dedicada ao acesso à habitação como desafio democrático, conduzida por Sílvia Jorge (investigadora do CiTUA-IST) e Vanessa Melo (investigadora do CIAUD-FAUL), no quadro da 28th International Conference of Europeanists, realizada em Lisboa, em junho de 2022, no ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa. A pertinência e a qualidade do diálogo então gerado sobre as políticas públicas dirigidas aos grupos mais vulneráveis e as práticas conduziram a este Número Especial, como forma de aprofundar, a partir de uma perspetiva multidisciplinar, o acesso à habitação em Portugal. Ele é composto por sete artigos científicos, uma entrevista e uma recensão, que abordam esta problemática em diferentes contextos sociais e territoriais, dando conta da diversidade de situações existentes. Face à tendente dificuldade em promover um acesso universal efetivo a uma habitação condigna, as reflexões aqui propostas cruzam as especificidades de diferentes grupos vulneráveis e as suas margens de manobra dentro do atual quadro político, legislativo e programático, bem como as práticas desenvolvidas pelos mesmos para fazer face aos obstáculos que persistem.

Este Número Especial começa por abordar o universo específico da Área Metropolitana de Lisboa (AML). Júlia Carolino foca-se no hiato entre a vida das comunidades afrodescendentes e as formas de conhecer e agir sobre as questões habitacionais que as afetam, cruzando o tema com a história e as experiências concretas de pessoas ligadas ao bairro da Cova da Moura, localizado na Amadora. Interpela a colaboração entre a academia e a governação como forma de aproximar a política pública da vida, tal como vivida pelas cidadãs e cidadãos a quem se dirige. Por sua vez, Rosa Arma reflete sobre os processos de realojamento de populações vulneráveis, nomeadamente as afrodescendentes e ciganas, a partir do relato de quem habita, ou habitou, no Bairro da Cruz Vermelha, em Lisboa, e no Bairro da Torre, em Loures, inscrevendo o Direito à Habitação no Direito à Cidade. Reafirma a urgência de pensar e (re)construir as cidades através da valorização, inclusão e conhecimento dos grupos mais vulneráveis enquanto condição para a garantia destes direitos. Saila-Maria Saaristo evidencia a exclusão habitacional de mães solteiras de baixos rendimentos das respostas públicas, num diálogo entre a história de vida de algumas delas, residentes na AML, e as políticas de habitação vigentes. Destaca a necessidade de reforçar a lente de género nas políticas públicas de habitação dirigidas aos grupos mais vulneráveis, mas também de garantir práticas condizentes com a gradual mudança de narrativa. Por fim, Fabiana Pavel e Ana Estevens reconstituem o impacto dos processos de turisficação dos bairros centrais da capital na população idosa, dando conta de algumas situações de despejo e resistência que aí têm lugar. Apontam para a necessidade de regulamentar o aumento exponencial da atividade turística e hoteleira e, simultaneamente, o mercado de arrendamento, de assegurar um acesso à habitação compatível com os rendimentos do país, mas também de criar uma base de dados sobre despejos e deslocamentos de população, como forma de acompanhar e adotar medidas específicas em resposta ao problema.

Já no Porto, com enfoque nas ilhas características desta cidade, Aitor Varea Oro e Sílvia Jorge colocam em evidência as dificuldades de operacionalização da Agenda 2030 das Nações Unidas, em particular do objetivo 11, comprometido com a promoção de cidades e comunidades sustentáveis, recorrendo ao conceito de vulnerabilidade enquanto chave de análise. Concluem que as metas assumidas dependem da capacidade de articulação e de ação de diferentes intervenientes, o que requer a criação de uma agenda local, capaz de estreitar a distância entre os procedimentos e os objetivos gerais traçados. Mudando de geografia, Lídia Fernandes, Paulo Fontes, Ana Costa, Joana Lages e Hélder Fernandes apresentam e discutem os resultados de um estudo exploratório dedicado às pessoas em condição de sem-abrigo na Região Autónoma dos Açores, questionando se essa condição constitui, ou não, uma escolha. Consideram essencial a abertura de uma pesquisa futura que relacione e analise os domínios não só da habitação, como também o emprego e a proteção social. Por fim, olhando para o país no seu todo, Manuela Mendes apresenta uma análise exploratória e compreensiva sobre o que chamou de continuum difícil acesso da população cigana/Roma a uma habitação adequada, partilhando contributos para uma reflexão mais ampla e interdisciplinar sobre os princípios que podem orientar uma ação e intervenção mais adequada. Apesar das mudanças legislativas que pautam os últimos anos, este continuum é um indicador de desigualdades estruturais, ainda longe de serem colmatadas.

Para além deste leque de artigos científicos, contribuem ainda para a reflexão sobre o acesso a uma habitação condigna em Portugal dois textos de natureza distinta, nomeadamente: (i) a recensão do livro de Ana Rita Alves, publicado em 2021 pela editora Tigre de Papel, intitulado Quando ninguém podia ficar. Racismo, Habitação e Território, realizada por Rita Cachado; e (ii) a entrevista conduzida pelas editoras deste Número Especial à arquiteta Helena Roseta, tendo em conta a sua contínua voz e ação ativas em torno da garantia do direito à habitação, colocando no centro quem muitas vezes está fora do radar das políticas públicas.

Financiamento

No caso da primeira Editora, o presente trabalho integra uma investigação em curso, realizada no quadro do projeto “Habitação como 1.º Direito: Enfrentando a precariedade habitacional na Europa contemporânea. Contribuições a partir da realidade portuguesa” (2020.01858.CEECIND), integrado na Iniciativa Estímulo ao Emprego Científico (3ª edição) e acolhido pelo CiTUA/IST-UL, com financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

Bibliografia

Alves, A.R. (2021). Quando ninguém podia ficar. Racismo, Habitação e Território. Lisboa: Tigre de papel, 170pp. [ Links ]

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