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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.au23 Lisboa out. 2023  Epub 09-Out-2023

https://doi.org/10.15847/cct.29273 

ARTIGO ORIGINAL

O direito à habitação como direito à cidade: os processos de realojamento dos moradores do Bairro da Cruz Vermelha e do Bairro da Torre

Right to housing as right to the city: The rehousing processes of inhabitants of Bairro da Cruz Vermelha and Bairro da Torre

1CIAUD, Centro de Investigação em Arquitetura, Urbanismo e Design, Faculdade de Arquitetura, Universidade de Lisboa, Portugal. E-mail: rossellaarma@gmail.com


Resumo

A partir do relato sobre os processos de realojamento dos moradores do Bairro da Cruz Vermelha (bairro de habitação social em Lisboa) e do Bairro da Torre (bairro autoproduzido em Camarate, Loures), refletimos sobre a abordagem participativa a processos de realojamento de populações vulneráveis, comprometida em garantir o seu Direito à Habitação e ao Lugar, tal como descrito por Borja, que inscreve o Direito à Habitação no Direito à Cidade. O relato passa pela ‘voz’ dos sujeitos do estudo, que expressaram suas perceções e seus anseios em entrevistas, bem como no espetáculo de teatro comunitário Mágua di Nôs Partida (Bairro da Cruz Vermelha) e no mais recente processo de fotografia participativa com as crianças do Bairro da Torre.

Palavras-chave: direito à habitação; direito à cidade; grupos sociais vulneráveis; abordagem participativa

Abstract

Starting from the report on the rehousing processes of residents of Bairro da Cruz Vermelha (social housing neighbourhood in Lisbon) and Bairro da Torre (self-produced neighbourhood in Greater Lisbon), we reflect on the participatory approach to rehousing processes of vulnerable communities, committed to ensuring their Right to Housing and Place, as described by Borja, who inscribes the Right to Housing into the Right to the City. The report unfolds through the ‘voice’ of the study subjects, who expressed their perceptions and desires in interviews, as well as in the community performance Mágua di Nôs Partida (Bairro da Cruz Vermelha) and in the most recent participatory photography process with children from Bairro da Torre.

Keywords: right to housing; right to the city; vulnerable social groups; participatory approach

1. Introdução

Em dezembro de 2016, a Relatora Especial da Organização das Nações Unidas (ONU), Leilani Farha, visitou as áreas metropolitanas de Porto e de Lisboa com o intuito de monitorizar o acesso a uma habitação digna em Portugal. No seu Report of the Special Rapporteur on Adequate Housing as a Component of the Right to an Adequate Standard of Living, and on the Right to Non-Discrimination in This Context: mission to Portugal (ONU, 2017), lê-se que lugares como o Bairro da Torre, bairro autoproduzido em Camarate (Loures), onde residiam famílias de origem africana e de etnia cigana, “são um flagelo vergonhoso” (idem, p.10)1, revelando a insuficiência das medidas que promovem o Direito à Habitação em Portugal (Alves, 2019). Segundo o Levantamento Nacional das Necessidades de Realojamento Habitacional (IHRU, 2018), resultado de um inquérito aos municípios2, foram identificadas em Portugal mais de 25.000 famílias (13.828 na Área Metropolitana de Lisboa - AML) que vivem em situação de grave carência habitacional (“famílias a realojar”) e 31.526 fogos sem condições mínimas de habitabilidade. São 11.999 os agregados (sendo 6280 na AML) que vivem em “Barracas e Construções precárias” (correspondendo a 47% das famílias em situação de grave carência habitacional). Como referem Morais, Silva & Mendes (2018, p.235 apud Allegra et al., 2017), os grupos sociais vulneráveis, como por exemplo os imigrantes das ex-colónias, na maioria das vezes, não têm outra alternativa senão viver nestas condições, “devido a uma pobreza persistente e a fenómenos de discriminação e racismo presentes na sociedade”.

Em dezembro de 2019, o ex-secretário-geral da Amnistia Internacional, Kumi Naidoo, esteve em Portugal e visitou o bairro 6 de Maio e o Bairro da Torre3, bairros em que a Amnistia Internacional Portugal (AIP) investigava as condições habitacionais muito precárias de famílias em risco de serem desalojadas sem alternativa, considerando “chocante” a realidade que observou4. Participou na vigília pelo Direito à Habitação organizada pela AIP em frente à Câmara Municipal da Amadora, em que marcou presença, entre outras associações da sociedade civil, moradores e ativistas, a Associação Torre Amiga - Moradores do Bairro da Torre. Foi então lançada uma petição dirigida às autarquias portuguesas para exigir o cumprimento do Direito à Habitação e a cessação dos despejos forçados, considerados pelo Report mencionado acima, uma “violação grosseira do direito internacional em matéria de direitos humanos”5 (ONU, 2017, p.10). No relatório Human Rights in Europe6 de 2019, elaborado anualmente pela Amnistia Internacional com base nestas visitas, estão sinalizados o difícil acesso a uma habitação digna, os despejos forçados e a discriminação como algumas das principais violações dos direitos humanos registadas em Portugal: “(…) os mais vulneráveis continuaram a lutar pelo acesso a uma habitação digna e os residentes de bairros informais continuaram em risco de ver as suas casas demolidas e de serem despejados sem acesso a processos adequados” (Amnistia Internacional, 2019, p.62, tradução da autora). Uma foto que retrata o Bairro da Torre abre as páginas dedicadas a Portugal nesse relatório.

Segundo o mais recente Diagnóstico das Condições Habitacionais Indignas: Habitação PRR-AML 2021/2026 (AML, 2022), a inacessibilidade habitacional atinge mais de 60% dos agregados residentes na AML, o que torna evidente a incapacidade dos agregados em condição habitacional indigna, mais vulneráveis e com menores recursos, conseguirem uma solução habitacional adequada por via do mercado. Ao mesmo tempo, como refere Alves (2019), com base na análise de documentos produzidos por diferentes agências de monitorização, verifica-se também a incapacidade do Estado de garantir o acesso a uma habitação condigna às populações vulneráveis, o que se espelha na sua precariedade habitacional, nos despejos forçados, sem alternativa ou com realojamento disperso, bem como na desagregação social, que decorre, em muitos casos, da própria execução de programas de realojamento. Segundo o Diagnóstico mencionado (AML, 2022), mais de 6.700 agregados que residem na AML em condição habitacional indigna habitam em “núcleos precários” e 2065 em “núcleos degradados”7. Na sua maioria, estas situações correspondem a bairros de habitação pública em situação de “insalubridade e insegurança”, ou seja, “o que outrora foi concebido para dar resposta às situações de grave carência habitacional, é, atualmente, não só quantitativamente insuficiente para responder às situações existentes de indignidade habitacional como é, ele próprio, origem de parte significativa das situações de indignidade habitacional identificadas” (AML, 2022, p.18).

Este texto surgiu como oportunidade para apresentar questões afloradas no quadro da nossa pesquisa para Doutoramento em Arquitetura, especificamente os processos de realojamento do Bairro da Cruz Vermelha, (bairro de habitação social no Lumiar, em Lisboa) e do Bairro da Torre (bairro autoproduzido em Camarate, Loures). Escolheu-se o Bairro da Torre (BDT) por ser terreno de pesquisa e intervenção do Grupo de Estudos Socio-Territoriais, Urbanos e de Ação Local (GESTUAL) da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa (FAUL), no qual está integrada a nossa pesquisa. Neste âmbito, o nosso trajeto de investigação cruzou-se com o Bairro da Cruz Vermelha (BCV), que constitui um caso de confronto. Os dois bairros, que acolhiam famílias de origem africana e de etnia cigana, foram recentemente alvo de distintos processos de realojamento, que são aqui apresentados, em oposição dialética a experiências interativas que lograram incorporar a sua energia e apoiar a luta pelo seu direito a existir e à autodeterminação, utilizando a noção de Staid (2020), ou seja, o direito a moldar, de forma ativa e específica, o próprio destino, constituindo um ensaio de construção do Direito à Cidade.

Embora estigmatizados e marcados por fatores de vulnerabilidade, desigualdade e exclusão socioespacial, os moradores destes bairros revelavam diversificadas e ricas experiências de apropriação e (auto)produção do espaço, estratégias pessoais e coletivas de resistência no cotidiano, formas de (auto)organização comunitária e práticas de solidariedade e entreajuda, bem como manifestações culturais, que contribuíram para a subsistência individual e para a existência e resistência das suas comunidades. Estas experiências sugerem a pertinência e a oportunidade da abordagem participativa nos processos de realojamento de populações vulneráveis, contrariando lógicas tecnocráticas e abordagens top-down de intervenção, como a erradicação dos bairros que habitam e o seu realojamento inadequado, não participado ou disperso. Os relatos sobre o realojamento dos moradores dos dois bairros e os seus testemunhos, bem como o espetáculo de teatro comunitário Mágua di Nôs Partida (no BCV) e o photovoice (ou fotografia participativa) com as crianças do BDT, corroboraram a necessidade de uma maior participação dos moradores nos processos de realojamento, dado o conhecimento adquirido sobre o seu cotidiano, e a relevância de uma abordagem aos lugares a partir das pessoas. Expressamos, neste sentido, uma crítica aos processos conduzidos numa abordagem top-down e que, embora possam proporcionar uma habitação mais digna, não garantem o Direito à Habitação e ao Lugar, tal como descrito por Borja (2000), que inscreve o Direito à Habitação no Direito à Cidade.

O Direito à Cidade (Lefebvre, 1968), entendido, como sublinha Raposo (2016), como “Direito à Obra”, ou seja, o direito de todos à participação ativa na transformação da cidade, é o conceito estruturante da interpretação dos processos relatados. Borja, no seu livro Espacio publico, ciudad y ciudadania, salienta o Direito ao Lugar para concluir que o Direito à Habitação está necessariamente inscrito no Direito à Cidade:

“As pessoas têm o direito de manter a sua residência no local onde têm as suas relações sociais, nos seus entornos significantes. Ou de terem outra de sua livre escolha. Todas as pessoas que vivem num lugar que contribuíram para construir, no qual estão enraizadas e que dá sentido às suas vidas, devem poder continuar a viver lá e ter o direito de realojamento na mesma área se esta for transformada através de políticas de desenvolvimento urbano ou de reabilitação de habitats degradados ou marginais. As autoridades locais devem proteger as populações vulneráveis que possam estar sujeitas a processos de despejo por iniciativas privadas (…)”. (Borja, 2000, p.99. Tradução da autora)

A partir da noção de Direito à Cidade, concetualizado por Lefebvre (1968) e atualizado por Harvey (2008), segundo os quais, a participação na transformação da cidade contribui para a transformação daqueles que participam8, torna-se urgente alargar a participação ativa dos grupos mais vulneráveis na construção da sua cidade, bem como a valorização e inclusão dos seus conhecimentos, energias e poderes criativos na conquista dos seus direitos e como base para a transformação democrática de toda a sociedade e das cidades.

As análise das entrevistas semiestruturadas, das notas sobre o espetáculo Mágua di Nôs Partida e sobre o processo de photovoice que constituem as principais bases documentais empíricas deste texto, foram recolhidos no âmbito do trabalho de campo que desenvolvemos, desde finais de 2016, no BDT e, desde finais de 2021, no BCV, no quadro da nossa pesquisa para doutoramento9, que foi realizado através da nossa presença direta, prolongada, uma “presença etnográfica” (Ascensão, 2013, p.435), e ‘empenhada’ no terreno no caso do BDT , o que favoreceu a nossa imersão profunda na realidade dos lugares observados e o chamado deep knowledge, sendo uma presença pontual no BCV. A recolha empírica esteve assente nas noções de conhecimento construído nas relações (a dialogicidade de Paulo Freire, 1983), da ecologia dos saberes (Santos, 2007) e dos saberes autoconstruídos (Nascimento, 2016), isto é, no cruzamento e na contaminação entre o conhecimento científico e o senso comum, permitindo uma maior abertura em relação ao desconhecido e contrariando a monocultura do conhecimento de que fala Santos (2002). Como refere este autor (2007), a premissa é a do conhecimento ser inter-conhecimento e surgir do encontro de mundos diferentes. Em linha com alguns autores (dentro destes, Freire, 1983), no âmbito da reflexão e das ações apresentadas, os nossos interlocutores constituíram-se como peritos enquanto (auto)produtores do próprio espaço e foram considerados sujeitos reflexivos e agentes ativos da investigação, e não objeto de estudo. Nesta linha, escolheu-se convocar aqui a sua própria ‘voz’ e o photovoice como ferramenta de pesquisa-ação participativa10, na qual se solicita aos participantes, através de fotografias, que retratem a sua realidade, orientados pelo tema e os objetivos da pesquisa, constituindo as imagens produzidas a base para um diálogo a partir do seu olhar sobre a sua realidade. A perceção e a interpretação da realidade passam pelo exercício da produção de imagens, sendo estas o resultado de um conjunto de escolhas que refletem o imaginário dos autores das fotografias (Meirinho, 2016).

2. O Bairro da Cruz Vermelha. Mágua di Nôs Partida: uma performance comunitária para reivindicar o Direito à Habitação como Direito à Cidade

O Bairro da Cruz Vermelha (BCV) começou a ser construído a partir da década de 1960, numa iniciativa conjunta da Câmara Municipal de Lisboa (CML), que comprou o terreno, e da Secção Auxiliar Feminina da Cruz Vermelha Portuguesa, a quem a CML cedeu o terreno para a construção de casas onde realojar as famílias desalojadas por um incêndio na Charneca do Lumiar. Com o apoio de uma empresa de construção civil, que disponibilizou materiais e mão-de-obra, foram realizadas casas unifamiliares geminadas, “casinhas de pedra e cal (…) mobiladas e com roupa, louças e todos os restantes utensílios”, para 105 pessoas, como noticiava o Diário de Notícias, a 22 de dezembro de 1963. A campanha de angariação de fundos Dez tostões para uma casa, lançada pela Cruz Vermelha e o Diário de Notícias deu início a uma nova fase de construção do bairro, caracterizada pela aquisição e disponibilização pela CML de terrenos para a construção de novos edifícios onde abrigar famílias carenciadas. A CML ficou responsável pela realização das infraestruturas e dos equipamentos de apoio à comunidade, que, na década de 70, contava com cerca de 260 agregados familiares. No seguimento do realojamento em 2003 de mais de 200 famílias no ‘PER12’, as casas do realojamento de 1960 foram demolidas11. Atualmente subsiste no BCV um grupo de edifícios de realojamento que começaram a ser construídos em meados dos anos 70. Relatamos aqui o recente processo de realojamento pela CML dos agregados que habita(va)m nestes edifícios e que os ocuparam ainda em construção e sem instalações sanitárias, de água, gás e luz, sem portas e janelas, após o 25 de Abril de 1974. Tratava-se de uma população proveniente das ex-colónias (maioritariamente de Cabo Verde), que tinha construído as suas habitações precárias nas redondezas.

“Quando fomos para lá era um esqueleto de bairro, não havia reboco, tijolos, não havia nada (…). Foi o meu avô com a ajuda de amigos, começaram a rebocar a casa, a pintar, a água, nunca tivemos água canalizada, nem luz, só passados 15 ou 20 anos é que tivemos, íamos buscar água ao chafariz, era ainda um bocadinho distante, eu lembro em criança tinha de ir com boiões, com garrafões, baldes buscar água ao chafariz, pronto, tomávamos banho num alguidar (…). A luz inicialmente íamos buscar a um poste (…) não havia nada, depois fomos pintando…, tivemos a nossa casinha”. (Excerto de entrevista a Mor2, julho 2022)

Desenvolvemos a discussão sobre o recente processo de realojamento dos moradores do BCV a partir do espetáculo teatral comunitário Mágua di Nôs Partida que, em crioulo, significa “A Mágoa da Nossa Partida”, apresentado no âmbito do Festival Todos12, com a direção de Rafael Barreto (RB), dinamizador comunitário, intérprete, diretor artístico e fundador da Associação Lugar Comum (ALComum), dedicada às artes performativas. RB é também ex-morador do segundo conjunto de realojamento dos anos 1970 do BCV, onde nasceu de mãe são-tomense e de pai cabo-verdiano e onde “viveu tudo”13. Uma extensa entrevista que nos concedeu no Centro de Artes e Formação, equipamento da Junta de Freguesia no BCV onde é professor, a entrevista com a ex-moradora do BCV aqui designada Mor214, que viveu no bairro durante 45 anos e é atriz na ALComum, e a visão do espetáculo Mágua di Nôs Partida, bem como a análise da bibliografia e da comunicação social existente sobre o tema, constituem as bases documentais deste relato.

“As pessoas sentiram-se representadas nesta peça, as pessoas incluindo eu, n’é? (…), retratámos a nossa vida, o que sentimos, a revolta de não termos pedido para sair de lá, de termos uma casa em que não cabiam as nossas mobílias: o que é que iriamos fazer com as nossas coisas, com as nossas memórias, com as nossas vivências?”. (Excerto de entrevista a Mor2, julho 2022)

A performance foi realizada pelo grupo de teatro comunitário da ALComum, constituído por (ex)moradores do BCV, maioritariamente de origem africana, de todas as idades. Mágua di Nôs Partida teve o intuito de ‘dar-lhes uma voz’ sobre o seu processo de realojamento e de promover uma apropriação positiva e a identificação com o novo bairro, procurando recriar o sentido de comunidade que existia no BCV e atenuando o sentimento de revolta e de perda em relação a um lugar onde esteve inscrita grande parte das suas vidas: “a nossa luz (…) está aqui, nestas paredes, neste amarelo”.15 (Figura 1)

Fonte: Google Maps. Street View de outubro 2019.

Figura 1 Bairro da Cruz Vermelha 

“Às vezes tenho que ir lá [no BCV], tenho familiares, tenho amigos e o bairro está muito triste. Eu, no início, chorava. Parava ao pé da minha casa e ficava a chorar: tinha a sensação de que os meus avós tinham ficado lá dentro (…). [O bairro] vai ser demolido e eu espero ser avisada porque eu quero despedir-me do meu bairro, porque eu fui muito feliz lá”. (Excerto de entrevista a Mor2, julho 2022)

O espetáculo começa na praceta da rua Maria Margarida no realojamento de 1970 do BCV, ponto de encontro da comunidade, e acaba no Novo BCV (na freguesia de Santa Clara), onde algumas das famílias do realojamento de 1970 do BCV foram realojadas. O público é chamado a participar nesta primeira parte da performance, sendo convidado a ajudar ‘uma família do bairro’ na sua mudança. Os seus pertences (os objetos mais significativos do seu cotidiano) são carregados pelos atores e espectadores numa carrinha que vai para o novo bairro. O público acompanha-a num autocarro, como numa procissão. A segunda parte desenvolve-se dentro e fora dos prédios que, na altura da apresentação do espetáculo em finais de 2021, ainda não estavam habitados, mas que foram abertos para o efeito pela CML. Representam-se neste segundo ato a chegada numa nova freguesia e o contato com os novos vizinhos (dentro do novo bairro e com os bairros da envolvente) e os desafios da mudança e da adaptação das famílias às suas novas casas, cujas divisões foram consideradas demasiado pequenas e cujas escadas (que levam à porta de entrada ou as escadas interiores), constituem um obstáculo para os muitos idosos da comunidade do BCV. De qualquer forma, o espetáculo deixa-nos com uma mensagem de esperança sobre as mudanças que fazem parte da vida e a possibilidade da criação no Novo BCV de ‘outras pracetas’: “Habitem, vejam” (encoraja RB, em entrevista de dezembro 2021) . O espetáculo inclui cantos e danças e a distribuição de cachupa ao público, aquando da representação de um evento comunitário, ou seja, as celebrações para um funeral que ‘dá vida’ ao novo bairro (Figura 2).

Fonte: Redes sociais da Associação Lugar Comum.

Figura 2 Cartaz do espetáculo Mágua di Nôs Partida  

Na sua entrevista de dezembro 2021, RB sublinha a violência do processo de realojamento em relação sobretudo à geração dos moradores mais idosos, à sua vontade de finalmente descansar e aproveitar a vida depois dos desafios que enfrentaram ao longo das suas existências, e à sua maior dificuldade de lidar com as mudanças. Mor2, de 47 anos, na entrevista de julho 2022, refere que: “Eu desde o início disse: eu quero ir para a casa nova! Eu já estou farta de casa usada, eu nunca tive uma casa nova! (…) eu vou esperar e ver”. Falando sobre a opinião do seu pai, RB (entrevista de dezembro 2021) também refere que ele nunca viveu “numa ‘coisa nova’, para mim, feita para mim”. Porém, “não é feita à nossa medida, à medida das coisas que nós temos”. Lhe foi dito “tens que caber aqui, onde nós queremos”. RB identifica o começo desta ‘violência urbana’ nas obras de reabilitação dos prédios de realojamento inacabados e por eles ocupados na década de 1970 e nas obras de realização das infraestruturas na década de 1980 pela CML, que muda as famílias de casa à medida que avança com as obras nos edifícios. A família de RB teve de mudar de casa (e vizinhança) algumas vezes antes de ser definitivamente instalada na casa que então lhe foi atribuída. RB também refere que, em 1998, na ocasião da Expo, foram realizadas novas obras que incluíram a instalação de portas nos corredores abertos e comuns que ligavam as habitações no mesmo patamar, o que acabou por cortar alguns laços de vizinhança e por afetar a forma como as famílias se juntavam. Ele fala ainda da degradação posterior dos prédios, devido à falta de manutenção pela CML, pelo que os moradores, “entregues a si próprios”, tiveram de investir ao longo dos anos os seus parcos recursos para melhorar um espaço que tiveram agora de deixar, tendo construído “com as suas mãos o seu destino e aquilo que são e que têm hoje, o seu património”. Muitos tiveram de se desfazer dos móveis dos quais ainda pagam as prestações, com grandes sacrifícios, pois estes não cabem nas novas habitações (Figura 3):

“(…) porque na nossa casa (…) a sala era comprida, então dava para pôr tudo e pessoas antigas compram muita coisa, não é como agora que nós compramos o essencial (…). Eu disse: a minha esperança, como há dois modelos, escolher. A Gebalis marcou reunião para virmos conhecer as casas, os modelos e escolhermos, eu vi. (…) eu disse: esquece, a casa é mais pequena (…). Não, entre este modelo e o outro, prefiro este, tem pátio, (…), escolhi este, mas a minha preocupação continuou, onde é que eu ponho as minhas mobílias?”. (Excerto de entrevista a Mor2, julho 2022)

Fonte: Autora. Julho 2022.

Figura 3 Sala de jantar numa das casas do Novo BCV 

Por outro lado, as famílias tinham sido alertadas sobre o seu realojamento já em 2017. O projeto, porém, demorou alguns anos a ser realizado e as primeiras chaves foram entregues apenas em dezembro de 202116, deixando a comunidade numa grande incerteza sobre o seu futuro, o que contribuiu para a desagregação das famílias:

“Depois falaram em realojamento, já falam em realojamento há muitos anos, até que se concretizou, tivemos uma reunião e disseram mesmo que iam construir um bairro só para nós, eu aí fiquei contente, disse um bairro novo, epá! (…) Eu no fim, já estava farta do bairro porque o bairro tornou-se muito sujo, já não se preocupavam em limpar o bairro, as pessoas também não cuidavam, estava tudo sujo, as casas nunca mais estavam prontas, então tudo piorou”. (Excerto de entrevista a Mor2, julho 2022)

Em Lisboa, o Novo BCV é a terceira intervenção de habitação social promovida pela CMLisboa, na sequência do projeto da Reabilitação do Bairro da Boavista e da Reabilitação do Bairro Padre Cruz. Os três projetos são da autoria do atelier Orange Arquitetura - Arquitetura e Gestão de Projeto. O quarteirão piloto do Bairro Padre Cruz (um bloco de 10 frações que pode ser adaptado e repetido), de 2018, fez parte da Representação Oficial Portuguesa na 17ª Bienal de Arquitetura de Veneza de 2021, sendo exibido na exposição In Conflict, da curadoria de DepA Architects (Figura 4). O projeto do Novo BCV venceu o Prémio Nacional de Arquitetura | Forma 2022 - Habitação Coletiva e foi nomeado para os Prémios Construir'22 - Melhor Projeto Público.

Fonte: Autora. Julho 2022.

Figura 4 Quarteirão piloto do Bairro Padre Cruz 

“Eu mudei-me no dia 1 de fevereiro, eu fixei a data! Assim que me mudei por aqui, eu senti-me a mulher mais feliz da vida, eu adoro, amo a minha casa! Tem muita luminosidade. (…), assim que acordei o primeiro dia, eu tinha luminosidade sem acender as luzes, eu disse “Wow! É isto que eu queria!”. Estou satisfeita, tenho este espaço [o pátio], quando preciso desanuviar ao fim do dia, (…) venho para aqui um bocadinho (…). Assim que falaram em moradia, eu disse “Ótimo! Não vou estar num prédio (…)”. Agradeço todos os dias a Deus! Agradeço também pela outra casa porque fui feliz. A minha casa estava bem arranjada, atenção! Mas não tem nada a ver com as condições que esta tem, não é? É moderna”. (Excerto de entrevista a Mor2, julho 2022, figura 5)

Fonte: Autora. Julho 2022.

Figura 5 Pátio privado no Novo BCV 

O quarteirão piloto pretendeu delinear uma habitação social mais ‘humana’ e sustentável. Optou-se, por exemplo, pela construção de blocos de habitações de apenas dois andares, com entrada independente, um pátio/ terraço e um canteiro para horta, e pela tipologia evolutiva18. A própria construção apresenta traços inovadores em termos de conforto, otimização da exposição solar, utilização de painel solar térmico para o aquecimento de águas domésticas, aproveitamento das águas pluviais e reutilização das águas do lavatório (Di Giovanni, 2022). No entanto, as intervenções no Bairro Padre Cruz, no Bairro da Boavista e no BCV estão baseadas na repetição do mesmo quarteirão e do edifício-tipo. Questionamos, como faz Di Giovanni (2022, p.269), de que forma esta “exportação integral” pode ter em consideração as especificidades das populações para as quais está destinada. As habitações realizadas constituíram uma melhoria substancial na condição habitacional das famílias realojadas, porém, no caso do Novo BCV, não existiu participação dos moradores no projeto das suas casas e puderam vê-las só depois de acabadas, tendo apenas, em alguns casos, a possibilidade de escolher entre variantes da mesma tipologia.

O espetáculo Mágua di Nôs Partida fecha um trabalho comunitário por etapas, uma “trilogia”, que o RB identifica, na entrevista de dezembro 2022, como: o Empoderamento (1), a Memória (2) e o Fim (3), e que acompanhou o enfrentamento do realojamento de forma coletiva, à medida que este estava a acontecer, numa “oficina que nunca parou”. A música Nha Terra K´Tchuva de Splash!19 acompanha as etapas com o tema da água. A organização da comunidade pela arte iniciou com um financiamento do programa BIP/ZIP20 em 2016 e com outro em 2017. Com o primeiro projeto Praceta D’Sôdade (“Praceta da Saudade”), a praceta da rua Maria Margarida foi transformada num grande palco ao ar aberto: “um lugar de convívio onde os atores, os próprios habitantes, vieram contar as suas histórias de vida a outros públicos”21. Organizaram-se eventos comunitários de partilha e troca de memórias e conhecimentos através da arte “nas suas diferentes dimensões - música, dança, teatro e gastronomia -, entendida como fator de inclusão, desenvolvimento e mudança social”22.

“O Bairro da Cruz Vermelha mudou muito. Em criança e jovem, as pessoas conviviam muito, havia muita festa e quando havia festa era todos (…), era uma comunidade unida. As pessoas uniam-se muito, eram mais ‘amigas’, visitavam-se umas às outras. Estou a falar do início (…). Adorava o bairro! Até uma certa altura que houve muito tráfico de droga e sinto que mudou bastante porque vinham pessoas de outras zonas que eu não conhecia, e depois apoderaram-se do bairro”. (Excerto de entrevista a Mor2, julho 2022)

Com o projeto, pretendeu-se reativar o sentimento de pertença e restabelecer os laços de comunidade dos residentes do BCV, promovendo a sua (auto)organização. O espetáculo coletivo Praceta D’Sôdade, que resultou do projeto, começa com a frase “o chafariz está seco”, entendendo o chafariz como o lugar à volta do qual as comunidades (em Cabo Verde) costumam se reunir para conversar e partilhar. Da mesma forma, o espetáculo é fechado pela frase “voltou a chover na nossa praceta”, expressando o caminho de (re)aproximação feito pelos membros da comunidade ao longo do projeto. O projeto entendeu também promover maior autoconfiança para criar dinâmicas positivas que contrariassem a degradação do espaço público do bairro, ligada ao tráfico de droga existente.

O projeto Nôs Retrato (O Nosso Retrato) financiado pelo BIP/ZIP em 2017, com vista à demolição do BCV e ao realojamento dos seus habitantes, surgiu da necessidade de dar a conhecer e de não deixar esquecer, através do registo de memórias individuais e coletivas, “como é que se vivia ali, quem é que morava ali”23:

“Os meus colegas não faziam ideia do que é morar num bairro. Muitas pessoas têm uma ideia … não é errada, também é real, de marginalidade, de criminalidade, de perigo … eu sempre o senti como casa. Os meus colegas aos vizinhos não diziam “olá” e eu quando entro aqui, o meu carro pode ficar aberto, ninguém faz nada, posso precisar de arroz, posso precisar de açúcar, de sumo…. Passar por alguém nas escadas do meu prédio e não falar é estranhíssimo. Eu sei os nomes dos meus vizinhos todos!”. (Excerto de entrevista a RB, dezembro 2021)

No âmbito de Nôs Retrato, foram realizadas oficinas de alfabetização para as pessoas mais idosas conseguirem escrever pela própria mão e ler os seus testemunhos de vida. Foram escolhidos cinco moradores, cujos “retratos de saudade”24 aparecem ainda hoje nas fachadas dos prédios do BCV (Figura 1) e cujas histórias foram gravadas em vídeos25. Cada “retrato” ou registo mostra o cotidiano dos moradores, os seus testemunhos sobre a sua infância, a sua vinda para Portugal e a chegada no BCV, a sua ligação com o bairro e o resto da comunidade e os seus anseios. Foi também realizado o documentário Nôs Retrato. O nosso bairro na memória de todos, com apresentação comunitária na Praceta da Rua Maria Margarida. Por outro lado, pretendeu-se criar as bases para relações de boa vizinhança entre os moradores do BCV e o futuro bairro vizinho ‘PER11’, através da realização de oficinas de arte com as crianças. Fechou o projeto uma caminhada performativa com os atores/moradores que já tinham participado no primeiro espetáculo Praceta D’Sôdade e que viriam a participar no Mágua di Nôs Partida. Andaram do BCV até ao terreno em Santa Clara (na altura baldio) onde iriam ser realojados, juntando-se, de forma simbólica, no Parque do Oeste (barreira entre as duas freguesias) às crianças do ‘PER11’, que tinham participado nas oficinas. Ao falar deste projeto, RB afirma que “o bairro há de ser demolido, aquelas pessoas hão de ser realojadas - dentro ou fora da freguesia -, mas nunca ninguém há de esquecer o Bairro da Cruz Vermelha”26. Mais recentemente, RB criou a companhia de teatro juvenil Born2Fail (“Nascidos para Falhar”), que pretende contrariar o futuro sem perspetivas que os jovens de grupos sociais vulneráveis e o mundo à sua volta acham estar-lhes reservado, estimulando a sua autoconfiança e a sua esperança no futuro por meio do teatro.

3. O Bairro da Torre. “No bairro não falta nada!”

O Bairro da Torre (BDT), bairro autoproduzido em Camarate (Loures), junto ao Aeroporto de Lisboa, resultou da ocupação, sem loteamento, a partir da década de 60, de um terreno propriedade do Estado, sujeito à servidão do Instituto Nacional de Aviação Civil e da NAV Portugal, e de dois outros, contíguos e privados. O bairro, atualmente (agosto 2023) extinto, após realojamento, a partir de 2007, dos seus habitantes, apresentava graves lacunas ao nível das infraestruturas, do espaço público, da dotação de equipamentos e da precariedade das habitações. O BDT acolhia uma comunidade de famílias de origem africana (principalmente imigrantes de São Tomé e Príncipe) e portuguesas, sendo estas maioritariamente de etnia cigana. De acordo com os inquéritos realizados pelo GESTUAL no quadro do projeto Ação-Investigação no Bairro da Torre, Loures. Extensão académica e experimentação metodológica e projetual (2014-2023), em 2016, foram recenseadas 70 famílias, que se instalaram no bairro maioritariamente após 1994.

Em 2007 e em 2011, a Câmara Municipal de Loures (CMLoures) procedeu ao realojamento de algumas das famílias com imediata demolição das suas casas, ao abrigo do Programa Especial de Realojamento (PER), no âmbito do qual tinha sido realizado um recenseamento da população27. No entanto, tal recenseamento não identificou todos os moradores do bairro, não teve atualizações após 1993 e passaram 14 anos entre o recenseamento e o começo dos primeiros realojamentos, pelo que, as famílias cresceram, novas famílias se constituíram e outras se instalaram no bairro. Parte dos moradores não abrangidos pelo PER viram as suas casas demolidas, ficando sem alternativa habitacional, o que os obrigou a refazer de forma mais precária os seus abrigos no bairro. A partir da violência das demolições sem alternativa de 2011, as famílias começaram a se organizar e, em outubro de 2012, uniram-se na Associação Torre Amiga (ATA), então presidida por Ricardina Cuthbert, de São Tomé, e por Laura Ramires, de etnia cigana. Um corte no fornecimento da eletricidade para iluminação pública em outubro de 2016 e um incêndio, que deflagrou em julho de 2018, contribuíram para que a CMLoures retomasse (a partir de 2017), e acelerasse, a “erradicação” do BDT, através do realojamento atomizado e disperso das famílias, em função da tipologia dos fogos disponíveis no seu parque habitacional e do agregado, segundo um processo com pouco diálogo e nalguns casos violento, e através de alguns despejos forçados. Dadas as escassas possibilidades da CMLoures de realojar os moradores com urgência no município de Loures, o IHRU apoiou, a partir de 2018, o realojamento das famílias em outros municípios da AML. Esta solução, porém, privou-as das redes locais de solidariedade e da sociedade civil que as apoiavam. Algumas perderam as suas fontes de rendimento, ficaram isoladas, com graves constrangimentos e dificuldade de adaptação às novas vizinhanças, e passaram a enfrentar despesas adicionais com a renda, as contas e os transportes. A situação habitacional dos ex-moradores do BDT melhorou, mas a sua situação socioeconómica, em muitos casos, agravou-se. Muitas pessoas retornavam frequentemente no bairro para receber apoio da ATA ou para conviver com os familiares, amigos e vizinhos que permaneciam no bairro. Enquanto o processo de realojamento não concluía, as condições de vida das famílias que permaneciam no bairro tenderam a piorar. A ex-moradora A relatou que, depois das demolições de 2011, o bairro

“Piorou, foi piorando, piorando, piorando. (…) nós estávamos aqui todos unidos, depois de sair muita gente o ambiente ficou fraco. (…) estava melhor quando tinha mais gente. O outro chama o outro, está aí tudo de volta da gente, agora está muito triste, às 20h já estamos fechadas aí, antes não, à uma da manhã ainda estávamos aí a conversar, brincar”. (Excerto de entrevista à ex-moradora A pelo GESTUAL em 2018)

O realojamento arrastou-se no tempo, gerando uma grande incerteza na comunidade. Os moradores do BDT coabitavam com o medo de serem repentinamente despejados, sem uma alternativa habitacional adequada. Sempre que há realojamentos, a autarquia tem como procedimento avançar com a demolição das construções desocupadas, o que agravou, ao longo dos anos, a degradação do espaço público do BDT, sendo que o entulho não era retirado. Por outro lado, algumas casas foram danificadas pela demolição das habitações vizinhas. A maioria das famílias teve a possibilidade de visitar as casas antes de lhes serem atribuídas, porém, em raros casos as recusaram, tendo sido confrontadas com a possibilidade de não receberem no curto prazo outras propostas, verificando-se que algumas acabaram por aceitar, por esta razão, uma tipologia inferior a que tinham direito. Uma vez que as famílias aceitavam uma habitação, tinham poucos dias para se mudarem e, em muitos casos, esta não tinha condições desejadas de habitabilidade, espelhando a urgência da CMLoures de que os fogos que iam ficando vagos fossem imediatamente ocupados pelas famílias a que tinham sido atribuídos, de forma a evitar que fossem ocupados ilegalmente. Numa conversa com G, no âmbito das filmagens do documentário Artigo 65 de 201928, que pretendeu dar visibilidade aos laços de comunidade forjados entre os moradores de etnia cigana e de origem africana e ao seu sonho de um bairro novo onde morar em conjunto (Arma, 2022), ela refere sentir-se “perdida” em Santo António dos Cavaleiros (Loures), onde foi realojada. Identificou como causas a grande distância que a separa da antiga vizinhança (não tem transporte próprio e vive com um problema físico que lhe dificulta os movimentos), a altura dos edifícios a que não está acostumada (habituada a um piso térreo, passou a morar num 9º andar, com os elevadores constantemente avariados) e a falta de estímulos. Depois de realojada, após a visita cotidiana ao filho (que, entretanto, faleceu) no hospital, G ia sempre ao BDT para ficar na companhia dos vizinhos que permaneciam no bairro. A casa onde foi realojada não tinha “nem água para tomar banho [água quente]”, e “tem baratas”. Em conjunto com o BDT, deixou também um tempo feliz em que “não precisava de nada”. Aí não tinha despesas como a renda nem contas que não consegue pagar. Adorava o bairro e teria gostado de voltar. Esperava que as pessoas tivessem tido mais coragem e tivessem lutado “como uma família unida para salvar o bairro”. Foi aí que criou a sua família, “numa casa ‘baixa’”. Tem saudade de São Tomé e “o piso térreo parece São Tomé, dá para conversar com os amigos”, sendo que em Santo António dos Cavaleiros “tem de fechar a porta e pronto, estou sozinha”. Nesta fase, a sua vida desenvolve-se quase exclusivamente em casa. Quando morava no BDT, vendia cerveja, vinho e ferro velho. É uma mulher ‘despachada’ e “lá não pensava em nada”. Atualmente, fechada em casa, sozinha, tende a ficar deprimida porque está “sempre a pensar”.

Em junho 2022, o processo de realojamento dos moradores do BDT não estava ainda concluído, faltando realojar uma família que aguardava uma solução habitacional adequada:

“Os animais para mim são muito importantes, para o meu marido ainda mais. (…) tivemos porquinhos, tivemos que os dar com muita pena, porque tínhamos de ir embora a correr, meti tudo em caixas, daqui a pouco faz um ano e continua e ficámos sem os animais e o meu marido chegou a dizer às pessoas da Câmara: se vocês me tiram daqui e deixam-me sem os animais, acabam com a minha vida”. (Excerto de entrevista a M, junho 2022)

M expressa assim o seu desejo sobre o realojamento:

“Para mim, vendo as outras pessoas que estão arrependidas de ter saído daqui, queria uma casinha parecida àquela que estou a morar porque nunca vivemos em casas [em apartamentos em prédios], sempre vivemos em barraca, eu vivi em casa, até aos 15 anos, mas o meu marido praticamente nunca, teve sempre contato com a terra, abre a porta e está na rua, está em liberdade. O andar era a morte dele. Então eu desejava que me dessem uma casinha rasteira, térrea (…). Pelo menos aqui na zona de Camarate, tenho aqui os meus filhos, tenho a minha vida, tenho médica de família, tenho a escola do miúdo, (…). Então eu precisava aqui, na minha zona”. (Excerto de entrevista a M, junho 2022)

Membros do GESTUAL, sob coordenação da professora Isabel Raposo, envolveram-se desde 2014 no estudo e na procura de soluções para o BDT, a partir do desafio da associação Habita que desde há alguns anos apoiava o bairro na sua luta contra as demolições que haviam sido realizadas pela CMLoures. No quadro do projeto de investigação e de ação local sobre o BDT inscrito no Centro de Investigação em Arquitetura, Urbanismo e Design (CIAUD) e mencionado acima, o GESTUAL realizou diversas pequenas melhorias através de processos participados, de baixa tecnologia e materiais económicos, que integraram alunos, estagiários e professores da FAUL, junto com a população, em oficinas didáticas. Estas ações foram realizadas em estreita interação com os atores locais, através da priorização do seu conhecimento enquanto (auto)produtores do próprio espaço (Lefebvre, 1974) e da sua protagonização nos processos de transformação do próprio espaço.

A investigação-ação através de metodologias interativas sobre as condições de vida e habitacionais da comunidade do BDT levou o GESTUAL a apoiar o seu sonho de morar de forma digna e em conjunto29 e a identificar soluções urbanísticas e habitacionais para o realojamento coletivo in loco dos moradores do bairro, contrário ao realojamento disperso, entretanto reiniciado pela CMLoures:

“Desde que [re]começaram os realojamentos, foi uma desilusão porque, em vez de nos arranjarem um bairrozinho onde pudéssemos todos viver juntos… porque isto era tudo uma família, há anos que moramos aqui, uns ajudávamos aos outros. Se foi realojando tudo aos poucos, alguns forçados, e cada um foi para o seu canto. Mas antes disso, fartámo-nos de sofrer aqui (…). Fomos vivendo assim ao longo do tempo: mal, mesmo mal! Mal porque não tínhamos condições, mas bem porque tínhamos a família junta, eramos mais felizes!”. (Excerto de entrevista a M, junho 2022)

Ricardina Cuthbert descreveu desta forma o novo bairro que imaginava para a comunidade da Torre:

“cheio de verde com casinhas pintadas de branco e verde, limpinho, com oficinas e lojas (um cabeleireiro por exemplo), uma capelinha, um espaço recreativo, as galinhas da Maria e as minhas couves. Tudo muito organizado, as casas em condições, uma ‘coisa nova’! Não é cidade como Loures, tem relva, é mais parecido com uma quinta, com piscina para as crianças no verão, todos são livres”. (Excerto de entrevista a Ricardina Cuthbert, no âmbito das filmagens do documentário Artigo 65, novembro 2019))

Hugo Jesus, então mestrando em Arquitetura pela FAUL, membro do GESTUAL e orientado por Isabel Raposo, quis dar forma ao sonho da comunidade e elaborou, no quadro do seu projeto final de mestrado, uma proposta para um pequeno bairro novo numa faixa de terreno livre e pública do BDT (Jesus, 2020). Dessa forma o GESTUAL pretendeu motivar a autarquia para uma intervenção mais inovadora que respeitasse as especificidades do habitar dos moradores de origem africana e de etnia cigana e seus anseios - identificados pelo GESTUAL no BDT30 -, que abraçasse as suas práticas quotidianas, mantivesse os laços de vizinhança e de entreajuda e que incluísse a comunidade na sua elaboração e realização. Infelizmente, o projeto não teve impacto na negociação com o poder municipal de uma contraproposta aos realojamentos dispersos em curso, que respondesse melhor aos desejos dos moradores. A CMLoures persistiu na sua decisão política da erradicação do bairro, dada a sua complexa situação fundiária e urbanística31, os parcos recursos municipais e as condições agravadas de vida dos moradores que pediam por soluções no imediato.

3.1 A Minha Cidade pelos Meus Olhos

No âmbito da nossa pesquisa para doutoramento sobre o processo de realojamento dos moradores do BDT, considerou-se relevante ‘ouvir a voz’ das crianças. Dando continuidade ao estudo Vozes do Direito à cidade de 2018 (Arma, 2022), estas foram envolvidas em 2021 numa nova ação de fotografia participativa, A Minha Cidade pelos Meus Olhos, para pensarem e experimentarem a relação com os seus novos espaços. A ação envolveu nove crianças entre os seis e catorze anos, sete de etnia cigana e duas de origem africana, oriundas do BDT e realojadas em quatro bairros de habitação social nos municípios de Loures, Sacavém e Almada. Fornecemos a cada criança, durante duas semanas uma máquina fotográfica descartável e um guião com a sugestão de tópicos de observação, para registarem os lugares do seu cotidiano. As crianças fotografaram livremente o interior das suas casas, a vista das janelas dos seus quartos, a escola e outros equipamentos que costumam frequentar nas redondezas das suas habitações, os espaços onde costumam brincar e encontrar-se com os outras crianças e a família, os eventos de comunidade, bem como amigos e familiares e situações de vida cotidiana em que se sentem mais felizes.

A maioria das fotografias foi tirada no espaço interior, pelas janelas, revelando uma relação diferente, ‘em construção’, com o espaço exterior. As fotografias e os relatos sobre elas feitos pelas crianças, recolhidos em entrevistas semiestruturadas a partir das imagens captadas, revelaram algumas mudanças no seu cotidiano de realojamento, tendo identificado como melhorias a habitação e os espaços de brincar:

- as novas casas apresentam mais qualidade, embora eles não estivessem acostumados a morarem em andares altos - “aqui não passamos tanto frio como lá, está tudo fechado”, relata C1, entrevistado em 2021 no âmbito do photovoice e realojado na Quinta do Mocho -;

- os espaços de brincar dos novos bairros, como os parques infantis, se bem que um pouco deteriorados, e os campos de futebol lhes faziam falta no BDT (Figura 6), mostrando “mais ‘muros’ e calçada no chão, (…) mais movimento e mais luz” (C1). Compararam: “lá é mais plantas (…), aqui é só mais casa, não tem tanto mato” (C3, entrevistado em 2021 no âmbito do photovoice).

Contudo, quase todas as crianças afirmaram gostar mais de viver no BDT (“apesar do lixo por todo o lado”, refere C1), apontando as seguintes razões:

- no BDT tinham os amigos e os familiares todos por perto: “éramos mais, eram os meus primos, éramos muita pessoa!”, (relata C4, entrevistado em 2021 no âmbito do photovoice e realojado no Bairro das Sapateiras em Loures);

- para brincar “lá era mais fixe” (C4) porque se podia “fazer tudo”, enquanto, “numa casa [num apartamento] não” e “havia mais espaço” (C2, entrevistado em 2021 no âmbito do photovoice). Apesar de ter sido já realojado no Bairro São Sebastião de Guerreiros em Loures, C7 tirou grande parte das suas fotografias no antigo bairro, onde a sua avó então ainda morava e onde guardava a sua bicicleta e tinha mais liberdade para brincar;

- C1 afirmou “como que aqui é um prédio, não dá para correr, para brincar, não é?”, costumando se juntar aos primos em casa de uma tia que tem um quintal noutro bairro. Também relatou gostar mais do antigo bairro pela maior possibilidade da brincadeira livre e autônoma;

Pelo contrário, C6 (entrevistado em 2021 no âmbito do photovoice e realojado no Bairro de Vale Figueira, Sobreda, Almada), refere gostar mais da nova vizinhança e prefere viver no bairro atual, pois “lá tem miséria, aqui não tem. Aqui tem campo de futebol, lá não tem!”.C3, realojado no Bairro da CAR (em Camarate), acha “que está à vontade em todo o lado, com a sua família” 32.

Fonte: C2. Junho 2021.

Figura 6 Os novos espaços de brincar 

Participaram neste photovoice também duas crianças que em 2021 ainda permaneciam no BDT e que lá tiraram as suas fotografias. Porém, na altura da conversa connosco, C3 já tinha sido realojado. Ao observar os seus registos, lembrou-se com alguma saudade da horta da sua família no BDT de que cuidava, dos produtos que aí cresciam e dos animais que ajudava a criar. Uma parte da produção desta horta integrava os alimentos distribuídos pela ATA a moradores necessitados e foi usada na confeção de refeições solidárias destinadas a famílias do bairro e de outros bairros, durante a pandemia de Covid19. “Esta é a horta. (…). Eu fico lá… ficava lá muitas vezes durante o dia. (...). Para ajudar. (...). Eu gostava, era engraçado!”. A sua foto preferida (Figura 7), a que deu o título de ‘Amizade’, retrata a carrinha que a ATA usa nas suas atividades, que ele acompanha, como a recolha e a distribuição de alimentos. Elegeu esta foto como a sua preferida pois a carrinha e a pintura mural “Bem-vindos a todos”, representam o espírito de solidariedade e de entreajuda da antiga comunidade e que ele reconhece como valores: “(…). Esta carrinha ajudou a fazer mudança, também para fazer recolha (...). Toda a gente era bem-vinda” (excerto de entrevista a C3 em 2021 no âmbito do photovoice).

Fonte: C3. Junho 2021.

Figura 7 Amizade 

C5, a última criança a morar no BDT, referiu em entrevista em 2021 no âmbito do photovoice, em relação à sua foto preferida que mostra a sua égua, ter construído no verão de 2021, em conjunto com os primos e os amigos, um grande curral com tábuas abandonadas e velhas portas que encontraram no bairro, onde passaram a organizar corridas. “Aqui. Ao pé da foto do cavalo. (...). Com as tábuas fizemos um curral (...), corríamos com a égua Rayane”. C5 comentou também que a piscina, que mostra noutra das suas fotos (Figura 8), foi totalmente pensada e autoconstruída por ele, os primos e os amigos: “Um dia e meio só para acabarmos isso tudo!”. Escavaram com uma enxada um buraco muito profundo que forraram com uma lona. Um pneu foi utilizado para a fixar ao terreno e, ao mesmo tempo, serviu de trampolim, em conjunto com um velho escorrega, de onde o C5 “dava um mortal para trás”. Ele acha que “no bairro [BDT] não falta nada!”, lamentando a ausência dos seus companheiros de brincadeira e dos familiares já realojados.

Fonte: Mãe de C5. Junho 2021.

Figura 8 Piscina autoproduzida pelas crianças no BDT 

4. Reflexão

Os dois bairros foram alvo de distintos processos de realojamento. No BCV, os moradores foram realojados em conjunto num bairro novo, numa outra freguesia limítrofe à antiga. O projeto do Novo BCV possui traços inovadores (atrás identificados) e que expressam a vontade de um ‘fazer diferente’, em relação aos grandes conjuntos habitacionais que surgiram no âmbito do PER. Em 2017, foram feitas reuniões com a população e foi aplicado um inquérito em parceria entre a CML, a GEBALIS, a Junta de Freguesia do Lumiar e a Associação de Moradores do Bairro da Cruz Vermelha, para ouvir o parecer dos moradores sobre o realojamento e as suas necessidades33. Foi dada possibilidade de escolha aos agregados entre serem realojados no Novo BCV, no Lumiar ou em outros bairros de Lisboa (de forma dispersa e em focos já existentes), e entre variantes da mesma tipologia de habitação. Foi também ouvida a sua preferência sobre a parte do bairro em que gostariam de ser realojados (“em cima ou em baixo”, relata Mor2 em entrevista em julho 2022) e a identificação das famílias que gostariam de ter como vizinhas. Mor2 comentou na mesma entrevista que, no seu caso, estas escolhas foram respeitadas.

Apesar dos aspetos bem conduzidos e de alguma escuta nesta operação de realojamento, tratou-se de um processo ainda marcado por uma abordagem top-down, pois, segundo foi dito e relatado pelos entrevistados e pela comunicação social34, os moradores não “pediram para sair de lá”, não tiveram voz no projeto das suas casas e nem puderam mudar a configuração concebida pelos arquitetos, sendo a sua participação relegada ao papel de consultores. A abordagem participativa tem vindo a ser cada vez mais invocada. A noção de participação vulgarizou-se e, como referem Raposo, Crespo & Lage (2017), é hoje reclamada por diferentes linhas de pensamento, determinando diferentes práticas, algumas mais top-down e conservadoras, outras mais bottom-up e transformadoras, com diferentes resultados. Como refere Alves (2018, p.11), em relação à escala Ladder of Citizen Participation de Arnstein (1969), nos degraus baixos e intermédios (que incluem a “Informação” e a “Consulta”) estão as situações em que “os decisores políticos retêm o poder da decisão, promovendo processos de diálogo com o mero objetivo de (…) assegurar o apoio da população a decisões já previamente tomadas” e aquelas em que “os cidadãos são convidados a expressar as suas opiniões e preferências, sem estar, no entanto, garantida a sua influência no processo de tomada da decisão”.

Uma vez construído o bairro, os residentes foram confrontados com alguns desafios, apesar de estarem de forma geral satisfeitos com as suas novas casas, tais como: a mudança para uma nova freguesia e os novos vizinhos, o que pode afetar a possibilidade das populações realojadas manterem as suas redes de sociabilidade e rotinas urbanas (Cachado, 2011); as divisões pequenas e as escadas de acesso às habitações e as interiores (não adequadas a uma população envelhecida e a pessoas com problemas de mobilidade); o uso de materiais pouco resistentes (nomeadamente no chão, que, em alguns casos, tiveram de refazer), pequenos problemas construtivos nas casas de banho e o mau funcionamento de alguns eletrodomésticos. As suas antigas rendas aumentaram e não aprovam a mistura no mesmo bairro de famílias com renda assistida e famílias com renda acessível. Sublinharam ainda a falta de convívio alargado e de vida de comunidade.

No BDT a erradicação pela CMLoures assumiu caracter de urgência (principalmente a partir de 2016) e o processo de realojamento assentou na dispersão das famílias nos grandes, longínquos e degradados conjuntos habitacionais da AML. A população passou de casas térreas com alpendres ou quintais e logradouros - “a casa com extensão para a rua” (Freitas, 1994, p.30) -, a morar em apartamentos de habitação coletiva (enquanto no novo BCV deu-se o processo inverso), enfrentando a dificuldade de adaptação e apropriação das novas habitações (bem como dos novos vizinhos, dos novos bairros, freguesias e, em alguns casos, novos municípios). Segundo a análise de Alves (2019), os próprios realojamentos nestes conjuntos contribuem para dar continuidade (e por vezes agravar) a processos de segregação social e residencial das famílias realojadas. A participação das famílias do BDT no processo de tomada de decisão relativamente ao futuro do bairro e ao seu realojamento foi (quase) inexistente. Como ainda refere Alves (2019): “Nestes novos bairros de realojamento, as pessoas parecem então ser consideradas pela ação institucional - relembrando o que nos dizia Isabel Guerra (1994) - como coisas que afinal se podem pôr em gavetas”. Da mesma forma, Ricardina Cuthbert manifestou a sua resistência a soluções de realojamento para bairros marcados por maior segregação socioespacial e reflete de forma crítica sobre a intervenção pública e os processos de realojamento conduzidos sem a participação dos moradores, ao expressar o seu anseio sobre o futuro do BDT (antes da sua erradicação e da dispersão da população), alertando para a necessidade de um acompanhamento no cotidiano das famílias em contextos vulneráveis:

“O meu sonho é construir um Bairro da Torre novo porque eu acho que seria um modelo diferente em relação a outros bairros construídos anteriormente, como a Quinta do Mocho, Apelação, a Quinta das Mós (…). Porque é assim, é a junção de muita gente (…). Pegam as pessoas, a Câmara, o Estado enfia aquelas pessoas dentro daqueles prédios, depois ninguém controla aquelas famílias que vivem desesperadas dentro daquilo (…). Mas para mim, criava um Bairro da Torre novo, com poucas casas, e nós como Associação, com a paróquia, com todos, conseguiríamos acompanhar estas famílias, como fizemos aqui ao longo destes anos, sabendo se elas comem, se os miúdos vão para escola (…)”. (Excerto de entrevista a Ricardina Cuthbert, no âmbito das filmagens do documentário Artigo 65, novembro 2019)

Em ambos os bairros, o tempo entre a resolução de avançar com o realojamento, o seu arranque (no BCV) e o tempo da sua implementação (no BDT) dilatou-se, gerando sentimentos de insegurança em relação ao futuro, pelo que os moradores deixaram de cuidar das suas antigas casas e do bairro, levando a uma maior degradação das condições habitacionais e do espaço público, enquanto a comunidade se desagregava e a desconfiança nas instituições aumentava.

Em ambos os casos, o processo de realojamento levou à quebra dos laços comunitários de solidariedade e partilha forjados ao longo dos anos, bem como privou as duas comunidades das práticas e das redes locais de entreajuda das quais, em muitos casos, dependia a sua subsistência. As crianças do BDT que participaram no photovoice relataram que os seus novos bairros não tinham o espaço rico (por não estar estruturado) do anterior bairro, desfizeram-se as suas famílias (que se estendiam para além dos próprios núcleos), os grupos de amigos e vizinhos, a segurança, a autonomia. As suas relações socioespaciais tornaram-se mais complexas e as distâncias maiores.

Nos dois casos, embora com diferentes cambiantes, os moradores não participaram na tomada de decisões ao nível dos processos e do projeto. À nossa pergunta “O que é o Direito à Habitação para si?”, Mor2 respondeu:

“É ter uma habitação, logico n’é? Uma habitação condigna, não peço luxo, não! Mas que tenha as devidas condições e que, de futuro, em caso de realojamento (…), que oiçam as pessoas, a comunidade, em primeiro lugar. Para além de ouvir as pessoas, porque nós não fomos ouvidos devidamente, tivemos opção de escolha, mas não fomos ouvidos, QUE VISITEM AS CASAS ONDE AS PESSOAS VIVIAM PARA FAZEREM ALGO MELHOR, para as pessoas. (…). É ouvir as pessoas, sentir as pessoas, dar voz às pessoas! Saber as necessidades das pessoas e depois, sim, contruir um bairro com melhores condições, mas ouvindo as pessoas, sentindo o que as pessoas sentem, isso é muito importante! Não é só ‘o bairro é velho, vamos construir um bairro novo’”. (Excerto de entrevista a Mor2, julho 2022)

Desta forma, Mor2 inscreve o Direito à Habitação no Direito à Cidade, defendendo a participação ativa e a escuta dos destinatários de políticas de habitação, sugerindo uma atuação mais próxima e sensível dos técnicos com o objetivo da co-construção de soluções mais adequadas aos anseios das pessoas e com vista à sua maior satisfação e apropriação das novas casas.

O espetáculo Mágua di Nôs Partida e o photovoice permitiram a moradores e crianças falarem e serem ouvidos, propondo como contraponto às lógicas tecnocráticas e top-down a oportunidade de uma abordagem participativa mais transformadora, que alguns pequenos projetos de intervenção local têm vindo a ensaiar, questionando os paradigmas de intervenção dominantes nas margens urbanas (a abordagem higienista, tecnicista e/ou assistencialista de sobrevivência no cotidiano). A estreita interação com os habitantes e a priorização do seu conhecimento enquanto (auto)produtores do próprio espaço (Lefebvre, 1974) permitem transformar a perceção e o saber teórico e técnico em torno das margens urbanas. Respondem, desta forma, à necessidade de um olhar mais sensível e de (re)pensar a forma de atuar nelas, fomentando práticas de valorização destes lugares e de dignificação dos seus moradores. Estas práticas são alternativas à excessiva tecnicização da intervenção pública num “mundo de práticas cotidianas que desafiam a paixão racionalista” (Ferreira dos Santos, 1985, p.142) e o limita ao cumprimento de normas. Manifestação da injustiça, desigualdade e da exclusão na cidade, as margens abarcam, por outro lado, práticas instigadas por lógicas outras de produção socioespacial e virtudes materiais e imateriais. As ações relatadas (os projetos ligados às artes no BCV e o photovoice e a atuação do GESTUAL no BDT) apresentam os bairros onde surgiram, por vezes considerados “não-lugar” (Augé, 1994) ou “não-cidade”, como lugar e como a cidade em si, ou seja, territórios “identitários, relacionais e históricos” (Augé, 1994, p.52). A identificação e a consideração das especificidades da dimensão socioespacial local e dos contextos mais vulneráveis enquanto lugares (Augé, 1994) são tomadas como ponto de partida para uma melhoria das condições habitacionais que envolva grupos vulneráveis, técnicos e poder político em processos dialógicos, seja o mais possível assente no upgrading e radicada nas “artesanias das práticas” (Santos, 2008, p.33) locais. Como refere Ricardina Cuthbert em entrevista em novembro 2020 no âmbito das filmagens do documentário Artigo 65 de 201935, no BDT “[faltam] melhores condições de vida, principalmente habitacionais. O resto, acho que o bairro tem quase tudo. O bairro tem uma coisa fantástica que é o laço, o laço de amor, de partilha, de amizade”. Foram os ocupantes do BCV e os autoprodutores do BDT que contribuíram para a construção de um abrigo para centenas de pessoas ao longo de muitos anos - casas, caminhos, esgotos, sistemas hidráulicos e elétricos, espaços para o encontro -, e das suas comunidades.

5. Nota conclusiva

Com base nesta reflexão sobre a premência de formas outras de intervenção nas margens urbanas, que decorre de uma proposta de leitura dos bairros em questão enquanto lugares (Augé, 1994), a partir do seu cotidiano revelado por práticas interativas, comprometidas com a inclusão, a participação e a emancipação e que entendem os habitantes como coautores da transformação do próprio espaço, pretendemos (re)afirmar a urgência de pensar, construir e reconstruir as cidades a partir dos grupos sociais mais vulneráveis, através da valorização e da inclusão dos seus conhecimentos, das suas energias e poderes criativos, para garantir os seus direitos (e os direitos de todos), numa perspetiva de justiça, igualdade e inclusão socioespacial, em contraponto a intervenções distanciadas dos atores que lhes dão vida (Carolino, 2013). Em Fazer Juntos (Sobral, 2022, p.48), Felipe Teles afirma que “importa ouvir as múltiplas formas de fazer e ser cidade” e propõe uma “pedagogia da voz”. A escuta das vozes marginalizadas pode contribuir para a abertura de caminhos de desconstrução de estereótipos e de construção coletiva de um conhecimento outro, colaborando na imaginação de abordagens de intervenção outras em contextos desfavorecidos.

Agradecimentos

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT-Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito da bolsa de doutoramento com a referência SFRH/BD/129102/2017 de Rosa Arma.

Bibliografia

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1 “[…] are a shameful blight.”. (Tradução da autora).

2Como sublinhado nas considerações finais do Relatório do Levantamento, os resultados refletem a resposta dos municípios e carecem de uma avaliação técnica adicional.

3No entanto, o Bairro da Torre recebeu apenas visita do diretor geral da Amnistia Internacional para o sul de África e África Austral, Deprose Muchena, porque Kumi Naidoo teve de encurtar a sua viagem e demitiu-se por motivos de saúde.

5“Forced evictions are a gross violation of international human rights law […].”. (Tradução da autora).

7Nomenclatura relativa a situações específicas identificadas no 1º Direito. Ver: https://dre.pt/dre/legislacao-consolidada/decreto-lei/2018-115868810.

8Nas palavras de Harvey (2008, p. 23), o Direito à Cidade “(…) is a right to change ourselves by changing the city. It is, moreover, a common rather than an individual right since this transformation inevitably depends upon the exercise of a collective power to reshape the processes of urbanization. The freedom to make and remake our cities and ourselves is, I want to argue, one of the most precious yet most neglected of our human rights”.

9Os dados presentes neste texto, quando não referenciados na bibliografia, decorrem das entrevistas e conversas informais e do registo em diários das visitas ao terreno realizados no nosso trabalho de campo e do conhecimento e da experiência produzidos pelo GESTUAL.

10Segundo Blackman apud Wang & Burris (2007, p.10): “[The photovoice] is a process by which people can identify, represent, and enhance their community through a specific photographic technique. It entrusts cameras to the hands of people to enable them to act as recorders, and potential catalysts for social action and change, in their own communities. It uses the immediacy of the visual image and accompanying stories to furnish evidence and to promote an effective, participatory means of sharing expertise to create healthful public policy”.

11Esta breve história do BCV tem como base a informação recolhida no sítio oficial da Associação de Moradores do Bairro da Cruz Vermelha do Lumiar. Em: https://ambcvlumiar.wordpress.com/historia/

12Edição de 2021. Em: https://www.festivaltodos.com/festival/

14Para além de Rafael Barreto (BCV) e Ricardina Cuthbert (BDT), que aceitaram que a sua identidade fosse revelada, os outros participantes no estudo foram aqui anonimizados.

16RB referiu (entrevista de dezembro 2021) que, contrariamente a informação dada pela comunicação social, ninguém foi realojado em junho de 2021. Naquele mês houve apenas assinatura dos contratos.

18Em relação à tipologia evolutiva, Di Giovanni (2022, p.266) refere que “Não se trata de adicionar espaço à casa de acordo com as necessidades da família, mas sim de aproveitar ao máximo os metros quadrados de projeto. Neste sentido, após uma conversa com os técnicos da CML322, concordámos com a utilização do conceito que surgiu desta conversa, que o redefine para ‘tipologia involutiva’, porque o espaço habitacional (…) é pensado para ser dividido, reduzindo-o aos mínimos, (…). Sendo tudo planeado, isto reduz a autonomia dos moradores na alteração da apropriação do espaço doméstico”.

19Esta música pode ser ouvida aqui: https://www.youtube.com/watch?v=du5w4UlKMHw

24Fotografias realizadas pela 28 Photography.

27O recenseamento da população a ser abrangida pelo PER foi encomendado pela Câmara Municipal de Loures ao Centro de Estudos Territoriais (CET), segundo a informação recolhida na cronologia do PER Atlas (em https://expertsproject.ics.ulisboa.pt/timeline.html) apud Freitas (1994, p. 1).

28O documentário está disponível em: https://youtu.be/8-DleHZDB7c

29Note-se que algumas famílias aderiram de imediato ao realojamento disperso iniciado pela CMLoures.

30Através de inquéritos, levantamento arquitetónico das habitações, focus groups, entrevistas e conversas informais no quadro do projeto de investigação e de ação local Ação-Investigação no Bairro da Torre, Loures. Extensão académica e experimentação metodológica e projetual (2014-2023).

31Os terrenos privados onde estava implantado o bairro encontram-se em situação de herança indivisa. Em relação ao terreno público, qualquer intervenção a nível arquitetónico e urbanístico tinha de ser remetida às autoridades aeroportuárias. O Plano Diretor Municipal estipula usos para o local compatíveis com uma área terciária reestruturada e um corredor verde (Jesus, 2020).

32Da mesma forma, à pergunta da entrevistadora: “«Então, não gostavas de ir morar num prédio?”», C5 responde: “Conforme. Se tivesse amigos, gostava”. Em entrevista a C5 em 2021 no âmbito do photovoice.

33Para uma análise dos resultados deste inquérito, ver Di Giovanni (2022).

35V. nota 33.

Recebido: 18 de Janeiro de 2023; Aceito: 27 de Março de 2023

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