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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.au23 Lisboa out. 2023  Epub 09-Out-2023

https://doi.org/10.15847/cct.32646 

RECENSÃO

Recensão de Quando ninguém podia ficar. Racismo, Habitação e Território

Book review of Quando ninguém podia ficar. Racismo, Habitação e Território

1Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE), CIES-Iscte, Portugal. E-mail: ritacachado@gmail.com


Logo no Prefácio, Mamadou Ba, ativista pelo antirracismo, escreve que Rita Alves não caiu na armadilha da “pseudoneutralidade académica”. Mas este livro, manifestando um posicionamento político, encerra uma pesquisa científica madura, apesar de ser resultado de uma tese de mestrado, o que nem sempre é possível verificar em trabalhos no mesmo grau de ensino. Além disso, é um livro para ser lido dentro e fora do meio académico o que, não sendo inédito, continua a constituir um desafio no âmbito da divulgação científica.

O Prefácio de Mamadou Ba é já um convite à leitura crítica. Ao analisar o livro, o autor dá pistas, sem spoilers, relativamente às situações descritas por Rita Alves, sublinhando que a autora se distancia da “não inscrição ideológica”. Seria útil, para quem lê resultados em ciências sociais e humanas, que cada autor procurasse posicionar-se politicamente, de forma fundamentada, isto é, que mostrasse consciência do ser político, no sentido de que ser inconsciente do enquadramento político (pelo menos) das suas influências teóricas, não revela mais do que alienação epistemológica.

“De boas intenções está o inferno cheio” poderia ser outro título para este livro, mantendo o subtítulo, porque, se poucas pessoas, as mais cínicas, duvidam que o poder local e estatal não procurou segregar ainda mais as pessoas racializadas, foi precisamente isso que acabou por acontecer. Se é uma comum certeza nos estudos sobre realojamento, mais especificamente sobre o Programa Especial de Realojamento (PER), que os moradores realojados sofreram maior segregação de que já eram alvo antes do realojamento, não apenas os racializados, mas todos, é difícil negar que, não por acaso (facto assinalado também pelo prefaciador), muitos dos moradores duplamente segregados são racializados. O racismo estrutural passou pelo PER, sim.

Este livro, já se percebeu, contribui, portanto, para aprofundar o conhecimento sobre o PER, especificamente sobre uma população que não foi realojada, antes desalojada nos tempos derradeiros da aplicação do PER, focando no bairro de Santa Filomena, na Amadora. Antes de se debruçar sobre este estudo de caso, a autora aproxima o leitor da produção académica sobre este mesmo programa, criticando analiticamente a investigação que ignora o racismo e a necessidade da descolonização no meio académico. De resto, para discutir racismo, precisou de recorrer à literatura internacional, tendo encontrado raros momentos de assunção da questão na produção portuguesa.

Se em contextos como o norte-americano e o do Reino Unido a produção académica não se negou a discutir o conceito de raça em várias ciências, no contexto português (e não só), o conceito de raça ficou relegado para um entendimento da sua “não existência” enquanto distintivo da espécie humana ou para a discussão do racismo no campo dos comportamentos individuais - como diz a autora, o racismo institucional tem sido menos condenado do que o racismo individual (Alves, 2021, p.43) - e desta forma as instituições vão sendo desresponsabilizadas e a descolonização, no seu sentido abrangente, dos discursos, das práticas, das políticas, como as de habitação, aqui em foco, vai ficando para depois. Uma parte importante dos autores convocados por Rita Alves consiste em autores racializados (cuja maioria, de resto, desconhecia), que chegaram aos seus meios universitários antes dos estudantes negros portugueses, cujo número, ainda hoje, não se aproxima minimamente daquilo que seria uma proporção razoável, perto da percentagem de afrodescendentes presentes na sociedade portuguesa (muito embora esta seja igualmente difícil de discernir sem a possibilidade de o aferir nos censos). Este livro posiciona-se, pois, de forma que o racismo seja entendido como um fenómeno mais comum do que pontual ou excecional (p.40).

No contexto etnográfico encontramos uma forma de partilhar excertos de entrevistas metodologicamente interessante. A autora terá refletido antes de se decidir por transcrições que respeitam a oralidade - pena que não convoque a literatura que o sustenta - trazendo assim duas mais-valias. Por um lado, vemos, lado a lado, sem hierarquizar, entrevistados que tanto vêm do movimento associativo, como do meio académico, como são moradores de Santa Filomena. Por outro lado, sobretudo ao citar os moradores, somos confrontados com uma oralidade não editada, o que não só nos aproxima enquanto leitores do momento da conversa, como assume as falas tal como elas se dão. Desierarquizando os sujeitos, estas falas menos ortodoxas têm o mesmo valor. Pormenor? Nem por isso. O debate sobre língua portuguesa, suas variantes e sua valorização, ou não, no contexto académico, está ao rubro nos corredores das universidades. Os estudantes negros estão de facto a chegar às universidades, mas o corpo docente está impreparado para os acolher sem preconceito. Porque vêm de países “lusófonos”, espera-se que falem e escrevam português. Europeu, claro. Seria importante perceber qual a taxa de sucesso nas licenciaturas e mestrados, mas, mais uma vez, não se questiona a cor de pele, perdoem-me a ironia.

Quanto ao detalhe sobre um tema de certa forma amplamente estudado, há muitas informações de carácter científico e de contextualização da habitação autoconstruída que são lidas quase como novas, mesmo para quem se habituou a este campo de estudo. Sem spoilers, é ler o livro. Nota-se que a autora analisou aprofundadamente a literatura que utilizou, e por vezes a complexidade é forte, pelo menos para leitores menos apetrechados, ou deveria dizer leitores cuja desconstrução do privilégio branco ainda não foi realizada? Por exemplo, uma das novidades refere-se ao destaque que é dado às associações locais: lembrar que entre aqueles que refletiram sobre o PER estão os moradores através da participação associativa, ou seja, se há proliferação de trabalhos académicos que convoquem os moradores como sujeitos dos processos de realojamento, raramente se encontram obras que se detenham na importância da reflexividade ao nível da sociedade civil, incluindo nela os moradores como sujeitos atuantes, participativos, resistentes. Também, ao deter-se sobre o conceito de segregação, percebemos que, apesar de haver grande produção sobre o tema (ao contrário do que diz a autora, p.69), esta produção parecia não ver o óbvio - a cor das pessoas segregadas social e espacialmente.

Mas Rita Alves é também diplomática, ou melhor, esperaríamos que uma pesquisa que vai pondo os pontos nos ‘is’ do racismo no campo da habitação e não só, sublinhasse mais fortemente a crítica a trabalhos de autores, por exemplo eu, que ao falar de habitação social no âmbito do PER, não tenham assinalado a segregação racial.

Pela primeira vez vejo também clarificada a forma como no caso português “a categoria imigrante se [tenha tornado] um eufemismo para negro” (p.79), e como a certa altura, com os processos de regularização extraordinária, “ser imigrante significava, no imaginário público, ser clandestino” (p.80).

Mais forte é a perceção que podemos ter do enquadramento do PER, quando este é analisado nas suas declinações legislativas após 1993, ano da aprovação do decreto-lei. Em 1996, por exemplo, previu-se “o financiamento do retorno de famílias às «suas terras de origem»” (p.101) e, em 2001, o Programa Retorno (p.102) que, visto hoje, envergonha qualquer crítica otimista das políticas de “integração” em Portugal. Essa legislação específica ilustra como o colonialismo precisa de ser desconstruído, desmanchado, debatido e muito divulgado, sobretudo quanto à missão civilizadora. Décadas depois das independências e das vagas migratórias que, no senso comum, se cingem aos anos subsequentes àquelas, o legislador e o executor do PER parece deduzir, sem perguntar antes de publicar a lei, que o sujeito destinatário desta política de habitação social talvez prefira voltar para um país donde saiu por vezes há mais de 20 anos ou que nunca visitou. Um “talvez seja melhor para ele”. O colonialismo não acabou quando se tratam as populações provindas de países ex-colonizados por Portugal com paternalismo. Antes de pedirmos para descolonizar as mentes, talvez seja ainda preciso sugerir que se aprofunde o conceito de autonomia dos povos.

No terreno e na documentação, a autora verifica que as pessoas que mais vezes não são realojadas e cujas casas são demolidas, são pessoas negras e ciganas “não PER”, que foram ocupando as casas que não foram demolidas - demolição essa que era uma prerrogativa do PER - depois de os seus moradores serem realojados. Portanto, houve municípios, como o da Amadora, que apesar de não cumprir a prerrogativa da demolição após realojamento de cada família (sublinhe-se que não foi só a Amadora, mas aqui acompanhamos o caso de um bairro naquele município), pune aqueles que, sem alternativa, viviam em casas degradadas.

Contudo, “só muito recentemente as demolições sem alternativa foram publica e politicamente contestadas. (…) a narrativa política tendeu a responsabilizar os moradores pela sua vulnerabilidade - culpabilizando a vítima. (…) o debate desloca-se da falta de oportunidades para o esforço individual” (p.111). De resto, está ainda por desenvolver um conjunto de pesquisas que contribuam para compreender como os executores do PER incorporaram esta narrativa da responsabilização das pessoas sem alternativa habitacional. Tendo o PER começado a ser aplicado no final dos anos 1990, e esse tempo coincidir com uma outra longa “política” de habitação que premiava a aquisição privada, estariam os técnicos menos sensíveis à própria ideia de política social? Mal pagos, os técnicos também compravam casas e faziam sacrifícios para fazer face à hipoteca todos os meses; será que para eles se tornou difícil compreender uma política de habitação social com arrendamentos reduzidos? Ou o trabalho académico, por exemplo, sobre desigualdades, não estava desenvolvido o suficiente no início dos anos 2000 de forma a poder ter efeitos na sociedade civil? As pessoas que esperavam realojamento acumulam desigualdades num grau difícil de imaginar para as pessoas de classes médias que não necessariamente foram formadas para o compreender.

Voltando ao livro, do lado dos moradores, a resistência pela manutenção do direito à habitação pautou-se por diversos meios, donde se destacam as providências cautelares contra as demolições, e pela consciencialização política dos moradores através da participação associativa. Um dos moradores citados refere que, por um lado, o governo pede para emigrar (estamos a falar do contexto da Troika) e, por outro, ao sair do país, perde-se o direito ao realojamento (p.131).

Os moradores “PER” e “não PER” de Santa Filomena chegam a unir-se durante algum tempo, e tentam agir invocando o usucapião. Ao contrário das informações pouco claras que foram sendo concedidas aos moradores pelas autarquias sobre o processo de realojamento ao longo dos anos, anos em que as pessoas foram sempre pagando contribuição autárquica, água e luz, no processo de tentativa de convocar o usucapião com a colaboração de vários advogados ativistas, as pessoas tiveram “plena noção”, porque as coisas foram-lhes explicadas e debatidas.

Esta investigadora, como poucos outros, tem sublinhado o que outros negligenciam - de que formas se manifesta o racismo em Portugal? Se a associação do racismo institucional às políticas de habitação parece evidente no terreno para quem trabalha a habitação, a descrição e análise científica raramente clarificam, explicam, esta dimensão.

Seria demasiado fácil analisar este livro à luz de uma escala de denúncia sobre a existência de racismo na habitação social nas últimas décadas. O desafio é outro para o leitor académico branco: verificar a literatura e como as ciências sociais e humanas se têm esquecido de um grupo importante de investigadores e investigadoras negras ou racializadas.

O trabalho de Rita Alves em Santa Filomena confirma a ironia (da situação), para não dizer hipocrisia (dos decisores/executores do PER), de que as casas de quem construiu parte importante das infraestruturas e da habitação privada da Área Metropolitana de Lisboa foram demolidas, e muitos destas famílias não foram realojadas por falta de verbas. Os homens que trabalhavam nas obras referidas são negros. Este livro dá a conhecer o outro lado da urgência em demolir e realojar que o PER, na sua lei, invocava. Muito depois do grande crescimento dos subúrbios de Lisboa, o PER continuava a ser executado a conta gotas, deixando muitas famílias de fora, despejadas, como acontece com várias famílias no bairro em causa. O PER não realojou muitas famílias devido a diferentes interpretações da lei em cada município, e devido a uma aplicação com base num suposto mérito, ser “PER”, provar ter vivido num mesmo lugar desde o dealbar da lei do PER, não trabalhar fora do país.

Voltando ao Prefácio, Mamadou Ba sintetiza, “A forma como Ana Rita Alves aborda a questão racial a partir da problemática da ocupação do território pode traçar pistas para aprofundar a necessidade de descolonizar o próprio conceito de cidadania.” Resumindo, é isto. A descolonização do conceito de cidadania pode ser uma boa chave para ultrapassar certos impasses nas políticas sociais, nomeadamente na habitação. Estas, em geral, e no particular das legislações e dos municípios, devem ser dirigidas de igual forma a todos os cidadãos, sejam eles nacionais ou internacionais, brancos, negros, ciganos. O facto de haver uma maior população que é racializada decorre diretamente de políticas anteriores, com racismo institucional pelo caminho, mas bem-intencionadas, sempre. A associação entre as pessoas racializadas que acumulam desigualdades sociais e o conceito de cidadania peca por defeito. Estas pessoas são associadas à imigração, à segregação socio-espacial, a conceitos carregados de peso simbólico negativo para as pessoas que executam políticas sociais, ou seja, para quem recebe as famílias em atendimentos e depois contribui para decidir sobre os seus destinos. Os conceitos de raça, etnia, imigração, entre outros, não devem ser evitados para falar das realidades sociais que queremos compreender melhor. Mas se excluirmos cidadania da equação, o conceito que devia agregar todas as pessoas que vivem num país, não se vai muito longe na melhoria das políticas sociais nem na descolonização.

Bibliografia

Alves, A.R. (2021). Quando ninguém podia ficar. Racismo, Habitação e Território. Lisboa: Tigre de papel, 170pp. [ Links ]

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