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CIDADES, Comunidades e Territórios

versión On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.47 Lisboa dic. 2023  Epub 29-Dic-2023

https://doi.org/10.15847/cct.30044 

ENTREVISTA

A produção de cidade e o direito a habitá-la. Uma conversa em dois momentos com Ermínia Maricato

1Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, anaestevens@campus.ul.pt


Numa óptica multi-escalar as cidades espelham muitas das transformações em curso. Comparar a dinâmica urbana brasileira com a portuguesa não é fácil pois falamos de contextos muito diferenciados pelas suas características económicas, sociais, territoriais ou políticas. Contudo, é possível encontrar alguns pontos de encontro mas, essencialmente, podemos também aprender, conhecer e reflectir em conjunto sobre a forma de produzir uma cidade, as suas casas e o seu habitat, de um modo mais democrático, solidário, igualitário e sustentável, pensando com esperança sobre a produção social do espaço urbano. Tendo por base este enquadramento, em Junho 2021 realizei uma entrevista a Ermínia Maricato, num momento em que o Brasil passava por uma profunda crise socioeconómica e urbana liderada, estando o país a ser governado por Jair Bolsonaro. Dois anos mais tarde voltámos a conversar, já estando a presidir o país Lula da Silva. Haverá motivos de esperança? Que expectativas existem para o futuro das cidades brasileiras? Ermínia Maricato é professora aposentada da Faculdade de Arquitectura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e fundadora do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da mesma universidade. Ermínia tem um longo curriculum do qual destacamos o seguinte: foi Secretária da Habitação do Município de São Paulo (1989-1992) e Vice-ministra das Cidades (2003-2005), no primeiro governo de Lula da Silva; e numa relação entre a academia e a sociedade civil, é membro do Comité Nacional do Projecto BR Cidades, criado em 2017.

Junho de 2021: “A habitação é uma mercadoria especial”

Como podemos pensar sobre o direito à cidade? Para quem está a ser produzida a cidade?

O direito à cidade, ele teve um período de uma certa ascensão que foi durante o welfare state. Foi um período que alguns autores chamam os 30 anos gloriosos, porque foi um período de um capitalismo voltado para a inclusão social dos trabalhadores. E não foi um período em que isso foi dado, isso foi um período conquistado porque, segundo o David Harvey, nós temos: um estado expandido, o estado das políticas públicas; um capital fordista, um capital que produz produtos massivamente para o consumo de massas portanto, ampliou muito o acesso ao consumo; e os grandes sindicatos, que foram fundamentais nessa conquista de direitos do pós-guerra. Acontece que a partir de 1970 nós tivemos uma mudança forte, um declínio do welfare state e um crescimento do neoliberalismo, chamada globalização neoliberal, que retirou simplesmente esses direitos. Foi retirando até chegar ao ponto em que nós nos encontramos, onde a gente combina uma tragédia, uma crise profunda que depende da pandemia, que é trazida da pandemia, mas que nós tínhamos já um passado recente de uma perda de direitos: uma desigualdade que se aprofunda no mundo inteiro, com concentração de riqueza; um desemprego estrutural, que é trazido pelas novas tecnologias - estamos vivendo uma verdadeira revolução tecnológica; um enfraquecimento, no ocidente especialmente, da classe trabalhadora; uma desindustrialização que é notável nos países da América Latina e nos próprios Estados Unidos da América; e você tem também para além disso tudo, além da subjectividade que acompanha essa revolução, você tem uma crise ambiental seríssima com o aquecimento global.

Nós tivemos durante o welfare state, eu me lembro porque a gente ficava encantado por ver na Europa as políticas sociais e habitacionais na Europa, o controlo sobre o limite do direito de propriedade. Eram as políticas de produção de moradias em massa. Realmente era uma coisa que nos encantava vindo de um país da periferia do capitalismo, onde a reprodução da força de trabalho se faz fora do mercado. O direito à cidade que foi inicialmente criado por esse conceito do Henry Lefebvre, ele ganha, principalmente entre nós na periferia, muito sentido. No Brasil, o movimento de reforma urbana na década de 1970 desenhou uma proposta para a constituição federal - eu fui escolhida para defender a proposta na Assembleia Nacional Constituinte. Pela primeira vez na Constituição Brasileira, nós tivemos um capítulo dedicado à cidade e para nós era muito evidente que a exclusão, que esse verdadeiro apartheid que nós vivíamos no Brasil, ele dependia do acesso à terra urbanizada na cidade. Urbanizada e legalizada, coisa que a classe trabalhadora nunca teve. A reprodução da força do trabalho entre nós, ela sempre se deu fora do mercado e, a maior parte, fora das políticas públicas. O nosso welfare state foi um welfare state relativo, ele não chegou a garantir direitos universais de educação, saúde, mais especialmente na área das políticas urbanas: moradia, transporte, a questão tarifária, saneamento. Eu não sei quanto por cento na época do welfare state da população de Portugal estava fora do mercado. Eu fui fazer uma residência no Canadá e na África do Sul. A África do Sul muito parecida com o Brasil, com a diferença que lá a segregação que tinha cor, tem cor, era assumida. Aqui no Brasil não se assume. Nunca foi assumido que a segregação tinha uma cor. Claro que você tem brancos nas periferias informais, nas nossas cidades, mas elas são predominantemente negras. Essa questão do racismo nunca foi superada na história do Brasil. Hoje nós temos mais de 50% da população brasileira, entre pretos e pardos [será pardos e pardas?], pretas e pardas, mas isso é... o racismo no Brasil é estrutural e ele está muito presente até hoje nas nossas cidades.

Nós tivemos um welfare state incompleto, diferente dos países da Europa. Vocês também estavam a viver sob uma ditadura. O welfare state também não foi tão interessante como noutros países europeus. Eu fiquei muito impressionada a primeira vez que fui a Portugal e que fiquei sabendo que não fazia tanto tempo que as mulheres para viajar precisavam da autorização dos maridos ou dos pais. Eu fiquei muito impressionada com isso. Quanto a gente mantém uma matriz machista, patriarcal, conservadora, é impressionante. Essa é uma revolução das mulheres, parece que agora acordaram, vamos ver. Mas sem dúvida que precisamos fazer.

E essa matriz depois tem reflexos na forma como se pensa e produz a cidade...

Mas sem dúvida nenhuma. Da época que o Henry Lefebvre pensou o direito à cidade para agora, eu gosto muito do Boaventura Sousa Santos nas reflexões que ele vem fazendo. Aliás ele faz essa crítica à tradição marxista de não pensar nos novos atores, que são as mulheres, os negros, os jovens com a questão ambiental. Eu acho que da tradição de esquerda que criou o welfare state, nós regredimos evidentemente, mas nós temos algumas novidades nos agentes que estão lutando por uma nova cidade, uma cidade que não seja machista - isso é uma coisa espetacular em sociedades como as nossas, isso podemos dizer, Portugal e Brasil - e que não seja racista, também. E que dê mais oportunidades aos jovens. Eu tenho trabalhado, aqui no Brasil, muito com a juventude que é o que me dá alento, esperança, porque existe até no seio da esquerda um certo conservadorismo e dificuldade de renovação. Percebemos aí que temos algumas similaridades e muitas diferenças.

Vê nessa nova cidade que o poder local pode ter um papel importante, pensando na questão do planeamento e da produção de bairros saudáveis?

A rede da qual eu faço parte actualmente [BRCidades] para nós a questão do poder local ela é fundamental na reconstrução da democracia. Nós não entendemos reconstrução da democracia no mundo, no pós-liberalismo, no pós-pandemia sem um protagonismo muito forte do poder local. Porquê? Primeiro, no caso de países como o Brasil nós somos, temos um território continental, há uma diversidade étnica e cultural, histórica, económica, ambiental, que realmente nós precisamos respeitar essa diversidade. Sem dúvida nenhuma, nós não vamos ter uma democracia participativa se ela não chegar no poder local por conta que é lá que o povo mora, por conta também dessa manipulação da informação da qual as massas estão sendo vítimas. Fakenews, uma selecção ideológica do que é publicitado, do que constitui os media, além das redes sociais. Existe uma disputa muito forte de narrativas. E nós precisamos recuperar, sem dúvida, o corpo a corpo. Veja, nós saímos da ditadura brasileira na década de 1970 e reconstruimos um novo ciclo democrático que começa em 1985, no Brasil, graças aos movimentos sociais, graças ao movimento da classe operária, da classe trabalhadora, dos sindicatos e graças, também, às universidades que trabalharam com uma reflexão sobre o quotidiano da classe trabalhadora nas cidades. Tirou um véu que encobria uma vida, a vida diária. O Henry Lefebvre chama muito a atenção para a importância do quotidiano porque quando você abstrai a luta de classes em relação ao quotidiano da força de trabalho, você não percebe o quão importante é o direito à cidade. Você não percebe quanto os trabalhadores sofrem na mobilidade urbana todos os dias mas, especialmente, as mulheres e mães de família. Especialmente porque elas têm jornada dupla, porque elas cuidam de filhos, elas sustentam famílias e no Brasil esse número é muito alto. Na região metropolitana de São Paulo chega a 30%.

Os portugueses, o José Carlos Mota, por exemplo, os que estudam o poder local e a democracia, eles chamam de democracia da proximidade. Eu acho muito interessante esse nome e nós estamos lutando muito para que as forçar progressistas no Brasil percebam que essa centralização da actividade no espaço institucional, federal, ela exclui muitos dos movimentos de mulheres, dos movimentos antirracistas, dessa nova classe trabalhadora que não está sindicalizada, muito uberizada, como nós dizemos. É necessário capilarizar, não sei se tem sentido essa palavra para os portugueses, é necessário levar para perto das pessoas, nos bairros, nas escolas, nas igrejas, nas praças, essa capilaridade da democracia. Plano de bairros, por exemplo.

Há alguns municípios onde isso está a acontecer?

Eu não tenho dúvida de que há uma retomada dos movimentos sociais urbanos. Há uma retomada dos movimentos de solidariedade. Não sei se vocês estão sabendo mas há 20 milhões de pessoas passando fome no Brasil. O Brasil tinha saído do mapa da fome, da ONU, com a política contra a fome do presidente Lula e agora ele voltou para o mapa da fome. 20 milhões de pessoas.

Nós temos também no Brasil quase metade da população economicamente activa ou desempregada ou na informalidade. Isso já era uma situação complicada que se aprofundou na pandemia. E isso tem gerado muita iniciativa de entidades e movimentos sociais que me lembram muito a década de 1970, embora nós estejamos em momentos de conjuntura muito diferentes. Porque o Brasil chegou na década de 1970 depois de 40 anos de um processo de urbanização com uma industrialização crescendo 7% ao ano. A partir de 1970, o Brasil se desindustrializa e aí temos um declínio da força da classe trabalhadora. Mesmo com o avanço das políticas sociais do período Lula e Dilma, nós tivemos uma regressão na vida das cidades, nos transportes, na moradia, na violência. A violência aumentou muito nas cidades, o número de negros, de jovens negros que são mortos pela polícia, no Brasil, é algo extravagante. E o feminicídio que são mulheres atacadas por seus companheiros. É um período de violência e um período em que também o saneamento... apesar da legislação avançada, nós temos leis avançadas no Brasil desde a Constituição Federal, estatuto da cidade, legislação federal da mobilidade, resíduos sólidos, o Brasil é muito marcado por um discurso distante da prática, por uma... Sérgio Buarque de Holanda fala “por uma distância entra a retórica e o real”. Então, nós temos leis e planos, não nos faltam leis e planos mas a aplicação ela foge, ela tem muito baixa efectividade. Por exemplo, a função social da propriedade. Mais de 50% das nossas cidades, da nossa população está fora do mercado imobiliário. É diferente da Europa.

Tanto no centro da cidade como na sua periferia?

Não. Em geral, o assentamento residencial da população que tem abaixo de 3 salários mínimos é mais periférica. É uma extensão imensa de loteamentos clandestinos, ilegais com ocupação do solo tipo favela. As favelas não são a regra. A regra é muito mais aquela ocupação informal. O sujeito pode ter comprado um pedaço de terra mas é um pedaço de terra que não tem registo, é um pedaço de terra em que a construção não tem projecto, não tem participação de arquitecto, engenheiro, não tem licença municipal para construir e a construção é feita pelos próprios moradores.

Eu fiz um filme em 1975, chama-se “Fim de semana” [https://www.youtube.com/watch?v=gDm-vajAtrM]. Eu sugiro que vocês deem uma olhada que ele até hoje é actual. Parece mentira de como é que a periferia das cidades brasileiras, das metrópoles, principalmente, é produzida. Chama-se “Fim de semana” e a direção é do Renato Tapajós (1975). Ele já passou de 1 milhão de visualizações, faz tanto tempo, faz 45 anos. É um filme documentário que sempre fez muito sucesso e que até hoje mostra como é que a nossa periferia é produzida. Nos centros antigos das cidades nós temos os chamados cortiços, que é a ocupação de velhos imóveis por várias famílias. Várias famílias ocupando cada uma um cómodo com um banheiro colectivo.

Eu tive a oportunidade de ir visitar a periferia de Lisboa. Eu acho que existe uma diferença muito grande nos números. Vocês também têm uma especulação fundiária que é impressionante, não existe uma implementação da função social da terra, muito forte, e eu pude ver auto-construção. Agora os números são muito diferentes porque em certas cidades brasileiras a auto-construção é regra, não é excepção. É uma coisa... se você pegar um município na periferia da região metropolitana, uma qualquer aqui no Brasil, em geral você passa de 50% de auto-construção de moradia. Uma coisa que para mim também me impressionou é que Portugal tem uma população menor que a Região Metropolitana de São Paulo.

...os nossos 10 milhões de habitantes...

É o município de São Paulo. Eu fiquei a pensar que é uma escala que é possível manejar. Quando eu estive na Índia, eu voltei achando que no Brasil era mais simples. São números muito grandes aqui entre nós e nessas áreas de periferia, com a ausência do Estado, podemos dizer do Estado e desse mercado imobiliário capitalista, você tem aí uma ocupação de crime organizado, milícias, religiões conservadoras que prestam serviço social. Essa é uma situação muito mais dramática, evidentemente, que a de vocês.

Violência que dentro de um contexto socioeconómico mais desfavorável que vai gerando outro tipo de situações...

Nós tivemos um período, que é muito interessante, das prefeituras democráticas. Década de 1980/1990 foi muito interessante. Orçamento participativo, urbanização de favelas, centros de educação unificada para jovens e crianças com aulas sobre arte, cultura, desporto. Se esse ciclo tivesse tido continuidade, o Brasil teria mudado. Eu fui secretária municipal em São Paulo da habitação, fiquei quase maluca mas avançámos muito. Com uma prefeita que era maravilhosa, era uma mulher, a Luiza Erundina, era incrível. Naquele período a gente tinha uma produção original de política urbana mas que foi sendo, infelizmente, abandonada.

E encontra uma razão muito específica para esse abandono?

Eu já escrevi sobre isso. Eu fui para o primeiro governo Lula, eu fui para a transição de governo Fernando Henrique-Lula para criar o Ministério das Cidades e a gente criou o ministério e criou um arcaboiço participativo que tinha: a Conferência Municipal elegia delegados para a Conferência Estadual que elegia delegados para a Conferência Nacional. Fazia-se uma conferência Nacional em Brasília e tirava-se directrizes para o Conselho Nacional das Cidades. Eu achei que nada podia dar errado nunca, depois disso, que gente ia mudar estruturalmente o destino das cidades no Brasil. Mesmo sabendo que o município é autónomo, era fundamental ter uma política nacional, directrizes nacionais. Mas a partir da primeira crise do governo Lula, que foi o chamado “Mensalão”, o Ministro Olívio Dutra, ex-presidente de Porto Alegre e eu saímos do governo e o Ministério... Houve uma negociação política, o ministério foi para as mãos de um partido conservador. Eu achei que os movimentos sociais iam segurar a nossa proposta mas isso não aconteceu. Mas não aconteceu porquê? Porque a gente na década de 1970/1980 estava presente nas ruas dos bairros, o Partido dos Trabalhadores, o Partido Democrático Trabalhista, muitos, o Partido Comunista do Brasil, muitos partidos tinham capilaridades junto dos movimentos sociais e essas forças foram deixando o território das cidades para se concentrarem no espaço institucional. O problema era a eleição, o mandato eleitoral e aí elegemos um operário, o presidente da república, coisa que não foi pequena, mas desistimos, afastámo-nos daquela democracia desconcentrada, descentralizada. Para você ter uma democracia forte, ela precisa vir de baixo. As pessoas precisam ser protagonistas, a população, a classe trabalhadora e isso foi sendo abandonado. Nós tivemos uma conjuntura internacional muito complexa, que todos nós tivemos. A desindustrialização, essa complexidade geopolítica que nós estamos vivendo hoje. A hegemonia financeira no capitalismo global. Esse aprofundamento da desigualdade. Esses ataques da democracia burguesa que se deram no mundo todo. Às vezes, Portugal está nadando contra a corrente, o Brasil também nadou contra a corrente nos anos 1990 e na primeira década do século XX mas você tem um caminho de retração, de refluxo que nos atinge. Nós temos causas internas e causas externas. A crise de 2008, eu acho que foi muito importante e mostrou que o capitalismo não tinha muita saída. E isso é uma tragédia para nós, por incrível que pareça, podemos sim, com essa falta de saída ir para um campo revolucionário e apontar uma saída que seja democrática. Mas podemos, que é o que está acontecendo, caminhar também para esse neogolpismo, para novas formas de golpe dentro da institucionalidade, como nós estamos vendo em vários países do mundo e que aconteceu no Brasil.

Mas que se espera que dê uma volta em breve...

Esperamos porque a sociedade, sem dúvida, está acordando. Eu vejo muito isso, especialmente nas favelas, nos bairros populares, um movimento de solidariedade que cresce. A central única das favelas, a nossa rede BRCidades, ela tem um crescimento impressionante. É uma surpresa para nós.

Quer falar-nos um pouco da rede BRCidades?

Eu que passei por cargos públicos e que passei pela academia durante 50 anos, quase, e também pelos movimentos sociais, eu saí da primeira década dessa crise do Ministério das Cidades e das cidades, o aumento do preço da moradia, nós tivemos um boom imobiliário entre 2009 e 2015, muito investimento do governo federal petista mas sem regular terra. Ou seja, o preço da terra subiu, o preço dos imóveis subiu, o preço do aluguer subiu, o preço dos transportes subiu, as cidades ficaram dispersas. Eu orientei um doutorado, aqui em São Paulo, que mostrou isso muito claramente: uma dispersão urbana. Isso acontece em todo o lugar do Brasil com especulação fundiária e imobiliária. Evidentemente isso tem a ver com a financeirização da economia.

E da habitação também?

Eu não diria da habitação, eu não diria. Acho que é muito diferente a Europa do Brasil. Você tem uma situação de regressão nas condições de vida urbanas: aumento dos preços. Durante o período do programa Minha Casa Minha Vida houve construção de mais de 5 milhões de habitações. A maior parte para as faixas de renda baixa, com subsídio federal, pela primeira vez tanto subsídio. No entanto, o défice aumentou. Porque é que você constrói 5 milhões de moradias populares e o défice aumenta? Porque a habitação é uma mercadoria especial. Ela é ligada a um pedaço de terra urbanizada. Não adianta eu pôr no meio da zona rural. Tem que ter acesso ao mercado de trabalho, aos serviços urbanos,... e a maior parte dessas moradias elas foram colocadas nas periferias extremas das cidades, preferencialmente as cidades de porte médio que são as que mais crescem no Brasil atualmente, como excepção de região Norte-Centro-oeste. Houve um aumento do preço da terra. Quer dizer, foi um investimento que aumentou a especulação e o preço da moradia. Você vê que a mercadoria habitação, não é uma mercadoria como qualquer outra. É uma mercadoria que depende de uma matéria prima, vamos chamar matéria prima à terra, que não é reproduzível. Ela não é... As localizações nas cidades não são reproduzíveis. Quando você tem um pedaço de terra perto do mercado de trabalho, perto de uma rodovia que dá acesso fácil a certas localizações, isso não é reproduzível. É como você ter a vista de Copacabana na frente da sua casa. Isso não é reproduzível. Então, a habitação é uma mercadoria especial. E uma coisa que eu aprendi com os europeus, a habitação é a mercadoria de consumo mais caro, compulsória. Você não vive sem habitação e você para comprar uma habitação, se você não tem herança, você precisa de um financiamento. O financiamento sempre foi necessário desde a industrialização da sociedade. Para você obter um financiamento você tem que ter uma certa renda. Por isso é que eu estava a dizer que mais de metade da população brasileira está fora do mercado de consumo formal, de corte capitalista.

Quando você produz muita...investe muito mas investe numa localização que é mais interessante para o investidor, no caso privado. Você tem nas cidades um lobby fortíssimo orientando o investimento público porquê? Porque o investimento público muda o preço da terra. Fazer pressão sobre a legislação porquê? Porque a legislação muda o preço da terra, dependendo da legislação. Quem é esse lobby? Construtoras de infra-estruturas e habitação, incorporadores imobiliários, capital financeiro imobiliário e proprietários de terra e imóveis. Tudo isso pode ser separado ou ser junto. Eles comandam as cidades. Eles orientam. Então aqui no Brasil é muito fácil você ver bairros completamente sem infra-estruturas e de repente o governo vai e constrói uma avenida no meio do nada. Daqui a pouco vem um shopping centre, daqui a pouco vem uma torre, daqui a pouco... e o poder público é quem, capturado pelas forças desse capital imobiliário, é quem define e orienta o crescimento das cidades.

É quem acaba por fomentar toda uma dinâmica que vende o território, que acaba por vender o território.

Isso aí. E aí, eu estava muito desgostosa porque a gente chegou a ter um ciclo de prefeituras onde o pessoal participava do orçamento público. O orçamento público é tudo de importante. Hoje está na mão da financeirização e da especulação imobiliária. Eu estava muito descontente, eu me aposentei e pensei: agora eu vou trabalhar com a sociedade civil, eu não tenho mais amarras. Eu acho que o conhecimento é revolucionário quando ele chega nas bases e as bases precisam receber informação, as massas. Uma coisa que o Edgar Morin, que é francês, falou recentemente, também, é que a transversalidade do conhecimento é revolucionária. Eu falei: bom, eu tenho uns anos para dar uma contribuição que é da gente repensar cidades do Brasil.

Eu fui convidada pela Frente Brasil Popular para rediscutir um projecto para o Brasil. Eu fiquei num grupo de trabalho com as cidades, a gente fez um manifesto dizendo que estávamos no fim de um ciclo, necessariamente vamos ter que repensar e a gente acha que é hora de formular uma agenda para as cidades brasileiras, uma nova agenda. Puseram isso nas redes sociais. Para encurtar: hoje depois de 2 anos e meio, nós estamos em 33 universidades, em 17 estados do Brasil, temos como parceiros a Federação Nacional dos Arquitectos, a Federação Nacional dos Engenheiros, o Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico, sectores da área da geografia, da assistência social e movimentos sociais. Nós estamos discutindo, escrevendo, debatendo. Fizemos dois fóruns nacionais. O primeiro foi virtual e em Outubro vamos fazer outro fórum. É uma forma de disseminação da informação, de capilaridade, de expandir, de descentralizar. É bem diferente desse mecanismo da política institucional, embora eu saiba que é muito importante a gente somar a uma sociedade civil, informada e mobilizada, a questão institucional, política institucional, obviamente.

Era o que falava anteriormente, desse poder local mais forte, de um poder que acaba por ser das bases se ele for mais forte...

Exactamente, exactamente. Você sabe que nós tivemos alguns prefeitos recentemente, uma prefeita, num município pequeno do Nordeste, que mostrou que dá para fazer muita coisa no poder local com participação social. Muita coisa. Na época que eu fui secretária da habitação, nós iniciámos 15 mil moradias numa época de ajuste fiscal, poucos recursos mas com a participação popular e com a assistência técnica de profissionais que a prefeitura contratava, nós conseguimos uma boa arquitectura e um preço baixo.

E sente que as mulheres, tendo esse papel, já me falou de várias mulheres, elas podem ter um outro tipo de papel na produção de cidade e na forma como se pensa o território?

Eu não tenho a menor dúvida. Eu falei que a gente não quer combater os homens mas a gente tem uma sensibilidade que, em geral, os homens não têm. De cuidar, nós somos cuidadoras e nós enxergamos certos espaços que não são simplesmente do poder centralizado, é outro tipo de poder, compartilhado.

Quando no início estava a falar dos 30% da população, eram mulheres chefes de família em São Paulo, isso dá que pensar sobre qual é o papel da mulher no território, de que forma é que ela é colocada, muitas vezes, à margem dos processos de decisão e nas hierarquias e depois na questão da participação, de que forma é que participa. Mas quando nos deparamos, aqui em Portugal, muitas vezes, são as mulheres que encabeçam a defesa da habitação e essa luta colectiva pelo direito à habitação. Quando percebemos quem é que vai às câmaras municipais pedir uma casa, são as mulheres,...que têm a seu cargo os filhos, mas também os pais, esse papel fica muito presente. Só que depois é muito afastado para uma margem e torna-se quase invisível. Em Portugal não há muitas mulheres presidentes de câmara, por exemplo. Há algumas mas não são muitas, em comparação com o número de homens. Tem vindo a aumentar o número de mulheres em cargos directivos mas ainda se discutem uma série de questões ao nível dos salários, da divisão do trabalho doméstico. Esse papel ainda está muito reservado às mulheres em alguns contextos. Mas é muito curioso ouvi-la falar de como tendo um papel de destaque, de governo de cidade, como é que as mulheres podem olhar para o território de uma outra forma.

Essa prefeita, a Marcia Lucena da Paraíba, ela fez, com assistência técnica na área da habitação, um governo impressionante numa cidade pequena. Uma coisa que eu aprendi, quando você usa bem os recursos eles parece que se multiplicam. E agora o que a gente vê? São essas inúmeras obras que são elefantes brancos. Na época da Copa do Mundo no Brasil, isso aconteceu. Estádios gigantescos, muitas obras voltadas ou para o automóvel andar, a desoneração na compra de automóveis foi uma tragédia para nós e, também, você tem metros... isso foi uma tragédia. Em várias cidades brasileiras, metros, BRT, VLT, que não seguiram aquilo que o povo mais precisava na área do transporte. Como eu falei, são obras imobiliárias mas não viárias. Obras para aumentar o valor dos imóveis e do solo.

Nós estamos... Eu fui há dois anos atrás falar numa igreja... Na década de 1970 eu ia muito porque aí a Igreja Católica era muito avançada com a Teologia da Libertação e agora parece que está começando a voltar. Tinha 400 pessoas. Aí eu pus um mapa do município de São Paulo na tela e mostrei que em média uma pessoa na periferia onde eu estava, onde nós estávamos, vivia 25 anos a menos em média do que as pessoas que moravam nos bairros mais sofisticados, mais valorizados. E a diferença no preço do m2 evidentemente tinha que ver com isso. Você tem uma vida mais longa porque você tem acesso aos hospitais, você come melhor, você respira melhor, tem saneamento básico.

A tuberculose voltou na maior favela do Rio de Janeiro por falta de insolação, aeração e ventilação. É uma densidade que elimina a ventilação. Isso é gravíssimo.

Quando olhamos para o BRCidades, eu achei muito curioso o braço que se estendeu para Portugal. Como é que esta ligação aconteceu e como é que se tem desenvolvido o trabalho entre os dois países?

Recebemos algumas lives das discussões em Portugal porque na nossa lista de whatsapp ou de e-mail temos alguns parceiros e parceiras aí. E é interessante vermos a diferença. Eu acho muito interessante como se defende o plano de bairro, por exemplo. Aqui também se está a discutir muito isso. É interessante essa democracia da proximidade que eu falei “olha esse termo que a gente precisa usar”. Nós trabalhamos com o conceito de democracia directa, que é a pessoa, não através da representação mas através da sua própria prática. Aí o José Carlos Mota esteve aqui, eu estive em Portugal para lançar o BRCidades, que foi muito interessante. Foi muito bom! Fazia tempo que eu não ia aí e sempre vem aquela nostalgia de Coimbra, de entender os meus antepassados... E o Henrique [Chaves], do Colectivo Andorinha. Nós mantemos uma ponte. A gente aprende. É preciso respeitar as especificidades. Porque no Brasil nós temos um teórico muito importante que se chama Roberto Schwarz, ele cunhou “As ideias fora do lugar” (Schwartz, 2014). E eu escrevi um artigo sobre planos directores onde eu falo que os planos directores no Brasil são as ideias fora do lugar. Porquê? Porque bebe na fonte europeia, bebe na fonte estrangeira sem enxergar a realidade brasileira e aí o plano director regula uma parte das nossas cidades. Não regula a cidade toda, ele regula a cidade do mercado. E agora o mercado ultraliberal está querendo flexibilizar tudo o que é plano director, por lei do uso do solo. Nós estamos numa guerra aqui no Brasil contra esses ataques da legislação da cidade regulada, porque grande parte da cidade não é regulada. Nós temos também um colega, que infelizmente já faleceu, Flávio Vilaça, que chama o plano director no Brasil de plano discurso, que é um plano que tem o papel ideológico de afastar, de encobrir a realidade. Um plano todo cheio de boas intenções, todo bem intencionado mas que não se aplica. O Estatuto da Cidade, que prevê a função social da propriedade, ele alcançou 8 municípios no Brasil. É uma pesquisa da Professora Rosana Denaldi que mostra que não teve efectividade no Brasil. Infelizmente. Então toda essa complexidade nós precisamos entender, se não nós vamos estudar o urbanismo modernista e fica aí repetindo feito papagaio coisas que são ideias fora do lugar. Porque o modernismo nunca chegou a ser universal na sociedade brasileira. E nós estamos tentando mudar, também, o ensino por conta disso.

Eu não sou pessimista. Eu acredito muito numa nova geração que vai tirar esse véu que encobre o real e nós vamos por as ideias no lugar. Roberto Schwarz nos ajuda e esse livro de 3 autores, Carlos Wagner, Otília Arantes, e eu e ele vende muito bem, está na 8ª edição. Ficamos repetindo até que a coisa se concretize.

E o futuro... Pegando um pouco no que o David Harvey chama de “espaços de vislumbre de esperança” (Harvey, 2000). Como mulher arquitecta como é que vê o futuro das cidades? Acha que precisamos de mudar tudo ou devemos mudar a direção... Que mudanças é preciso introduzir na produção de cidade?

Sem dúvida nenhuma nós precisamos voltar à questão da função social da cidade e da propriedade, da terra e dos imóveis. Sem dúvida. Porque com esse avanço do mercado imobiliário, a terra e os imóveis se tornaram um óptimo destino de investimento. Você tem uma liquidez financeira e é muito seguro investir em imóveis. Os antepassados já diziam isso e o capital financeiro sabe disso. Esses booms que nós estamos tendo são uma tragédia para as nossas cidades. Nós precisamos aprender, também, a não ver as cidades por meio da legislação, principalmente, por meio da legislação, por meio de projectos mirabolantes, por meio da produção. A produção de cidade ela mostra uma disputa entre quem quer o valor de troca e quem quer o valor de uso nas cidades. Valor de troca, quem quer ganhar juros, lucros e rendas na cidade e quem quer uma boa moradia, um bom transporte a uma distância razoável. Existe uma oposição muito forte entre essas duas visões. E o que é que eu quero da cidade? É mais valor de uso, é óbvio. É mais acessibilidade. É mais qualidade. É mais a função social da cidade. A cidade ela é uma construção social. Não dá para você entender o direito à propriedade individual como ele é muitas vezes praticado.

Uma das coisas que eu também tenho priorizado é a discussão com o judiciário e o Ministério Público. Nós no BRCidades nós temos uma participação muito forte da Defensoria Pública, eu não mencionei. E, principalmente, o movimento dos jovens. Eles entendem muito o que significa o direito à cidade. Especialmente nas periferias aqui das nossas cidades onde você tem uma efervescência cultural do hip-hop, do rap. Existe uma necessidade de expressão cultural, de afirmação da periferia com um centro. E é a periferia no centro uma das coisas que a gente realmente tem discutido.

Fevereiro de 2023: “arquitectura não é luxo”

Terminámos a nossa conversa, em Junho de 2021, a falar sobre esperança e sobre jovens. O que se passou nas cidades brasileiras desde aí?

Estamos numa situação bem melhor desde a última vez que nós conversámos. Conseguimos vencer a eleição e o governo Lula tem tido atitudes que são interessantes do ponto de vista da democracia. Sem dúvida nenhuma a posição do Supremo Tribunal Federal é surpreendente na defesa da democracia. O nosso Ministro da Justiça tem sido muito firme na condenação dos ataques à democracia, perseguir, por exemplo, muito firmemente a aplicação da lei, da Constituição Federal Brasileira que é relativamente avançada. Agora, nós estamos apreensivos, evidentemente. Porque esse governo é fruto de uma frente ampla e nós temos uma tradição histórica de uma oligarquia muito ligada... é uma oligarquia patrimonialista, uma oligarquia branca com mais de quatro séculos de escravidão. É realmente uma situação que você percebe que não é cómoda, essa frente que o actual governo fez. Há trocas em função dessa oligarquia clientelista.

Eu estou a falar da frente. Vamos falar de mais duas dificuldades que esse governo enfrente. Uma são as surpreendentes manifestações fascistas no Brasil. O apoio de massa que ela tem que é uma grande novidade na nossa história. E a outra, é também uma dificuldade que é encarnada pelas forças de mercado, vamos chamar-lhe assim, que é o capital financeiro. Nós temos um Banco Central ‘independente’, eu estou a pôr entre aspas porque pela nossa constituição a independência se restringe ao judiciário, executivo e legislativo mas o Banco Central coloca-se como o quarto poder, como se fosse isento e com um certo equilíbrio mas a gente sabe os interesses que são defendidos. Nós estamos hoje com a maior taxa de juros do mundo! Alguma coisa que impede o país de se desenvolver. O presidente Lula tem sido muito crítico dessa taxa de juros, dessa suposta independência do Banco Central. Nós perguntamo-nos: independente do quê? Certamente não das forças do mercado. São dificuldades que não são pequenas.

As manifestações fascistas foram enfrentadas de forma muito firme e estão sendo combatidas com medidas institucionais, legais mas o mercado numa associação com a media hegemónica tem feito muitos ataques ao governo. O governo elegeu-se prometendo combater a desigualdade, a pobreza, a fome que voltou para o Brasil e, ao mesmo tempo, há muita crítica sobre os gastos em políticas sociais. Nós estamos vivendo um momento com alguma perspectiva de um futuro melhor mas, ao mesmo tempo, com muitas ameaças.

O que é que acontece com as cidades? Vocês estão sabendo aí porque nós estamos exactamente na semana do Carnaval que foi uma semana de fortes desastres, com deslizamentos de encostas ocupadas por moradores das periferias urbanas das cidades do litoral brasileiro.

Ia perguntar exactamente isso, a relação entre as catástrofes naturais e a construção...

Eu fui Secretária da Habitação da cidade de São Paulo, de 1989 a 1992, Habitação e Desenvolvimento Urbano, e nós fizemos naquela ocasião um programa de retirada de quase 5 mil moradores de áreas de risco. Nós desenvolvemos todo um método de diagnóstico escalonado de áreas de risco e as pessoas que estavam no risco iminente, nós tirámos da área de risco para novas moradias. Fizemos também um trabalho de contenção de encostas. Eu estou falando da minha experiência mas houve no Brasil, a partir desses últimos 40 anos e principalmente no ciclo das prefeituras democráticas, muito desenvolvimento de know-how, de desenvolvimento técnico, de conhecimento administrativo, de combate aos riscos urbanos como chamamos. Estes estão principalmente ligados aos escorregamentos, deslizamentos e a enchentes. Nós tivemos excelentes experiências no Recife, em Belo Horizonte, no Centro Oeste, em Salvador. Especialmente nas áreas litorâneas do Brasil. Nós temos uma memória desse ciclo que desapareceu. É como se tivesse desaparecido. Durante esse período de volta e de domínio do neoliberalismo, de enfraquecimento da participação democrática no poder local, durante esse período de enfraquecimento das democracias participativas locais, de fortalecimento do espaço institucional, de enfraquecimento dos partidos de massa, da participação massiva, nós tivemos uma regressão que não é propriamente uma novidade na história do Brasil. É mais uma confirmação de uma desigualdade profunda que atinge o território brasileiro e as cidades brasileiras. Nós temos uma parte da nossa população que se instala nas cidades sem Estado e sem mercado, sem lei, sem conhecimento técnico, sem arquitectos, sem engenheiros, sem geólogos, em terras irregulares, ilegais... Eu costumo falar que a questão da terra é um nó na sociedade brasileira e a propriedade formal da terra divide a nossa sociedade. Nós formámos essas imensas periferias sem urbanização, violentas, sem cidadania. No caso de cidades litorâneas, acompanhadas ali pela Serra do Mar, a população mais pobre sai das áreas que são mais estáveis do ponto de vista geológico para se instalar, sem investimento, sem apoio técnico, nas áreas que deslizam, instáveis, da Serra do Mar. Então tivemos esse problema. É recorrente esse tipo de acontecimento na história do Brasil. Eu vivi isso como autoridade municipal há 40 anos atrás mas nós temos agora a crise climática que torna, agora, os eventos mais severos. No caso da Serra do Mar, dos acontecimentos no litoral norte do estado de São Paulo na semana do Carnaval, nós tivemos uma queda de 600 mm3 de água em menos de 24 horas. É uma coisa nunca vista. Mas mesmo os 200mm3, os 300mm3, aos quais nós estávamos acostumados, eles promoveram isso todos os anos. É raro nós não vermos esse tipo de acontecimento num país que tem uma costa tão grande quanto o Brasil.

Sabemos que é um problema de desigualdade, que as pessoas que aí residem não tem capacidade financeira para residir na estrutura planeada da cidade e já nos falou de algumas boas experiências mas o que é que se poderia fazer pensando que ainda permanece esta construção informal? De que forma é que se poderiam melhorar esses territórios de modo a não se perderem o direito ao lugar e as redes de solidariedade que se vão criando? É uma discussão que ainda continua a ser debatida em algumas situações em Portugal, noutra escala...

A área de Portugal é uma parte da Região Metropolitana de São Paulo. Nós estamos a falar de milhões de pessoas que moram em favelas, onde não há arruamentos, infraestruturas de drenagem. Temos uma situação precaríssima na maior parte das periferias, especialmente nas metrópoles brasileiras, e parte dessa precariedade está relacionada com riscos de desmoronamento. E são casas que não têm fundações calculadas, são construções populares a que chamamos de auto-construção. São os moradores que vão acumulando economias e vão construindo a casa aos poucos de forma extremamente precária.

A solução nós já temos. Nós já tivemos experiências em muitas cidades brasileiras de enfrentar esse tipo de situação que começa primeiro com um diagnóstico local, hierarquizamos a situação de risco que temos no município. Esse levantamento, existe o CEMADEN [Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais], que é o organismo federal que faz essa leitura mas ela precisa ser completada pelo poder municipal, para termos maior rigor e detalhe na situação. Levanta-se e hierarquiza-se esse risco e as pessoas que estão em risco iminente elas têm que ser retiradas imediatamente. Claro que isso é um transtorno, é uma operação complexa e que exige que você tenha um lugar para colocar essas pessoas. As primeiras vezes, há 40 anos atrás quando fizemos isso, nós tirámos a população e levámo-la para igrejas, alojamentos provisórios. Fomos pegos de surpresa, a esquerda nunca tinha sido governo na cidade de São Paulo, por exemplo, era a primeira vez que uma mulher se elegia para a prefeitura, Luiza Erundina. Então tirámos a população para pôr em alojamentos provisórios. Depois desenvolvemos um programa de locação emergencial, dando uma espécie de uma bolsa aluguer, para a pessoa sair daquela casa para outra casa até que pudéssemos entregar-lhe uma moradia segura. Você sabe que para produzir moradia, desde a aquisição do terreno, elaboração do projecto, construção, nós temos de 1 a 2 anos, menos que isso é muito difícil, para retirar aquelas pessoas da condição de aluguer subsidiado para levar para novas moradias. Nós fizemos isso de 1989 a 1992 com quase 5 mil pessoas que foram deslocadas. Ao mesmo tempo, tínhamos uma política habitacional feita com a participação de cooperativas, onde os moradores se organizavam em cooperativas para participar da produção, quem fosse desempregado, ou até acompanhar o projecto e a obra sob assistência técnica de arquitectos e engenheiros. Nós criámos também um programa para contratação de escritórios de assistência técnica. Foi um programa muito bem sucedido e acabámos por financiar 14 mil moradias com ótima qualidade arquitectónica e óptima qualidade construtiva. O movimento social chamava-se “Mutirões Habitacionais”.

Esse programa chegou a inspirar o governo Lula e Dilma... O governo Lula lançou o programa “Minha casa, minha vida” e existia um subprograma que se chamava “Minha casa, minha vida - entidades”. As entidades eram esses movimentos sociais, cooperativas e que fizeram excelentes empreendimentos mas não tanto quanto gostaríamos. Foi uma pequena parcela do orçamento do programa “Minha casa, minha vida”. Mas sem dúvida com óptima qualidade arquitectónica.

E não voltou a ter continuidade?

Não voltou porque na era Bolsonaro o programa “Minha casa, minha vida” foi extinto. Foi criado um programa que se chamava “Casa Verde e Amarela” e para a faixa mais baixa de rendimento, o governo Bolsonaro não produziu nem uma moradia. Foram poucas moradias e mais para rendimentos médios-baixos e médios. E para a área de risco houve também um corte no orçamento, fortíssimo. Eles deixaram 25 mil reais para o programa de área de risco que significa nada, praticamente. E para combater as áreas de risco, elas precisam de prevenção. Se esperarmos pela tragédia e formos agir apenas quando ela acontece, não vamos salvar todas as vidas evidentemente. Você tem que ter um planeamento de médio e longo prazo. Claro que eliminar totalmente as áreas de risco significa uma política urbana que faça a chamada reforma fundiária e imobiliária. Que tenha uma distribuição das terras urbanizadas, que não expulse uma parte da população para as periferias extremas mas para você mexer nessa não cidade, nessa cidade informal, nessa cidade de risco, de ausência do direito à cidade, você tem que mexer no mercado imobiliário. São duas faces de uma mesma moeda. Porque há cidades no Brasil em que o mercado imobiliário atende 30% da população e o governo não atende 70% por políticas públicas. É o contrário do que eu vi no Canadá, onde 30% da população não era servida pelo mercado imobiliário e aí as políticas públicas entravam. Aqui no Brasil é o contrário. A maior parte da população não tem acesso ao mercado imobiliário privado legal capitalista, de corte capitalista. Por isso, é que nós temos muita produção periférica bancada pelo crime organizado e pelas milícias, infelizmente.

E vê algum espaço para acontecer, nem que seja uma percentagem muito pequena, uma alteração dessa dinâmica nesse novo governo? Acha que há espaço para isso?

No curtíssimo espaço o Governo Federal entra com recursos... O Lula visitou as áreas e convidou o governador e os prefeitos a estarem presentes, ele está apontando o quê? Que é necessário um desenho federativo para resolver esse problema, que vai do Governo Federal até ao poder local. Até porque do ponto de vista constitucional quem tem a competência do uso e da ocupação do solo entre nós é o poder municipal, é o poder local. Então não dá para o Governo Federal, principalmente num país tão gigantesco e tão continental como é o caso do Brasil, resolver problemas fundiários. Eu espero que o governo não repita equívocos do programa “Minha casa, minha vida” e exija que as prefeituras instalem nos conjuntos habitacionais de habitação nova em áreas bem localizadas do ponto de vista urbanístico. Se as prefeituras ficarem responsáveis por apresentar as áreas para a construção das novas moradias, eu imagino que essas áreas tenham alguma qualidade de localização, e o Governo Federal entra com recursos, o Governo Estadual também pode entrar com recursos e a prefeitura fazer um projecto. Pode até por assistência técnica de arquitectos e engenheiros desenvolver um projecto de boa qualidade.

Agora, uma das coisas que nós temos falado muito aqui... os arquitectos no Brasil estão trabalhando com uma mudança de paradigma. Os arquitectos trabalham para 17% da população brasileira. E arquitectura não é luxo! Arquitectura não é alguma coisa supérflua, ela é fundamental para a saúde, para o meio ambiente, para a segurança. Eu não estou a falar da beleza mas beleza também deveria ser fundamental. Nós estamos trabalhando muito a ideia de melhoria habitacional nas periferias, de melhoria urbanística nas periferias, de trazer uma intervenção que traga infra-estruturas, que traga melhoria das casas, ampliação das casas, eliminação da insalubridade, melhorar o conforto térmico, melhorar as condições de estabilidade. Existe todo um universo no Brasil para mudarmos completamente a arquitectura e o urbanismo. E há muitas universidades no Brasil voltadas para essa prática de extensão universitária e os nossos organismos de arquitectos, representativos da nossa profissão, a Federação Nacional dos Arquitectos, o Instituto de Arquitectos do Brasil, além do Conselho de Arquitectura e Urbanismo no Brasil, voltados para abrir esse espaço, abrir o que é o mercado de trabalho para os arquitectos, que pode levar a uma melhoria e a uma melhor condição de vida urbana para os brasileiros. De combate a essa desigualdade tão profunda. Mas isso exige uma reforma fundiária antes de mais nada.

E vontade política...

Sim. Desde o tempo em que éramos colónia de Portugal e mesmo depois quando fomos império, a questão da terra divide o Brasil.

E os movimentos sociais têm um papel muito importante em toda essa dinâmica, mesmo agora com a nova eleição e com estas discussões que se vão tornando mais presentes, a par das outras manifestações, vão resistindo e trabalhando em conjunto para colmatar esta regressão, nem que seja, aos poucos. De que forma é que estes movimentos têm agido e olhado para o novo governo?

Evidentemente há um apoio muito grande ao novo governo nas camadas mais populares da sociedade. As pessoas têm uma lembrança de uma vida melhor no governo Lula e Dilma e há iniciativas novas. Especialmente na altura da pandemia, quando tivemos um aumento da informalidade no trabalho, quando tivemos um aumento do desemprego e da pobreza, nós tivemos, por exemplo, a ocorrência de movimentos de cozinha solidária. No Brasil todo o Movimento dos Trabalhadores Sem Tecto (MTST) fez organizações de cozinha solidária. O Movimento dos Sem Terra (MST) sempre ajudou muito nesse sentido. A União dos Movimentos de Moradia que é um dos maiores movimentos que temos, o Movimentos dos Sem Tecto do Centro, aqui em São Paulo, eles estão recuperando essa energia por meio de políticas públicas, do apoio de políticas públicas. Isso é muito importante. Nós temos ao mesmo tempo um enfraquecimento da organização da classe trabalhadora e isso é no mundo todo, com essa conjuntura neoliberal, você tem um enfraquecimento dos sindicatos, dos trabalhadores que foram muito importantes na conquista do estado do bem estar social. Mas ao mesmo tempo, além desses movimentos sociais nós temos algumas novidades. O movimento antirracista no Brasil, ele nunca teve a expressão que começa a adquirir. Nós temos alguns ministros e ministras negros e negras que têm uma expressão muito forte, um prestígio muito grande na sociedade actualmente. Nós temos também um fortalecimento da presença das mulheres nos movimentos sociais, da presença LGBTQIA+, da presença da juventude. O que a gente sente falta é de um partido de massa que seja o foco da drenagem de todas essas iniciativas que estamos tendo hoje no Brasil nos sectores populares. Iniciativas que estão a partir de áreas profissionais, além de áreas localizadas como bairros, movimentos sectoriais. A moradia é onde nós temos os movimentos mais fortes urbanos, mas não são os únicos. Na área da cultura, inclusive, nós temos coisas muito importantes acontecendo. Na minha época, eu sou de formação leninista, o meu partido era a expressão mais importante da construção de uma sociedade justa e eu não vejo tão claramente onde vamos desaguar todas essas manifestações capilarizáveis no território. Vamos ver se vamos criar alguma coisa nova. O Partido dos Trabalhadores (PT) foi esse desaguadouro no final dos anos 1970, início dos anos 1980. Agora, talvez, a gente tenha alguma coisa nova nessa nova conjuntura global e nacional.

Mesmo para terminar, como desejava que fossem as cidades do futuro no Brasil?

Eu todos os dias eu faço a separação dos plásticos. Compramos muita coisa que vem naqueles plásticos e eu fico imaginando quanto tempo nós vamos levar para mudar o nosso padrão de consumo, para mudar o nosso padrão de insustentabilidade urbana. Outro exemplo que eu acho importante é como o mercado imobiliário estava muito forte, apesar dele ser dirigido para pouca gente, alimentado por um capital rentista forte, actualmente você vê em algumas áreas de São Paulo prédios de 8 andares virem para o chão para darem lugar para edifícios de 40 andares. A lógica rentista é tão absurda que ela põe no chão moradias perfeitas. Eu fico pensando quando é que nós vamos olhar para isso tudo, para cada momento da nossa vida, e discutir soluções sustentáveis, como por exemplo, temos um edifício, ele já não está mais atendendo às necessidades desse momento que estamos a viver mas ele pode ser adaptado, tudo pode ser adaptado. É muito cruel você perceber a forma como o espaço urbano é produzido e o nosso modo de vida, da nossa sociedade dominada pelo fetiche do consumo. Nós vamos precisar de muito tempo e, infelizmente, eu acredito, de muita tragédia, para convencer a nossa sociedade de que nós precisamos viver de um jeito mais sustentável.

Eu gostaria de dizer para você que gostava de viver numa cidade mais sustentável, numa cidade mais consciente sobre não só os riscos, mas como é que nós podemos eliminar a emissão de carbono, diminuir a emissão de carbono. Olha os transportes. Acho que temos muito trabalho pela frente e eu volto a dizer que é muito importante trabalhar com crianças e jovens. São eles que vão definir e defender esse planeta que por enquanto é o único que temos.

Referências

Schwarz, R. (2014) (Org.) As ideias fora do lugar. São Paulo: Penguin - Companhia. [ Links ]

Harvey, D. (2000).Spaces of hope. California: Univ of California Press. [ Links ]

Tapajós, R. (1975). Fim de semana [Documentário] https://www.youtube.com/watch?v=gDm-vajAtrMLinks ]

1A entrevista foi realizada no âmbito do podcast Outros Livros disponível na Rádio Grabriela (https://radiogabriela.org/).

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