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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.47 Lisboa dez. 2023  Epub 29-Dez-2023

https://doi.org/10.15847/cct.34035 

RESENHA

Recensão de Os territórios na Era das Redes: Cultura digital, ação coletiva e bens comuns

1Universidade do Algarve, Faculdade de Economia e CinTurs - Centro de Investigação em Turismo, Sustentabilidade e Bem-Estar

2Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, hpinto@ualg.pt


António Covas, economista e professor catedrático aposentado da Faculdade de Economia da Universidade do Algarve, considerado uma das figuras de destaque no pensamento português contemporâneo sobre o território (Carmo, 2022), recupera na sua última obra “Os territórios na Era das Redes” uma discussão que o tem acompanhado nas últimas décadas: as consequências da digitalização e do advento da Internet nos territórios. Este é um livro particularmente provocatório, que pode ser enquadrado nos estudos do pós-capitalismo, porque não se abstém de enunciar as fragilidades do modelo dominante neoliberal atual, nem de falar de utopias praticáveis. Uma atualidade que é marcada por múltiplas transições: a climática, ecológica, energética, demográfica, laboral e digital. Estas politransições são a base fundamental de uma grande transformação, em curso, nas economias.

O livro organiza-se em torno de cinco grandes temas que estruturam as partes fundamentais do livro: a cultura digital e a inteligência coletiva territorial; tecnologias, arte e território; os bens comuns colaborativos e as economias de proximidade; os territórios da 2ª ruralidade; e os territórios e a regionalização inteligente. Os textos incluídos abordam a transição digital, a smartificação do território, a cultura e a criatividade como bases para o desenvolvimento, tendo também como pano de fundo a política europeia, em particular a sua aplicação regional.

O livro apresenta uma visão crítica sobre o domínio do algoritmo na sociedade contemporânea. Reflete sobre como grandes corporações tecnológicas, os originais GAFAM (Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft) e outras um pouco mais recentes como as NATU (Netflix, AirBnB, Tesla e Uber) subverteram as lógicas de funcionamento dos mercados, transformando o espaço digital em domínios controlados por imponentes monopólios e pelo capitalismo de vigilância, como sugeriu também Shoshana Zuboff (Zubboff, 2019). A existência de grandes conglomerados industriais no seculo XX esteve na origem de um conjunto de respostas institucionais, a partir dos estados-nacionais, como por exemplo leis anti monopólio. No entanto, estes novos megaconglomerados tecnológicos, que controlam a Nação-Internet, ainda não tiveram uma resposta adequada semelhante que permita um contexto que regule o seu funcionamento e mitigue os problemas que estimulam, como a uberização do trabalho ou a permanente evasão fiscal. A leitura de Covas é por isso hoje mais cética, da tecnologia e do avanço tecnológico, face a uma perspetiva eminentemente otimista que caracterizava a sua obra.

O território aparece neste livro com um destaque central, algo que contrasta com as políticas públicas atuais, que lhe têm conferido um papel marginal. Ainda que muitas abordagens se (auto)designem place-based é fundamental uma maior obstinação territorial para colocar este conceito no centro do debate socioeconómico e da decisão política (Pinto et al., 2019). O despego ao território é performativo, como é evidenciado pela afetação dos instrumentos de desenvolvimento do território, como os programas operacionais regionais ou os planos de recuperação e resiliência, como meras ferramentas de gestão macroeconómica. Também por isso, o território é um assunto que teima em não prevalecer na ciência económica.

Para Covas o território é entendido não só como o contexto para a ação individual e para o desenvolvimento socioeconómico, mas ele próprio um ator fundamental para a transformação. O autor recupera uma conceção inspirada na Teoria do Actor-Rede (Latour, 2005), para sublinhar como é essencial que os atores se mobilizem em torno de objetivos partilhados, que são progressivamente consensualizados, através de processos de tradução de interesses. Os atores-rede são entidades por si mesmas, quase independentes das suas partes constituintes e que constituem a matéria social na qual as relações entre os atores ganham sentido(s). É no ator-rede que os atores individuais se incrustam, desenvolvem as suas atividades, e reforçam os seus papéis. Os atores não podem desenvolver a sua ação - a sua agência se assim quisermos definir - de forma independente dos atores-rede, ou seja, da estrutura.

Esta abordagem tem uma implicação fundamental, a racionalidade económica na sua versão mais ortodoxa, maximizadora de utilidades e lucros, individualista e atomizada, já não é suficiente. Os mercados não são independentes destes atores-rede, ou dito de outra forma, os mercados não existem num vácuo social. Estão dependentes e são determinados por um conjunto de domínios heterogéneos tal como já sugeria a obra clássica de Karl Polanyi (Polanyi, 1944).

No processo de formação de atores-rede no território, a Rede, isto é a Internet, tem um papel importante. As tecnologias de informação e de comunicação (as TIC) são fundamentais para catalisar territórios inteligentes e criativos (os TIC), como o autor já bem tinha sublinhado anteriormente (por exemplo em Covas, 2018). A Rede não torna o mundo plano, com todos os territórios mais homogéneos como foi tantas vezes enunciado (cf. Friedman, 2005), ela é sobretudo uma força para as causalidades cumulativas, para ciclos virtuosos e viciosos no desenvolvimento, aceleradora quer das capacidades quer das vulnerabilidades presentes no território.

Três aspetos que nos permitem interpretar as grandes mudanças em curso, uma década extraordinária que se encontra no horizonte, são identificadas no subtítulo do livro.

Em primeiro lugar, o que Covas designa por ‘cultura digital’, que engloba um vasto leque de problemas que carecem de grande atenção para uma verdadeira transformação digital: as infraestruturas digitais, a literacia digital dos cidadãos, a digitalização da administração pública, a smartificação das cidades e das regiões, a digitalização empresarial particularmente das PMEs, a ascensão da economia colaborativa e a prevalência pelo digital das relações sociais. Todos estes aspetos podem ser indutores do desenvolvimento, mas também promotores de assimetrias e de vulnerabilidades territoriais se não forem bem considerados.

Em segundo, a ‘ação coletiva’, que remete para a função da governança, que transcende largamente o papel dos governos, mesmo quando considerando uma visão multinível. Aponta para o papel fundamental não só de atores institucionais, mas também da sociedade civil, da intervenção cidadã, da participação e da gestão partilhada nos processos de decisão.

Em terceiro, os ‘bens comuns’ - identificados pelo autor com bens ligados à cultura, à natureza e ao conhecimento - e que estão a ser progressivamente comodificados e financeirizados. Exemplos da tragédia dos comuns (Hardin, 1968) repetem-se quotidianamente. Enquanto os bens privados têm ficado essencialmente na esfera de intervenção das empresas e os bens públicos na do Estado, os bens comuns podem beneficiar muito da atuação dos atores-rede e das possibilidades colaborativas da Rede.

Uma tendência atual é a socialização de prejuízos e a privatização de benefícios e que tem sido um importante motor de desigualdade. A solução eficiente para a gestão dos bens comuns na Era das Redes é não só técnica, mas também moral. É fundamental ultrapassar a visão que a informação e o conhecimento são suficientes para políticas públicas eficazes porque são baseadas em evidências. A sociedade da informação e do conhecimento não foi capaz, até agora, de promover um desenvolvimento equilibrado, sustentável e equitativo. Porque esqueceu ou se abstém dos valores essenciais para a organização humana. Distinguir o certo do errado será fundamental se pretendermos construir uma verdadeira sociedade da sabedoria. Como sublinha António Covas, na frase que encerra o livro “(…) o nosso problema maior não é o de instrumentos ou de tecnologia, é o de compromisso e solidariedade com a economia do bem comum de pessoas e territórios”.

Agradecimentos

Hugo Pinto beneficia do apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) através do Programa de Apoio ao Emprego Científico (CEECINST/00052/2021/CP2792/CT0001 e do projeto UIDB/04020/2020).

Referências

Carmo, A. (2022). Espaço, lugar e território. Figuras do pensamento português contemporâneo, Edições Afrontamento: Porto. [ Links ]

Covas, A. (2018). O Sexto continente: A nação Internet, Edições Sílabo: Lisboa. [ Links ]

Covas, A. (2023). Os territórios na Era das Redes: Cultura digital, ação coletiva e bens comuns, Edições Sílabo: Lisboa . [ Links ]

Friedman, T. (2005). O Mundo é Plano: Uma história breve do século XXI, Actual Editora: Lisboa. [ Links ]

Hardin, G. (1968). The tragedy of the commons. Science, 162, 3859, 1243-1248. https://doi.org/ 10.1126/science.162.3859.1243Links ]

Latour, B. (2005). Reassembling the Social: An Introduction to Actor-Network-Theory. Oxford University Press: Nova Iorque. [ Links ]

Pinto, H., Garofoli, G., Reis, J. (2019). Territorial obstinacy. Regional Science Policy & Practice, 11(6), pp. 879-883. https://doi.org/10.1111/rsp3.12260Links ]

Polanyi, K. (1944; 2018). A Grande Transformação, 2ª edição, Lisboa: Edições 70. [ Links ]

Zuboff, S. (2019). The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power, Profile Books: Londres [ Links ]

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