Considerações iniciais
Nem todos sabem, mas no Continente Africano há cinco países que falam oficialmente a língua portuguesa; e o mais “curioso” é que a literatura desses países recebeu fortes influências da literatura brasileira, seja no prosa engajada de um Manuel Ferreira, em Cabo Verde, que de certo modo inspirou-se em nossos autores da década de 30/40, seja na narrativa crítica de um Abdulai Sila, de Guiné-Bissau, retratando, como nossos contemporâneos, as injustiças sociais e indiferença do poder público em seu país. Contudo, foi somente a partir da década de 80 que essas literaturas tiveram visibilidade por aqui, e hoje os estudos acerca da literatura africana lusófona têm crescido consideravelmente no Brasil, com a presença de grupos de estudos, pesquisadores, publicações e teses universitárias. Autores premiados e reconhecidos internacionalmente, como o angolano Ondjaki, por exemplo, tomam cada vez mais espaços nas prateleiras de nossas livrarias e ganham a simpatia de leitores e a aprovação da crítica.
Como toda literatura, a literatura africana lusófona também pode ser dividida, numa perspectiva didática, de acordo com uma periodização, retratando, de certo modo, momentos da história desses países, uma história marcada pela fragmentação que resultou de um longo processo de colonização. Neste artigo, contudo, faremos um recorte metodológico mais preciso: abordaremos alguns aspectos da literatura de Moçambique, estudados mais especificamente na obra de Mia Couto - abordaremos, assim, a questão feminina e a pós-colonialidade em dois de seus contos: “O perfume” (Estórias Abensonhadas, 2012) e “O cesto” (O fio das missangas, 2009).
A literatura moçambicana de expressão portuguesa se inicia, por assim dizer, por volta de 1920, com uma fase de formação, momento em que a mestiçagem cultural (africanos e portugueses) prevalece e os autores procuraram representar uma cultura africana autóctone também no que compete à literatura. A fase seguinte é marcada pela motivação política, contrariando as vontades do colonizador europeu, momento de forte predominância da poesia. Neste período, o escritor assume uma perspectiva mais crítica em relação à realidade a sua volta, reconhecendo sua identidade e retratado seu estranhamento com as imposições coloniais, como é possível perceber na produção poética de Rui Knopfli. As décadas de 60 a 80 são marcadas por movimentos revolucionários voltados à luta pela independência do país, e a literatura não fica indiferente a esse fato: essa fase revolucionária, em que desponta forte sentimento nacionalista, tem como princípio uma ideologia de natureza político-social, com nomes como o de Luís Bernardo Honwana (autor do célebre, Nós matamos o cão tinhoso, 1964).
Após a década de 80, Moçambique, já independente, apresenta uma prosa e uma poesia já plenamente autônomas, destacando-se, por exemplo, autores do porte de José Craveirinha, cuja produção, mesclando temáticas da dominação colonial e um lirismo amoroso ou irônico, “acaba por forjar textos que têm marcas épicas, que funcionam como relatos concentrados ou alusões à gesta do povo de Moçambique”. (Laranjeira, 1995, p. 25). Finalmente, há ainda uma Fase da literatura contemporânea, datada da década 90 até os dias de hoje, “fase de uma prosa mais intimista, com valorização da literatura popular e, ao mesmo tempo, a superação da perspectiva político-ideológica” (Silva, 2009, p. 19), que tem na figura de Mia Couto um de seus principais representantes.
Com efeito, um dos autores mais celebrados da literatura moçambicana e da produção literária em língua portuguesa, de modo geral, Mia Couto costuma ser comparado a outro grande autor do mesmo idioma, o escritor brasileiro João Guimarães Rosa, tanto por se aproximar dos fatos do cotidiano local, quanto pela criatividade de sua escrita, numa constante criação de novas palavras. A vida do povo moçambicano e sua cultura de modo geral estão representadas em sua extensa obra ficcional, onde não faltam o humor e o trágico, a incorporação da linguagem cotidiana, a inclusão do fantástico e do imaginário, tudo veiculado por meio de uma escrita em que se destaca um intenso trabalho de criatividade linguística (Silva, 2009).
Mia Couto estreou na literatura com o livro de poesia Raiz de Orvalho (1983), para logo passar aos dois gêneros ficcionais que o consagraram: o conto, com obras como Vozes Anoitecidas (1986), Cada Homem é uma Raça (1990), Estórias Abensonhadas (1994), Contos do Nascer da Terra (1997), Na Berma de Nenhuma Estrada (1999), O Fio das Missangas (2003); e o romance, com Terra Sonâmbula (1992), A Varanda do Frangipani (1996), O Último Voo do Flamingo (2000), Um Rio Chamado Tempo, uma Casa Chamada Terra (2002), O Outro Pé da Sereia (2006), Venenos de Deus, Remédios do Diabo (2008); A confisão da Leoa (2012) etc. Publicou ainda, sob a forma de antologias, algumas de suas principais crônicas, como Cronicando (2003), O País do Queixa Andar (2003), Pensatempos (2005), E se Obama fosse Africano? (2009).
Tendo participado ativamente da luta política em Moçambique, viu de perto as mazelas que seu povo passava e as integrou em sua obra, buscando, por meio de uma prosa carregada de poeticidade, retratar a voz, os sonhos e a angústia dos esquecidos pela história. Quando questionado certa vez sobre sua escrita, o autor afirmou: “minha literatura é antes de tudo política” (Couto, 2013, s.p.). Sobre a multiplicidade de sua literatura, completou: “há este mosaico, não tanto de raças, mas de culturas, das culturas que estão a marcar parte de uma coisa que e ainda só um projeto: a moçambicanidade” (Couto, 2013, s.p.).
1. A mulher e os estudos pós-coloniais
Quando analisamos mais detidamente a produção ficcional de Mia Couto, percebemos, entre outras coisas, uma ênfase na afirmação da moçambicanidade, ou seja, uma validação da cultura local e de uma configuração identitária de Moçambique, presente em sua na literatura. Esse fato vem ao encontro da teoria proposta pelos estudos pós-coloniais que, segundo Mata (2008, p. 9), pressupõe
uma nova visão da sociedade que reflecte sobre a sua própria condição periférica, tanto a nível estrutural como conjuntural. Não tendo o termo necessariamente a ver com a linearidade do tempo cronológico, embora dele decorra, pode entender-se o pós-colonial no sentido de uma temporalidade que agencia a sua existência após um processo de descolonização.
De fato, para Costa (2006, p. 121), que procura associar o pós-colonial com o conceito de modernidade,
a releitura pós-colonial da história moderna busca reinserir, reinscrever o colonizado na modernidade, não como o outro do Ocidente, sinônimo do atraso, do tradicional, da falta, mas como parte constitutiva essencial daquilo que foi construído, discursivamente como moderno. (2006, p. 121).
Em resumo, o pós-colonialismo, de modo geral, é um conjunto de teorias que analisa as implicações políticas, filosóficas, culturais e literárias deixadas pelos colonizadores nos locais que colonizaram, adotando em relação a elas uma perspectiva crítica e contra elas uma prática combativa. É possível considerar, portanto, que uma literatura pós-colonial privilegia a cultura de todos aqueles que foram colonizados pelas potências europeias, sujeitos que, de certo modo, encontram-se à margem das sociedades modernas: o negro, o colonizado, a mulher, o homossexual etc. Ainda no tocante à literatura, o pós-colonialismo considera que o autor colonizado - e sua literatura - deixar de ser um mero objeto da cultura do colonizado e passa a ter voz, retratando seu povo, sua terra e sua cultura e tornando-se, assim, o sujeito de sua própria história:
O ponto da partida desse protocolo de transmissão de ‘conteúdos históricos’ é a ideia de que o autor - em pleno domínio e responsabilidade sobre o que diz, ou faz as suas personagens dizerem - psicografa os anseios e demônios de sua época, dando voz àqueles que se colocam, ou são colocados, à margem da ‘voz oficial’: daí poder pensar-se que o indizível de uma época só encontra lugar na literatura (Mata, 2008 p. 2).
Durante o processo de colonização, muitos foram os que tiveram sua cultura apagada e sua identidade ignorada, dentre os quais se destaca a mulher, figura muitas vezes subjugada a uma cultura machista, na qual sua voz não tem valor. Considerando que a literatura atua, também, como reflexo de relações sociais, não são poucas as vezes em que apresenta - de modo crítico ou não - um perfil estereotipado da mulher; porém, determinados autores, segundo a teoria do pós-colonialismo, mostram esse olhar como forma de denúncia e de combate aos estereótipos impostos pela sociedade colonizada.
Nas literaturas africanas de expressão portuguesa, a representação da mulher está, historicamente, relacionada a questões ligadas à tradição local. Uma imagem frequente da mulher na literatura moçambicana, por exemplo, é a da mulher que sustenta e apoia a família - uma imagem que pode representar a fortaleza feminina -, mas também a da mulher objeto. Os autores pós-coloniais, em geral, buscam, em certo sentido, combater semelhante visão: a mulher - outrora colonizada, mas agora livre - passa a ser representada como alguém que começa a “sentir a terra”, livre de tabus e de imposições, uma mulher que, embora continue a ser identificada como progenitora (mãe, esposa), em parte liberta-se de imposições masculinas e assume um papel de sujeito na sociedade pós-colonial.
O conceito de moçambicanidade, ao qual já nos referimos, articula-se com esse contexto de afirmação identitária, re-reconhecendo e re-significando a tradição nativa, livre de interferências europeias e, portanto, consolidando um complexo processo de afirmação dos costumes, da língua, das tradições, da cultura de Moçambique. Mia Couto abarca, em sua escrita, algumas dessas questões, revelando o mosaico cultural moçambicano e, especialmente, desvelando a figura feminina dentro dessa complexidade pós-colonial.
Um aspecto marcante de sua literatura é, por exemplo, a presença do eu lírico feminino: em muitos de seus contos, é a voz da mulher que assume as rédeas do discurso, revelando a “alma feminina” em profundidade, como suas angústias, seus anseios e sonhos, bem de acordo com a perspectiva pós-colonialista, que, no limite, busca combater tanto o machismo quanto o colonialismo presente nos discursos ocidentais hegemônicos:
ainda que por vezes o pensamento machista e o colonialista se choquem ou se confrontem, o fato é que a mulher acaba sendo a minoria, excluída tanto em termo políticos quanto sexistas. A constatação de tal condição acabou gerando inclusive um termo para designar esse ser duplamente excluído - a mulher do terceiro mundo (Alves, 2014, p. 9).
Na literatura “política” de Mia Couto, de um lado, a representação da figura feminina pode ser interpretada como o ponto de partida para uma sistemática denúncia de sua condição degradante, além de, por outro lado, emergir como sujeito de sua própria história, capaz de se libertar do julgo colonial e machista da sociedade em que está inserida.
2. A mulher nos contos de Mia Couto
O conto “O perfume” (“Estórias abensonhadas”), narrado em terceira pessoa, descreve um convite do marido à esposa, chamando-a para ir ao baile e presenteando-a, o que lhe causa certo estranhamento, pois seu marido nunca lhe dera nada, sempre a escondendo, por ciúme ou machismo. Por isso, Glória, tão acostumada à servidão cotidiana, não consegue acreditar quando o marido a convida para irem ao baile, afinal, como afirma o narrador, “entre marido e mulher o tempo metera a colher, rançoso roubador de espantos. Sobrara o pasto dos cansaços, desnamoros, ramerrames” (Couto, 2012, p. 31). Embora Glória nem sequer soubesse o significado da palavra liberdade, pois não a sentia de fato, aceitou facilmente o convite - não sem certo receio, é verdade - e acabou indo ao baile. Impõe-se, desde o início, uma das questões centrais nos contos de Mia Couto: a questão da liberdade. Segundo Tatiana Alves, em análise do conto “A saia almarrotada”, de “O fio das missangas”, onde a descoberta da liberdade e a condição feminina assemelham-se ao conto aqui analisado,
nota-se que a atitude da personagem é decorrente de uma criação em que as noções de prazer e vergonha se (con)fundem, conferindo-lhe uma culpa associada ao pudor, algo frequente e convenientemente alimentada pela sociedade patriarcal (Alves, 2014, p. 3).
No conto em questão, percebemos que Glória, ao afirmar que “nunca soube o que é isso de liberdade” (Couto, 2012, p. 31), revela uma vida que se aproxima da não-existência, além de tocar em outro ponto sensível ao autor: o solapamento vivido pela mulher no casamento, já que ela se vê privada de sua vaidade pessoal e torna-se objeto das vontades do marido, situação típica de uma sociedade patriarcal.
Enquanto se arruma, Glória encontra um frasco de perfume que ganhara de Justino ainda menina, único presente dado pelo marido até então; ao abrir o frasco, percebe que, com o tempo, o líquido havia evaporado, assim como o amor: “perfumei o quê com isso, se perguntou lançando o frasco no vazio da janela. - Nem sei o gosto de um cheiro” (Couto, 2012, p. 32). O perfume que Glória ganhara no início do namoro nunca “perfumou” a relação, e agora lá estava ela num casamento sem amor, sem sentido, sem cheiro: “Nem sei o gosto de um cheiro” (Couto, 2012, p. 32). O desgosto da esposa demonstra sua condição feminina numa sociedade machista, sendo seu marido, Justino, o único capaz de devolver a “alegria” e motivação de viver. Até aquele momento, ela ainda não havia sentido o perfume da liberdade.
Justino incentivara a mulher a se arrumar, a se enfeitar, a se pintar e a se perfumar. No baile, Glória desconfia do fato de o marido, sempre ciumento, a deixar livre, permitindo inclusive que ela dançasse com outros homens: “Vá, Glorinha, se divirta!” (Couto, 2012, p. 33). Mas a surpresa vem em seguida: aquele baile e aquela dança, que podem representar o início de sua liberdade e alegria, traria algo incomum à vida do casal, pois, na verdade, significava seu abandono: “o baile, aquele convite, eram uma despedida. Seu peito confirmou a suspeita quando viu o marido se levantar e apontar a saída” (Couto, 2012, p. 34). Com efeito, Justino levanta-se e vai embora, deixando-a “livre” no baile. Ao voltar para casa, sozinha, Glória tira os sapatos antes de entrar em casa e sente a carícia da areia quente, fato que lhe confere uma verdadeira sensação de liberdade, o que, simbolicamente, pode representar a afirmação de uma identidade feminina; a terra em que pisa, por sua vez, representaria, nesse sentido, a liberdade conferida ao ex-colonizado - de fato, embora muitas vezes o colonizado possa até se habituar a sua condição de dominado, acaba, cedo ou tarde, a se revoltar contra ela (Memmi, 2007).
Glória, ao retornar para casa, adormeceu nos degraus de entrada e, ao acordar nas primeiras horas da manhã, sente o odor de perfume. Acreditando ser Justino que retornava, corre, sobressaltada, para dentro de casa: “Foi quando pisou os vidros, estilhaçados no sopé de sua janela. Ainda hoje restam, no soalho da sala, indeléveis pegadas de quando Glória estreou o sangue de sua felicidade” (Couto, 2012, p. 35). A liberdade, de fato, estreia-se com sangue: as marcas de sangue representam a afirmação identitária de Glória, mas também sua liberdade, tal como ocorrera com as ex-colônias, só libertadas à custa de muito sangue e luta. É ainda, mais uma vez, Tatiana Alves (2014) quem relaciona a condição feminina à das lutas de libertação, no contexto do pós-colonialismo:
A narrativa, ao abordar a temática da opressão feminina, acaba por tocar também na questão do colonialismo, suscitando uma reflexão acerca do processo de dominação. A escrita pós-colonial, ao pensar a questão, acaba por aproximar o feminismo do pós-colonialismo, uma vez que ambos repensam as estruturas do poder, e analisam a questão opressor/oprimido. Os estudos pós-coloniais têm como tônica o fato de privilegiarem os mais fracos e, nesse processo, os segmentos marginalizados ganham expressão, em narrativas que dão vez/voz a camadas desde sempre excluídas, possibilitando uma reflexão sobre aspectos como feminismo, etnia, ou cultura. No caso da mulher africana, ela acaba por ser duplamente oprimida: pelo colonizador, e muitas vezes pelo próprio homem africano (Alves, 2014, p. 8).
O conto “O cesto” (“O fio das missangas”) é narrado em primeira pessoa por uma mulher que, pela “milésima” vez, se prepara para ir visitar o marido no hospital. Assim como no conto “O perfume”, a esposa se encontra em grande estado de desânimo: “há muito tempo não me detenho no espelho. Sei que, se me olhar, não reconhecerei os olhos que me olham” (Couto, 2012, p. 21). Em seus relatos, a personagem relata o desejo de obter logo sua liberdade, já que, por enquanto, sua vida se resume em cuidar diariamente do marido doente e hospitalizado: “vivo num rio sem fundo, meu pés de noite se levantam da cama e vagueiam para fora do meu corpo” (Couto, 2012, p. 21). Mas por mais que ela desejasse sua liberdade, ainda estava presa às juras de casamento, sobretudo em se tratando - como é o caso - de uma sociedade patriarcal, em que a mulher encontra-se quase sempre sob o julgo do marido. A esposa nem lamenta mais o fato de o marido não poder falar, de não haver mais diálogos entre eles, afinal isso também representa sua liberdade, já que ela não é mais corrigida e nem humilhada: “já não recebo enxovalho, ordem de calar, de abafar o riso” (Couto, 2012, p. 22).
A narradora é consciente de sua condição submissa, mas expressa suas vontades e descobertas, chegando, muitas vezes, a denunciar o silenciamento da dominação em relação à figura feminina. A mulher continua se descobrindo, apesar da opressão vivida por ela:
estou de saída, para minha rotina de visitadora, quando, de passagem pelo corredor, reparo que o pano que cobria o espelho havia tombado. Sem querer, noto o meu reflexo. Recuo dois passos e me contemplo como nunca antes o fizera. E descubro a curva do corpo, o meu busto ainda hasteado. Toco o rosto, beijo os dedos, fosse eu outra, antiga e súbita amante de mim. O cesto cai-me da mão, como se tivesse ganhando alma (Couto, 2012, p. 23).
O cesto em que carrega o alimento para o marido é, como ela, um objeto - sua identidade só se manifestava plenamente quando ela era útil ao marido, assim como o próprio cesto. Ao se olhar no espelho, algo que ela evitara por muito tempo, sua imagem refletida a fez perceber que ela ainda existia, fazendo-a reviver emoções e sensações que estavam ocultas em razão de sua submissão feminina - ela era, afinal de contas, sujeito. Diante de sua alegria ao se encontrar consigo mesma, refletida no espelho, o cesto cai-lhe das mãos, deixando-lhe de ser útil e passando a ser mais um objeto comum, descartável. Ao se livrar do cesto, sua identidade feminina aflora, recuperando seu amor próprio, momento em que ela passa a desejar a morte do marido, a fim de usufruir completamente de sua liberdade e de sua condição feminina. Desejando a morte do marido, a protagonista espanta-se com tamanha ousadia, mas na sequência reflete:
o espelho devolve a minha antiguíssima vaidade de mulher, essa que nasceu antes de mim e a que eu nunca pude dar brilho. Nunca antes eu tinha sido bela. No instante, confirmo: o luto em vai bem com meus olhos escuros. Agora, reparo: afinal, nem envelheci. Envelhecer é ser tomado pelo tempo, um modo de ser dono do corpo. E eu nunca amei o suficiente. Como a pedra, que não tem espera nem esperada, fiquei sem idade (Couto, 2012, p. 23).
É importante enfatizar, nesta última passagem, a perspectiva pós-colonial, que procura deslocar o olhar das abordagens hegemônicas para as periféricas, valorizando aspectos pouco considerados naquelas (minorias, cultura, linguagem, identidade etc.), aspectos que podemos considerar como sendo de fronteira. Como afirma, nesse mesmo sentido, Garcia (2012, p. 172), “Mia Couto constrói personagens que transitam entre fronteiras, buscando adaptar-se às vivências quotidianas, como ele mesmo, também ‘ser’ de fronteiras, admite fazer em seu dia a dia”. Após assumir que deseja a morte do marido, a esposa vai para a última visita, sentindo, no caminho, a liberdade próxima - a liberdade ao tomar a rua, como nunca havia sentido antes. Mais uma vez cabe aqui a comparação com o sujeito colonizado que, ao tomar consciência de sua liberdade, também vai poder sentir sua terra, o aroma das árvores de seu lugar, seu espaço pleno. Como o sujeito colonizado, contudo, há uma auto-opressão psicológica que atua no sentido inverso à busca da liberdade: acostumada a obedecer às regras impostas por uma sociedade patriarcal, a protagonista sente culpa ao descobrir que seu marido falecera; a repressão vivida pela esposa por toda vida a impede de viver e aproveitar sua liberdade, agora com o marido morto, numa passagem emblemática:
saio dos hospital à espera de ser tomada por essa nova mulher que a mim se anunciava. Ao contrário de um alívio, porém, me acontece o desabar do relâmpago sem chão onde tombar [...] Na sala, corrijo o espelho, tapando-o com lençóis, enquanto vou decepando às tiras o vestido escuro. Amanhã, tenho que me lembrar para não preparar o cesto da visita (Couto, 2012, p. 24).
A mulher, na sociedade pós-colonial, tão habituada a obedecer, sente-se sem rumo ao perceber que agora ela é a dona de sua própria liberdade. Simbolicamente, o vestido preto tão aguardado para ser estreado é rasgado, numa metáfora sugestiva, já que essa peça de roupa representava, no conto, por meio da simbologia da feminilidade/vaidade feminina, sua liberdade.
Considerações finais
Vimos, neste estudo dos contos de Mia Couto, o quanto a voz feminina torna-se, por meio dos artifícios literários, forte e consistente, apesar de tanta opressão, mas também o quanto ainda falta para que se afirme plenamente como uma voz da liberdade. Para Bonnici (2005, p. 9), “a escrita pós-colonial é a principal estratégia da mímica contra o colonizador porque devido à sua visão dupla, a revelação da ambivalência do discurso colonial subverte a autoridade desse mesmo discurso”. Não há dúvida de que a escrita miacoutiana se insere nesse conceito: pelas breves análises que fizemos de dois de seus contos, nota-se que suas protagonistas são mulheres presas à cultura patriarcal, às amarras do colonialismo e a seus próprios medos. Afinal, o que fazer quando se vive, o tempo todo, em opressão e submissão total e, repentinamente, chega a tão esperada liberdade?
Nos dois contos analisados, as personagens discutem sua condição feminina e o seu desenraizamento: uma é abandonada e assume sua condição de mulher livre; outra abandona, mas não consegue se libertar das amarras morais presentes em sua vida durante tanto tempo, recusando, assim, sua própria liberdade, por não saber o que fazer com ela. Se o objetivo do autor, inserindo-se no universo de literatura pós-colonial, é ora denunciar, ora promover a liberdade, temos, nos contos em questão, os dois exemplos: um de libertação, seja ela colonial ou matrimonial; outro de conscientização, por meio da qual mostra-se possível alcançar a liberdade, embora com dificuldades em aceitá-la. Reforçamos, portanto, que a mulher representada nos contos pode ser compreendida não apenas como figura submissa e incapaz, mas como sujeito de sua própria história, que, ao tomar consciência de sua condição pessoal e social, finalmente, liberta-se.