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Revista Internacional em Língua Portuguesa

Print version ISSN 2182-4452On-line version ISSN 2184-2043

RILP vol.32  Lisboa Dec. 2017  Epub July 28, 2021

https://doi.org/10.31492/2184-2043.rilp2017.32/pp.207-225 

Artigo Original

O uso das LWC’s1 na música moçambicana

Cremildo G. Bahule1 

1Pesquisador independente-Moçambique


Resumo

Tomando como exemplo os discos Kudumba, da banda Ghorwane, Yellela de Eyuphuru e Katchume de Kapa Dêch, é possível perceber a conexão existente entre as línguas autóctones e a ideia de identidade moçambicana. Todavia, os músicos buscam novos horizontes estético-sonoros, emigram para regiões onde a sua produção musical é aceite e gera lucro, e inserem novas linguagens na música, com objectivo de opulentar e fazer evoluir a música moçambicana. Nessa linha de evolução, os músicos sentem a necessidade de não apenas usar as línguas autóctones moçambicanas, mas de experimentar o uso de “outras” línguas. Por isso, é visível o uso das LWC [Language of Wider Communication] ou “línguas de comunicação mais ampla” ou “línguas internacionais” como Inglês, Francês, Português - embora esse idioma esteja bem enraizado ou historizou-se em Moçambique.

Palavras-chave: LWC; Música Moçambicana; Língua

Abstract

Taking the example of the Kudumba discs of the Ghorwane band, Yellela de Eyuphuru and Katchume de Kapa Dêch, it is possible to perceive the connection between native languages and the idea of Mozambican identity. However, musicians seek new aesthetic-sonic horizons, emigrate to regions where their musical production is accepted and generate profit, and insert new languages into music, with the aim of opulating and evolving Mozambican music. In this line of evolution, musicians feel the need to not only use native Mozambican languages, but to experience the use of “other” languages. Therefore, the use of LWC [Language of Wider Communication] or “broader languages of communication” or “international languages” such as English, French, Portuguese - although this language is well-rooted or historicized in Mozambique.

Keywords: LWC; Mozambican Music; Language

A diversidade [linguística] já não se identifica com o exótico [idiomático], ela reaparece juntamente com a percepção do sentido, que as sociedades produzem, com finalidade de inscrever os seus valores e suas instituições, numa ordem que ultrapassa as contingências das práticas quotidianas. Assim o desenvolvimento como relação supõe, necessariamente, o aparecimento de situações conflituosas entre tradições diferentes, muitas vezes dificilmente compatíveis (Ngoenha, 2002).

Considerações iniciais

A tónica dominante do uso da língua como pavimento para vincular uma mensagem, na música, é aceitável por todos. Acredita-se que a música, mesmo que tenha uma boa melodia, precisa ter uma mensagem e ela é vinculada por meio de uma língua. E a música moçambicana tem se encaixado nesse detalhe embora existam géneros musicais que não precisam do uso da língua para difundir uma mensagem. Tomando como exemplo os discos Kudumba da banda Ghorwane, Yellela de Eyuphuru, Katchume de Kapa Dêch é possível, através da música, perceber a conexão existente entre as línguas autóctones e a ideia de identidade moçambicana. Todavia, os músicos buscam novos horizontes estético-sonoros, emigram para regiões onde a sua produção musical é aceite e gera lucro, e inserem novas linguagens na música com objectivo de opulentar e fazer evoluir a música moçambicana.

Nessa linha de evolução, os músicos sentem a necessidade de não, apenas, usar as línguas autóctones moçambicanas, mas experimentar o uso de “outras” línguas d’análogas esferas do universo. Por isso, é visível na música moçambicana o uso das Languages of Wider Communication (doravante LWC) ou “línguas de comunicação mais ampla” ou “línguas internacionais” como inglês, francês, português [embora este idioma, esteja bem enraizado ou historizou-se em Moçambique]. Na minha intelecção, as LWC não são apenas de origem europeia, existem, também, de origem asiática que não devem ser ignoradas e que tem uma preponderância relevante em Moçambique, através do comércio e da religião. Falo das seguintes línguas: árabe, gujurati e o hindi. Com este capítulo, evidencio e comprovo o subsequente: (i) o forte uso das LWC na música moçambicana; (ii) a percepção e a ideia, por parte dos artistas, da língua como mercadoria; e (iii) como a batalha linguística caminha de forma paralela com a batalha musical.

1. O uso das LWC na música moçambicana

Os argumentos que fecundam o debate sobre o uso das LWC, sobretudo em África, põem em blocos opostos os “abolicionistas” e os “adaptacionistas” (Schimied, 1991). Os “abolicionistas” enfatizam considerações culturais, como a promoção dos valores africanos, enquanto os “adaptacionistas” dão mais peso a considerações práticas como o funcionamento das instituições dos Estados africanos e à integração dos africanos no mundo moderno2. Porém, as LWC, que são na sua maioria línguas europeias - e algumas línguas de origem asiática3 - têm estado a desempenhar papéis importantes na vida nacional de praticamente todos os países africanos, como mostra a predominância de políticas linguísticas exoglóssicas em África (Haine, 1990; 1992). As línguas ex-coloniais, isto é, línguas europeias, ou seja LWC, dominam as burocracias estatais, os sistemas educacionais, os discursos científicos e tecnológicos, assim como outros domínios institucionais, públicos e culturais. E a música africana, de forma particular, não está alheia à interferência e ao uso das LWC.

Os músicos moçambicanos, cientes desta realidade, abrem espaço na sua atividade estético-musical para o uso de “outras” línguas que não sejam, apenas, aquelas que são faladas em Moçambique - sejam autóctones ou não. Músicos que desenvolvem suas carreiras artísticas no território nacional e que são estabelecidos no estrangeiro fazem, de forma perfeita, o uso das LWC como forma de facilitar a sua integração no mundo moderno ou no renhido panorama do World Music.

Neste espaço, onde reflicto sobre o uso das LWC na música moçambicana, antes de chegar ao ponto fulcral - sobre o uso da língua como mercadoria e a batalha das línguas que engendra uma batalha musical - começarei com pontuais exemplos de bandas musicais e músicos singulares que fazem o uso das LWC nas suas composições e harmonias musicais, sobretudo das seguintes LWC: português, inglês e francês.

1.1. Português

Conforme tenho vindo a fazer referência ao longo deste capítulo, para além das línguas autóctones - L1 (língua primeira ou língua materna) - os músicos fazem o uso da língua portuguesa - L2 (língua segunda) - ou uma LE (língua estrangeira) para dar corpo aos conteúdos musicais que se inserem numa determinada música. Abstendo-me de ser generalista e categórico, acredito que será aceitável se eu afirmar que 90% dos músicos moçambicanos, que desenvolvem a sua carreira musical localmente ou na diáspora, usam a língua portuguesa nas suas músicas de diversos modos: como título, na letra de uma determinada música ou para dar nome a um disco a ser editado. Como figurino imediato, podemos tomar como exemplo o terceiro disco de Ghorwane: Não É Preciso Empurrar.

As letras deste disco foram escritas em língua portuguesa pelo escritor Mia Couto e, posteriormente, o grupo Ghorwane fez adaptações estético-sonoras, musicais e linguísticas para o Xichangana e Xironga, sem diluir o conteúdo literário registrado em português, por Mia Couto. A adaptação feita por Ghorwane tinha como propósito dar mais musicalidade às letras e às mensagens, que se dirigiam ao cidadão moçambicano que tinha de exercer o seu direito de cidadania - direito ao voto - nas primeiras eleições multipartidárias de Moçambique realizadas em 1994.

O outro exemplo de uso da língua portuguesa que pode ser aqui citado é do músico, produtor e multi-instrumentista, Nelton Miranda, no seu disco de estreia, intitulado Amor, de 1999. Além disso, como último exemplo, pode-se registrar o disco Um passo em frente, do grupo de Rap GPro Fam. O disco da GPro Fam - em que está inclusa a música “O País da Marrabenta (Discurso Directo)”, música esta que fala da corrupção em Moçambique e da morte do jornalista moçambicano Carlos Cardoso - é uma gravação somente em Português, diferentemente daquilo que é o estilo habitual da música Rap, que é cantar em língua inglesa. Este disco - Um passo em frente - em paralelo com outro disco de Rap, denominado Atenção Desminagem, da Kandonga Produções, marca um momento histórico da sedimentação do Rap em Moçambique, por duas razões: (i) a edição de discos de Rap no país; e (ii) o uso da língua portuguesa e não da língua inglesa - idioma tradicional para o género Rap (Rhythm and Poetry]).

1.2. Inglês

Os músicos moçambicanos, na busca de novos horizontes musicais, ultra Moçambique, para além de aperfeiçoarem qualitativamente as suas composições musicais, a sua performance, veem-se na encruzilhada de usarem não apenas o Português e as línguas autóctones, mas também a língua inglesa. O uso do inglês na música moçambicana se pode descrever de duas formas: (i) como parte integrante de um determinado conteúdo musical, de forma particular através da letra, que é vocalizada; e (ii) como elemento explicativo dos conteúdos musicais (quando as músicas são cantadas em línguas autóctones, principalmente quando o disco é editorado por uma editora de expressão inglesa).

Acerca do uso da língua inglesa, num primeiro momento, podemos dar como exemplo a banda 340 ML e o músico Paulo Wilson (Wi). A banda 340 ML, incrementando a sua careira na África do Sul, canta de forma exclusiva em Inglês, fazendo algumas colaborações com artistas que cantam em Zulu - língua autóctone da África do Sul -, como se pode notar na música Make it Happen (com a colaboração da cantora sul africana Tandissa Mazwai e do jazzista moçambicano Moreira Chonguiça), do disco Sorry for the delay. Porém, o grupo 340 ML, quando está “em casa” - Moçambique - se comunica em Português, na sua performance de palco, mas sem deixar de cantar o seu reportório em língua inglesa. Trata-se de uma situação de bilinguismo: fora de casa falo Inglês, dentro de casa falo Português! Na mesma linha, podemos colocar Paulo Wilson (Wi), tomando como base o seu disco com o título Cold Hearted. Radicado na Espanha, Wi se expressa musicalmente em língua inglesa, embora no seu disco de estreia Cold Hearted, a última música é cantada em língua portuguesa: “Meu Irmão”.

Paulo Wilson (Wi) - que foi o primeiro vocalista de RockFeller’s e inspirando-se no seu pai (João Paulo) que teve uma banda de Rock, Os Monstros - sempre gostou de cantar em Inglês, atitude linguística semelhante a do seu progenitor. Wi, mesmo estando em território onde a língua oficial é o espanhol ou o galego, usa o inglês para impor a sua marca musical sem pôr de lado a sua língua primeira, o português. Ainda no estrado dos músicos que usam a língua inglesa como elemento integrante e principal dos seus conteúdos musicais, podemos, por mérito, colocar o rapper moçambicano, Simba. Simba, com o seu disco de inauguração Run And Tell Your Mother, marcou e confirmou que a originalidade do Rap se caracteriza por se cantar ou reppar em Inglês. Diferente dos dois primeiros exemplos - 340 ML estabelecidos na África do Sul e Paulo Wilson (Wi) radicado na Espanha -, o rapper Simba incrementa a sua carreira em Moçambique, embora se abra para algumas participações artísticas de músicos sul-africanos como DJ Kenzero ou de moçambicanos a residir na África do Sul como é o caso do produtor Iko e do jazzista Moreira Chonguiça.

Ainda com alusão à língua inglesa, existem músicos moçambicanos que fazem o uso do idioma anglófono para aclararem os assuntos musicais dos seus temas. Esta segunda forma de uso da língua inglesa se deve ao fato de os grupos musicais moçambicanos e artistas gravarem e editarem os seus discos fora de Moçambique, de forma particular em países europeus ou nos Estados Unidos da América. Assim sendo, quando se faz o catálogo do disco, algumas notas explicativas que aparecem no disco são escritas em língua inglesa, como aconteceu no disco Mama-Mosambiki de Eyuphuro. As notas que aparecem no disco de Eyuphuro - Mama-Mosambiki -, foram feitas pelo linguista moçambicano José Mateus Kathupa4. O mesmo acontece noutro disco de Eyuphuro, Yellala, e da banda Mabulu no disco Soul Marrabenta. Nesses dois discos - sob edição da Riverboat Records/World Muisc Network - algumas partes das letras das músicas estão traduzidas para a língua inglesa, embora no primeiro caso se cante em Emakhua, no disco Yellala, e no segundo caso, no disco Soul Marrabenta, se cante em xichangana/xironga. Essa forma do uso do Inglês tem uma explicação óbvia: as letras são traduzidas das línguas autóctones para o Inglês para que os indivíduos que não percebem as línguas moçambicanas entendam o que se está a cantar, entendam o conteúdo da música em língua inglesa, mesmo que as músicas sejam cantadas numa língua autóctone.

Para terminar o leque de exemplos sobre a língua inglesa na música moçambicana, apenas, mais um molde: Mr. Arsen. Como é comum, o Rap é cantado em Inglês e o rapper Mr. Arsen não foge à regra. Com uma carreira a ser construída em Moçambique, igual ao rapper Simba, com um disco de referência no Rap moçambicano de nome O Rei da Selva, com participações em performances de rappers europeus e americanos, Mr. Arsen é um bom exemplo de lealdade linguística e rítmica, na área do Rap, do gênero: o Rap só sabe bem quando cantado em Inglês.

Porém muitos dos que ouvem a sua música, sobretudo jovens, reclamam constantemente, de não entenderem o que ele diz. De forma comum, o auditório gosta de Mr. Arsen, quando canta em Português, contudo quando canta em Inglês se protesta por vincular ou usar nas suas músicas um tipo de Inglês que não é de fácil compreensão ou percepção. Ele se defende dizendo que canta em Inglês. Todavia, o seu Inglês se confunde com um sociolecto da Jamaica ou um Inglês do tipo crioulo ou pidgin, porque quando ele pronuncia as palavras o auditório fica com a impressão de estar a ouvir uma mistura de línguas ou de estar a ouvir um Inglês circunscrito e que tem como origem o contacto prolongado entre falantes de línguas diversas - Mr. Arsen (Dário Novela) é um rapper que não se caustica com esses argumentos, pois ele, incessantemente, acreditou que a sua mensagem, ininterruptamente, chegou/penetra, de forma perfeita, aos seus leais e reais destinatários.

1.3. Francês

Para além do Português e do Inglês, a outra LWC que é mais usada na música moçambicana é o Francês. Apenas dois exemplos. Primeiro é válido destacar os músicos moçambicanos inspirados nas melodias das Antilhas Francesas e de bandas como Kassav, que adotam a língua francesa em algumas, se não todas, composições. Os moçambicanos músicos, como forma de não se chispar dessa realidade linguística, sempre que cantam numa melodia do tipo Zouk, sentem a necessidade de cantar em Francês. De modo particular, esses músicos, que desenvolvem a sua carreira musical localmente, na sua maioria, são originários das Províncias da Zambézia e Sofala, onde temos como referência grupos como Sáldicos, Garimpeiros e X-ZouK - grupos precursores do Zouk ou da “música tropical” em Moçambique. O segundo exemplo se encontra no grupo Tim-Mozam’. Tim-Mozam’, é uma banda formada na França pelo moçambicano Cândido Xerinda em parceria com a sua companheira, de nacionalidade francesa, Cécilia Hamès-Xerinda.

Cândido Xerinda na maioria das suas canções canta em Xironga/Xichangana, mas noutras músicas canta em Francês. Este fato se pode perceber nitidamente no disco do grupo Tim-Mozam’ com o nome Mwana Maputo, concretamente na música Petit frère. Mas a beleza do grupo Tim-Mozam’ está num pormenor linguístico, que surpreendeu e continua a surpreender muitos moçambicanos, sobretudo aos falantes de xichangana/xironga: ver e ouvir uma francesa branca a cantar, irrepreensivelmente, em xichangana e xironga. Este pormenor linguístico, mais do que surpreendente e belo, serviu para despertar, mesmo que de forma leve, aos moçambicanos sobre a beleza e o nosso dever de preservação das línguas autóctones. Cecília Hamès-Xerinda despertou em nós a beleza de usar adequadamente, no sentido estético e educativo, as línguas autóctones, ao invés de usá-las para fins separatistas, pois enquanto usamos estereótipos linguísticos para nos insultarmos há indivíduos - nacionais e estrangeiros - que usam as línguas para fazer arte, fazer música, para unir os homens e as diferentes comunidades. Por isso eu digo: a arte é uma arma de unificação maciça, em que a língua é a ogiva principal.

As LWC, anteriormente supramencionadas e de uso amplo na música moçambicana, são as que se conotam com um prestígio de cariz Ocidental. Na linha desse prestígio linguístico, por meio da música, podemos assentar, mesmo que em menor escala, a língua espanhola e a italiana que são usadas em Moçambique ou fora do país quando um músico moçambicano interpreta uma melodia em que o uso de uma dessas línguas é incontornável. Na mesma extensão, mesmo que de modo raro, podemos alinhar o alemão. De forma particular, “nunca ouvi” nenhuma canção de um músico moçambicano cantada integralmente em alemão. Mas tendo em conta os acontecimentos históricos e laborais de cidadãos moçambicanos que trabalharam na Alemanha e que hoje assumem a alcunha de Madjermanes5 , podemos aceitar e corroborar que existem algumas palavras alemãs que se podem ouvir em determinada música moçambicana.

Na anterior estação de parágrafo único, afirmei a conotação das LWC com o prestígio Ocidental e talvez europeu, por ser nessa região onde são originárias as línguas inglesa, francesa e portuguesa. Mas é preciso (re) lembrar que existem línguas de origem asiática, que também são “línguas de comunicação mais ampla” como, por exemplo, o árabe, o hindi, o gujurati e o urdu. Moçambique, historicamente, tem uma grande relação com essas línguas - baseio-me na ocupação costeira que Moçambique foi ebúrneo pela cultura asiática -, daí que se olharmos para a nossa sociedade atual, encontramos famílias moçambicanas que preservam seus costumes tradicionais (vestuário e alimentação), mantendo ligações com essas línguas através de laços religiosos (Islão, Hindu) e de laços comercias (venda de tecidos e especiarias oriundas do Oriente).

Não há dúvidas para nenhum moçambicano que este segmento da sociedade é economicamente poderoso no nosso país e tem influenciado, em alguns casos, algumas decisões políticas. Caracteriza-se - esta porção humana da sociedade moçambicana - por ser um grupo coeso nos seus costumes e por não se abrir a indivíduos de fora para não adulterar os seus hábitos culturais e tradicionais. Contudo, no campo da cultura, essas línguas - que também entram no grupo das LWC - podem se inserir na música, transversalmente, ao factor religioso. Mesmo que os músicos não cantem nessas línguas de origem asiática, algumas línguas autóctones do nosso país, onde é permanente o contacto com islamismo ou onde a influência e a importância do Islão são fortes, há empréstimos de palavras dessas línguas, concretamente nas Províncias de Nampula e de Cabo Delgado. Por exemplo, Zena Bacar e Aly Faque, naturais da Província de Nampula, cantam em emakhuwa ou coti nas suas músicas, mas pela influência religiosa [Islão] é possível encontrar, em alguns conteúdos musicais desses artistas, algumas palavras em Árabe - exóticos são os casos nos quais Aly Faque e Zena Bacar cantam uma música completa em Árabe.

Assim, com os exemplos anteriormente ilustrados, que fazem referência ao uso das LWC na música moçambicana, pode-se dizer que há nessa música uma situação triglóssica:

(i) o Português é usado na música moçambicana por causa da sua carga ideológica e política (língua de unidade nacional), por ser a língua de instrução e por ser a língua oficial de comunicação nos locais onde se desenvolvem atividades musicais em Moçambique (estúdios de gravação, editoras musicais, meios de comunicação social que fazem recessão e crítica das músicas e locais de espetáculos);

(ii) o Francês, o Espanhol, o Inglês são línguas usadas na música moçambicana, quando o músico desenvolve a sua vida musical no país onde uma das línguas (Francês, Espanhol e Inglês) é oficial. Contudo, de modo particular, o Inglês é a língua mais usada por músicos moçambicanos - residentes em Moçambique ou não - por ser a língua que possibilita o artista e a música moçambicana a terem acesso ao World Music e às grandes instituições de difusão e comercialização da música em nível mundial (conservatórios musicais, editoras e festivais de música, numa horizontalidade internacional);

(iii) As línguas de origem asiática como Árabe e o Hindi, por exemplo, são usadas na música moçambicana através do substracto religioso a que essas línguas estão ligadas. O Árabe, especificamente, é usado por músicos moçambicanos que estão ligados ao Isão6, direta ou indiretamente.

2. A língua como mercadoria

No universo sonoro, partilham-se fluxos estético-musicais, tais como as performances em palco, em que se partilham experiências humanas. Contudo, vivem-se relações desequilibradas, na medida em que o universo da música é uma ponte de oportunidades para uns e estradas de dificuldades para outros. Nesse sentido, é notável que se assinem acordos de parceria com vista a fortalecer as indústrias editoriais, além de, em alguns momentos, a música ser usada como um meio político para angariar votos e unir forças opostas. Assim sendo, trata-se de um elemento negociável e, por isso, participa do fortalecimento econômico de muitos Estados, haja vista que há indivíduos que se tornaram poderosos por causa da música. Porém, se a música pode ser caracterizada como uma mercadoria, a língua pode, também, ganhar esse cunho por ser o elemento que facilita a partilha dos diversos fluxos no universo musical. Ou seja, “a língua, no contexto musical, é uma mercadoria”.

Quando se faz o uso de uma LWC numa determinada música deve-se ter em conta as motivações subjacentes à(s) escolha(s) linguística(s) que o artista/músico tem como alicerce. As motivações para cantar numa LWC estão ligadas à rede sociocultural do músico. O facto não está, simplesmente, em cantar numa LWC, mas em usar a LWC numa determinada música como elemento que dá acesso a rendimentos de distinção ligados a vantagens simbólicas e materiais. As estratégias linguísticas - como pronúncia, estruturas gramaticais, linguagem usada metaforicamente, organização retórica dos argumentos- são alguns dos indicadores que são usados para qualificar de forma (in)adequada se a LWC está a ser bem ou mal usada. Por exemplo, o modo como MC Roger usa o Português nas suas músicas, pela linguagem usada e pela natureza retórica dos seus argumentos nessa LWC, o faz estar mais próximo, na sua conveniência amigável, dos governantes e dos magnatas de Moçambique. Enquanto o rapper Azagaia, usando a mesma língua - portuguesa -, e com uma retórica diferente nos seus argumentos, faz com que ele seja persona non grata na perspectiva das autoridades de Moçambique.

Com estes dois exemplos, pode se entender que os produtos linguísticos funcionam, na maioria dos casos, como “porteiros” (Firmino, 2005, p. 30), que abrem ou fecham oportunidades, na óptica da elite governamental e daqueles que detêm o poder econômico. Ainda nesta senda de reflexão, os músicos são impelidos a terem um discurso recto, formidável e que não vá contra aqueles que controlam os mecanismos de difusão e comercialização da música, pois se não forem nesta lógica, verão suas produções musicais serem interditas, barradas e ofuscadas no mundo editorial e, sobretudo, no aspecto dos concertos musicais. Sendo assim, nessa lógica de mercado linguístico, por meio da música, é aceitável afirmar que o modo como se usa uma LWC, neste caso particular, o português, é uma pré-condição para entrar nas redes da elite, conseguir posições profissionais de prestígio ou ganhar acesso a vantagens sociais (Firmino, 2005).

Por outro lado, o uso do francês e do inglês por parte dos músicos moçambicanos, visa a uma incorporação prática do músico no “mercado musical internacional” ou no World Music. Nesse aspecto, o uso de uma LWC, sobretudo o inglês, numa determinada música moçambicana, indica a preocupação que o artista/músico tem em se integrar em contextos onde essas línguas são “portões e patrões” para o acesso à glorificação musical (ex., Simba, 340 ML, RockFeller’s, Paulo Wilson (Wi) e a maioria dos músicos de Jazz).

Conquanto, deve-se ter em conta um pormenor: há músicos moçambicanos que cantam em línguas autóctones e sentem a necessidade de aprender uma LWC por motivos de comunicação em digressões internacionais e participação em festivais internacionais de música. Muitos músicos desembolsam muito meticais - em escolas privadas - para adquirir competência linguística em francês e inglês para conseguirem se comunicarem da melhor forma no exterior quando se encontram com produtores e editores estrangeiros ou com discográficas conceituadas internacionalmente. Por exemplo, Ghorwane, Kapa Dêch, Djaaka, Massukos, embora usem nos seus conteúdos musicais línguas como xichangana, xironga, cicopi, cisena, ciyao, quando vão ao Festival de Jazz, na Cidade do Cabo ou a um Festival de Música Internacional no Canadá, terão, obviamente, à margem das actividades musicais, de se comunicarem em inglês ou francês, o que lhes vai possibilitar ter acesso a novos mercados de difusão da música moçambicana, novas editoras e novos produtores. Quero acreditar que Cheny Wa Gune, em 2010, quando foi ao World Music Expo (WOMEX), no Canadá, não se comunicou em Cicopi - língua autóctone que usa nas suas músicas -, mas se transmitiu aos outros, fora do palco, em inglês e francês como forma de estar mais próximo da cultura e do modus vivendi daqueles que o podem colocar e o projectar para novos mercados musicais de prestígio internacional.

Sem camuflagens, temos que assumir que a música, mais do que um produto artístico, de beleza e de catarse, é um produto econômico, um produto que se vende, se compra e que serve de instrumento de troca. Nessa lógica de mercado musical, é necessário que se use uma LWC, mesmo que isto, em alguns momentos, signifique o ofuscamento das línguas autóctones e a dependência dos meios externos de produção musical. Nesse sentido, a língua, no contexto musical, é uma mercadoria.

O mercado linguístico é conduzido através da música por forças sociais extramusicais como as elites políticas e econômicas - que funcionam como mecenas nas atividades artísticas de muitos músicos, porque os “mecenas” fazem circular o produto musical nacional e internacionalmente. Embora seja consensual que as línguas são estruturalmente semelhantes, é também consensual que elas têm um valor social e econômico diferente devido ao mérito equivalente a dos seus falantes.

O inglês e o francês têm um mérito considerável porque os países utentes dessas línguas têm um poderio econômico e político que influencia todo o mundo. Por exemplo, qual é o músico africano que não quer gravar, editar e viver da música na França, Inglaterra ou Estados Unidos da América? Este poder político influencia na música moçambicana, o que faz com que alguns músicos moçambicanos optem em cantar ou usar, de vez em quando, uma LWC desses países, com objetivos de aceder aos bens de prestígio desses lugares que se perspectivam como eldorados da música - se assim é, um dia ouviremos música moçambicana, a ser cantada em Chinês ou Mandarim, porque a China tem tendências econômicas e políticas de globalizar África e o mundo com as suas ideologias e o seu filantropismo.

Em epílogo - deste subcapítulo -, o uso das LWC na música moçambicana e a caracterização da língua como mercadoria, na contextura harmoniosa, enfatiza que as práticas linguísticas na música estão sujeitas às diversas relações de poder que circulam ao redor da música como arte, como símbolo de beleza e como um género que gera lucro. Se as elites - política e econômica -controlam o “sistema musical”, os músicos tenderão a cantar nas línguas que são faladas por essas elites. As práticas linguísticas na música moçambicana, em alguns momentos, refletem, simbolicamente, relações de poder que influem nas interações sociais, nas quais se pode englobar a produção e a difusão da música.

O artista/compositor tenderá a usar a LWC que o aproxima mais dos seus objetivos como criador e como um cidadão que se quer auto-realizar com o trabalho que faz: a música. Ou tenderá a empregar formas linguísticas que lhe dão prestígio como músico e que possibilitam a sua circulação no universo do World Music. Numa só ideia: o músico/compositor moçambicano, mesmo usando na sua música uma língua autóctone, não está alheio ao uso de uma LWC, por esta ser um elemento fundamental e catalisador para uma preferível difusão da música moçambicana, independentemente dos contornos sociopolíticos e identitários que advirem dessa escolha linguística, alicerçados por meio da estética-musical.

3. “Batalha das línguas” vs batalha musical: dois atalhos com um só alvo

Na obra “A batalha das línguas: perspectivas sobre linguística aplicada em Moçambique”, Lopes (2004) acredita que o conflito que envolve o uso da(s) língua(s) se prende com sentimentos nacionistas e sentimentos nacionalistas (cf. p. 5 de Lopes, 2002). Segundo Fishman (1968), o nacionismo refere-se à necessidade de eficiência operacional, integração política dos indivíduos numa Nação, onde o governo tem de adaptar uma língua oficial que seja veículo de comunicação com o povo e entre o povo, enquanto o nacionalismo refere-se ao sentimento de identificação, autenticidade, lealdade e solidariedade do indivíduo em relação à Nação. Passados quarenta e dois anos após a independência de Moçambique, é visível a efectivação desses sentimentos - nacionismo e nacionalismo - apesar de reconhecermos que não foi a existência de uma língua oficial - português - que permitiu a efectivação do nacionalismo moçambicano. Para que esses sentimentos se efectuassem e se sedimentassem, as línguas autóctones, em paralelo com a língua portuguesa, tiveram o seu papel importante na manutenção dos valores culturais e no reforço da identidade cultural moçambicana7. Ou seja, o nacionalismo - sentimento de solidariedade, autenticidade e identificação - se desenvolveu de forma fecunda com o uso das línguas autóctones por serem estas formas idiomáticas, elementos importantes na transmissão dos valores culturais tipicamente africanos e de forma geracional. E os artistas, particularmente os músicos8, souberam transmitir esse sentimento nacionalista, empregando as línguas moçambicanas, principalmente autóctones, em composições musicais, mesmo no período em que as línguas maternas eram interditas pelo império colonial.

Os músicos foram mais ousados: usaram no período nacionalista a língua portuguesa e na contemporaneidade usam as chamadas “línguas de comunicação mais ampla”, como o inglês e o francês. Ou seja, um músico pode cantar numa língua autóctone, na língua oficial de Moçambique e numa LWC. Mais uma vez, sou tentado a fazer uma comparação entre a literatura e a música moçambicana. É ínfima a produção literária em Moçambique feita em línguas autóctones ou numa LWC. Não é prática um escritor moçambicano escrever, primeiramente, sua obra em inglês ou em francês, mesmo residindo em Moçambique, e depois editá-la. A prática mostra que o escritor escreve em língua portuguesa e a editora ou um escritor - ensaísta estrangeiro - traduz a obra para uma LWC, para melhor divulgação a nível internacional. Na música moçambicana é diferente: o artista - músico - pode, mesmo residindo em Moçambique, cantar todas as suas canções ou músicas em inglês ou numa outra LWC ou cantar numa língua autóctone todas as suas músicas. Ou, ainda, fazer uma mistura linguística, em que algumas músicas são cantadas numa LWC e outras numa língua autóctone.

Considerando o grupo Ghorwane, no disco Vana Va Ndota, o músico Roberto Chitsondzo canta, na maioria das músicas, em Xichangana, mas há músicas em que ele canta em português, inglês, gitonga e emakhuwa. No disco Waretwa, da banda Timbila Muzimba, a maioria das músicas são cantadas em cicopi, porém há duas músicas onde o português tem maior notoriedade: música “Recomeço” - adaptada do poema do escritor português Miguel Torga - e a música Ngungunhane - com declamação em Português pela poetisa moçambicana Sónia Sultuane. No disco Maganda, do jazzista Ivan Mazuze, as músicas são introduzidas em xichangana/xironga e português e são cantadas, na sua maioria em Inglês.

Estes três exemplos - Ghorwane, Timbila Muzimba e Ivan Mazuze - mostram uma situação triglóssica ou quadriglóssica que se pode encontrar numa determinada obra discográfica, em que o objetivo é introduzir na música moçambicana diferentes experiências linguísticas, nas quais a sonoridade plástica converge com os ideais idiomáticos que particularizam um determinado músico ou uma estabelecida banda musical.

Nestas circunstâncias, fazendo um empréstimo a Lopes (2004), não há dúvidas que existe uma “batalha das línguas” (cf. Lopes, 2004) na música moçambicana. Esta batalha poderá ser uma extensão de sentimentos a que Fishman (1968) faz referência: nacionismo e nacionalismo. A batalha das línguas na música moçambicana, portanto, prova que:

(i) a música é um reduto da liberdade humana; e

(ii) para promover a identidade nacional moçambicana, ou a moçambicanidade, qualquer instrumento é válido, incluindo o uso de uma LWC em paralelo com as línguas autóctones.

Dessa forma, o uso das LWC e a batalha das línguas na música moçambicana não devem ser considerados como uma diluição da moçambicanidade, dos hábitos culturais e linguísticos de Moçambique, mas sim, deve se ter em conta, apoiando-me em Lopes (2004), “com que espírito e atitude é utilizada a língua, em que medida e com que orgulho ou não a língua é usada” (cf. Lopes, 2004, p. 55). Eis aqui um ponto fundamental do uso da língua na arte: a atitude com que é utilizada a língua e o espírito a que esse uso da língua é determinado.

Se o uso das LWC em confronto com as línguas autóctones, na música moçambicana, não é percebido como um fim em si mesmo, mas, antes, como um instrumento para alavancar a música moçambicana, a batalha das línguas pode catalisar, em grande medida, o que eu chamo, no espírito deste ensaio, de batalha das músicas. Defino batalha das músicas como um ato artístico e cultural individual ou coletivo que se caracteriza por um diálogo antagônico entre os diferentes artistas/músicos, de diferentes gêneros musicais ou do mesmo gênero musical.

Por exemplo, há uma batalha musical na sinuosidade da música moçambicana que opõe dois gêneros musicais distintos: marrabenta e dzukuta-pandza. Os fazedores da marrabenta acusam os que fazem o dzukuta-pandza - que são de uma geração mais nova, nascidos a partir de 1980 - de ser alienados, por estarem a fazer uma música que não identifica os moçambicanos, por ser um gênero musical descartável, baseado em ritmos ocidentais e da cultura pop. Por exemplo, o etnomusicólogo José Mucavele chama o gênero musical dzukuta-pandza de pimba ou música pastilha. E os que fazem dzukuta-pandza, em forma de autodefesa, afirmam que o estilo que fazem é uma extensão modernizada da marrabenta com acréscimo de elementos eletrônicos e que os puristas da Marrabenta estagnaram no tempo, daí o surgimento do dzukuta-pandza. Nesta batalha musical - marrabenta vs dzukuta-pandza -, mais do que uma luta de gerações, opera-se uma luta da classe que acredita que é hegemônica (a classe dos que fazem dzukuta-pandza) em oposição a uma classe se que sente sufocada, reduzida ao silêncio e que se sente marginalizada (a classe dos que fazem a marrabenta).

Os que fazem dzukuta-pandza se sentem hegemónicos, porque conseguem editar discos facilmente, têm as suas músicas a tocar em todas as rádios, os seus vídeo-clip’s são popularizados em todas as televisões e cobram quantias consideráveis para actuarem em concertos musicais. Enquanto os que fazem marrabenta, poucos deles, têm discos editados, mesmo com uma carreira longa de vida musical, não tem vídeo-clip’s para concorrerem com os primeiros, queixam-se de as suas músicas não passarem nas rádios e são pouco convidados para fazerem espectáculos, internamente. Esta é uma realidade que faz com que alguns fazedores da Marrabenta se aliassem aos músicos do Dzukuta-Pandza, para conseguirem alguma notoriedade. Nota-se, como exemplo, Wazimbo que se aliou ao Digital MC e ao grupo de Rap Med Level. Os outros que não querem “se vender por causa de uma fama momentânea”, e continuam firmes nos seus ideais artísticos e musicais são José Mucavele, Chico António, Mingas, João Cabaço.

O segundo exemplo da batalha musical em Moçambique, mas dentro do mesmo gênero musical, é notório no Rap. Há rappers que são apologistas da ostentação e difundem nas suas músicas que são milionários, têm muitas mulheres e muitos automóveis, vendem e fumam drogas e que o mundo artístico e o mercado musical está nas suas mãos (e.g., MC Roger, Dan OG, LCD, Magnésia, 360º). Porém, existe outro grupo de rappers que são panegiristas e grandes defensores da paz, preocupados em levar uma mensagem de consciência positiva e educativa para o seu auditório e que tecem uma crítica ao sistema político e à ostentação do primeiro grupo, são os chamados rappers undergrounds (e.g., Zito Dog Style, Hélder Leonel, Iveth, Xitiku Ni Mbaula, Azagaia, GPro Fam., Djovana, Simba, Magesh, Banda Podre, Still). Em casos extremos, a batalha musical que existe dentro do Rap extrapola o âmbito artístico-musical e se situa no nível bélico, da agressividade física, chegando a culminar na morte de alguns rappers - como aconteceu nos Estados Unidos da América com os rappers 2Pac e Notorious B.I.G.9.

Nesses dois exemplos não está em causa a questão linguística, visto que todos os artistas usam as mesmas línguas - as LWC e as línguas autóctones - mas está em causa a “questão musical”, pois todos os intervenientes, no cenário da música moçambicana, anseiam por uma notoriedade artística, que se resume em dois aspectos: (i) o reconhecimento artístico-musical em nível nacional e, quiçá, internacional; e (ii) a conquista de novas oportunidades para gerar lucro, pois para muitos deles, se não todos, “música é a arte, mas também é trabalho, é negócio”.

O espaço musical é reservado como um lugar privilegiado para a efetivação de possibilidades emancipatórias, daí que, quando ouvimos uma música, implica perceber a voz do músico, perceber o desenho das diversas sonoridades para melhor se captar a que esfera o músico pertence e a que alçada o músico pretende chegar. Nesta órbita, a batalha musical, que um artista pode empreender, poderá, dentre vários objetivos, revitalizar um determinado gênero musical. Foi nesta lógica que um grupo de artistas, direcionados pelo músico Stewart Sukuma, desenvolveu atividades artísticas (gravação de músicas, que posteriormente foram selecionadas para serem editadas em disco e realização de concertos). Estas atividades artísticas tinham como objetivo revitalizar a Marrabenta10. Os objetivos que nortearam a revitalização da marrabenta são: (i) o facto de este gênero musical estar a ser ameaçado por outros gêneros como rap, dzukuta-pandza e Pop; (ii) o facto de muitos músicos - sobretudo vanguardistas da marrabenta - e que tocam esse estilo, terem hibernado artisticamente; (iii) o facto de os fazedores da marrabenta não editarem discos e serem pouco convidados para participarem em concertos musicais; e (iv) o facto de se pretender que a marrabenta se torne uma música de identidade nacional.

Para se alcançarem os objetivos anteriormente referidos, os músicos pegaram as suas guitarras e colocaram as suas vozes nas diversas sonoridades que os produtores musicais - como Nelton Miranda e N’Star - conceberam. Stewart Sukuma, que conduzia a luta da revitalização da Marrabenta, gravou duas músicas, xitxuketa marrabenta e “Dizem que vale a pena casar”, que se popularizaram com comodidade, dada a mobilidade e destreza que este artista tem em divulgar as músicas nos circuitos nacionais de divulgação da música moçambicana (televisão e jornais culturais).

Contudo, Stewart Sukuma foi largamente criticado pelos puristas da Marrabenta, em que os argumentos das críticas gravitavam à volta dos seguintes aspectos: (i) Stewart Sukuma distanciou-se da “genuína” Marrabenta ao cantar em Português nas duas músicas e não em xichangana/xirhonga, conforme a prática e a tradição da Marrabenta; (ii) como é possível um indivíduo que é de Norte de Moçambique, cujas línguas maternas são emakhuwa e echuwabo ou yao, se preocupar em defender musicalmente o que não faz parte da sua cultura e da sua zona de origem; iii) Stewart Sukuma é alienado cultural e é avesso a moçambicanidade, por isso, cantou essas músicas em Português para “subjugar espiritualmente” as línguas autóctones e perpetuar a “alienação colonial cultural”11; e (iv) ele faz isso para “aparecer” como nacionalista porque esta a “bater na rocha”12. Como se pode perceber, esses argumentos e críticas oscilam entre o tribalismo e a necessidade de perpetuação “autêntica” da Marrabenta: cantar nas línguas do Sul de Moçambique, principalmente em xichangana e xirhonga, e não em português. Porém, os do “pensamento evolucionista”, na música moçambicana, viram no Stewart Sukuma uma ação artística nacionalista e que, se possível, a marrabenta pode ser cantada numa LWC, como forma de internacionalizar13 mais o estilo marrabenta.

Com este ato de revitalização da marrabenta, mesmo que de modo subjectivo, é possível perceber na música contemporânea que a “batalha das línguas” caminha de forma análoga com a batalha musical, isto é a “questão linguística” não é indissociável da “questão musical”. Sem sobressaltos, uma realidade é certa: há um movimento sociocultural e quiçá político que pretende, realmente, que a marrabenta se torne a música de identidade nacional moçambicana e de unidade nacional, igual ao que se fez, politicamente, com a língua portuguesa14.

Finalmente, concordo com os argumentos da preservação e revitalização dos patrimônios culturais do país. Faço parte do grupo daqueles que acreditam que devemos ser “genuínos” musicalmente, mas devemos nos abrir a outras realidades culturais do mundo contemporâneo. Porém, mais do que fomentar batalhas - linguísticas e musicais -, devemos articular essas duas realidades com a finalidade de alavancar a música moçambicana e inseri-la de modo sazonado, no mundo globalizado. Acredito na boa articulação da questão linguística e da questão musical, pois se essa convergência se efetivar aí estarão criadas as condições para a fecundação da moçambicanidade através da arte musical.

Considerações Finais

Não constitui dúvida para nenhum indivíduo da afinidade intrínseca que existe entre o uso das línguas autóctones e a música moçambicana, quando o reclame é a preservação da tradição e a construção de uma identidade nacional. Também, jamais constituirá incerteza para nenhuma pessoa que a música moçambicana, para além das línguas autóctones, faz o bom uso das LWC, de forma que os músicos, ao usarem as “línguas internacionais”, vão ao encontro de outras culturas. As LWC [Language of Wider Communication] ou “línguas de comunicação mais ampla” ou “línguas internacionais”, sejam elas de origem europeia ou asiática - embora estas últimas, sejam usadas em menor escala por estarem ligadas a actividades comerciais e religiosas -, mais do que simples idiomas de comunicação se tornaram plataformas de manifestação da arte e de catarse humana.

O uso das LWC como o inglês, o francês e o português (ainda que esta língua esteja naturalizada em Moçambique (cf. Lopes, 1997)) faz com que os músicos usem a língua, em conexão com a música, e a arrostem como uma mercadoria. A língua - de modo particular uma LWC -, para o músico, é um elemento que abre portas para outros universos de reconhecimento e auto-realização espiritual e, sobretudo, realização material. Esta visão artística faz com que sobrevenha uma “batalha das línguas” (Lopes, 2004) entre as LWC e as línguas autóctones ou no seio das LWC, o que se torna uma força motriz para que se desenvolva uma batalha das músicas ou uma batalha musical, conforme sugeri na terceira parte do presente capítulo.

Apesar de não ter feito referência, neste capítulo, ao processo inverso15 - cantar músicas estrangeiras em línguas autóctones, terminarei com assaz deleite, dando exemplos de um grupo de Rap (Xitiku Ni Mbaula) e de um músico de Blues (Eloy Vasco), que se caracterizam por adaptar o procedimento recíproco. Os rappers (Dingizwaio e S.Gee) que fazem parte do grupo de Rap Xitiku Ni Mbaula cantam em línguas autóctones do Sul de Moçambique: xichangana, xirhonga, cicopi. O músico Eloy Vasco16 é célebre e eminente em Moçambique por cantar Blues em xichangana/xirhonga. Se o rap e blues já não são gêneros cantados,somente numa LWC, mas cantados em línguas autóctones, o que dizer dessa nova realidade artística e musical que vai ganhando o seu espaço na música moçambicana?

Referências

1. Bahule Cremildo. "Raça, etnia e estereótipos na construção de uma identidade artística no pensamento moçambicano". In: Serra, Carlos (Coord.). A construção social do outro: perspectivas cruzadas sobre estrangeiros e moçambicanos. Maputo: Imprensa Universitária, 2010, p. 90-113. [ Links ]

2. Dias Hildizina. As desigualdades sociolinguísticas e o fracasso escolar: em direcção a uma prática escolar libertadora. Maputo: Texto Editores, 2006. [ Links ]

3. Ngoenha Severino Elias. O retorno do bom selvagem: uma perspectiva filosófica-africana do problema ecológico, Porto: Edições Salesianos, 2002. [ Links ]

4. Firmino Gregório. A "questão linguística" na África pós-colonial: o caso do português e das línguas autóctones em Moçambique. Maputo: Texto Editores, 2005. [ Links ]

5. Fishman Joshua.The sociology of language. The Hauge: Monton, 1968. [ Links ]

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7. Haine Bernd. "Language policy in Africa". In: Weinstein, B. (Ed.). Language policy an political development. New Jersey: Ablex Publishing Corporation, 1990, p. 167-184. [ Links ]

8. Haine Bernd. "Language policy in Africa". In: Herbert, R. K. (Ed.). Language and society in Africa. Johannesburg: Witwatersrand University Press, 1992. [ Links ]

9. Lopes Armando J. Política linguística: princípios e problemas. Maputo: Livraria Universitária, 1997. [ Links ]

10. Lopes Armando. A batalha das línguas: perspectivas sobre linguística aplicada em Moçambique. Maputo: Imprensa Universitária, 2004. [ Links ]

11. Schmied Joseph. English in Africa: an introduction. Nova Iorque: Longman,1991. [ Links ]

1. LWC: Languages of Wider Communication, ou “línguas de comunicação mais ampla”.

2. Sem intenção de participar na discussão dos “abolicionistas” e dos “adaptacionistas”, recomendo a leitura do Capítulo V de Firmino (2005), no qual o autor expõe e explica com nitidez os contornos do uso das LWC em África e, sobretudo, em Moçambique, para o caso de Português.

3. Há uma, generalizada, tendência das reflexões académicas - europeias e africanas - sobre a política e planificação linguística, em África, apontarem, somente, para o uso no “continente, berço da humanidade”, das línguas europeias [Português, Inglês, Francês, Alemão e Espanhol], embora as duas últimas não tenham o peso das três primeiras. Contudo, os diversos académicos e cientistas e, sobretudo, os linguistas que se preocupam com a política linguística em África dão pouca importância ao uso, no continente negro, das línguas de origem asiática como Árabe, Gujurati, Urdu, que são línguas que têm uma grande influência, numa percentagem considerável, sobre muitos países africanos que tem como religião o Islão e o Hinduísmo. A língua nesses países, deve ser perspectivada, pelos linguistas e académicos, em conexão com dois elementos: História e Religião.

4. José Mateus Kathupa fez doutoramento em Linguística na Inglaterra. Quando vivia e estudava nesse país europeu, acolheu em algumas ocasiões em sua casa o grupo Eyuphuro, segundo um diálogo amigável que tive com Mussá Abdala (percussionista de Eyuphuro). José Mateus Kathupa exerceu o cargo de Ministro da Cultura, Juventude e Desportos, na governação do presidente Joaquim Chissano, para além de ter sido professor universitário na Universidade Eduardo Mondlane, na área de Linguística Bantu.

5. Madjermanes é um grupo de ex-trabalhadores e ex-regressados da ex-RDA (República Democrática Alemã). Actualmente, é um grupo marginalizado, político e economicamente, pelo Estado moçambicano, pois alguns deles ainda não receberam o dinheiro das suas pensões, equivalente ao período que trabalharam na ex-RDA, antes de regressar para Moçambique. Trata-se de uma alcunha derivada da palavra German (Alemão, em língua portuguesa), daí Madjerman, em Xichangana que significa “indivíduo regressado de German (Alemanha)”.

6. O Islão é uma das religiões que existe em Moçambique e parece-me que tem maior número de fiéis do que o Cristianismo, segundo as estatísticas oficiais do Instituto Nacional de Estatísticas [ano de 2009] e segundo o número de mesquitas que existem no país. E ainda: a comunidade muçulmana é tão influente em Moçambique por causa da sua veia comercial que, nas datas em que os muçulmanos celebram as suas festas religiosas, uma parte do comércio nacional fica estagnado, pois os principais centros comercias fecham, por estes serem, na sua maioria, de indivíduos que professam o Islão.

7. É preciso não esquecer que os primeiros anos após a independência, o governo da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) ainda mantinha a ideologia de proibição dessas línguas - autóctones - em favor do Português. Tempos depois, o governo da FRELIMO reconheceu que as línguas autóctones são importantes e criou, segundo Dias, uma “política de não proibir o seu uso e de encorajar e promovê-las, o que criou nos cidadãos uma atitude aberta e de respeito em relação às línguas dos outros grupos étnicos, bem como desenvolveu o orgulho em relação a estas línguas, o que pode ter contribuído em grande medida para o reforço de Unidade Nacional” (Dias, 2006, p. 80).

8. Os músicos, diferente dos escritores, conseguiram impor os seus ideais nacionalistas usando as línguas autóctones. Os escritores escreveram sobre o nacionalismo moçambicano, mas, usando uma língua europeia: o Português. A esse respeito, a literatura moçambicana encontrou-se e centrou-se na língua do ex-colonizador e preocupou-se apenas em denunciar a injustiça da sua condição de cultura subalterna. Enquanto a música moçambicana denunciou as injustiças coloniais, fez justiça às histórias populares e preocupou-se - cantando - a sabedoria que existe nas histórias populares, usando as línguas maternas que são iminentes à sabedoria moçambicana. Acredito que este aspecto devia ser reflectido na academia moçambicana, para se perceber as reais motivações dos escritores e dos músicos e a sua, respectiva, visão do nacionalismo em Moçambique.

9. Em Moçambique, nunca houve mortes por causa de uma batalha entre rappers. Apenas há insultos quanto aos conteúdos musicais dirigidos a um determinado artista/rapper. Porém, já houve uma batalha física entre dois rappers - Flash Enciclopédia do Micro 2 e Duas Caras (Kara Boss) da GPro em frente do África Bar, uma das casas de espectáculos nocturnas, cita na Av. 24 de Julho, Cidade de Maputo, ao lado de Cine-África. As batalhas entre os rappers são intituladas, na linguagem do Rap, de beffs.

10. Nessa lógica de revitalização da Marrabenta, esse grupo de músicos declarou o ano 2010 como sendo o “Ano da Marrabenta”.

11. As frases “subjugação espiritual” e “alienação colonial” são da utoria de Ngũngi Wa Thiong`o (1987) e estão aqui colocadas para enfatizar os argumentos que criticaram Stewart Sukuma por ter cantado Marrabenta em língua portuguesa.

12. “Bater na rocha” é uma frase que é usada para caracterizar os músicos cujas composições não têm sucesso e não são largamente divulgadas nos meios de comunicação social e que os mesmos músicos não são convidados para concertos públicos. Teria sido esta situação de S. Sukuma para ter tido a ideia de revitalizar a Marrabenta? De facto, há uma tendência de muitos músicos moçambicanos, principalmente vindos de fora da Cidade de Maputo, que quando chegam à Capital do país, para serem aceites, musicalmente, e para não “baterem na rocha”, se sentem “obrigados” a tocar a Marrabenta, Dzukuta-Pandza ou qualquer outro género musical do Sul de Moçambique. (Este é, também, um dos assuntos que deve ser aprofundado e reflectido para se ter um raciocínio verídico e não especulativo).

13. Será que os géneros musicais como Kwella da África do Sul, o Kwassa-Kwassa da República Democrática do Congo e o Makossa dos Camarões para se internacionalizar tiveram de serem cantadas numa LWC?

14. Cf., Bahule, C. (2010). “Raça, Etnia e Estereótipos na Construção de Uma Identidade Artística no Pensamento Moçambicano”. In: Carlos Serra (Coord.). A Construção Social do Outro: Perspectivas Cruzadas Sobre Estrangeiros em Moçambicanos. Maputo: Imprensa Universitária

15. Se o processo comum é fazer música moçambicana usando línguas estrangeiras, creio que o processo inverso, inovador, estará em fazer músicas, denominadas estrangeiras, usando línguas autóctones.

16. Eloy Vasco para além de ser um Blues-man, se patenteia como um protótipo moçambicano do lendário Elvis Presley, no que concerne à indumentária e ao formato do cabelo. Uma das músicas famosas de Eloy Vasco é Txova nyolo (em Xichangana que da tradução contextual para a língua portuguesa equivale a “puxar a carroça”), na qual ele apela ao presidente moçambicano Armando Guebuza para que com muita coragem e determinação não deixe que aconteçam desmandos - do tipo “deixa andar” - em Moçambique. Txova nyolo é uma música que apela ao presidente para acabar com os desmandos que fazem o país ficar pobre e faz com que as pessoas como Carlos Cardoso, Siba-Siba Macuácua acabem silenciadas por dizerem a verdade para fortalecer a Nação moçambicana. Esta atitude de Eloy Vasco, de cantar Blues em Xichangana/Xironga, é defendida por alguns elementos da sociedade como sendo uma postura patriótica, diferente de João Paulo que interpretava Blues e Jazz em inglês. Sem entrar em defesa de um dos lados, acredito que os dois Blues-mans (Eloy Vasco e João Paulo) são de contextos diferentes, com influências diferentes e que convergem no Blues como forma de dar mais alento à música moçambicana.

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