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Revista Internacional em Língua Portuguesa

versão impressa ISSN 2182-4452versão On-line ISSN 2184-2043

RILP vol.36  Lisboa dez. 2019  Epub 29-Jul-2021

https://doi.org/10.31492/2184-2043.rilp2019.36/pp.19-37 

Artigo Original

O ideário naturalista do século XIX. Perspectiva teórica na representação em “Zambeziana-Cenas da Vida Colonial”, de Emílio de San Bruno

Lucério Sarmento Gundane1 

1UP-Maxixe, Faculdade de Ciências de Linguagem, Comunicação e Artes, Moçambique.


Resumo

O presente ensaio integrado na história literária pretende descrever as principais linhas temáti- cas do naturalismo que podem ser associadas às personagens representadas em Zambeziana-Cenas da Vida Colonial, de Emílio de San Bruno. O romance foi publicado em 1927 e reeditado em 1999 pelo Arquivo Histórico de Moçambique e enquadra-se na fase exótica da literatura colonial, tradu- zindo, em muitos dos seus segmentos descritivos, o deslumbramento que a descoberta do ‘Outro’ provoca no espírito dos europeus. É importante reiterar que a literatura colonial portuguesa domi- nada sobretudo pela representação de África em termos simbólicos e ideológicos teve o seu início no século XX, conhecendo a sua vitalidade assinalável com o advento do Estado Novo, em 1926. Tendo a narratologia como área teórica, a partir deste texto colonial demonstrou-se que não só se deve encarar o exotismo (sob o ponto de vista estético e ideológico) como um factor subjacente à literatura colonial, mas também foi possível descobrir outras tendências literárias a ela associadas como é o caso da estética do naturalismo. Concluiu-se que a sexualidade tal como era concebida pelo naturalismo é o elemento estruturador da representação de N’fuca.

Palavras-chave: código temático; imagem; naturalismo; representação

Abstract

The present paper integrated in literary historic describes the main themes of naturalism that can be associated to representation in Zambeziana-Cenas da Vida Colonial, of Emílio de San Bruno. The romance was published in 1927 and reedited in 1999 by Mozambique Historic Archive. The romance can be situated in the exotic stage of colonial literature in Mozambique, traduced in all segments descriptives, the excitation of European spirit during the discover of Africa. Is important to refer that the Portuguese colonial literature ruled particularly by representation of African symbology and ideology started in century XX, knowing her assignable vitality with the adventure of New Estate, in 1926. Working in narratology as theoretical area, from this colonial text was demonstrated that not only should seen the exotism as factor to the colonial literature, but also was possible to discover other literary tendencies associated to the her, as is the case of the naturalism. It was ended that the sexuality just as was conceived by the naturalism is the principal element of N’fuca representation.

Keywords: naturalism, representation, image; thematic Code

1. Introdução

O estudo enquadra-se na literatura colonial, tendo como perspectiva teórica - a narratologia na estética do naturalismo e pretende descrever as linhas temáticas

do naturalismo que são associadas às personagens representadas1 em “Zambezia- na-Cenas da Vida Colonial”, de Emílio de San Bruno. Tendo sido publicado, pela primeira vez, em 1927 e reeditado em 1999 pelo Arquivo Histórico de Moçam- bique, o romance integra-se na primeira fase da literatura colonial, a exótica, tra- duzindo, em muitos dos seus segmentos descritivos, o deslumbramento que a descoberta do Outro provoca no espírito dos europeus.

Assim, a realização deste estudo justifica-se por duas razões: a primeira, sob o ponto de vista histórico, por ser um romance integrado num universo literário (incluindo, p. e., poesia, narrativas de viagens, relatos de missionários, diários, etc.) menos explorado, talvez pela própria designação, ‘literatura colonial’ e o próprio termo ‘colonial’ ligado a questões ideológicas; por esse facto, achou-se fundamental trazer à luz um estudo que visa proporcionar uma atitude crítica do romance com enfoque nas estratégias técnico-literárias. A segunda, analisadas as abordagens feitas em torno dele, inclusive as duas notas introdutórias que o precedem, designadamente, a introdução histórica e o comentário crítico de José Capela e Fátima Mendonça, respectivamente, é considerado objecto da investi- gação visto que apresenta aspectos intrínsecos ligados às tendências estéticas do naturalismo, movimento cultural francês do século XIX.

Relativamente aos objectivos, no estudo, mostrar-se-á a relação entre as cate- gorias diegéticas e discursivas na configuração de elementos representados na diegese. Será, igualmente, apresentada a relação que as personagens estabele- cem entre si em relação a pequenas parcelas temáticas que as revestem. Por fim, demonstrar-se-á o papel desempenhado pela N’fuca (uma vez que constitui o núcleo através do qual se configuram funcionalmente as outras personagens) e pelos seus antagonistas (Sousa, Teixeira, Lucena) na construção do sentido geral da diegese.

Atendendo ao âmbito do estudo tal como é perspectivado nos objectivos e, pretendendo fazer uma abordagem histórico-literária, propõe-se, como problema, a seguinte questão de partida: de que forma a concepção do ideário naturalista se associa à representação das personagens em “Zambeziana-Cenas da Vida Colo- nial”, de Emílio de San Bruno?

No que cerne à metodologia, optou-se pela pesquisa documental através do uso sistemático de materiais impressos e de toda informação proveniente da comunicação escrita, quer fontes de natureza primária como, p. e., “A Zambe- ziana” e “Nana”, de Emílio de San Bruno e Emílio Zola, respectivamente; quer secundárias, fontes através das quais se problematizou a razão do ser da literatura colonial. A análise centrou-se no método filológico, já que se precisava do corpus da “Zambeziana” que permitisse testar a viabilidade e aplicabilidade das hipóte- ses que ostentam a pesquisa. Como forma de perceber a essência da representa- ção na estética do naturalismo, optou-se pelo método comparativo2 que também permitiu comparar as estratégias através das quais os autores encaram a sexuali- dade, a animalidade, entre outras pequenas parcelas temáticas em “Zambeziana” e em “Nana”. A escolha destas duas obras, muito embora marquem contextos, épocas e posicionamentos bem diferentes, coincidiu, naturalmente, pela existên- cia de diversas vozes ‘idênticas’ que concorrem à sua intrínseca análise textual.

Espera-se, assim, que os resultados da pesquisa permitam que se encare o exo- tismo estético e ideológico não só como elementos subjacentes à literatura colo- nial tal como o defendem vários autores, mas também, a partir desta análise, des- cobrir aspectos associados a diversas tendências literárias (p. e., o naturalismo).

2. Literatura colonial: aspectos intrínsecos e suas peculiaridades

“[…] Atrás, os culotes deixavam ainda entrever a ponta da camisa. E, com os braços e os ombros nus, a ponta dos seios erguida, na sua adorável juventude de loura opulenta de carnes, continuava a segurar a cortina, como para a puxar novamente ao menor sobressalto […]”, in: Emílio Zola, “Nana”. p. 96.

Mata (1993, p. 92/3) refere que o conceito ‘colonial’ não é meramente polí- tico, mas sim, civilizacional. Para Mata, a dimensão colonial interfere na orga- nização política, jurista, económica e social; condiciona e plasma toda a mundi- vidência do povo colonizado, forjando uma ideologia colonial: a sua filosofia, as suas manifestações, estéticas, o seu imaginário, o seu código moral e ético, enfim, o seu sistema civilizacional. Por seu turno, Laranjeira (1995, p. 26) vê o conceito ‘literatura colonial’ como sendo diferente da sua expressão no Brasil. Para este autor, em África, significa uma literatura escrita e publicada na maioria esmaga-

dora por portugueses numa perspectiva de exotismo, evasionismo, preconceito racial e reiteração colonial e colonialista. A visão de mundo, o foco narrativo e as personagens principais eram brancos, colonos ou viajantes e, quando integrados os negros, estes eram avaliados de modo exógeno, folclórico e etnocêntrico, sem profundidade cultural, psicológica, sentimental e intelectual.

Segundo Noa (1999, p. 59), falar hoje em literatura colonial3 constitui, sem sombra de dúvida, um empreendimento verdadeiramente delicado com o seu quid de temerário, isto porque há um enorme e generalizado desconhecimento do que seja a literatura colonial, mesmo para os que aparentemente manifestam algum conhecimento, rapidamente se verifica que assentam em bases precárias, e que os levam erroneamente a identificar essa literatura com toda a literatura que se fazia nas antigas colónias.

Brookshaw (2000, p. 36) identifica um dos traços característicos da literatura colonial como, por exemplo, o facto de os seus heróis terem que conciliar o seu desejo de aventura, o que implica também um certo fascínio pela nova realidade cultural em que se encontravam e a sua capacidade de preservar a sua própria identidade cultural, a sua autoridade como representantes do poder imperial. Paralelamente ao comentário de Chapmam (1996, p. 147) em torno das litera- turas da África Austral (p. e., Moçambique, Angola, Malawi), são identificados certos traços da literatura colonial tais como; a convicção de que a civilização está centralizada na Europa; que a vida colonial constitui um exílio temporário e que a paisagem e os indígenas são exóticos e exploráveis.

De acordo com Ferreira (1997), a literatura colonial define-se essencialmente pelo facto de o centro do universo narrativo ou poético se vincular ao homem europeu e não ao homem africano. No seu contexto, o homem branco é elevado à categoria de herói mítico, o desbravador das terras inóspitas e portador de uma cultura superior.

Há, pois, que ler a literatura colonial não com um sentido permanente de des- truição, de terrorismo leitural, que só denotam insegurança e intolerância do lei- tor/crítico, tão contrárias ao espírito científico, mas com um sentido de pesquisa e de aprendizagem, buscando nela elementos e factores causativos e germinativos para a consciência literária nacional, para a independência intelectual que, nas colónias, surge sempre muito antes da independência política, (cf. Trigo, 1987,

p. 147) apud (Noa, op. cit., p. 60).

Entretanto, tal como refere Mendonça (1999, p. xii/xxii), as narrativas colo- niais são accionadas por narradores posicionados a partir de um espaço empírico, a colónia, com a qual o narrador e as personagens se identificam, manietados pelo discurso legitimador da empresa colonial, obedecendo a estereótipos reco- nhecíveis, desde a ‘superioridade’ europeia ao louvor da sua acção ‘civilizadora’, justificação maior da escravatura e da colonização. De modo geral, trata-se de uma escrita com um discurso que se distancia da literatura exótica pela relação que estabelece entre o sujeito e o lugar a partir do qual se manifesta. O narrador posiciona-se a partir de um espaço empírico em que se insere. Pelo contrário, na exótica, o narrador fala de uma realidade que lhe é estranha e à qual adere pela consciência de uma alteridade que o obriga a reconhecer o Outro.

Avançada aqui a ideia do exótico por Mendonça (op. cit.), numa intervenção mais profunda sobre este assunto, Mouralis (1982, p. 74/5) refere que a literatura exótica deve ser considerada, pelo menos em princípio, i. é., independentemente da forma e da qualidade desse exotismo, como o começo de uma subversão deste, já que, desde logo, se torna possível a utilização de um outro sistema de referên- cia. A paisagem exótica vai desempenhar um certo número de funções, cada uma das quais implicará senão uma filosofia, uma direcção ideológica, caracterizando-

-se como um esforço para introduzir, no campo literário, um outro cenário natural além do que, até então, servia de enquadramento às obras e cujos cânones tinham sido fixados pela tradição.

Nesta linha de ideias, estudo fica assente na abordagem de Mouralis (op. cit.), ao se considerar a existência, por um lado, de uma literatura exótica (que veicula um certo número de estereótipos que se resumem na noção vaga e, além disso, muito pouco geográfico de trópicos) e, por outro lado, a colonial, destacando-se, no primeiro caso, as primeiras obras dos escritores europeus recém-chegados às colónias.

Após esta discussão, pode-se depreender que falar da literatura colonial implica considerar a representação do ‘Outro’, a partir de um discurso legitima- dor colonial, ‘Eu’, isto é, uma literatura que é produzida no âmbito da presença das potências imperialistas em África, traduzindo-se, de certa forma, a valoriza- ção de uma cultura e de uma civilização em detrimento da outra.

3. O impacto do Ocidente na motivação, configuração e afirmação da literatura colonial em África, particularmente em Moçambique

Tal como sublinha Said (1990, p. 210/11), o europeu, no que podia dizer sobre o Oriente, era consequentemente um racista, um imperialista e, quase totalmente um etnocentrista. Repare-se que as (3) características aqui avançadas por Said,

com motivações culturais, políticas e ideológicas, atravessaram praticamente todo o texto colonial. Ao se concordar com esta ideia, em “Zambeziana” é evi- dente, no percurso de Lucena, Teixeira e Sousa, a tendência em que o branco representa uma ideia e uma realidade que implicam a sua posição ponderada em relação ao mundo negro. É natural nas colónias falar de um estilo de vida de acordo com um código de regulamentos fundamentados pelo estado colonial (p. e., a vida quotidiana dos dois tenentes).

Fazer uma análise do Orientalismo significa enfatizar a evidência que, de modo algum, é invisível de tais representações como representações, e não como descrições ‘naturais’ do Oriente. Essa evidência pode ser encontrada não só no chamado texto verdadeiro (história, análises filológicas, tratados políticos), como também no texto abertamente artístico (claramente imaginativo); o que se deve procurar são as figuras de estilo, de linguagem, os cenários, os mecanismos nar- rativos, circunstâncias sociais e teóricas, e não a correcção da representação nem a sua fidelidade, (Said, op. cit., p. 32/33).

Edward Said privilegiava a literatura inglesa e francesa, dando especial aten- ção ao Oriente Médio e ignorava a existência de uma tradição orientalista na lite- ratura portuguesa, e se o estudioso palestiniano menciona a presença portuguesa no Oriente, limita-se ao período hegemónico de Portugal, ou seja, o século XVI4. Buscando fundamentos na teoria de Said como forma de perceber a represen- tação exótica do Oriente pelos europeus já no contexto africano, especificamente nas colónias portuguesas (Moçambique, Angola, Cabo Verde, etc.), arquivos his- tóricos dão a entender que este período começa exactamente com a expansão portuguesa à África no século XV (1498), tendo ganho maior ímpeto depois da Conferência de Berlim em (1884-1985) após a discussão sobre a partilha oficial pelos países africanos. Neste contexto, convém reconhecer que as orientações políticas e ideológicas sobre a colonização no Oriente transpostas para a visão de África podem aparecer, em primeiro lugar, como resultado do choque brutal de duas civilizações e/ou motivações culturais diferentes (europeia e africana) concebidas nas suas realizações materiais e na negação de uma cultura pela outra,

o que facultará à literatura colonial o reflexo de tais perturbações.

4. Uma abordagem em torno da “Zambezina”: às análises textuais

Como lembra Capela (1999, p. vi/vii), a acção em “Zambeziana” tem lugar na vila de Quelimane, capital do antigo distrito e actual província da Zambé- zia, sendo evidentes, no romance, sinais que mostram que a acção é baseada no

período de transição do sistema dominial para o capitalismo das companhias de plantação (i. e., período de transição do feudalismo para o capitalismo). Persona- gens como, Sousa, Guilherme de Carvalho e Brás Lobato são, em geral, figuras da vida real, ou seja, são personagens que representam portugueses que mais se destacaram durante o governo de Azevedo Coutinho tais como tenente João Pinto, Gago Coutinho e D. Pedro de Almeida, respectivamente.

Para Brookshaw (op. cit., 38), em “Zambeziana”, Paulo é mais observador das acções dos ‘outros’ do que participante no drama da história. Representa o pro- tótipo de um bom colonial já que não se rende perante atracções que o poderiam comprometer nas suas funções profissionais.

Barros (2005, p. 30/2) refere-se ao facto de a mulher negra em “Zambeziana” apresentar características que a remetem à animalidade, ou seja, há uma associa- ção entre a personalidade e a fisionomia dos africanos aos animais e à terra. Por seu lado, refere-se à existência de uma mulher vingativa e violenta, uma vez que ‘N’fuca possuía uma cobra venenosa por meio da qual tencionava matar Sousa. Associando a ideia da vingança e da animalidade, ambas consideradas por Barros à ideia da sexualidade como elementos ideológicos subjacentes à concepção do naturalismo, Mendonça (op. cit: xix) encara N’fuca, naturalmente representada como sensual, lasciva, misteriosa, poderosa e instintiva. Para esta autora, N’fuca desempenha um papel não de objecto sexual, nem de fonte de prazer tal como a concebe Barros, mas sim, de sujeito activo, portadora de um poder que a coloca num plano superior ao comum dos mortais.

Considerar o vício e a sexualidade como elementos que suportam a represen- tação de personagens em “Zambeziana”, para Said (op. cit., p. 315/6), a sociedade árabe é representada em termos quase totalmente negativos e passivos. A repre- sentação é um modo de tratar com a grande variedade e o poderio da diversidade árabe cuja fonte se não é intelectual e social, então é sexual e biológica. O tabu absolutamente inviolável no discurso orientalista é que essa mesma sexualidade nunca deve ser levada a sério aos árabes.

5. Representação/imagem: conceitualização

A representação remota, enquanto conceito a definir, à antiguidade clássica sobretudo às reflexões platónicas e aristotélicas sobre os procedimentos imita- tivos adoptados pelos discursos de índole estético-verbal (Reis e Lopes, 2004, p. 354).

À teoria de Platão (idealismo), considerava a ideia da coisa, a sua imagem como sendo uma projecção da mente. Aristóteles (reflectindo sobre a noção de representação ligada à teoria da mimesis) considerava a imagem como sendo uma

aquisição pelos sentidos, a representação mental de um objecto real.5 Referindo-

-se à mimesis (imitação), exige uma distinção clara entre o modo de representa- ção dramática (p. e., na tragédia) e o modo de representação narrativa (p. e., na epopeia).

Por um lado, a representação deve ser entendida em termos dialécticos e não dicotómicos, o que significa que entre representante e representado existe uma relação de interdependência activa, de tal modo que o primeiro constitui uma entidade mediadora capaz de concretizar uma solução discursiva que, no plano da expressão artística, se afirme como substituto do segundo que continua ausente (Reis e Lopes (op. cit., p. 355). Por outro lado, para Bonati (1980, p. 24) apud Reis e Lopes (op. cit.), a representação é uma entidade cuja eficiente actualidade, paradoxalmente, coincide com o seu colapso. Quando uma representação funcio- nar como representação, ela não é entendida como representação, mas como o próprio objecto representado.

Uma vez que a imagem é entendida como sendo a reflexão entre Eu (repre- sentante) e Outro (representado), naturalmente, há, entre estes, uma relação de interdependência. A imagem funciona adequada e eficientemente só quando é confundida com o seu objecto. Outra perspectiva pertinente para o estudo encara a imagem como resultado de uma distância significativa entre duas realidades culturais, ou melhor, a imagem é a representação de uma realidade cultural estran- geira através da qual o indivíduo ou grupo que a elaboram revelam e traduzem o espaço ideológico no qual se situa (Machado e Pageaux, 1988, p. 58).

A problemática em torno do conceito imagem fica assente na perspectiva de Machado e Pageaux (1988), justamente porque para estes autores a imagem literária é um conjunto de ideias sobre o estrangeiro incluídas num processo de literarização e também de socialização (como elemento cultural que remete à sociedade). Como suporte teórico, em “Zambeziana” a imagem da mulher negra é apresentada de forma estereotipada, fruto da visão que o colonizador tinha do colonizado, pois, nessa época a mulher negra era vista e descrita a partir dos seus traços físicos, (Barros, op. cit., p. 9).

6. Narrador: do discurso à diegese

Tal como discutem Reis e Lopes (op. cit., p. 257/8) no seu Dicionário da Narratologia, a definição do narrador deve partir da distinção inequívoca relativa- mente ao conceito autor; entidade real e empírica e narrador; como invenção do autor, fazendo com que sejam projectadas nele certas atitudes ideológicas, éticas,

culturais, etc. Conforme Reis (1999, p. 354/5), o narrador é uma entidade fictícia a quem cabe a tarefa de enunciar o discurso como protagonista da comunicação literária cujo estatuto difere tanto do ponto de vista ontológico, como do ponto de vista funcional do estatuto de autor empírico. Por sua vez, possui uma função enunciativa que lhe permite postular a existência de um destinatário do acto nar- rativo que é o narratário.

O narrador tem a representação como função primária, i. e., de produzir intra- textualmente o universo diegético (personagens, acções, etc.), de organização e controlo das estruturas narrativas. Como função secundária e, não, necessaria- mente actualizada, cabe a ele a interpretação do mundo narrado (Aguiar e Silva, 1984, p. 759). Enquanto instância produtora do discurso, o narrador é hetero- diegético se não é co-referencial com nenhuma das personagens da diegese; por conseguinte, não participa na história narrada. Se, pelo contrário, é co-referen- cial com uma das personagens da diegese, participando na história narrada, este assume o papel de homodiegético. Também pode-se dar o facto de este ser co-re- ferencial com a protagonista do romance, daí a sua classificação como autodiegé- tico (Aguiar e Silva, op. cit., p. 761/2).

Tal como acontece com o narrador autodiegético, a situação narrativa ins- taurada pelo narrador homodiegético suscita leituras interessadas no recurso a códigos temporais e de focalização activados em tal situação narrativa (Reis e Lopes, op. cit., p. 259/266).

Segundo Tacca (1983, p. 62/4), em relação ao ponto de vista do narrador, há que ter em conta dois modos: (i) o narrador está fora dos acontecimentos nar- rados, referindo-se aos factos sem nenhuma alusão a si mesmo; (ii) o narrador participa nos acontecimentos narrados assumindo um papel protagónico, secun- dário, ou de um mero testemunho presencial dos factos, identificando-se com uma personagem. Dito isto, Tacca distancia-se das três categorias propostas tanto por Aguiar e Silva como por Reis e Lopes no que diz respeito à classificação do narrador enquanto entidade responsável pelo acto comunicativo numa diegese. É nesse sentido que parecem fundamentais as categorias propostas por Genette, à medida que se destaca Paulo em “Zambeziana” como narrador homodiegético; pois, convivendo com outras personagens no romance (Lucena, Sousa, Guerra, Teixeira, N’fuca, Braz, etc.), retira, destas, informações para construir os seus relatos através do seu raio de observação. Obviamente, este é caracterizado não só por um discurso romântico, como também se mostra seduzido por um mundo com o qual toma contacto pela primeira vez e pelo qual se deixa envolver, confere Mendonça (op. cit., p. xv).

Neste sentido, focalizar-se a atenção em “Zambeziana” como um romance naturalista, onde Paulo é observador externo a partir do qual são representadas as personagens, cabe a este observador facultar os dados tal como os observa, fixar o ponto de partida, estabelecer o terreno sólido sobre o qual vão movimentar-se as personagens e o desenrolar dos fenómenos (acções).

São, portanto estes e outros aspectos que podem religar o romance ao Natura- lismo e, efectivamente, há neste movimento o princípio da valorização dos factos observados e a crença no desenvolvimento de leis naturais que explicam o devir das sociedades e as transformações a que os homens estão sujeitos6.

7. Código temático: relação tema vs. motivo

Fazer uma análise semiótica virada para este código, para Reis (1992, p. 400) é preciso, primeiro, descrever as características e os factores que propiciam a sua constituição, começando por se confrontar com a necessidade de definir o con- ceito tema vs. motivo.

Machado e Pageaux (op. cit., p. 116) definem tema como um elemento cons- titutivo e explicativo do texto literário; elemento que ordena, gera e permite pro- duzir o texto, e motivo, um elemento a que se iria chamar acidental ou decorativo. Para estes autores, cabe ao tema a função estruturante e ao motivo tudo aquilo que precisamente não intervém no plano das estruturas, dos princípios organizadores do texto. De acordo com Coelho (1969, p. 332)7, o tema corresponde a uma ati- tude descritiva perante o texto, atitude de quem encara um poema não na dimen- são temporal, mas na dimensão do espaço, como realidade estática, estrutura de elementos sincrónicos.

Com os Formalistas Russos, o motivo constitui a mais pequena parcela temá- tica do texto, susceptível de imigrar de narrativa em narrativa, guardando sempre uma configuração reconhecível. Trata-se, pois, de elementos mínimos e inde- componíveis do material temático, susceptíveis de serem traduzidos através de uma proposição. Por seu turno, classificam-se em estáticos (os que traduzem uma situação, um estado, permitindo a descrição das personagens e do espaço físico ou social que as envolve), e em dinâmicos (os que traduzem a modificação de uma situação e correspondem sempre a uma acção das personagens (Reis e Lopes, op. cit., p. 242/3).

Seguindo a proposta de Aguiar e Silva (op. cit., p. 713), o motivo constitui uma entidade invariante pertencente ao plano ético, podendo ser definido como uma proposição que predica uma acção em relação a uma personagem. A aná- lise temática concebe os motivos como esquemas expressivos, frequentemente assimilados a um reportório de metáforas, que plasmam um determinado tema germinal (Reis e Lopes, op. cit., p. 242).

Contudo, partindo destes níveis de definição de tema e motivo, há que consi- dera-los como estruturas que asseguram o código temático, pertencentes não só ao sistema literário, mas também a outros domínios artísticos (p. ex., música, pin- tura, etc.) e, ainda que se manifestem de formas diferentes, na literatura, são asso- ciados às categorias narrativas (personagens, acção, espaço, tempo, etc.). Desta forma, o estudo assenta essencialmente nos princípios de Machado e Pageaux (op. cit.), visto que na sua abordagem se considera, p. e., a morte, o amor, o medo, a cidade, a guerra, o mar como temas universais8 aplicados à literatura, bem como a outras artes, ainda que a expressão literária mude de época literária para outra. Partindo desta breve orientação teórica, em “Zambeziana” reconhece-se a sexualidade e a animalidade como algumas das linhas temáticas do naturalismo. Todavia, há que entender o código temático naturalista como dependente de uma concepção determinista da existência que o leva a analisar o homem esvaziado de arbítrio individual, condicionado por forças materiais que o transcendem (vd. Reis, op. cit., p. 409). Efectivamente, o naturalismo é um movimento que associa o homem à natureza, ou seja, o homem age segundo o seu instinto; os naturalistas

vêem no comportamento do ser humano traços da sua natureza animal.

8. Uma leitura intra-textual e crítica da “Zambeziana”

Com um total de (307) páginas, divididas em (22) capítulos, “Zambeziana” apresenta duas partes: a primeira, em que as atenções de Paulo se centram no litoral através do percurso que faz da cidade da Beira até Lourenço Marques, e, a segunda, que constitui a diegese, propriamente dita, começa com a sua chegada a Quelimane até ao desenlace histórico. Em termos de conteúdo, Paulo, diante de uma nova realidade geográfica e cultural, com visões não, essencialmente euro- cêntricas, espanta-se pela Zambézia e, já conhecendo o Sousa, soubera que era amante de n’anha N’fuca com a qual tinha um filho (Niné). N’fuca, sedutora, devoradora de homens, vaidosa, violenta, etc., querendo vingar-se de Sousa, uma vez que a deixaria desprotegida, dois dias antes de o alferes viajar a Lisboa, ela sofre uma mordedura de uma cobra venenosa.

O texto é atravessado por uma linguagem simples acompanhada, nalguns casos, por intervenções retóricas. O discurso, também simples, é marcado por recursos estilísticos dos quais se destacam as figuras de pensamento (p. e., a interrogação, muito sugestiva na fala de Paulo, o autor dá realce ao seu lado admirador e encan- tador pela terra alheia) e de linguagem (p. e., tropos, pleonasmo). No entanto, N’fuca, quanto à composição, é uma personagem redonda, que, sendo protago- nista, desempenha um papel central na história; apresenta um discurso, compor- tamento e atitudes que mudam dependendo das circunstâncias; evolui ao longo de toda a narrativa o que lhe confere o seu carácter dinâmico uma vez comparada com outras personagens presentes no cenário diegético, tal como se pode ver:

“[…] Dona Rosário, fazendo uma cortesia à moda indígena, curvou-se, dobrou os joelhos, bateu as mãos levando-as depois cruzadas sobre o peito […]”, (Zamb. p. 116/7).

8.1. A dimensão temática: uma leitura da sexualidade

Apresentados os eixos que irão permitir descrever a forma através da qual a concepção naturalista se associa à representação das personagens em “Zambe- ziana”, neste quadro a análise vai incidir no percurso da protagonista, ou seja, encarar-se-á a sexualidade como o elemento estruturador de representação da N’fuca. Vejam-se os fragmentos:

“[…] era uma criatura esquisitamente bela. Um corpo de estátua graga, côr (sic) de nogueira encerada, com uns tons de vermelho desmaiado, escuros onde a claridade não chagava. […] Sentada sobre a caixa, com a perna traçada, o pé nu aparecia-lhe por debaixo do magnífico e caro de pano de costa que cingia justo o torso cheio; na ponta do pé, brincava-lhe nos dedos uma pequeníssima babucha monhé de fino entrançado de palha de bambu forrada por dentro da seda verde claro […]”, (Zamb. p. 118)

“[…] com uma pele lisa e fina da cor de um bronze fulvo em que se acobreassem as orelhas enfeitadas de grossos e pesados brincos de ourivesaria hindu, o queixo breve e redondinho, olhos negros de um azeviche […] braços belos como os de uma bela estatua […] seu andar ligeiro, deslizante, serpentino […]”, (ZAMB. p. 121)

Funcionalmente, a intervenção particular desta personagem joga um papel na associação que dela se faz a um ser sexual. Na verdade, o destaque da sexualidade de N’fuca resume-se não só na sua fisionomia, sua esbelteza corporal (morfolo- gia), mas também na sua dimensão sociocultural, ou por outras, é a sua realidade sociocultural que vai ditar a razão das suas perfeitas feições, sua psicologia, suas atitudes, comporta

mentos, enfim, o seu aspecto fascinante, encantador e pertur- bador. A manifestação sexual de N’fuca será, desta forma, explicada, biológica e naturalmente como resultado da sua miscigenação, isto é, nos episódios volta- dos à percepção da sua verdadeira origem, surgem enormes dificuldades relativas

à sua identificação; de origem africana, asiática e de descendência de brancos encontram-se enraizadas as suas perturbações sexuais. Veja-se:

“[…] Que ela, preta, o que se chama preta não é. […] Pois mulata também não é […] também não é branca! […] Será indiana! […] Também não é…n’ha Nfuca é zambeziana […] Paulo calou-se, não era branca, não era preta, não era mulata!…que diabo1? […]”, (Zamb. p. 113).

À sexualidade associada a vaidade, a esbelteza, a ira, etc., na imagem de N’fuca, através da focalização interna, o narrador projecta certos pormenores que a tornam uma autêntica Vénus. Com uma expressão corporal excitante nenhum homem a ela resistia, enlouquecia-os com as suas profundas lascivas, aliás, é o próprio Paulo (cf. Zamb: 117) que, à primeira vista, se apaixonara pelo brilho que nesta esplêndida feitura se reflectia:

“[…] uma fogosa compleição de mulher, encerrada no corpo provocante e sedutor de uma Vénus zam- beziana. ―Fisiologicamente, nada natural […]”, (Zamb. p. 166).

Neste estudo enfatiza-se a sexualidade como aspecto estruturador de repre- sentação de N’fuca. Face a diferentes funcionalidades e posicionamentos que ela apresenta e que a tornam uma personagem imprevisível, concordar-se com Machado e Pageaux (op. cit., p. 58) quando afirmam que a imagem é a represen- tação de uma realidade cultural estrangeira, porquanto a imagem sexual desta personagem se constrói a partir de um discurso ideológico legitimador (mulher e/ ou fêmea fatal, fina, fera, voragem, educada, etc.) criado pelo observador a que o raio de focalização se encontra, privilegiando sobretudo as associações ideológi- cas, assim como através da representação e exaltação do seu aspecto físico que se reflecte nas diversas esferas da sua inserção social.

Ainda no mesmo diapasão, embora sejam personagens (coadjuvantes) que, funcionalmente, desempenham um mero papel na diegese e que giram em torno da protagonista, reconhece-se a expressão sexual na representação das molecas que cuidavam da N’fuca:

“[…] Iam passando algumas mulheres e raparigas […] corpos esguios, de ancas delgadas […] ao corpo traziam enroladas fiadas de missanguinhas, cujas cores sobressaiam e ressaltavam sobre os pequenos seios das raparigas […], (Zamb. p. 85);

“[…] mostrando a brancura das belas fiadas de dentes que brilhavam entre os grossos beiços vermelhos no escuro retinto das faces, com as pupilas negras, de reflexos de polido azeviche, que rolavam rápidas nas alvas brancas levemente azuladas […]”, (Zamb. p. 115)

Em ambos os exemplos, à semelhança de N’fuca, dotado de uma perspec- tiva narrativa, o narrador representa estes traços, embora sejam superficiais e, materialmente observáveis, como elementos extrínsecos associados à beleza e ao

lado fascinante da Mulher zambeziana e que se exerciam sobre os homens que a rodeavam.

8.2. A dimensão temática: uma leitura da animalidade

A relevância em se colocar a animalidade bem como outras pequenas parcelas temáticas a ela associadas (vício, desejo, emoção, traição, etc.) como aspectos intrínsecos que permitam desenvolver uma leitura crítica da “Zambeziana” deve-

-se ao facto de estes constituírem elementos cruciais de representação de Tei- xeira, Lucena, Sousa e Brás Lobato. O discurso de Lucena mostra uma realidade que se substancia aos recém-chegados às colónias e que, estando numa terra que lhes é exótica e alheia sob o ponto de vista ideológico, são dominados particular- mente pelos seus instintos e seus desejos emocionais. A título de exemplo, Sousa, rivalizando-se com a protagonista e, antagonista, se se reiterar a sua relevância em relação a outras personagens, casado em Portugal, estando em Quelimane, procura alguém (N’fuca) que lhe agrade às suas emoções e às suas necessidades biológicas.

“[…] O portuguesinho chega com um sonho de ouro…e acaba por agricultar a terra; se dali a algum tempo cria interesses, arranja logo fêmea que lhe agrade aos sentidos […] -Tem havido muitos euro- peus assim, a até lhe podia citar nomes de camarada nossos, belos rapagões, cheios de mocidades ardente, e que deram por aqui em muzungos, e estão contentes […]” (Zamb. p. 65/6)

Em conformidade com os fundamentos de Said, nos fragmentos discursivos que se seguem são evidentes as consequências do cruzamento das duas cultu- ras no Oriente (brancos vs. negros) e constituem revelações que se enquadram e se encaixam na representação de Teixeira, Lucena e Brás Lobato. Assiste-

-se, neste caso, ao facto de estas personagens assentarem no pressuposto da sua superioridade cultural e civilizacional, enraizadas por uma retórica exótica marcada por descrições estereotipas sobre o Outro (negro). Além disso, são personagens dominadas por um tom que as aproxima ao vício sexual, à emoção e aos desejos.

“[…] Não hás-de ser tu que ma raptarás, tu já sabes isso…já sabes que ela nunca te quis. Ora meu amiguinho […] o Teixeira destravou um riso amarelo, franziu a testa pálida […]”, (Zamb. p. 101). “Mas você parece que sabe muita coisa a respeito dessa senhora? Perguntou o Brás Lobato, já inte- ressado, o olho gázeo, a garganta encharcada em transpiração […] E você ralado! Até já me está a criar água na boca - disse o Brás Lobato, arqueando mais o torso. - Quem me dera agora […]”, (Zamb. p. 147)

Associada, à animalidade, a traição, a cobardia e a crueldade, estas caracte- rísticas desempenham um papel imprescindível na representação de Sousa, Tei- xeira e Brás Lobato. Encarar Sousa como uma personagem plana dada a sua

mera complexidade relativamente à N’fuca, mediante esta mudança de atitudes, o narrador descreve-o, partindo dos seus valores morais, seu estado psicológico e espiritual que se resumem na sua maldade ligada, então, à sua natureza animal. A partir da voz do narrador, evidentemente nos fragmentos discursivos a res- peito de Brás Lobato vincula a sensação de um vício sexual inato determinado pelos seus desejos bestiais que se constroem e se configuram através do seu carácter agressivo e violento. É uma personagem que apresenta uma expressão moral bastante fraca que, fácil e emocionalmente se perturbava com a fisionomia

de N’fuca e da sexualidade da Bandiná.

“[…] preciso de uma mulher que me rale, que me esfole, que me chupe […] - vim para a África para me casar, pois que na Europa nunca fui capaz…[…]”, (Zamb. p. 146/58). “[…] - E eu nem ao menos a canja provei! Oh Sousa você desculpe…mas eu tinha conferenciar, hein! Com uma mulatinha bonita que andava na varanda toda saracotices […]”, (Zamb. p. 220).

Teixeira, antigo administrador do prazo Madal, é uma figura emblemática, também, psicologicamente emocionada. Sentindo-se perturbado ao lado de Sousa já que com ele mantinha uma relação não saudável por causa de N’fuca, acontece que ele a encarava como uma fêmea fatal, uma voragem e, acima de tudo, uma prostituta. A insegurança de N’fuca com Teixeira ganha maior relevo: após uma noite que passara junto dela, e, sentido-se feliz ao lado das suas fantasias sexuais, já sabendo da presença temporária de Sousa, considerava-se um verdadeiro herói e, por conseguinte, uma ocasião oportuna de possui-la:

“[…] Agora é que é talvez ocasião de eu aproveitar…para domar aquela menina bonita - disse o Tei- xeira casquinando uma gargalhada abafada […] o que tem mais graça é que o Sousa me pediu ontem para eu olhar pelo Niné. Então que diz a isto? […]”, (Zamb. p. 265)

8.3. Os papéis sexuais na representação da protagonista em “Zambeziana” e em “Nana”

Demonstrados, através de algumas estratégias técnico-literárias, na primeira parte da discussão de dados, os aspectos através dos quais a concepção do ideá- rio naturalista se associa à representação em “Zambeziana”, a seguir faz-se uma leitura comparativa que, de “Zambeziana” se pode estender para “Nana”, uma das obras mais conhecidas de Emílio Zola, expoente máximo do naturalismo, doutrinador, crítico e romancista francês do séc. XIX. Ainda que se reconheça o papel da ficcionalidade uma vez configuradas as conexões entre o mundo por Zola criado e o mundo real, “Nana”, marcada por uma multiplicidade na fala de personagens e uma linguagem bastante rica, é uma narrativa que reflecte a reali- dade da sociedade francesa durante a época do imperador Napoleão III, estando

projectados, num quadro realista, os abusos e a corrupção que marcavam sobre- tudo a classe nobre.

Fazer uma associação inter-textual implica considerar a prostituição como a principal parcela temática que atravessa ambas as obras. Nana, também uma per- sonagem redonda à semelhança de N’fuca, instalada no seu apartamento, descen- dente de uma família pobre, torna-se uma prostituta de luxo e atinge a riqueza à custa do seu comércio carnal. Com uma expressão sexual sedutora, atrai e ofere- ce-se aos desejos selvagens dos homens (p. e., ao conde Muffat, Fontan, Steiner, etc.) como objecto sexual e fonte de prazer, todavia por um único objectivo, o de atrair mais a riqueza. É um fenómeno comum e bem visível em “Zambeziana”, porque N’fuca, dotada de uma dimensão psicológica e uma consciência que a tor- navam uma fera, deita-se seja com o Sousa seja com o Teixeira, também por um objectivo, mas, neste caso, diferente do da Nana. A título exemplificativo, diante deste último, além de se comportar como uma escrava de sexo, o seu andar des- lizante, a multiplicidade de cores que nela se reflectiam, a sua forma e elegância, aproximavam-na a uma Vénus. Veja-se o excerto:

“[…] à luz velada do luar ela apareceu-me completamente nua, apenas com o tangueiro de decência, fina renda de missanguinhas multicolores presa em redor dos rins amplos por um cordãozinho de mis- sangas vermelhas e, na sua bela plástica tangarina foi-se ajoelhando até ficar na posição clássica duma Vénus Ática surpreendida no banho! Como é que esta mulher reproduzia inconscientemente poses de um requinte artístico! […]”, (Zamb. p. 174).

Contudo, diferentemente do foco em que N’fuca é projectada, através de uma focalização omnisciente o narrador descreve a imagem de Nana a partir dos seus ínfimos pormenores, penetrando, inclusive na sua consciência: Quão branca e natural como ela era, corpulenta e esbelta, com o seu lado sexual interpreta o papel de uma Vénus numa das peças de teatro, e, apoiada pelos seus movimentos exci- tantes, bem se encaixava dentro da personagem representada. Por razões acima expostas, é pertinente considerar o aspecto Vénus como uma das projecções da sexualidade e que constitui um denominador comum que aproxima N’fuca à Nana:

“[…] Nana vinha nua, com uma tranquila audácia, segura do poder da sua carne…os seus ombros redondos, os seus seios de amazona, cujos róseos mamilos se mantinham erguidos e regidos como lan- ças, as suas largas ancas, que se agitavam num voluptuoso balancear, as suas coxas de carne loura, todo o seu corpo, em suma se adivinhava, se via, sob o leve tecido […]”, (Nan. p. 25). “[…] por fim, traçou com cuidado o segundo pano mais rico, mais vistoso em cores, em redor do torso elegante, digno de uma Vénus moderna […]”, (Zamb. p. 188) .

À sexualidade associada a violência tal como demonstram os excertos que se seguem, é um aspecto comum que aproxima ambas as protagonistas e é bem evidente na sua inserção sexual e comunicativa:

“[…] apesar da impressão agradável…estremeci! Lembrou-me o vampirismo! A mulher ou o homem vampiro, que escolhe com paciência a vitima e, em ocasião propicia, adormece e lhe suga o sangue por uma pequena ferida no pé […]”, (Zamb. p. 175). “[…] Tu não trazes o dinheiro?…então, meu bacoco, volta para onde vens o mais depressa possível […] A noite, ele trouxe os dez mil francos. Nana estendeu-lhe os lábios e ele depôs neles um longo beijo, o que o consolou do seu angustioso […]”, (Nan. p. 284)

Note-se que a violência destas personagens lhes confere o seu autoritarismo na fala e nos seus caprichos sexuais (i. e., como devoradoras de homens). Com estes elementos, os autores mostram os factores que, à partida (olhando para a inclusão social destas personagens), influenciam nas atitudes e nos comporta- mentos a que o homem está sujeito, ou seja, é na concepção do naturalismo que decorrem o princípio e a ideia de o homem ser explicado e associado à sua natu- reza animal. Outro elemento imprescindível na descrição por se evidenciar na estruturação e representação das protagonistas é a vingança. Ora, N’fuca, com os seus caprichos imbecis sentia-se humilhada, desprotegida, oprimida moral e espiritualmente revoltada com o regresso de Sousa a Portugal. Tendo recebido o punhal de Zudá para a vingança, com o seu discurso optimista julgava-o ser suficiente para o efeito:

“[…] ―Ah! Isto não podia acabar assim! Nunca! […] Peno malungo! Peno malungo. Do céu depen- dia, e o feitiço falará […]”, (Zamb. p. 250/9). “[…] aposto cem luíses em como farei beijar a terra que eu piso a todos os que zombaram!…vou mostrar a Paris quem é a actriz principal! […]”, (Nan. p. 203)

No segundo fragmento, Nana com uma retórica e uma expressão convincen- tes notáveis na sua voz, fazendo o uso dos seus encantos perturbadores, vinga-se de Rose, sua rival e de todo o Paris através do novo contrato (no teatro de Bur- dinave) no qual desempenha o papel de uma mulher honesta o que lhe torna, com esta ascensão brusca, uma marquesa prostituta da alta sociedade. Dadas as motivações quer sociais quer ideológicas que estão por detrás de cada persona- gem, convém reconhecer que a vingança não permite desenvolver uma atitude comparativa: a partir da vingança Nana atinge os seus objectivos e, como se não bastasse, com a sua elegância requintada se torna uma mulher poderosa. É um facto que não se assiste à intervenção vingativa de N’fuca uma vez que não atinge os seus objectivos; contudo, seria interessante interpretar a vingança em dois sen- tidos opostos: por um lado actua de forma positiva (Nana) e, por outro de forma negativa (N’fuca).

Na verdade, são várias as possibilidades que permitem estabelecer uma asso- ciação inter-textual na busca das possíveis relações inter-discursivas que se inte- gram na dinâmica de ambas as protagonistas, mas, ao se centrar atenção a estes

últimos exemplos, há que reter alguns aspectos que aproximam N’fuca à Nana, por exemplo,

“[…] foi só então que eu percebi a causa da morte da N’fuca! A mordedura de uma cobra venenosís- sima […] As pretas agora agarravam-se num choro ao corpo de N’fuca […]”, (Zamb., p. 286). “[…] Nana morta! […] Fontan […] afivelara uma expressão de dor […] o quarto estava vazio. Um sopro de desespero elevou-se do bulevar, enfunando a cortina […]”, (Nan. p. 303/11).

A morte de N’fuca e Nana cria um efeito sensorial de tristeza e um clímax de tensão, pois, verifica-se que há uma tendência, na parte dos autores, à dra- matização do desenlace diegético, ou seja, acontecimentos dolorosos, criando uma sensação de terror e de desespero (p. e., a morte súbita de N’fuca e o estado em que se encontrava o cadáver de Nana). Convém frisar que a morte de Nana insere-se no naturalismo, enquanto N’fuca surge como uma heroína romântica de uma tragédia provocada pelo seu sacrifício. São suportes estéticos que marcam a essência destas obras e, tal como recorda Mendonça (op. cit., p. xix), trata-se de géneros que oscilam entre o drama naturalista e a tragédia.

Ao se focalizar a atenção em “Zambeziana” como um romance naturalista, tendo Paulo como observador externo a partir do qual são representadas as per- sonagens, cabe a este observador facultar os dados tal como os observa, fixar o ponto de partida, estabelecer o terreno sólido sobre o qual vão movimentar-se as personagens e o desenrolar dos fenómenos (acções). São, na essência, estes e outros aspectos que podem religar o romance ao Naturalismo, visto que há, neste movimento, o princípio da valorização dos factos observados e a crença no desenvolvimento de leis naturais que explicam o devir das sociedades e as trans- formações a que os homens estão sujeitos.

Conclusão

O trabalho pretendia identificar as linhas temáticas do naturalismo que são associadas às personagens representadas em “Zambeziana-Cenas da Vida Colo- nial”, de Emílio de San Bruno. Tendo a narratologia como área teórica, a partir deste texto colonial demonstrou-se que não só se deve encarar o exotismo (sob o ponto de vista estético e ideológico) como um factor subjacente à literatura colo- nial, mas também foi possível descobrir outras tendências literárias a ela associa- das como é o caso da estética do naturalismo. Concluiu-se que a sexualidade tal como era concebida pelo naturalismo é o elemento estruturador da representação de N’fuca. A intervenção sexual desta personagem resume-se tanto na sua fisio- nomia como nos seus traços socioculturais. Também, à animalidade, associado o instinto, o vício e o desejo (como parcelas temáticas), constituem elementos de representação de Teixeira, Lucena e Sousa.

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1. Em relação à representação/imagem, o estudo vai centrar-se na perspectiva de Machado e Pageaux (1988), porque, para estes autores, a imagem literária é um conjunto de ideias sobre o estrangeiro, incluídas num processo de literarização e também de socialização (como elemento cultural que remete à sociedade). Como suporte teórico, em “Zambeziana” a imagem da mulher negra é apresentada de forma estereotipada, fruto da visão que o colonizador tinha do colonizado, pois, nessa época a mulher negra era vista e descrita a partir dos seus traços físicos (Barros, 2005, p. 9).

2. A literatura comparada como disciplina autónoma e de maneira sistematizada surge no século XIX no contexto europeu, estabelecendo a relação de influência entre os autores e um instrumento para mostrar a força de um país e/ou cultura sobre outro (a). Mais tarde, sobretudo no século XX, já com uma nova perspectiva, através da teoria de intertextualidade de Júlia Kristeva (dialogismo), estética de recepção, estudo da tradução literária, a literatura comparada passou a comparar obras literárias, o estudo das relações entre literatura e outras artes, literatura e ciências sociais. É neste sentido que surgiu a ideia de se fazer uma comparação de “Zambe- ziana” com “Nana”, publicadas em 1927 (séc. XX) e 1879 (séc. XIX), respectivamente.

3. Para Abranches (1947, p. 3) apud Noa (op. cit., p. 61), entenda-se, por literatura colonial, a que pretende contar as reacções do branco perante o meio-ambiente do negro, i. e., toda essa espécie de descrição mais ou menos ficcionista, que introduz pessoas imaginariamente vindas de ambientes culturais desenvolvidos, civiliza- dos, para meios-ambientes primitivos.

4. Brookshaw (op. cit., p. 33).

5. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Imagem>. Acesso em 13 de Maio de 2010.

6. Zola (1971, p. 63/4) apud Reis (op. cit., p. 443/4).

7. Coelho (1969, p. 332) apud Reis (op. cit., p. 400).

8. É importante sublinhar que o carácter universal do tema tem a ver com a condição de entidade abstracta e polarizadora de sentidos, bem como com a irradiação e circulação histórica, geográfica e cultural (Reis, op. cit., p. 402).

Recebido: 21 de Agosto de 2018; Aceito: 26 de Setembro de 2018

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