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Revista Internacional em Língua Portuguesa

versão impressa ISSN 2182-4452versão On-line ISSN 2184-2043

RILP vol.36  Lisboa dez. 2019  Epub 29-Jul-2021

https://doi.org/10.31492/2184-2043.rilp2019.36/pp.39-55 

Artigo Original

O Espólio Literário de Almeida Garrett: notas em torno dos Documentos 59 a 63 da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra e da Coleção Futscher Pereira1

Sandra Boto1 

1Fundação para a Ciência e Tecnologia Centro de Investigação em Artes e Comunicação/Universidade do Algarve Centro de Literatura Portuguesa/Universidade de Coimbra-Portugal


Resumo

Preparado no âmbito da edição crítica em curso do Romanceiro de Almeida Garrett (1799- 1854), este trabalho estuda um importante legado documental do eminente escritor português. Referimo-nos aos Documentos 59 a 63 do Espólio Literário de Almeida Garrett, que se encontram depositados na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra e que abarcam manuscritos autógra- fos e originais de imprensa do autor com vista sobretudo à publicação de Garrett (1843), bem como à Coleção Futscher Pereira.

Partindo do facto de que o núcleo documental coimbrão se apresenta como uma verdadeira miscelânea, o que perturba o reconhecimento do seu importante valor cultural e patrimonial, pro- pomo-nos contribuir para o reposicionamento destes materiais a partir de uma abordagem essen- cialmente material e filológica. Discutir-se-ão, assim, algumas das características do espólio, as quais espelham as práticas (por vezes questionáveis) que nortearam a organização destes materiais no passado.

Palavras-chave: Almeida Garrett; baladística romântica; manuscritos autógrafos; Universi- dade de Coimbra; Coleção Futscher Pereira; património textual

Abstract

This paper aims to analyze a truly important documental legacy from the great Portuguese romantic writer Almeida Garrett (1799-1854), within the ongoing critical edition of Garrett’s Romanceiro. We refer to the Documents 59 to 63 from Almeida Garrett’s Literary Legacy, owned by the General Library from the University of Coimbra, and to Futscher Pereira Collection.

The documents from the University of Coimbra Library, autographs and printing originals regarding mainly Garrett (1843) publication, reveal a profound miscellaneous shape. Due to this, their cultural and patrimonial value is not well recognized yet. Therefore, we seek to discuss some of its organizing trends carried out in the past (some of them will seem controversial nowadays) which may lead to a better understanding of those materials. In order to do so, we will adopt a material and philological point of view.

Keywords: Almeida Garrett; Romantic balladry; autographs; University of Coimbra; Futscher Pereira Collection; textual heritage

1. Um catálogo, um inventário e assinaláveis perdas documentais

Em 1871, Carlos C. Guimarães, genro e herdeiro do escritor português Almeida Garrett (1799-1854), publica, na primeira e póstuma edição de Helena (romance que o sogro deixara inacabado) um “Catalogo dos autographos, diplomas, docu- mentos politicos e litterarios pertencentes ao Sr. Visconde de Almeida-Garrett”, no qual dedica um IV ponto aos materiais garrettianos relativos ao Romanceiro (Guimarães, 1871, pp. XVII-XVIII). Efetivamente, figuram, neste catálogo, sete entradas alinhadas de a) a g) referentes à poesia popular narrativa de Garrett, com a distribuição que a seguir apontamos e que nos suscita alguns comentários:

a) entrada que diz respeito ao caderno manuscrito autógrafo de Garrett “Cancioneiro de romances, xácaras, soláos (…)”2; b) alínea dirigida aos trabalhos garrettianos sobre o Romanceiro, cujo conteúdo surge discriminado como “Rascunhos, cópias, apontamentos de estudo, que serviram para a composição e impressão do Romanceiro” (Guimarães, 1871, p. XXVII); c) grupo documental que contém uma “Introducção ao Romanceiro”, sem que nada se adiante acerca da publicação à qual se refere esta introdução (pode, à partida, tratar-se tanto da introdução ao volume do Romanceiro de 1843/53 como da do II volume da obra, que foi publicado em dois tomos em 18513); d) alínea intitulada “Adozinda” (refere-se ao célebre poema “Adozinda”, que conheceu os prelos em 1828, em Londres, e através da qual o autor se iniciaria definitivamente na balada romântica), com a seguinte indicação: “O principio do Canto primeiro, que se acha truncado n’este manuscripto, diversifica do que foi publicado. Os outros Cantos estão completos.” (Guimarães, 1871, p. XXVII); e) conjunto que abarca as “Provas da primeira impressão da Adozinda, e Bernal Francez - Corrigidas pelo Author.”; f) entrada que respeita ao poema “O Chapim de El-Rei” (dado à estampa por Almeida Garrett em 1843 no Romanceiro e Cancioneiro Geral e reeditado pelo autor aquando da 2.ª ed. do vol. I do Roman- ceiro, em 1853); e, por fim, g) alínea que diz respeito ao romance “Rozalinda” (poema também ele publicado pela primeira vez no anteriormente citado volume de 1843 e igualmente na sua reedição de 1853).

Muitos anos volvidos após a disponibilização deste inventário por Carlos

Guimarães (tempo suficiente para que o espólio literário de Almeida Garrett sofresse numerosas e variadas vicissitudes das quais não nos ocuparemos neces- sariamente neste trabalho) e sobretudo após o desaparecimento dos familiares diretos do Visconde, dava-se à estampa uma obra fundamental para a organiza- ção, classificação e estudo dos materiais garrettianos: o inventário de Henrique Ferreira Lima (Lima, 1948).

As espécies bibliográficas descritas em Lima (1948) abarcam a totalidade do espólio de Almeida Garrett que fora adquirido em 1947 à viúva do Doutor Maga lhães Colaço4 para a Biblioteca da Universidade de Coimbra. Face à inexistência de registos mais recentes, Ferreira Lima adota então, para a aferição dos materiais que dariam por sua mão entrada nesta universidade, o já mencionado catálogo garrettiano de 1871 de Carlos Guimarães.

A partir do cotejo efetuado, Ferreira Lima apercebe-se, contudo, da ausên- cia de diversos materiais referenciados em 1871 que, entretanto, haviam deixado de integrar o espólio do escritor, visto não figurarem no conjunto documental adquirido então pela academia coimbrã. Diz-nos, a este respeito, o bibliófilo, nas “Palavras Prévias” ao referido inventário: “Aqui indicaremos o que já não existia quando, na companhia do sr. Dr. Costa Pimpão, tivemos ocasião de proceder ao exame deste precioso acervo literário” (Lima, 1948, p. XI).

No que respeita propriamente ao Romanceiro garrettiano, obra sobre a qual incidimos a nossa análise material como estádio preparatório da edição crítica em curso, o trabalho de Ferreira Lima menciona os seguintes conjuntos documen- tais5, que aqui transcrevemos de seguida:

59) Adozinda, 1.ª edição, em provas corrigidas pelo autor. 60) Adozinda. Romance Contém: Prefácio, Introdução, Canto Primeiro (duas redacções), Canto Segundo (Duas lições), Canto Terceiro e Notas. Aut.[ógrafos]. 61) Bernal Francez. Fragmento e tradução inglesa de Adamson. Uma página é escrita no verso de uma carta de Joaquim Larcher, em que se fala no prof. António Manuel da Fonseca e nos seus trabalhos de escultura para o teatro de D. Maria II. Aut.[ógrafo] e cop.[ia]. 62) Apontamentos para o Romanceiro, 12 pág.[inas]. Aut.[ógrafo]. Alguns: Gaia Romance, Noite de San João (Introdução e poesia), O Anjo e a princesa, legenda; Antiga poesia portugueza, Romances, Canções, etc; etc. 63) Miragaia Imitation de la chramante Ballade Portugaise de M. A. Garrett publiée dans le jornal des Beaux arts, par Zanole, Lisbonne 10 Janvier 1847. (Lima, 1948, pp. 15-16)

Com efeito, não é demais considerar significativas as discrepâncias detetadas entre os dois inventários. Observemo-las.

O caderno manuscrito “Cancioneiro de romances (…)” - (lote a) do catálogo de Carlos C. Guimarães - deixou, algures entre 1871 e 1947 (lapso temporal que medeia a publicação do catálogo de Carlos Guimarães e a aquisição dos materiais pela Universidade de Coimbra), de integrar o espólio literário garrettiano e, por conseguinte, não foi adquirido juntamente com os restantes materiais aos herdei- ros do Doutor Magalhães Colaço6.

Já os documentos correspondentes aos lotes d) e e) mencionados pelo genro de Garrett transitaram para Coimbra em 1947 (pelo menos grosso modo, ao não ser possível conferir com minúcia a constituição dos lotes de acordo com a gené- rica descrição do catálogo), incluindo o jogo impresso da primeira edição de Adozinda, que viria a dar origem ao Doc. 59 do espólio, tal como os restantes materiais autógrafos referidos por Ferreira Lima como constituintes do Doc.o 60 do acervo.

Por seu turno, o núcleo b), conforme catalogado em 1871, correspondente aos “Rascunhos, cópias, apontamentos de estudo, que serviram para a composição e impressão do Romanceiro” (Guimarães, 1871, p. XXVII), dos quais Ferreira Lima contabiliza 12 páginas, parece igualmente integrar na atualidade o espólio garrettiano da Biblioteca Geral (nomeadamente o Doc. 62), embora este tópico mereça que a ele regressemos adiante com detalhe.

Em sentido oposto, o lote c) do catálogo do genro de Garrett, a “Introdução ao Romanceiro”, não é sequer aludido por Ferreira Lima, pois não chegou a figurar entre os materiais adquiridos. Do mesmo modo, os lotes f) e g) mencionados por Carlos Guimarães, isto é, os manuscritos referentes aos poemas “O Chapim de El-Rei” e “Rozalinda”, respetivamente, nunca integraram, segundo aponta o autor do inventário de 1948, o legado garrettiano que deu entrada então na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra.

2. Peças de um puzzle

A partir da análise contrastiva entre os dois catálogos, entrevê-se assim uma provável perda documental dos materiais autógrafos de Almeida Garrett concer- nentes à sua obra poética de feição popular.

Neste sentido, importa, para já, esclarecer alguns factos acerca do enigmático conjunto b), os “Rascunhos, cópias, apontamentos de estudo, que serviram para a composição e impressão do Romanceiro”. Este grupo de materiais deve ser abordado com as devidas precauções, uma vez que a sua descrição miscelânea levanta algumas dúvidas que a economia descritiva do genro de Garrett, Carlos Guimarães, ajudou a alimentar ao longo dos tempos.

Tal como foi defendido num trabalho anterior (Boto, 2011, pp. 168-171), este lote abarcaria, em 1871, mais do que as 12 páginas dedicadas à impressão do Romanceiro e Cancioneiro Geral de 1843, reeditado em 1853 apenas como Romanceiro, I, que Ferreira Lima viria a contabilizar no seu catálogo de 1948, segundo hipótese já lançada (Boto, 2011, pp. 136-154), e reuniria, enfim, o con- junto heterogéneo de autógrafos que o Visconde dedicou à preparação da edição do Romanceiro. Ao mesmo tempo, ilumina, segundo acreditamos, um ambicioso projeto de contornos teóricos sobejamente importantes, delineado a partir dos “apontamentos de estudo” aí incluídos, apontamentos que foram localizados somente em 2004, na então descoberta Coleção Futscher Pereira7.

Por seu turno, registamos que as ausências aqui afloradas atrás, quando con- frontámos os catálogos, ou seja, aqueles documentos garrettianos que integravam o espólio do autor em 1871 e que se extraviaram aquando da aquisição dos mate- riais pela Universidade de Coimbra em 1947, viriam de igual modo a ser maiori- tariamente colmatadas por autógrafos existentes nesta mesma Coleção Futscher Pereira, conjunto documental que foi adquirido pelo Estado Português em 2014 (através do Arquivo Nacional da Torre do Tombo) e que se encontra depositado na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra desde então8.

Em suma, o extremo valor desta coleção reside no facto de conter materiais dirigidos à preparação do Romanceiro e Cancioneiro Geral de 1843 e do Livro II do Romanceiro -referimo-nos a Garrett (1843) e a Garrett (1851). Mas assenta, sobretudo, nos documentos inéditos que acolhe e que situaremos no âmbito do projeto garrettiano de prossecução do Romanceiro. Concretamente, fornece-nos pistas materiais de que se encontravam em preparação os futuros Livros III, IV e V da obra, em linha com o plano editorial apresentado por Garrett na “Introduc- ção” ao II tomo do Romanceiro (Garrett, 1851 II, p. XLV), o qual nunca chegou a ser concluído pelo escritor, porém, devido ao seu desaparecimento prematuro.

Cabe aduzir que, nesta mesma coleção, localizamos uma capilha com a seguinte designação: “Romanceiro. / Collecção de Xácaras, estudos / e aponta- mentos para a composição do Romanceiro / M[anuscri]to do A.[utor]”9. Trata-se de uma espécie seguramente não autógrafa, não só a avaliar pela caligrafia, mas também porque a indicação “M[anuscri]to do A.[utor]” careceria de sentido num cenário em que o autor fosse o responsável pela organização dos seus próprios materiais. Com efeito, o título decalca textualmente de perto a descrição da lavra de Carlos Guimarães no mencionado lote b) do seu “Catálogo”, isto é, os supraci- tados “Rascunhos, cópias, apontamentos de estudo, que serviram para a compo- sição e impressão do Romanceiro”.

Assim, parece ser possível propor que, quando o genro de Garrett concebeu o lote ao qual atribuiria a sigla b), tivesse como referente esta capa manuscrita agora presente na Coleção Futscher Pereira, sabendo que o conjunto de docu- mentos contidos no lote abarcaria muitos mais documentos do que aqueles que Ferreira Lima chegou a conhecer nos anos 40 do século XX, os quais a desco- berta da Coleção Futscher Pereira veio, agora, identificar. Referimo-nos, pois, a apontamentos de trabalho, rascunhos e originais de imprensa da maior parte dos poemas constantes nos tomos II e III do Romanceiro, que iriam muito mais além do que as magras 12 páginas de listas bibliográficas e apontamentos esparsos que constituem atualmente o Doc. 62 do Espólio Literário Garrettiano da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra.

Digno de menção para o assunto que nos ocupa é ainda o facto de esta mesma Coleção Futscher Pereira acolher uma outra capilha manuscrita com o número 4, com a seguinte descrição: “N.º 4 / O Chapim de Elrei / ou / Parras Verdes / O anjo e a Princeza / Rosalinda / Introdução ao Romanceiro”, também de caligrafia certamente não garrettiana10. Nela, encontram-se os seguintes documentos autó- grafos, todos eles referentes à publicação do Romanceiro e Cancioneiro Geral de 1843:

i) “Introdução ao Romanceiro” (12 fólios) de 1843; ii) “O Chapim d’el-rei ou Parras Verdes / Chacara da Vinha” (capa com título; introdução ao romance; rascunho do poema datado de 27 de março de 1843; segunda redação do poema); e iii) “O Anjo e a princesa” (capa com título, versão manuscrita final da intro- dução, manuscrito da “Carta à Ilustríssima e Excelentíssima Senhora Marquesa de Fronteira” e versão manuscrita final do romance).

Será, pois, sem reservas, que se reconhecerá que a “Introdução” ao Roman- ceiro aqui aludida é a referida no catálogo de Carlos Guimarães (alínea c), a qual, como observámos, não dera entrada na Universidade de Coimbra. Por sua vez, também o poema “O Chapim d’el-rei” (alínea f do catálogo de Carlos Guima- rães), cuja ausência já Lima (1948), p. XIII denunciava, encontrava-se, afinal, guardado neste conjunto. A mesma sorte não se verificou no que concerne ao poema “Rosalinda”, material que, entretanto, deixou de integrar o espólio garret- tiano e que a localização da Coleção Futscher Pereira não veio, lamentavelmente, permitir recuperar. Este manuscrito continua, pelo exposto, extraviado.

3. Lógica relacional entre a Coleção Futscher Pereira e os Documentos 59 a 63 da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra

Em primeiro lugar, algumas tendências significativas gerais deverão ser apon- tadas relativamente à lógica de distribuição dos materiais do Romanceiro pelas duas coleções documentais autógrafas mencionadas.

Efetivamente, com a Coleção Futscher Pereira apareciam muitos dos documen- tos manuscritos que estiveram na base da impressão dos dois tomos do Roman- ceiro garrettiano de 1851 (originais de imprensa e rascunhos prévios), publicação cujos manuscritos preparativos se desconheciam até então. Sem dúvida, a divul- gação destes materiais adquire um impacto relevante no âmbito dos estudos gar- rettianos. Mas a análise crítica não pode ficar circunscrita a este facto.

Atentando nos diferentes documentos referidos por Lima (1948), isto é, os referidos Docs. 59 a 63 do Espólio Literário de Almeida Garrett da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, observar-se-á uma esmagadora dedicação dos mesmos à preparação da edição do Romanceiro e Cancioneiro Geral e, por conseguinte, da sua reedição que viria a concretizar-se embora com outro título, em Garrett (1853)11, reedição que ainda seria da responsabilidade do poeta (Gar- rett morre no ano seguinte) e que acrescenta dois novos romances à edição de 1843, sem mencionar outras variantes menos assinaláveis, assunto que escapa à discussão que aqui nos ocupa.

Pese embora o exposto, a presença da mencionada capa n.º 4 no seio da Cole- ção Futscher Pereira dá conta de que, embora residualmente, esta coleção con- templa de igual modo alguns autógrafos garrettianos referentes a Garrett (1843). Pode afirmar-se, então, que estes materiais recentemente identificados com- pletam, assim, o conjunto dos autógrafos depositados no Espólio Literário de Almeida Garrett da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra.

Torna-se evidente, ainda, que a organização dos documentos garrettianos do Romanceiro adquiridos por intermédio de Ferreira Lima para a Universidade de Coimbra obedeceu a uma determinada lógica, pois remete pretensamente para os materiais preparativos da edição de Garrett (1843). Por sua vez, os documentos autógrafos que visam a publicação dos dois tomos de Garrett (1851), bem como dos futuros tomos planificados por Garrett, de resto, foram propositadamente separados e, por fim, localizados na Coleção Futscher Pereira.

Incidindo agora com a devida minúcia sobre a documentação referente ao Romanceiro de Almeida Garrett depositada na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra e inventariada por Ferreira Lima, observamos que a distribuição e a acomodação dos materiais em maços nas respetivas capilhas orientam por seu turno, de forma evidente, a disposição dos mesmos nos diferentes documentos criados por este eminente estudioso garrettiano. Reporto-me em concreto aos Docs. 59, 60 e 61, sendo que o 59 corresponde à capa com o número 2; o Doc. 60 à capa com o número 1 e o 61 à capa 3. Furta-se a esta lógica a organização dos Docs. 62 e 63, que ostentam uma disposição distinta: o 62 apresenta-se como uma verdadeira miscelânea e o 63 contém a tradução, alógrafa, para francês, do poema “Miragaia”, versão que viria a acompanhar o original em português, ambos em aditamento à reedição do I do Romanceiro patente em Garrett (1853).

Mas vejamos agora os sentidos a extrair da presença destas capilhas. O Doc. 59 é constituído pela capilha “N.º 2. / 1.ª edição de Adozinda e Bernal Francez / 1828

/ Provas corrigidas pelo author” (com inscrição manuscrita de caligrafia não garre- ttiana, cujo conteúdo é composto por uma tipologia de papel uniforme, impresso, mas que abarca materiais com notas e variantes manuscritas autógrafas).

O Doc. 60 corresponde à “N.º 1 / Adozinda. / Manuscripto do author / Con- tem: a Introducção, parte do 1º canto e o segundo quasi todo / faltam 10 verços [sic] / 3.º e 4.º completos - as notas até E. / - o principio do 1.º canto em uma variante que parece ter sido o 1.º original” (capilha com inscrição manuscrita de caligrafia não garrettiana; destaca-se, ao nível do conteúdo, a presença de alguns materiais impressos que coabitam com manuscritos autógrafos garrettianos, de dimensões e origens variáveis).

Por fim, o Doc. 61 coincide com a capilha “N.º 3 / Traducção do Bernal Fran- cez / por / J. Adamson” (com inscrição manuscrita de caligrafia não garrettiana; constituída por uma redação alógrafa da tradução da balada romântica “Bernal Francês” com correções autógrafas e outra versão da tradução do mesmo poema para inglês, incompleta e autógrafa; inclui ainda notas ao poema).

Se recuperarmos o que atrás se comentou acerca da capilha n.º 4 presente na Coleção Futscher Pereira, cujo conteúdo inclui, repetimos, documentos referen- tes à publicação de Garrett (1843), então confirma-se que este conjunto documen- tal que integra a coleção recentemente descoberta completa o jogo das três capi- lhas incorporadas no espólio da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, formando com elas um núcleo coeso e obedecendo, por conseguinte, à mesma campanha de organização dos materiais do Romanceiro.

A pergunta que se impõe, por conseguinte, será: a quem deveremos atribuir semelhante tentativa de distribuição dos documentos garrettianos relativos ao volume do Romanceiro de 1843/53? Ao próprio Garrett, na fase final da vida? A terceiros?

É certo que o poeta terá iniciado a organização dos seus papéis antes de falecer, de acordo com a informação que é transmitida pelo biógrafo Gomes de Amorim (cf. Amorim, 1881, p. 104, nota 1; muito especialmente, cf. Amorim (1884), p. 594; e, ainda, Monteiro, 2006, 44-45, nota 13). Mas também é verdade que, embora admitindo que o poeta tivesse encetado a organização dos mate- riais do Romanceiro com o auxílio de Gomes de Amorim, o esquema referido

por este último em Amorim (1884) não corresponde, no caso dos documentos concernentes a esta obra, à atrás comentada organização em capilhas em que os materiais autógrafos referentes ao Romanceiro de 1843/53 surgem atualmente, nem as letras que Amorim (1884) indica para a classificação desta obra foram as seguidas por Guimarães (1871) no seu catálogo. Pelo exposto, cremos não poder entendê-las como fruto de um mesmo movimento organizativo. Interpretamos, por conseguinte, a classificação em capilhas como resultado de um procedimento póstumo.

Na verdade, uma análise caligráfica e de conteúdo, mais profunda e apurada do que aquela levada a cabo em Boto (2011), p. 112, lugar onde figura erronea- mente registado que “o agrupamento dos documentos 59 a 61 em maços é da responsabilidade do próprio Almeida Garrett”, vem reforçar a ideia de que não terá havido intervenção direta do Visconde no processo.

Não duvidamos, no presente, de que a caligrafia manuscrita destas capas é de outra mão, corrigindo-se, aqui, a afirmação anterior de que a “caligrafia [destas capilhas é] indubitavelmente garrettiana” (Boto, 2011, p. 112). Contudo, mais sugestivo ainda é o facto de as mesmas capas ostentarem uma caligrafia aparen- temente comum entre elas12. Colocamos, assim, a hipótese de que possa ter sido Carlos C. Guimarães o responsável por esta distribuição dos materiais, proposta que tentaremos comprovar em breve, através da confirmação da atribuição cali- gráfica do autor destas capilhas.

4. Contributo para a organização dos materiais do Romanceiro

Em última instância, vejamos como não faria sentido atribuir a Almeida Gar- rett a condução do processo de distribuição dos materiais de 1843 nestas quatro capilhas, por um motivo bastante simples. Repare-se que a capilha número 1 regista, na sua designação, uma dúvida na avaliação de conteúdo relativa aos próprios documentos, dúvida que só é possível imputar a terceiros, na medida em que um autor, em primeira pessoa, salvo em situações deveras excecionais, jamais a colocaria. É ela: “o princípio do 1º canto em uma variante que parece ter sido o 1.º original”13.

Denota ainda esta prática um segundo sentido, bem mais profundo, este, que consiste na franca disposição de organizar coerentemente os materiais do Roman ceiro 1843/53, relegando, assim, os materiais do Romanceiro de 1851 para uma capa bastante genérica. Queremos com isto sugerir - relembrando que é no pri- meiro volume do Romanceiro, ou seja, em Garrett (1843, 1853), que a veia poé- tica romântica garrettiana mais se faz sentir, por oposição às versões de romances publicadas em Garrett (1851), as quais se encontram, com efeito, muito mais próximas do discurso e da poética da tradição oral - que o organizador destes materiais ostentou deliberadamente uma dedicação e um cuidado desiguais na elaboração de núcleos documentais do Romanceiro, denotando um muito supe- rior empenho no tratamento dos materiais de Garrett (1843, 1853). Basta lembrar, em abono desta possível discriminação, que os manuscritos concernentes à publi- cação de 1851 até há bem pouco tempo se desconheciam por completo.

Sabemos que a espécie “Cancioneiro de romances (…)”, caderno uniforme e cuidado que merece por si só um estudo autónomo, foi a leilão em 1932 pela mão das filhas do seu proprietário14. Os materiais da Coleção Futscher Pereira recentemente identificados e este caderno terão formado, necessariamente, um conjunto documental. No entanto, dos materiais da mencionada coleção não se conhece qualquer tentativa de venda. Dever-se-á este facto porventura às dificul- dades de valorização desta coleção avulsa, que pecaria duplamente, do ponto de vista do mercado livreiro e antiquário, por ser extremamente heterogénea, com a agravante de ser referente à poesia popular (pouco garrettiana, no fundo, e, por- tanto, menos interessante) e ostentando diversos estádios de maturação poética.

5. Documentos que se complementam

Os Docs. 61 e 63 do Espólio Literário de Almeida Garrett não levantam ques- tões quanto à natureza autónoma do seu conteúdo, já que o Doc. 61 consiste na tradução da balada garrettiana “Bernal Francês” para língua inglesa, e o 63 é constituído pela tradução francesa de “Miragaia”. No entanto, o mesmo não se pode afirmar em relação aos restantes documentos do espólio do Romanceiro depositados na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra.

Uma análise de conteúdo atenta dos Docs. 59, 60 e 62 é reveladora das cir- cunstâncias de excecionalidade que envolvem estes materiais. Por um lado, regis- ta-se uma orientação grosseira generalizada -com efeito, apócrifa- de separação dos mesmos tendo em conta critérios de materialidade: o Doc. 59 é constituído por um jogo impresso com anotações manuscritas (efetivamente referente à ree dição da célebre balada “Adozinda” em 1843). Na realidade, estamos perante um original de imprensa e não uma correção de provas, ao contrário do que indica Lima (1948), conclusão que a edição crítica em curso destes materiais virá em breve comprovar. Já o Doc. 60 aglomera sobretudo manuscritos autógrafos refe- rentes a estádios redacionais anteriores do mesmo poema.

Mas certo é que a separação forçada destes dois conjuntos no passado veio comprometer a perceção da articulação umbilical entre os dois documentos, pois só o estudo conjunto dos dois permite perceber a sua orgânica comum: os mate- riais combinam-se de forma a reconstruir o já mencionado original de imprensa de “Adozinda”.

Na realidade, esta tendência de desmembramento com base em critérios mera- mente materiais põe de manifesto a total falta de sensibilidade do responsável pela criação destes documentos para a prática garrettiana de preparação dos ori- ginais de imprensa, pois não se terá apercebido da lógica gizada pelo poeta ao elaborar o seu original misto (impresso e manuscrito) conducente à composição de Garrett (1843): o aproveitamento de um exemplar impresso, desmembrado, de Adozinda. Romance, (Garrett, 1828), ao qual o autor adicionou notas e variantes manuscritas, bem como longas adições nos fólios manuscritos. Confirmamo-lo a partir da paginação introduzida à mão pelo Visconde nos materiais impressos e manuscritos, que dá conta de um documento uno e corrido, o qual pode facil- mente ser recuperado a partir da interseção criteriosa dos materiais dos dois Docs. 59 e 60.

Mas muito mais há a assinalar após uma leitura de conteúdo de todos os docu- mentos do Romanceiro da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Em pormenor, e com o propósito de permitir reconstruir cabalmente as estreitas rela- ções entre estes documentos do espólio, repare-se que:

O Doc. 59 (capilha número 2, atrás descrita) comporta o texto impresso de Adozinda (inclui a “Carta” a Duarte Lessa), corrigido pelo punho de Garrett com vista à reedição desta obra no Romanceiro e Cancioneiro Geral, no qual as notas manuscritas que o poeta introduz não são mais do que varian- tes textuais que viriam a ser impressas, as mais das vezes, no texto reeditado em Garrett (1843)15. Faço notar que a foliação manuscrita começa na p. 4 e inclui a introdução manuscrita a “Bernal Francês” (após “Adozinda” e em numeração de página corrida) bem como a dedicatória manuscrita “AAdelaide”, denotando evidente variação relativamente ao que veio a ser fixado em Garrett (1843). Segue-se o agora denominado “Bernal Francês”, com texto incompleto, que denota aproveitamento da impressão primigénia de 1828 e com numeração igualmente corrida, cujo texto viria a ser com- pletado, na edição de Garrett (1843), com mais 10 estrofes. O jogo não inclui a tradução inglesa de “Bernal Francês” e passa diretamente para as notas, oriundas, uma vez mais, do impresso-base (a numeração de página das notas tem início na p. 11, mais precisamente na nota H, faltando todas as notas anteriores); ausentes também se encontram, por seu turno, as páginas 13 e 14 das notas na numeração do novo jogo; na numeração antiga do impresso, omitem-se as pp. 107 a 112 e, na p. 113, surge, riscado, o final do romance tradicional “Silvana”, que o poeta decidiu expurgar de Garrett (1843), o qual se encontrava, em Garrett (1828), efetivamente fixado entre as pp. 107 e 113. O jogo é retomado na nota K e registamos ainda a ausência das pp. 18 e 19, segundo a numeração nova; terminam as notas na letra Z (p. 25) e não estão incluídas as notas a “Bernal Francês”; em síntese, faltam, neste jogo, as notas J, K, L, N. O Doc. 60 (capilha número 1, atrás descrita) incorpora a p. 3 em falta no maço anterior (um fólio manuscrito que substitui o início da “Carta” a Duarte Lessa, presente no documento anterior, mas riscado por Garrett); contém ainda o início da balada “Adozinda” para a edição de 1828 até ao verso 20; inclui as pp. 148, 149 e 150, que abarcam, por sua vez, os versos finais de “Bernal Francês”, cuja falta denunciámos no documento anterior, o qual terminava justamente na p. 147 (as pp. 148 e 149 fazem parte do impresso de 1828 e a p. 150 é um troço de papel azul, colado às demais, que completa e termina o romance). Num papel azul da mesma tipologia encontramos a “Introducção A Elysa” (rascunho manuscrito), que vai desde o início, riscado, até ao verso 6; a partir daqui o poema segue até ao verso 187, sendo que faltam, a partir daí, os versos finais do mesmo, mais concretamente do verso 188 em diante. Este conjunto documental comporta duas redações autógrafas do texto de “Ado- zinda” (um manuscrito certamente datável dos anos 20, de caligrafia compatível com a da juventude de Garrett, que designamos (A), e uma segunda redação posterior, a (B), apresentando variantes: o Canto I encontra-se completo em (A); o Canto II ostenta, por seu turno, duas redações, mostrando-se incompleto em (A), até à estância IX; (B) começa na estância 9 e vai quase até ao final do mesmo canto (estância 17); os Cantos III e IV seguem (B). Estão aqui incluídas as notas para a impressão de 1843 que faltavam no jogo anterior, a saber: a A (a presença de duas páginas impressas com a “Advertência” de 1828 e uma numeração manuscrita - 2 e 3 - nos cantos superiores da respetivas páginas deverá ser remetida para o início das notas finais à edição de 1843, pois Garrett fixaria esta “Advertência” na nota A em Garrett (1843, 1853). Neste mesmo jogo localizamos as pp. 1, 4, 5, 6, 7,10, 13, 14, 15 - A, 18, 19 com as notas finais, manuscritas, dirigidas à edição de 1843, entre as quais as páginas 2 e 3 que acabámos de mencionar se inserem (obviamente que estas páginas ajudam a colmatar a ausência das notas já anunciadas no Doc. 59); em síntese, encontram-se aqui as notas A, B, C, D, E, F (faltam os versos de “Miragaia” incluídos nesta nota, correspondentes às pp. 8 e 9, não localizadas em qualquer um destes jogos), mais as notas G, J, K, L, N e Q. O Doc. 61 (capilha número 3, atrás descrita), para além de conter duas redações da tradução para inglês do romance “Bernal Francês” (a recriação garrettiana inspirada no romance tradicional), engloba ainda as notas manuscritas A e B de “Bernal Francês”, com vista à edição de Garrett (1843); estas, paginadas com os números 26 e 27, completam efetivamente as notas finais dispersas pelos Docs. 59 e 60, que iam até à p. 25, segundo vimos. Já a presença das notas finais referentes a “Bernal Francês” neste conjunto, embora rompendo com o critério incialmente definido para o conjunto, que se rege pela organização das capas e, em primeira mão, com o pensamento garrettiano que foi subja- cente à preparação do original de imprensa, não deixa de ostentar um critério homogéneo de caráter temático, ao juntar as notas do poema original à sua tradução. O Doc 62, para além dos apontamentos pessoais e das listas bibliográficas já atrás comentadas, contém também materiais referentes à publicação de Garrett (1843), confirmando-se a natureza de miscelânea que lhe atribuímos antes. Para o nosso propósito de elucidar as consequências desagre- gadoras que uma deficiente organização dos materiais pode trazer para esta obra de Almeida Garrett, insista-se aqui na necessidade de interação deste documento com os anteriores para a reconstituição do original de imprensa que, como vimos, foi desmembrado. Na realidade, três são os núcleos que nele se identificam em relação evidente com a edição de Garrett (1843, 1853). As pp. 8 e 9 das notas do jogo impresso de “Adozinda”, cuja falta notamos no Doc. 59 e, sobretudo, no 60, encontram-se aqui. O conjunto manuscrito referente ao poema garrettiano “Noite de S. João” também aqui figura, contendo uma introdução e o poema completo. Assim, complementa este documento, de facto, o ori ginal de imprensa que esteve na origem de Garrett (1843), pois a paginação (começa na página 167 e termina na 172) encaixa na paginação do nosso jogo impresso, justamente a seguir à tradução inglesa de “Bernal Francês” depositada no Doc. 61; inclui também a nota A referente a “Noite de S. João” entre as páginas 28 e 29, que completam ainda as notas garrettianas que temos vindo a discutir e que ficaram interrompidas na p. 27, de acordo com o conteúdo do Doc. 61. Já os materiais aqui deposita- dos referentes ao poema de 1843 “O Anjo e a Princesa” resumem-se a um bifólio autógrafo com uma primeira redação incompleta da introdução e a um fragmento final do romance a partir do verso 109, também em fase não definitiva; a sua redação definitiva, bem como a da introdução e ainda a “Carta à Marquesa de Fronteira”, que lhe serve de paratexto, encontram-se, como já se aflorou, na Coleção Futscher Pereira, junto aos materiais d’ “O Chapim d’el-rei”, também eles em redação autógrafa defi- nitiva que seguiu para a imprensa, contribuindo, deste modo, como se conclui a partir da paginação, para o jogo do Romanceiro e Cancioneiro Geral que Garrett preparou para os prelos. O Doc. 63 é, como se assinalou, constituído por um caderno de caligrafia alógrafa onde se fixa a tradução francesa do poema “Miragaia”, a qual foi integrada apenas na reedição de Garrett (1853), motivo pelo qual não contribui com qualquer material que tivesse podido agregar o original de imprensa garrettiano que reconstituímos no âmbito da edição crítica do Romanceiro de Almeida Garrett e cujo valor filológico e patrimonial aqui tentamos elucidar.

6. Conclusões

Acreditamos ter mostrado, nas páginas anteriores, como os Docs. 59 a 63 do Espólio Literário de Almeida Garrett se relacionam, por um lado, entre si, e por outro, interagem com manuscritos autógrafos identificados já no século XXI, noutro núcleo documental independente: a Coleção Futscher Pereira.

Mas esta evidente relação de complementaridade que revelámos entre os documentos depositados na Biblioteca Geral de Coimbra dedicados ao Roman- ceiro de Garrett requer uma chamada de atenção particular para o Doc. 63, que contribui com um conteúdo direcionado não já para a edição de Garrett (1843), mas exclusivamente para a sua reedição ampliada (Garrett, 1853). Trata-se de um caso excecional, portanto.

A cisão entre os Docs. 59 e 60, fundada na prática de separação dos materiais de acordo com critérios de análise que se cingem ao seu suporte (o impresso de 1828 ficou no Doc. 59, os manuscritos autógrafos da edição de 1843 no Doc. 60), é fortemente indiciadora do profundo desconhecimento que o organizador dos materiais tinha do laboratório criativo de Garrett, sem demonstrar a perceção de que o autor compunha jogos para publicação através da montagem e aproveita- mento de materiais de diversa proveniência e em diferentes estádios de elabora- ção, como sucedeu neste caso.

A tentação do organizador incauto tê-lo-á levado, então, a apartar os testemu- nhos manuscritos que deram origem ao poema “Adozinda” (para incorporação no Doc. 60) das provas impressas que agrupou no Doc. 59, cujo valor real não reconhece e que não identifica como sendo a base textual da edição de 1843.

Já os documentos seguintes (61 e 62) contêm materiais (refiro-me aos dire- cionados para a mesma impressão de 1843) que obedecem à lógica da peça do puzzle que encaixa no jogo impresso descrito no Doc. 59. Através da análise da paginação, consegue provar-se que estes materiais colmatam ausências reporta- das no Doc. 59 e também no 60.

Por outro lado, a existência de materiais que extrapolam os descritivos das capilhas numeradas para os casos dos Docs. 59 a 61, a juntar ao facto de o Doc. 62 abarcar atualmente muito menos itens do que inicialmente previsto em 1871, segundo acreditamos -antes da separação dos papéis do Romanceiro, interven- ção que viria a dar origem à Coleção Futscher Pereira- indiciam que, depois da organização primigénia mas já apócrifa em capilhas, ter-se-ão incluído aqui ainda outros documentos que contribuem para a rutura do sentido organizativo do espó- lio do Romanceiro.

Também Lima (1948) não soube entender a natureza destes materiais garre- ttianos, porventura devido a uma aproximação demasiado rígida ao catálogo de Guimarães (1871) que lhe serviu de guia, tendo abdicado então de uma neces- sária atitude crítica de questionamento face à formação dos diferentes núcleos documentais que lhe surgiram semi-organizados nas mencionadas três capilhas às quais adicionámos uma quarta, a da Coleção Futscher Pereira.

Ferreira Lima reproduziu, portanto, a mesma lógica adversa à reunião dos materiais que, a ter sido contrariada, teria contribuído para respeitar a orgânica autoral de Almeida Garrett. Ao não ter atuado este modo, o bibliófilo fomentou ele próprio o rumo dispersivo ao qual os materiais do Romanceiro do insigne escritor foram votados após a sua morte.

Urge, no presente, reparar essa falha, e, na posse dos manuscritos com os quais a Coleção Futscher Pereira nutre provisoriamente o Espólio Garrettiano da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, pensar, dentro do possível, uma nova fórmula organizativa para o espólio do Romanceiro. O sentido norteador deverá atentar, de uma vez por todas, no restabelecimento da unidade documen- tal deste notável património textual romântico. Partindo de premissas filológicas como aquelas com que aqui pensamos ter contribuído, a intervenção documental que se reclama não poderá deixar de atuar como força agregadora do pensamento e da prática editoriais de Almeida Garrett para com a poesia popular, patentes nessa fundamental obra intitulada Romanceiro.

Referências

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2. Arquivo Nacional da Torre do Tombo. (1839?-1854?). "Coleção Futscher Pereira". Manuscritos autó- grafos de Almeida Garrett dedicados ao romanceiro. Materiais publicados e inéditos [coleção atualmente depositada a título de empréstimo na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra]. [ Links ]

3. Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (1827-1853?). "Espólio Literário de Almeida Gar- rett". Documentos 59 a 63. [ Links ]

4. Garrett, A. (1828). Adozinda. Romance. Londres: Em Casa de Boosey & Son; e de V. Salva. [ Links ]

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8. Amorim, F. G. (1881). Garrett. Memorias Biographicas. Tomo I. Lisboa: Imprensa Nacional. [ Links ]

9. Amorim, F. G. (1884). Garrett. Memorias Biographicas. Tomo III. Lisboa: Imprensa Nacional. [ Links ]

10. Boto, S. (2011). As Fontes do Romanceiro de Almeida Garrett. Uma Proposta de 'Edição Crítica' (Unpublished Doctoral Dissertation). Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal. [ Links ]

11. Guimarães, C. C. (1871). Catalogo dos autographos, diplomas, documentos politicos e litterarios per- tencentes ao Sr. Visconde de Almeida-Garrett. In A. Garrett, Helena. Fragmento de um Romance Inedito pelo Sr. Visconde de Almeida-Garrett (pp. [XI]-LII). Lisboa: Imprensa Nacional. [ Links ]

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13. Monteiro, O. P. (2006). 'Ostinato rigore': A edição crítica das Obras de Almeida Garrett". In Crítica Textual e Edições Críticas: Em Questão (pp. 39-58). Coimbra: Centro de Literatura Portuguesa. [ Links ]

14. A NOVA Direito (2018). João Maria Tello De Magalhães Collaço. Faculdade de Direito da Univer- sidade Nova de Lisboa. Retrieved from: http://www.fd.unl.pt/ConteudosAreasDetalhe_DT.asp?I=1&ID=1493 -Links ]

1. Este trabalho foi realizado no âmbito da Bolsa de Pós-doutoramento concedida pela Fundação para a Ciência e Tecnologia com a referência SFRH/BPD/84108/2012, financiada por fundos nacionais do MCTES.

2. Documento atualmente depositado na Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (ver, para mais detalhes, a respetiva referência na Bibliografia).

3. Ver as respetivas referências bibliográficas destas obras na Bibliografia.

4. João Maria Telo de Magalhães Colaço (1893-1931) foi um brilhante jurista e professor que lecionou na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, onde chega rapidamente à cátedra, em 1918. Em 1923, dá entrada na Secção de Letras da Academia das Ciências de Lisboa como Sócio Correspondente (instituição na qual Ferreira Lima também tinha assento à época). Deixa uma vasta e importante obra publicada de caráter jurídico. (Adaptado a partir da página web A NOVA Direito, 2018).

5. Importa referir que, com esta mesma organização, continuam classificados atualmente estes documentos na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra.

6. A este respeito, aduz Lima (1948), pp. XII-XIII: “O Cancioneiro de romances, xácaras, solaus e outros vestígios da antiga poesia nacional pertenceu, não sabemos como, ao Dr. Venâncio Deslandes, antigo director da Imprensa Nacional de Lisboa. Por sua morte foi vendido ao Sr. Vítor Ávila Perez, ilustre bibliófilo. […] Por fim foi por nós adquirido e figura na nossa colecção Garretteana.”

7. Esta coleção foi localizada e identificada em 2004, encontrando-se então na posse da família Futscher Pereira, em Lisboa. Autógrafa garrettiana quase na sua totalidade e composta por manuscritos e híbridos (impressos com notas autógrafas manuscritas), contém 99 temas de romances tradicionais e não tradicionais, dos quais 45 o poeta deixou inéditos. Abarca ainda apontamentos relativos ao Romanceiro, género literário que confere, enfim, a este acervo, um sentido de unidade, pois os documentos aí contidos formam um núcleo coeso. Permite, em última instância, desbravar o projeto garrettiano em torno da publicação da poesia popular. Cf. mais dados sobre a Coleção Futscher Pereira em Boto (2011), pp. 133-189. Sobre a sua importância para o estudo do Romanceiro de Almeida Garrett, cf. Boto (2011), pp. 191-240 e 577-614.

8. Esta coleção foi, pela primeira vez, mostrada ao público na exposição documental “Uma coisa útil, um livro popular. Almeida Garrett e o Romanceiro”, com curadoria de Sandra Boto, coordenação científica de Sandra Boto e Maria Helena Santana e coordenação técnica de Isabel Ramires, que esteve patente na Sala de S. Pedro da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, entre 22 de junho e 12 de julho de 2017.

9. Este documento foi previamente inventariado em Boto (2011), p. 153, com a referência III.32.a.

10. Esta capa foi previamente inventariada em Boto (2011), p. 145, com a referência I.2.

11. Só o Doc. 62 se furta a esta afirmação, devido à sua natureza predominantemente miscelânea. É com- posto, entre outros documentos referentes a Garrett (1843), por manuscritos com “Notas para bilhetes” e uma “Collecção de poetas portugueses e castelhano”, contendo notas de Almeida Garrett para uso pessoal, as quais se referem, com grande probabilidade, a cotas de biblioteca. Guarda ainda este mesmo documento um inte- ressante manuscrito intitulado “Antiga poesia portuguesa (e castelhana) romances - canções, etc.”, que, após análise de conteúdo, identificamos como sendo notas muito preliminares com vista à redação da “Introdução” de Garrett (1851). Acolhe ainda um bifólio contendo fichas de leitura e um fólio com anotações sobre Gil Vicente e um “Índice” para a edição de uma coleção de romances portugueses.

12. Comum, de resto, à caligrafia que inscreveu a designação na capa “Romanceiro. / Collecção de Xáca- ras, estudos / e apontamentos para a composição do Romanceiro / M[anuscri]to do A.[utor]”, à qual já atrás aludimos.

13. Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, “Espólio Literário de Almeida Garrett”, Doc. 60, Cito a partir de imagem digitalizada disponibilizada pela mesma biblioteca, com a referência GARRETT-doc-60-018.

14. Este caderno manuscrito de Garrett conserva-se atualmente na Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Trata-se de uma espécie que trilhou um caminho distinto do qual não nos ocupamos neste estudo e que terá pertencido, no passado, ao Conselheiro Venâncio Deslandes, juntamente com a Coleção Futscher Pereira. Ver, sobre o assunto, Boto (2011), pp. 175-189.

15. A edição crítica desta obra, atualmente em curso, permitirá mostrar cabalmente esta afirmação, bem como provar a existência de, pelo menos, uma correção de provas de imprensa, hoje perdidas, a situar entre este original garrettiano e o texto publicado.

Recebido: 27 de Agosto de 2018; Aceito: 24 de Outubro de 2019

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