1. Introdução
A música, sabe-se, é um dos meios de expressão da linguagem que o homem utiliza para comunicar-se, além de ser, também, uma arte. Ela, assim como qual- quer outra linguagem, é fruto da aquisição de uma série de conhecimentos e habi- lidades que devem ser aprendidos e desenvolvidos.
Ao longo dos anos, a música teve destacado papel na sociedade, refletindo costumes e ideologias de seu povo. Através das letras das canções, a palavra, mesmo sob forte coerção, conseguia circular e, assim, a música era elemento de troca de mensagens e afirmação de valores.
Sob a perspectiva da linguística textual, tem-se os fatores de textualidade enu- merados, principalmente por Beaugrande e Dressler (1983). Dentre esses fatores, está a intertextualidade que, nesse momento, se destaca, pois servirá de ponto de partida a essa monografia.
Para maior compreensão deste trabalho, serão enumerados alguns conceitos de intertextualidade, no intuito de levar o leitor a situar-se em face da problemá- tica maior a que esta artigo se propõe que é a intertextualidade entre dois gêneros textuais: música e crônica.
Koch (1987) lança a proposta de distinção entre intertextualidade, em sen- tido amplo, e intertextualidade, em sentido restrito. Em sentido amplo, “a inter- textualidade constitui a condição de existência do próprio discurso, sentido esse comparável à noção de interdiscursividade”. Já a intertextualidade, em sentido restrito, “ocorre quando há uma relação de um texto com outros textos previamente existentes”. Para Koch (1987), nesse sentido, a intertextualidade pode ser de forma (que pode estar ligada à tipologia textual ou ao estilo) e de conteúdo (tratam de um mesmo assunto ou pertencem a uma mesma área do conhecimento).
Além da distinção acima citada, Koch (1987) ainda aponta a intertextuali- dade explícita (quando há citação da fonte do intertexto) e implícita (quando não há citação expressa da fonte). Das semelhanças - o texto incorpora o intertexto para seguir-lhe a orientação argumentativa e, frequentemente, para apoiar nele a argumentação - e das diferenças - o texto incorpora o intertexto para ridicularizá-lo, mostrar sua improcedência ou, pelo menos, colocá-lo em questão.
Véron (1980, apud Koch, 1997, p. 47) examinando a questão da produção de sentidos sob um ângulo sócio-semiológico, diz que a pesquisa semiológica deve considerar três dimensões do princípio da intertextualidade: em primeiro lugar, as operações produtoras de sentido são sempre intertextuais no interior de um certo universo discursivo (ex. música); em segundo lugar, o princípio da intertex tualidade é também válido entre universos discursivos diferentes ( ex. música, tv e cinema); em terceiro lugar, no processo de produção de um discurso, há uma relação intertextual com outros discursos relativamente autônomos que, embora funcionando como momentos ou etapas de produção, não aparecem na superfície do discurso “produzido” ou “terminado”.
Percebe-se que, nos autores acima citados, o conceito de intertextualidade acaba convergindo para um mesmo ponto: a necessidade de conhecimento prag- mático para reconhecer nos textos várias outras vozes que se fazem presentes implícita ou explicitamente.
Poder-se-ia ser levantado um estudo minucioso acerca da intertextualidade, mas, para fins desse artigo, os conceitos acima relacionados são suficientes.
2. Relação texto e discurso
Faz-se necessária a compreensão da relação entre texto e discurso, tendo em vista que esse trabalho busca mostrar de que forma linguagem e prática social se relacionam. Comecemos então por conceituar texto. No âmbito da Lingüística Textual, vários são os conceitos encontrados.
Segundo Koch (1997), o texto é uma manifestação verbal constituída de ele- mentos lingüísticos selecionados e ordenados pelos falantes, durante a atividade verbal, de modo a permitir aos parceiros, na interação, não apenas a depreensão de conteúdos semânticos, em decorrência da ativação (ou atuação) de acordo com práticas socioculturais.
Em Marchuschi (1983 apud Koch, 1997, p. 22), encontra-se a seguinte “defi- nição provisória” de Lingüística Textual e de seu objeto, que também parece ajus- tar-se bem a essa linha de pensamento:
Proponho que se veja a Lingüística do texto, mesmo que provisória e genericamente, como o estudo das operações lingüísticas e cognitivas reguladoras e controladoras da produção, construção, funciona- mento e recepção de textos escritos ou orais.
O discurso, por sua vez, pode ser definido, segundo Fairclough (2001), como o uso da linguagem como forma de prática social e não como atividade mera- mente individual ou reflexo de variáveis situacionais. Isto significa dizer que o discurso é um modo de ação, uma forma através da qual as pessoas podem agir sobre o mundo e, especialmente, sobre os outros, como também um modo de representação e criação.
Segundo Kress (1989, apud Meurer, 2005, p. 87), discurso e texto podem ser definidos da seguinte forma:
O discurso é o conjunto de afirmações que, articuladas na linguagem, expressam os valores e signi- ficados das diferentes instituições; o texto é a realização lingüística na qual se manifesta o discurso. Enquanto o texto é uma entidade física, a produção lingüística de um ou mais indivíduos, o discurso é o conjunto de princípios, valores e significados por trás do texto. Todo discurso é investido de ideo- logias, i. é, maneiras específicas de conceber a realidade. Além disso, todo discurso é também reflexo de uma certa hegemonia, i. é, exercício de poder e domínio de uns sobre outros. A partir dessas carac- terísticas, o discurso organiza o texto e até mesmo estabelece como o texto poderá ser, quais tópicos, objetos ou processos serão abordados e de que maneira o texto poderá ser organizado.
Assim, pode-se presumir que os discursos vão ser pautados nas relações que se estabelecem em uma sociedade, no ‘quem diz o que’ e ‘para quem diz’.
Enquanto objeto de interesse da Lingüística, o discurso é uma máquina de produzir sentidos e é enquanto produtor de sentido que ele deve interessar ao lingüista. De certa maneira, apesar das diferenças radicais de propósitos, procedi- mentos, concepções, vale a idéia geral de que o objetivo de uma teoria lingüista é explicar a relação de interpretação estabelecida entre as expressões e sua sig- nificação.
3. Passeio histórico
Não poderíamos falar sobre namoro sem relatar, mesmo que superficialmente, os vários significados atribuídos a essa fase inicial das relações humanas, que, antigamente, quase sempre culminava com o casamento.
Azevedo (1986) apresenta a seguinte visão sobre namoro:
A escolha de cônjuges para as filhas e até para os filhos era sob o regime patriarcal e familista do Brasil colonial, um privilegio quase exclusivo do pater famílias; por isso que o casamento interessava à solidariedade e à integridade dos grandes grupos de parentesco em que se apoiavam a ordem social, a economia, a política e a própria realização pessoal dos indivíduos (AZEVEDO, 1986, p. 7)
Nota-se que as relações se construíam muito mais por conveniência social do que por escolha, por afinidade. Os casais formavam-se e os casamentos eram arranjados sem, ao menos, a aprovação dos futuros cônjuges. A união estava mais para contrato social que para enlace matrimonial à procura da felicidade.
Segundo Azevedo (1986), no século XIX, o antigo padrão começou a ser substituído pelas exigências do amor romântico, ainda que este continuasse a depender bastante das obrigações morais e até jurídicas do privatismo familial e das tradições patriarcais. Firmava-se a norma do consentimento individual condi- cionado, elegendo-se os candidatos ao casamento de modo imediato pela simpa- tia, pela atração física, pela correspondência afetiva, tudo subordinado a critérios de estamentos ou classes sociais. Dessa maneira, estruturava-se o padrão aqui referido como namoro tradicional (…).
Com o surgimento do chamado namoro romântico, os casamentos eram con- sequentemente, mais por amor do que por conveniência e os casais dependiam mais de si para serem felizes do que de interesses exclusivamente familiares.
Antes de prosseguir com este breve relato histórico, faz-se necessário definir o que é namoro. Azevedo (1986) chega ao seguinte conceito:
O namoro pode ser considerado como manifestação inicial da tendência biológica à formação de pares heterossexuais por atração sexual, que se desenvolve no homem a partir das mudanças orgânicas da adolescência e da puberdade; a tomada de consciência das diferenças de físico e de personalidade entre as pessoas de um e outro sexo ocasiona as primeiras tentativas de sedução e estimulação afetiva recíproca.
E prossegue comentando sobre quando e por que os seres humanos procura- vam ligações afetivas mais íntimas:
E a partir dos 13-15 anos de idade que se iniciam as tentativas de vida social em turmas mistas, de meninos e meninas, apesar de que as relações mais íntimas continuam sendo entre membros do mesmo sexo. Mas já existem desejos sexuais e mesmo necessidade de ligações afetivas mais íntimas (GIKO- VATE, 1986, apud AZEVEDO, 1986, p. 10).
Para Azevedo (1986), um marco na transformação do namoro mais antigo foi a modernização das grandes cidades, com a institucionalização do footing, do passeio das jovens da alta sociedade pelas novas ruas . O footing era ocasião para o flirt, um primeiro comércio de olhares aparentemente casuais, de sorrisos, de gestos significativos. Seria a primeira vez que as moças se expunham deliberada- mente, ainda que de modo dissimulado, à conquista em vista do namoro.
Vale ressaltar que o namoro e o flirt no Brasil foram facilitados pelas novida- des trazidas pelo começo do século XIX, a exemplo, dos meios de transporte, que facilitavam as saídas de casa, os passeios, a circulação pelas ruas, tudo a ensejar os encontros, a conversa, a troca de olhares, que resultavam em namoros (AZE- VEDO, 1986).
Outro fato interessante e que merece ser comentado pela proporção que tomou na atualidade, diz respeito ao namoro longo que, outrora, quase sempre culmi- nava com o casamento. Quando esses relacionamentos contrariavam a norma (namorar-noivar-casar) denegriam a imagem da moça e era motivo de vergonha para, sobretudo, seus familiares. A esse respeito, Azevedo (1986) explica que:
(…) acabar um “namoro já adiantado”, público, é ocasião de crise emocional e de certa diminuição para a moça, um motivo de vergonha perante conhecidos e familiares como se indicasse alguma falta de merecimento: uma ocorrência dessa natureza é denominada “tomar taboca”, na Bahia “levar a lata”, no Rio de Janeiro, “levar a tabua”, em São Paulo, equivalentes verbais de ser desprezada ou despre- zado. A moça que tenha tido mais de um namorado e especialmente a que tivesse estado noiva e não houvesse casado fica de algum modo diminuída em sua reputação.
Nota-se que a transformação lingüística e cultural do namoro é, de fato, já atestada e comprovada na sociedade. A noção atual para essa fase inicial de apro- ximação de homens e mulheres é totalmente diferente da noção que gerações passadas tinham. No século XIX, como Azevedo (1986) já afirmou havia todo um ritual de aproximação entre os seres que se escolhiam mutuamente para se lançarem a futuros relacionamentos, quase sempre duradouros. Hoje sabe-se que os rituais de aproximação entre as pessoas não requerem tantas regras, obstácu- los, persistência. As relações começam de forma mais rápida e simples e acabam com a mesma facilidade.
O fato de uma pessoa, especialmente mulher, que culturalmente foi e ainda é estigmatizada, ter se relacionado com outros pretendentes antes de selar compro- misso com futuro companheiro, já não causa mais espanto ou a deixa mal vista perante a sociedade.
Enfim, relatar a evolução histórica e cultural do namoro torna-se importante para analisar e compreender os novos conceitos atribuídos a esse fenômeno, se assim pode ser chamado, das relações humanas.
4. Um olhar mais profundo sobre os dois gêneros: artigo e música
Tendo feito esse breve passeio histórico sobre as concepções de namoro, mer- gulharemos, então, no artigo de Arnaldo Jabor e da música dos Tribalistas. Antes, porém, vale ressaltar que o ponto de partida para a construção desse artigo é a intertextualidade, até certo ponto previsível entre os dois gêneros em questão, mas não descartemos as nuanças oportunizadas pelo artigo e pela música, que vão além das questões meramente lingüísticas, como ideologias, valores sociais, políticos e culturais das gerações.
Segundo Beaugrande e Dressler (1983), o conhecimento intertextual ativa-se mediante um processo chamado de MEDIAÇÃO, isto é, tendo-se em conta a intervenção da subjetividade do comunicador, que costuma introduzir suas pró- prias crenças e suas próprias metas no modelo mental que constrói da situação comunicativa em curso. Quanto mais tempo se emprega e mais atividade de pro- cessamento se realiza para relacionar entre si o texto atual e os textos prévios que tenham a ver com ele, mais elevado será o grau de mediação (o uso de diferentes tipos de texto durante a interação, por exemplo).
Por outro lado, de acordo com os autores, esse grau de mediação decresce quando há citação literal de textos conhecidos, como, por exemplo, monólogos famosos de obras literárias. E, por fim, o nível de mediação é mínimo quando se levam a cabo ações discursivas, como repetir, refutar informar resumir ou avaliar
outros textos, atividades que costumam ser realizadas especialmente no decurso da conversação.
“Geração tribalista”, de Jabor, foi publicado no jornal O Estado de São Paulo. Inspirado na música “já sei namorar”, dos Tribalistas, o jornalista faz crítica não aos artistas especialmente, mas à geração de adolescentes contemporâneos, con- trapondo valores, ideologias com a geração de outrora (talvez sua própria gera- ção).
Nesse momento, faz-se necessário ressaltar a importância do conhecimento lingüístico, que é essencial para que qualquer texto tenha coerência. Muitas vezes, os signos lingüísticos utilizados pelo produtor não dão conta da intenção que se deseja alcançar, isto é, o produtor não consegue fazer com que o leitor ative seu conhecimento de mundo, visto que as palavras utilizadas não provocam por si só uma recuperação da coerência.
Segundo Koch (1997), muitos autores inclusive chamam a atenção para a rela- ção do lingüístico com o conceitual-cognitivo (conhecimento de mundo) e com o pragmático, o que reforça ainda mais a importância das marcas lingüísticas como pistas para o cálculo do sentido e, portanto, para a coerência do texto. No caso do artigo de Jabor, nota-se que o produtor foi feliz na escolha lingüística. Aliás, o autor sabia que seu conhecimento de mundo, naquele momento, era comparti- lhado com seus leitores. No caso do artigo de Jabor, por exemplo, o autor mostra a conotação diferente que a palavra ‘namorar’ passou a ter atualmente, utilizan- do-se de “rótulos” como “ficar” e “namorix”. Dessa forma, o leitor é levado a refletir, mesmo que ligeiramente, sobre o quão diferente são as relações na atua- lidade.
Jabor, obviamente, carrega consigo a visão de relacionamento vivenciada por ele em décadas passadas o que torna inevitáveis as comparações. Se antigamente a visão que se tinha do namoro era a de selar compromisso e somente depois de muita conversa, aprovação dos familiares da moça pretendida é que ele tinha inicio, hoje basta duas pessoas se encontrarem, “rolar a química” e pronto: já estão ficando, sem precisar de aprovação de quem quer que seja. A crítica de Jabor talvez soe mais como um desabafo a esse excesso de permissividade, todo mundo podendo tudo: ter quantas pessoas quiser, não ter compromisso, não ser de ninguém.
Por outro lado, sabe-se que as relações mudaram ao longo dos anos e que, possivelmente, gerações futuras viverão outros conceitos de relação. Certamente a modernidade contribuiu muito para que isso ocorresse: as pessoas estão mais independentes, mais donas do próprio nariz. A mulher, por exemplo, não é mais aquela à moda ateniense que servia para cuidar da casa e procriar. Hoje elas já estão integradas no mercado de trabalho e boa parte delas é quem sustenta o lar. A família, por outro lado, especialmente os pais não têm mais o poder de escolher pretendentes para as filhas e fazê-las casar, sem ao menos conhecer antes seu futuro esposo.
Os tempos mudaram e, consequentemente, os gostos, costumes, valores e visão de mundo. O trabalho intertextual é louvável por fazer com que o leitor (alguns com maior propriedade que outros) reconheça essa mudança pela qual passou e vem passando o namoro na sociedade.
Conforme Beaugrande e Dressler (1983), a intertextualidade compreende as diversas maneiras pelas quais a produção e recepção de dado texto depende do conhecimento de outros textos por parte dos interlocutores, isto é, diz respeito aos fatores que tornam a utilização de um texto dependente de um ou mais textos previamente existentes.
Além disso, uma das maneiras compreendidas pela intertextualidade, forma pela qual a produção e a recepção de um texto dependem do conhecimento de outros, inclui fatores relativos a conteúdo que, geralmente, são bastante evidentes e se ligam a questões de conhecimento de mundo (KOCH, 1997). Nesse caso, não se faz necessária a explicação acerca do assunto tratado pelo artigo, por exemplo, visto que o texto por si só já se faz coerente devido ao conhecimento do conteúdo explorado pelo autor.
Passemos agora para a organização da informação textual. Segundo Koch (1997), a informação semântica contida no texto distribui-se, como se sabe, em (pelo menos) dois grandes blocos: o dado e o novo, cuja disposição e dosagem interferem na construção do sentido. A informação já dada no texto se faz por meio de remissão ou referência textual (KOCH, 1989), formando-se, no texto, as cadeias coesivas, que têm papel importante na organização textual, contribuindo para a produção do sentido pretendido pelo produtor do texto.
Observa-se que Jabor, em seu artigo, lança o dado que já se faz presente na consciência dos interlocutores (o conhecimento da música). Esse mesmo dado é que vai preparar o leitor para receber as informações novas (o porquê da relação ser sinônimo de desilusão, por que os divórcios aumentaram e quais as conseqü- ências desse fato para as gerações futuras, entre outras). Essa relação entre o dado e o novo é crucial para a progressão textual.
Para efeito desse artigo, faz-se necessário citar, mesmo que superficialmente, as questões ligadas ao processamento textual. De acordo com Koch (1997), para o processamento textual contribuem três grandes sistemas de conhecimento: o lingüístico, o enciclopédico e o interacional.
O conhecimento lingüístico compreende o conhecimento gramatical e o lexi- cal que são responsáveis pela organização do material lingüístico na superfície textual. Pode-se dizer que Jabor foi cauteloso na escolha gramatical e lexical ao construir seu artigo, ao utilizar meios coesivos que a língua lhe colocou à dis- posição, capaz de promover a progressão textual, além de selecionar um léxico adequado ao tema em questão: namorar, ficar, beijar, balada.
Já o conhecimento enciclopédico (KOCH, 1997) ou conhecimento de mundo é aquele que se encontra armazenado na memória de cada individuo, já o conhe- cimento sócio-interacional é o conhecimento sobre as ações verbais, isto é, sobre as formas de interação através da linguagem. Porém não nos aprofundemos nes- tes dois últimos por terem sido comentados, em outros termos, anteriormente. (Ver p. 10-11)
Outro ponto interessante e que merece destaque diz respeito aos tempos ver- bais no discurso. Koch (1996) salienta que o alemão Weinrich (1968) chega à conclusão de que, do mesmo modo que os tempos verbais (que se dividem em dois grupos: presente, pretérito perfeito simples e pretérito imperfeito do indica- tivo), as situações comunicativas repartem-se em dois grupos, em cada um dos quais predomina um dos grupos temporais. Weinrich (1968), estabelece, então, sua distinção entre o mundo comentado e o mundo narrado1. É graças aos tem- pos verbais que emprega que o falante apresenta o mundo - “mundo” entendido como possível conteúdo de uma comunicação lingüística - e o ouvinte o entende, ou como mundo comentado ou como mundo narrado.
Interessemo-nos aqui pelo mundo comentado, por pertencer o artigo de Jabor a esta categoria. Observa-se que o falante (Arnaldo Jabor) é afetado diretamente pelo conteúdo relatado: novos valores, costumes, ideologia de uma geração que se contrapõe com a sua geração. Além disso, o leitor também é alertado de que o tema o atingirá e exigirá dele (o leitor) uma resposta (verbal ou não verbal).
Tendo o leitor recorrido a seus conhecimentos prévios e resgatado o conceito de texto, passemos, então, aos elementos constitutivos da significação do texto. Duas principais espécies de relações mantêm interligados esses elementos, isto é, os elementos temáticos: as relações lógicas (que são condicionantes do processo de expansão do texto) e as relações de redundância (que garantem a fixação, tor- nando o tema - ou a informação fundamental - iterativo, isto é, repetido ao longo do texto).
No artigo “Geração tribalista”, percebe-se que tanto as relações lógicas, quanto as relações de redundância estão presentes: as primeiras, contribuindo para a progressão do texto, mesclando dados novos com conhecimentos com- partilhados (como exemplo, a idéia que se vende sobre relacionamentos, embora as pessoas se apresentem muito mais frustradas atualmente) e a segunda, repre- sentada no texto de Jabor, por argumentos que corroboram a tese defendida pelo crítico (embora queiram ser “moderninhos” e achar que ter vários parceiros é natural, as pessoas querem mesmo é ter alguém para ser seu).
Um instrumento intertextual capaz de desempenhar várias funções, segundo a sua colocação, na linearidade do texto é a citação que é facilmente reconhecida no artigo de Jabor. Assim, observam-se as seguintes citações: “amar se aprende amando”, de Drummond, para ilustrar o fato de que as relações se constroem aos poucos, num verdadeiro exercício de paciência; “toda ação tem uma reação”, de Newton, para ressaltar que tudo na vida tem uma conseqüência (não querer com- promisso com alguém e estar “fadado a tão temida solidão”), entre outras.
Segundo Guimarães (2000) há ainda o texto-enxerto. Segundo a autora, a cita- ção enraíza-se no seu novo meio, articulando-o com outros contextos e, assim, efetivando o trabalho de assimilação que, ao lado do da transformação, propõe-se como essência da intertextualidade. Essa articulação com outros contextos pode ser observada na relação intertextual entre a música e o artigo em questão. Os tri- balistas vendem a idéia de descomprometimento total, conforme a qual namorar tem nova conotação, diferente daquela observada no artigo de Jabor. Em geração tribalista, há claramente a articulação sugerida por Guimarães (2000): a geração de Jabor contrapondo-se com a nova geração exaltada pelos tribalistas (a dita geração contemporânea).
Um texto apresenta, também, os procedimentos que asseguram sua coesão e coerência. Destacaremos, a seguir, a co-presença de traços semânticos - total ou parcialmente idênticos. Os traços semânticos co-presentes no texto apontam para dois tipos fundamentais de repetição: a simples iteração e a substituição léxica (GUIMARÃES, 2000).
A repetição sistemática do mesmo lexema (nome), que em outros contextos se poderia atribuir à pobreza vocabular ou à desnecessária redundância, passa a sig- nificar no contexto - criação do romancista recurso enfático e inestimável força articulatória dos elementos significativos do texto - sintetizados na valorização da importância do nome (GUIMARÃES, 2000).
Nota-se, por exemplo, que, no artigo de Jabor, há a repetição da palavra namo- rar que ganha várias formas ao longo do texto: namoro, namoram, namorando, namorix, entre outras. Redundância necessária e sabiamente planejada. Assim,
quando, num discurso, se encontram palavras repetidas e que, ao tentar corrigi-
-las, elas parecem tão apropriadas que o discurso sem elas se estragaria, é preciso deixá-las. (GUIMARÃES, 2000).
Sobre a repetição Koch (1997) defende que é impossível a existência de textos que veiculem, exclusivamente, de informações novas, já que, para a ancoragem da informação desconhecida, faz-se necessária a informação co- ou contextual- mente dada, que precisa ser repetida, por diversas vezes, no desenrolar do texto. Assim sendo, a repetição deve ser vista como um mecanismo essencial no esta- belecimento da coesão textual.
Percebe-se que a repetição, ao contrário do que muitos pensam, é necessária em alguns textos para manter sua coesão e coerência. Porém, ela dever ser estra- tegicamente utilizada. Vale ressaltar que não é a simples repetição que está em pauta. O produtor de um texto deve estar atento para não repetir termos desne- cessários, ocasionado pela pobreza vocabular, com a desculpa de que esta é um recurso que contribuirá para a progressão textual.
Atenção especial será dada agora ao conectivo “mas”, isto é, ao morfema que tem por função ligar dois enunciados. Vale ressaltar, segundo Koch (1997) que tal importância dada ao conectivo é em função do proveito que tanto a AD, quanto os lingüistas podem tirar de sua análise sistêmica.
Os lingüistas distinguem, habitualmente, dois “mas”: um “mas” de refuta- ção e um “mas” de argumentação. Em “Geração tribalista”, encontramos alguns exemplos capazes de ilustrar essa distinção: “a maioria não quer ser de ninguém, mas quer que alguém seja seu”; ou ainda “dificilmente está apaixonada por seus namorix, mas gosta da companhia do outro e de manter a ilusão de que não está sozinha”. Estamos diante, aqui, da encenação de uma estrutura de diálogo, no interior de um movimento único de refutação, que liga a negação e a retificação (MAINGUENEAU, 1997).
Já o mas argumentativo, aquele que liga dois atos distintos, pode ser exem- plificado com as seguintes passagens do texto: “A nova geração prega liberdade, mas acaba tendo visões unilaterais”; “a questão não é causal, mas correlacio- nal”. A oposição observada entre liberdade e visões unilaterais, na primeira frase, é causal e correlacional, na segunda, só é legitimada pelo contexto situacional.
A existência de dois mas, refutativo e argumentativo, não deve, entretanto, mascarar suas afi pragmáticas. Tanto em um caso como no outro, ins- titui-se um afrontamento entre o locutor e um destinatário (real ou fi
e não uma simples oposição entre dois enunciados. O mas de refutação recusa a legitimidade daquilo que um destinatário disse ou pensou ou poderia ter dito ou pensado. Já o mas argumentativo possibilita a oposição à interpretação argu mentativa que um destinatário atribuiu ou poderia atribuir à proposição P de “P mas Q”. São dois interlocutores que se opõem, não dois conteúdos (MAIN- GUENEAU, 1997).
Como se vê, o artigo “Geração tribalista” que faz a intertextualidade mais evidente com a música “Já sei namorar”, revela-nos grande leque de possi- bilidades de interpretação. Quem se lançar ao desafi de explorar, mais pro- fundamente esses gêneros textuais vai se deparar com várias alternativas de trabalho. Aqui não serão aprofundados mais elementos que, certamente, esse jogo intertextual abarca. Fica a expectativa para um trabalho mais detalhado, posteriormente.
5. Considerações finais
O propósito desse artigo foi norteado pelo tema da intertextualidade, buscando discutir os aspectos relacionados tanto à lingüística textual, quanto à analise do discurso. Vale ressaltar que tais aspectos foram evidenciados de forma sucinta por se tratar de um trabalho ainda incipiente.
Quanto à linguística textual, observa-se que, através do trabalho intertextual de Jabor, em “Geração tribalista”, o leitor é instigado a refletir acerca de alguns aspectos referentes ao significado do termo namorar ao longo dos tempos. O lei- tor é convidado a reativar seus conhecimentos prévios, recorrendo, sempre que solicitado, a textos anteriores e necessários para a contextualização do artigo.
Toda atenção é dada à escolha das palavras, pois são elas que irão retratar o contexto social, político e cultural que Arnaldo Jabor quer deixar transparecer, pois sabe-se que a palavra é capaz de refletir não apenas a ideologia de seu autor, mas de toda uma sociedade.
Segundo Baccega (2000), a palavra, signo verbal, “solidifica” a prática social de um grupo, de uma classe social, de uma sociedade e, por isso, possibilita a continuidade do processo histórico, embasa o novo. É, portanto, a confluência do passado/presente da sociedade que a fala; passado, porque, na palavra, estão contidas todas as idéias (técnicas e artes) desenvolvidas por aquela sociedade para chegar a esse presente histórico; e presente, no sentido de que é a palavra mesma que, possuidora dessa história, vai possibilitar a construção, elaboração e reelaboração de idéias, técnicas e artes no caminho do futuro. O indivíduo/ sujeito, “emissor” e “receptor”, é o paciente/agente desse processo. É ele quem, através da palavra (sobretudo, mas não somente) recebe o passado de maneira ativa, reelaborando-o, tornado-se, ele próprio, presente e futuro.
Observa-se que, no artigo de Jabor, a confluência do passado/presente da sociedade vem à tona. Através do seu trabalho textual, Jabor deixa suscitar fra ses que remontam a tempos passados, como por exemplo, fala que relação é sinônimo de desilusão e que essa lição nos foi ensinada nas décadas passadas, ou ainda quando o autor qualifica os novos modelos de relacionamentos atualmente, chamando-os de namorix.
A respeito da questão histórica, ressaltada Dias (1996) defende que o sentido de língua portuguesa, portanto, não é algo inerente ao nome, mas é algo traba- lhado nos vários textos. Só podemos dizer que o sentido é trabalhado nos vários textos porque ele é histórico. E é o ser histórico que proporciona a intertextuali- dade. O fato de ser histórico significa, nesse caso, ser do domínio maior do que o domínio dos textos. Há uma memória que é anterior aos textos, e é devido a ele que temos a intertextualidade, é ela que traz as condições para que vários textos contraiam relações e passem a fazer parte do mesmo domínio, da mesma forma- ção discursiva, vale dizer.
Além dos aspectos lingüísticos, propriamente ditos, o que se torna a proposta maior desse artigo, breve atenção foi dada a elementos da análise do discurso, sobretudo no que diz respeito a ideologia. Isso se deve ao fato de ser quase que impossível desvincular ideologia de signo linguístico.
Segundo Bakhtin (1988), “tudo o que é ideológico é um signo. Sem signo não existe ideologia”. Nesse sentido, cada palavra - signo verbal - que entra na composição (produção) do discurso literário, que é um enunciado vivo, já está marcada por uma “avaliação” social, com a qual a palavra se vincula e da qual é porta-voz. Quando o individuo/ sujeito vai construir o discurso literário, ele toma as palavras não de um abstrato “sistema lingüístico”, mas, de outros enuncia- dos presentes na sociedade. Tais enunciados “já vistos” se fazem presentes nessa cadeia de enunciados - o discurso literário - através de um processo ideológico. Mas, ao mesmo tempo, isto é, juntamente com essa “avaliação” social contida na palavra, matéria-prima básica da literatura, as palavras, ao formarem novos enunciados, adquirirão uma nova “avaliação” que pode, inclusive, se chocar com o precedente.
A leitura do artigo de Jabor chama a atenção para essa ideologia sugerida por Bakhtin (1988), isto é, para o fato de que as palavras, escolhidas pelo autor, carregam consigo uma carga ideológica que reflete o contexto social, político e cultural de uma dada sociedade. Assim, a união signo-ideologia fica tão evidente, a ponto de o leitor não conseguir imaginar a dissociação entre ambos.
Dessa forma este artigo teve como objetivo principal compreender a relação entre texto e discurso, mostrando de que forma linguagem e prática social se relacionam. Como resultados esperados, almeja-se despertar no leitor o desejo de ampliar sua visão crítica em relação aos diversos gêneros textuais que cir culam na sociedade, extrapolando a análise do que está exposto no plano mera- mente linguístico, indo em busca da compreensão das condições de produções em que se deu a construção de um dado texto, seu discurso, prática discursiva e social.
A partir das considerações feitas, os leitores poderão, caso haja interesse, aprofundar outros aspectos que, porventura, não foram trabalhados aqui. Porém, fica a expectativa de que as reflexões feitas aqui tenham sido suficientes para a compreensão da proposta apresentada no inicio desse artigo. Certamente, essa será uma proposta inicial para um trabalho que, sinto, ainda se prolongará em outra ocasião.